MONTE DE LEITURAS: blog do Alfredo Monte

04/12/2018

RELATIVIDADE DE OPINIÃO

(Uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos em 27 de novembro de 2018)

Não sou o melhor crítico para “OITO DO SETE”, o qual acaba de ganhar um dos mais importantes prêmios de literatura, pois não gostei do livro.

Também me desagrada a referência à temática LGBT, que me parece diminuir um texto. A temática LGBT é uma face das relações humanas, apenas isso, pelo menos literariamente.

“Eu estava ali como a sombra da normalidade comedida, eu era um não à rebeldia, um sim ao sacrifício, digna da piedade dos caretas. Gasta e suja, eu queria ter na sola do sapato a terra do continente pisado, absorver magmas alheios, reconstruída como austera e ariana, respeitável milady”. Este é um trecho do “Oito do sete”, primeiro romance de Cristina Judar, a qual me impressionou fortemente com os contos de “Roteiros para uma vida curta”, ao narrar as sensações físicas e mentais de suas personagens.

No clássico “Quarteto de Alexandria”, de Lawrence Durrel, acompanhávamos as relações amorosas e as repercussões de um grupo de personagens, uns sobre os outros, tendo como ponto de fuga a cidade de Alexandria, que era quase uma outra personagem. Em “OITO DO SETE”, temos as ligações homoafetivas entre casais (Magda, Glória, Jonas e Rick) que chegam ao sexo grupal, filtradas em quatro perspectivas, a de Magda, a de Glória, a de Serafim (uma espécie de anjo exterminador) e a da cidade de Roma (outra cidade mítica).
Mas dessa vez a linguagem epidérmica de Cristina Judar não funcionou. Não nos interessamos pelos personagens e a narração é aborrecida. “Eu tenho sim visões de outros tempos, sensações antigas, o que ninguém mais teve nem nunca terá. Das vantagens dessa minha formação chamada de ser. Das vantagens dessa minha aglomeração classificada entre urbe e vilarejo. Vivo de desgostos, entre barro e tecnologias”. De fato. “OITO DO SETE” é um romance invertebrado. Mas parece ter agradado, já que ganhou cem mil.

06/11/2018

DO BAÚ DE SURPRESAS DE MARIA VALÉRIA REZENDE

(Uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos em 06 de novembro de 2018) 

Maria Valéria Rezende, campeã de prêmios de romances dos últimos anos, lançando livros de contos, “A FACE SERENA e “HISTÓRIAS NADA SÉRIAS 

O primeiro vem sendo burilado através de várias versões. Em meio a diversas histórias de adolescentes temos “Monstro” onde um bebê nasce pela metade, temos “Especulofobia”, onde um homem jamais viu o próprio reflexo. Temos o pungente, o juiz não entende onde uma mãe inteira o dinheiro para construir um quarto para o filho que está na FEBEM. E temos, finalmente, “O muro” obra síntese das escolhas de vida da grande escritora: “Nem pensei em voltar para a passagem no muro. Deus atirou-me para dentro de seu samburá de estreita boca, já não me debato. Soube logo que subiria, mas não por qual caminho, até que vi, pouco mais adiante, numa parede suja daquele mesmo beco, a marca do menino magro, fresca e brilhante, um fio de vermelho líquido ainda escorrendo. O único sinal que eu, vagamente, podia interpretar, neste mundo estranho onde nunca antes sequer imaginei penetrar. Meti-me pela viela que, alguns metros adiante, ao topar com uma parede de zinco e madeira carcomida, quebrava-se para a esquerda. Ninguém. Tive a impressão de que já não havia mais ninguém nesse labirinto, só eu e o menino pichador, porque pouco antes de que o caminho se bifurcasse, mais acima, vi outra vez a rubra assinatura. Sem outro fio senão aquele para guiar-me, eu o segui. Hesitei na bifurcação, mas ela estava lá outra vez, a marca, dizendo-me que lado escolher, direção que tomei sem mais duvidar, entranhando-me na armadilha das ruelas intrincadas”. 

