



Nota- Todas as notas de rodapé são posteriores aos textos publicados.
No coração da Califórnia, vivem os maléficos Pollards. Frank, o mais velho, mata a mãe e é perseguido pelo irmão, Candy, vampiresco e edipiano. Por sete anos consegue despistá-lo; quando dorme, porém, seu dom de teletransportação leva-o invariavelmente de volta ao lar, o que permite a Candy seguir seu rastro —pois possui poderes ainda maiores.Frank procura, então, a ajuda de um casal de investigadores, os Dakota, para descobrir o que acontece enquanto “dorme”…
Em Nova York, uma entidade maligna, velha conhecida de quem leu O fortim e Renascido[1], quer vingar-se de Bill Ryan, jesuíta que trabalha num orfanato. E consegue, usando como instrumento um casal aparentemente confiável, adotar e torturar de forma horrível uma criança chegada a Ryan, que ainda leva a culpa pelo crime e tem de fugir. Cinco anos depois, tudo começa a se repetir com Lisl, a única amiga da nova identidade que construiu na Carolina do Norte, atraída por um sedutor que, sem dúvida, tem relação com os acontecimentos anteriores…
A Record colocou no mercado novas obras de dois especialistas em terror: A Casa do Mal (The Bad Place,1990), de Dean Koontz, e Represália (Reprisal,1991), de F. Paul Wilson, em traduções—respectivamente—de Geni Hirata & Bráulio Tavares. Ambas passam no teste supremo do gênero: fazer com que o leitor fique absorvido durante horas, e apavorado, caso falte luz em casa.
Koontz & Wilson demonstram qualidades similares no trabalho com os personagens (apesar dos clichês incômodos, por exemplo o policial obcecado por um crime do passado, em Represália). Pena que, como outros autores contemporâneos, tenham a mania de matar sem dó personagens que nos envolveram páginas e páginas e dos quais gostávamos. Por que será? Para não parecerem ingênuos ou maniqueístas demais? É um tipo de frustração que sentimos também, até em demasia, ao ler textos de Stephen King. Em compensação, Wilson se dá ao trabalho de justificar o motivo que faz o Mal, tão poderoso e onipresente, se preocupar apenas com um punhado de pessoas e ter uma ação tão doméstica, como é de praxe nesses enredos.
Koontz & Wilson compartilham igualmente o mesmo defeito: a prolixidade. Ambos se alongam um pouco demais, talvez porque tenham também a pretensão de comentar a sociedade norte-americana, seus valores e perigos potenciais (não à toa, Rafe, o sedutor de Lisl, em Represália, a doutrina para uma filosofia de vida neonazista). Koontz ainda vai mais longe, colorindo a trama de A Casa do Mal com o politicamente correto mais extremado, defendendo os direitos das minorias asiáticas (através dos funcionários do casal de detetives) e criando (e acompanhando seu ponto-de-vista) um personagem deficiente mental e ao mesmo tempo sensitivo e telepata.
Os dois livros mostram também como a palavra escrita ainda leva vantagem sobre a imagem (basta ver como o cinema de terror anda desgastado) no detalhamento de mutilações e sanguinolências (cada vez mais explorado; diga-se de passagem, nesse quesito, Wilson é até bem discreto). Não há ridículos aqui (o terrir) e nem aquela sensação irrisória de tudo ser mero efeito de maquiagem. As duas narrativas despertam a imaginação do leitor com uma sensação sombria, que corresponde a medos imemoriais e infantis do ser humano, e que Thomas, o especialíssimo deficiente mental criado por Koontz expressa tão bem: medo da dor física, da noite, do desaparecimento das pessoas queridas, medos decorrentes da própria existência da mortalidade.
Talvez, por isso, se é necessária uma comparação desse tipo, A Casa do Mal perdure mais na memória do leitor. Que, fechados os livros, esquecido do cotidiano, deita e espera a mão vir por debaixo da cama e pegá-lo…
(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 05 de julho de 1994)

O mapa da literatura de terror nos EUA é dividido em dois domínios: no leste, Stephen King pontifica com suas fábulas sobre o empedernimento do coração humano; no oeste, Dean Koontz se destaca na criação de histórias que ele amplifica para um comentário sobre a