Durante muitos anos, Valéria participou do clube do conto da Paraíba. Isso explica sua versatilidade e profissionalismo, destaco dois textos de “HISTÓRIAS NADA SÉRIAS“Happy hour” onde um empresário falido arrota mentiras até a hora de pegar seu táxi. Em “A chave”, uma ero moça é assediada por dois passageiros e tem uma solução genial. Os dois livros compartilham o mesmo texto com finais diferentes: “Vidraça” (de “HISTÓRIAS NADA SÉRIAS”) e “Pelas superfícies” (de “A FACE SERENA”). Confesso que prefiro o final ironicamente singelo de “Vidraça”.

30/10/2018

Destaque do Blog: “Primeiros dias do verão eterno”, de Roger Lombardi

(Uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos em 30 de out) 

“PRIMEIROS DIAS DO VERÃO ETERNO” é uma grata surpresa. Roger Lombardi tem o prazer de fabular e narrar, às vezes com gordura de mais em sua prosa e excesso de diálogos. 

Mas ele se sai bem tanto nos contos a temporais quanto nos que se passam na realidade cotidiana, onde sempre há um elemento sobrenatural, com exceção de “Morangos”, o qual trata do despertar sexual violento de uma mulher madura. Já em “A cadeira” quem se senta nela sofre experiências horrendas este relato é prejudicado por delongas na primeira parte. Em “O oficial”, este aparece misteriosamente na casa de três irmãs, alvoroçando-as. É interessante a dinâmica entre as irmãs. Em “O caminho para o jardim”, mistura tarô e o Livro de Jó. 

Nos contos a temporais, temos “A macieira”, a qual da frutos gigantes e semeia discórdia, em “Até o amanhecer”, um caçador perde-se de seu grupo na floresta, encontrando uma choupana onde viverá perturbadores eventos. Talvez o conto que melhor representa “PRIMEIROS DIAS DO VERÃO ETERNO seja “A carona”. Tem todos os defeitos apontados, com uma intrigante trama onde aparece um anjo (sem cair no ridículo), com um clima de suspense notável e um final perfeito: “Deus, perdoa meus pecados e me receba em seus braços. 

O anjo, então, colocou a mão direita em seu ombro direito e falou com uma voz grave: 

Não há nenhum deus para onde vamos. 

Atingido por outras balas no peito, braços e coxa, Carlos ainda teve tempo de entender o sentido daquelas palavras antes que tudo fosse ofuscado pela luz mais pura que já havia visto, dominando tudo de forma tão intensa e tão poderosa que não pôde mais sentir nem ver mais nada” (desculpem o spoiler). 

Roger Lombardi lembra Lygia Fagundes Telles, mas falta-lhe a precisão narrativa de seus “mistérios”. Imagino uma segunda edição mais concisa e eficaz narrativamente. 

Da maneira como está, “PRIMEIROS DIAS DO VERÃO ETERNO revela um dos autores mais interessantes do cenário atual.

23/10/2018

GÊNIO DA RAÇA PARTE DOIS

(Uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos em 23 de outubro de 2018) 

Continuo meu comentário sobre “VIDA E MORTE DE M. J. GONZAGA DE SÁ, de Lima Barreto. Foi o primeiro romance levado a cabo pelo grande escritor carioca (por isso se nota a “angústia da influência” com relação a Machado de Assis e seu Conselheiro Aires). 

Através da amizade entre Machado e Gonzaga de Sá, vislumbramos o Rio de Janeiro do início do século, sobrepondo mais do que contrapondo a revolta do jovem e a resignação filosófica do velho funcionário diante da mediocridade imperante e da destruição do Rio imperial que Gonzaga de Sá conheceu e que está sendo desfigurado pela Primeira República. 

A atitude filosófica de Gonzaga de Sá lembra, é claro, mas só superficialmente, a do Conselheiro Aires criado por Machado de Assis para filtrar de modo ainda mais sutil seu humor e pessimismo corrosivos.  

Por vezes, o velho Gonzaga abandona sua atitude de “sábio obscuro”, de “geólogo da memória da cidade” para revoltar-se, enraivecer-se, numa atitude mais adequada a seu discípulo, um idealista revoltado como o narrador de outro grande romance de Barreto (foi o próximo a ser completado), “Recordações do Escrivão Isaías Caminha” (publicado em 1909): “Longe de me confortar, a educação que recebi só me exacerba, só fabrica desejos que me fazem desgraçado. Por que mas deram? Para eu ficar na vida sem amor, sem parentes e, porventura, sem amigos? Ah! Se eu pudesse apagá-la do cérebro! Varreria, uma por uma, as noções, as teorias, as sentenças, as leis que me fizeram absorver; e ficaria sem a tentação danada da analogia, sem o veneno da análise”. 

Nesse entrançar de mocidade e velhice, revolta e sabedoria, amizade e solidão, espírito amplo e amargura, o Rio de Janeiro avulta. O livro é uma das mais cabais demonstrações da “poesia das cidades” instaurada por Baudelaire, sendo, como é, um passeio pela cidade, centro, praias e subúrbios, passado e presente. É por isso que seu ponto alto é a extraordinária sequência de capítulos em que Machado acompanha Gonzaga de Sá para velar e enterrar um compadre que morava no subúrbio. É ali que, na atmosfera carregada do velório, Machado despertará para o desejo sexual representado por Alcmena, vizinha do compadre falecido: “No dia seguinte, diante do caixão já fechado, senti-me penetrado de uma indiferença glacial… O domingo estava maravilhoso, glorioso de luz, e os ares eram diáfanos, estava sedutor e sorria abertamente, convidando a gozá-lo em passeios alegres. O silêncio da sala, aquelas velas mortiças, os semblantes contrafeitos e estremunhados das pessoas presentes, diante da soberba luz do sol, da cantante alegria da manhã, pareceram-me sem lógica.”.

16/10/2018

GÊNIO DA RAÇA PARTE UM

(Uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos em 16 de outubro de 2018) 

Em 1919 foi publicado (por Monteiro Lobato) o derradeiro livro de Lima Barreto, “VIDA E MORTE DE M. J. GONZAGA DE SÁ”. Na verdade, foi o primeiro que ele escreveu. 

Nele, o narrador, Augusto Machado, conta como conheceu o personagem-título, também funcionário público (só que bem mais velho) por causa de uma ridícula questiúncula envolvendo o número de salvas de canhão devidas a um bispo em visita a uma cidade. 

Através da amizade entre Machado e Gonzaga de Sá, vislumbramos o Rio de Janeiro do início do século, sobrepondo mais do que contrapondo a revolta do jovem e a resignação filosófica do velho funcionário diante da mediocridade imperante e da destruição do Rio imperial que Gonzaga de Sá conheceu e que está sendo desfigurado pela Primeira República. 

Veja-se o que Machado nos conta no capítulo “O passeador”: “O que me maravilhava em Gonzaga de Sá era o abuso que fazia da faculdade de locomoção. Encontrava-o por toda parte… Subia morros, descia ladeiras, devagar sempre e fumando voluptuosamente, com as mãos atrás das costas, agarrando a bengala. Imaginava ao vê-lo, nesses trejeitos que pelo correr do dia, lembrava-se: como estará aquela casa, assim, assim, que eu conheci em 1876? E tocava pelas ruas em fora para de novo contemplar um velho telhado, uma sacada e rever nelas fisionomias… Ia em procura de sobrados, das sacadas, dos telhados, para que à vista deles não se lhe morressem de todo na inteligência as várias impressões, noções e conceitos que essas coisas mortas sugeriram durante aquelas épocas da sua vida”. 

O leitor de “VIDA E MORTE DE M. J. GONZAGA DE SÁ” vai notando que, conforme o livro vai se desenvolvendo, Gonzaga de Sá parece o passeador e mais ele e Machado representam, no fundo, uma só pessoa: Machado, a mocidade; Gonzaga, a maturidade (uma maturidade, uma atitude sábia, um tanto problemáticas). Por vezes, o velho Gonzaga abandona sua atitude de “sábio obscuro”, de “geólogo da memória da cidade” para revoltar-se, enraivecer-se, numa atitude mais adequada a seu discípulo, um idealista revoltado (continua na próxima semana). 

09/10/2018

LIVRO SOBRE E.L.A DECEPCIONA

(Uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos em 09 de outubro de 2018) 

Ricky Ribeiro é um jovem de Alphaville. Popular, viajado, sua ambição é o desenvolvimento sustentável. Aos 28 anos recebe um diagnóstico terrível: é portador da E.L.A, esclerose lateral amiotrófica. 

Quando vi a envergadura de “MOVIDO PELA MENTE” achei que seria uma experiência transformadora.  Aqui o crítico vai falar mais alto. Que decepção. O relato é enfadonho principalmente porque ele quer botar tudo e todos na narrativa, que chega a por menores delirantes: “Essa viagem, além de ser uma vivência inesquecível de um jovem aproveitando a vida com amigos pela Europa, foi muito marcante por me fazer aprender novas formas de locomoção pelas cidades. Logo de cara fiquei fascinado pelas ciclovias de Roterdã e por suas outras alternativas de transporte, como o bonde, a balsa, o metrô, o trem e as caminhas a pé. Mesmo depois que alugamos o carro na França, pegamos muitas balsas, em que colocávamos o automóvel e atravessávamos de um país ao outro. De fato, a água estava presente em toda a nossa viagem. Pipo e eu entramos numa cachoeira de degelo nos fiordes noruegueses, a quase zero grau, a despeito do verão europeu. Sem contar o frio, o visual ao redor era impressionante, com abismos, estradas estreitas, túneis e braços de mar. Em Budapeste, íamos todo dia ao Banho Turco, com suas águas termais”.  

Como companheiro de desgraça fico comovido, mas isso não é motivo para ser condescendente.  

11/09/2018

NATURALISMO SÉCULO 21

(Uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos em 11 de setembro de 2018)

Há vertentes literárias que foram sendo desprestigiadas ao longo do tempo e seus autores, embora tenham importância histórica, são considerados de segunda linha. É o caso do naturalismo e seus expoentes como Aluísio Azevedo (“O mulato”, “O cortiço”) e Adolfo Caminha (“A normalista”, “Bom crioulo”). 

Em minha opinião, não há nada de errado com eles e não me surpreende encontrar exemplo da ótica naturalista no nosso século. E é o que concluo da leitura de ANTES QUE DEUS ME ESQUEÇA”, de Alex Andrade. O narrador, na prisão recorda sua trajetória em que os atavismos contam mais que as escolhas.  

O negro Joca, fruto de um estupro, cresce num bordel porque sua mãe foi expulsa de casa, no bairro de Encantado, ao qual volta, encontrando a família dividida: uma parte é evangélica, outra, ligada ao jogo do bicho. Joca torna-se a ponta do e a ponta fluente (desculpe o clichê) e as assistimos o mergulho na criminalidade que o levará para a cadeia: “O desespero foi tomando conta de tudo outra vez. Aos poucos, fui perdendo as forças, escorregando pela parede, enquanto a fumaça preenchia a cela. Quando enfim a porta se abriu, fui arrastado para o outro lado. Bandos de homens ateavam fogo em tudo. Não houve tempo de olhar para trás. Um buraco surgiu à frente: ‘Entra’, gritavam. Por um túnel, fomos seguindo durante horas; alguns me arrastavam feito um pacote se desfazendo. Quando a sede batia, era a água que se misturava ao barro que bebíamos. A mesma água que era lançada no meio dos cornos para me reanimar. Veio tudo à tona. Os pesadelos diante dos precipícios, as histórias do bordel, meus tios, minha mãe, todas as coisas e eu. Quando o sol surgiu à frente, fechei os olhos para não chorar. Deitei na grama verde, entre uma moita e um riacho que passava perto de mim, e deixei aquela luz arder sobre o meu corpo” o naturalismo ainda respira. 

 

04/09/2018

CONTOS SEVEROS

(Uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos em 04 de setembro de 2018)

Tia Lucrécia parecia ser a coitada da família, “viúva do filho” mas de repente a sorte girou e ela teve uma vida plena, casando, viajando, enriquecendo (para a expectativa geral dos parentes). Ficamos conhecendo suas proezas na maneira sinuosa de Marco Severo em “A âncora encoberta pelo mar”, meu conto favorito de “CADA FORMA DE AUSÊNCIA É O RETRATO DE UMA SOLIDÃO”.

Severo faz jus ao seu sobrenome. Cada relato é duro, impiedoso. Vejam “Chupeta de baleia”: “Maldita seja eu por ter caído nessa esparrela que me fez acreditar que seria a melhor solução para um problema que eu literalmente carrego comigo desde antes de me entender como gente” (obesidade). Vejam “Mudança”: “No ano anterior, minha mãe tinha descoberto um câncer no útero, fez a cirurgia para removê-lo, teve uma complicação e precisou ficar mais de três meses afastada do trabalho. No dia que voltou foi demitida. Desde então ela se tornara uma mulher triste. Eu até a tinha ouvido dizer ao telefone para uma de suas irmãs que agora ela não servia mais para nada. Nem pra ser mãe, nem pra trabalhar). Vejam “Ser chacrete não é pra qualquer uma”: “Foi no nome que Vevé começou a alimentar um sonho durante anos: ser uma das chacretes. Era só o programa do Chacrinha começar para ela não sair da frente da televisão nem sob ameaça de bomba na vizinhança. Quase sem piscar, Vevé se via ocupando um daqueles lugares lá no alto, onde, ao longo dos anos, vira Marli Bang-Bang, Índia Potira, Rita Cadillac e Elza Cobrinha, entre outras mais e menos famosas. Só nesse momento passava a gostar do seu próprio nome” (Vera Vitalina).

Porém, a obra-prima, a narrativa mais impactante da coletânea é “O importante é ter Deus no coração”, a qual relata o rancor de um patrão pela prosperidade modesta que vai afortunando sua diarista, e que me parece a alegoria perfeita de um ranço classista que cresceu no Brasil pós-Lula: “Quando dona Onória voltou, disse que ninguém sabia quem tinha feito aquela maldade, que só podia ser alguém sem Deus no coração, diferente de mim, um homem tão bom. Para piorar, o marido ia ter que pagar ainda não sei quantas infinitas parcelas do empréstimo que havia feito para o empreendimento. Que tristeza, dona Onória. Mas o importante é ter Deus no coração e acreditar que as coisas vão melhorar, assegurei. Prometi a ela que iria indicá-la para conhecidos, já que os antigos patrões dela tinham conseguido outras pessoas para o seu lugar, mas não me dei ao trabalho. Se alguém pedir o telefone, dou. Não sou uma pessoa ruim, sou só esquecido. Hoje, dona Onória não canta mais. Melhor assim, tudo como era antes. Voltei a ter paz. De vez em quando eu a vejo chorando em algum canto da casa. Logo mais isso passa”.

Marco Severo é um dos nossos maiores contistas.

28/08/2018

Destaque do Blog: “Alarido”, de Bruno Molinero

(Uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos em 28 de agosto de 2018)

 “meu deus é um inseto/de corpo besourento/perninhas articuladas/olhos tão miúdos que somem em exoesqueleto crocante//casquinha que daria clact/de barata amassada/à menor pressão dos meus pés/–o que eu jamais ousaria/afinal”. Este trecho de “andré, 4, deus” representa uma das vozes que tentam sobressair-se da balbúrdia geral no ótimo “ALARIDO, de Bruno Molinero, que já começa inspirado com um caminhoneiro turbinado com o famigerado “rebite”: “o segredo/é o cochilo depois do rebite//você toma/de preferência com a janta/e vai dormir logo em seguida/depois de duas horas o corpo acelera/o ponteiro bate lá na direita/e aí,/meu amigo,/é só estrada”. 

Mas o tour de force é “mateus, 27, vagão A392”, onde o eu lírico-narrativo deseja uma moça lendo Shakespeare num vagão de metrô e multiplica seu nome em inúmeras situações que sempre se esboroam diante do impossível contato. A versão século 21 do paradigmático poema “Uma Passante” de Baudelaire, porém com fôlego prolixo e enumerativo de Walt Whitman.  

Há textos curtos e brilhantes, como “marcela, 43, casada”: “matei, sim senhor/porque quis/não, até que era bonzinho/na gaveta da cozinha. Uma daquelas grandes, sabe?/isso, ele estava no sofá/de costas/não, não me viu/dei dois passos e a lâmina escorregou para a cabeça dele/não tirei porque mancharia ainda mais o tapete/ora, se sabe, por que pergunta?/desculpe. Sim, o corpo ficou lá/depois saí/mansão. Era muito rico/não. Deixou tudo para as meninas/eu sabia, sim senhor/porque quis, já disse/ cansei de subir em pau de sebo. Deslizar fácil não tem graça/sim. Mas vou ficar muito tempo?/é que deixei a panela no fogo”.  

Em tempo: gosto muito das edições da Patuá, contudo me incomodam as apresentações e orelhas laudatórias, como se os textos precisassem de tutela e muletas. Felizmente isso não acontece com “ALARIDO, já entramos de supetão num dos melhores livros de poesias dos últimos anos. 

21/08/2018

TIRANDO LEITE DE PEDRA

(Uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos em 21 de agosto de 2018)

“Nina fechou os olhos, os cílios compridos, colocou a mão no rosto, as unhas esmaltadas, os dedos longos que me deixavam eriçado quando me acariciavam e se dedicavam a desvendar os meus desejos, aqueles escondidos lá na última camada da epiderme e que ela sabia trazer à superfície com competência, ah, aquela mulher era o diabo. O barulho das ondas lá fora, o vento que balançava as casuarinas, o pio de um pássaro, os cliques da Leica e a nossa respiração. O universo perfeito, completamente alinhado, dentro daquele quarto da pousada de Búzios. Eu precisava eternizar esse instante além das fotos, se fosse possível recolheria o som desse quarto numa garrafa, igual àquelas que os náufragos atiram ao mar, para ouvir quando estivesse em agonia”.

         “Granulações” trata do tema mais banal, a separação de um casal, Pedro e Nina. Pedro tem um sentimento trágico da vida, é instável, contrai dívidas e é hostil com a família de Nina, além de beber demais; ela, por sua vez, é disciplinada, gosta de prevenir-se para o futuro, extremamente sociável, tanto que é sempre promovida.

         Anna Monteiro escolheu o esquema mais fácil e batido, capítulos alternando as vozes do casal. Qual o interesse do romance, então? Por que ele é incomum? Porque a autora segue o exemplo da grande Anne Tyler, especialista em tirar leite de pedra.

         O próprio título já traz o elogio do texto. O trecho citado acima mostra que a intimidade e não as personalidades é a última palavra sobre um relacionamento. Procure no Google, leitor, o significado de “granulação” (“Formação de pequenas massas, essencialmente de capilares neoformados, na superfície das feridas em cicatrização”). As diferenças entre os dois eram compensadas por rituais íntimos que cicatrizavam o conflito. Até perderem a força, como na bela música cantada por Nana Caymmi, “e a verdade mais doída é que o rasgo da ferida nunca mais doeu”. Mas é um processo longo, do qual as granulações das fotos em preto e branco de Pedro são a melhor metáfora.

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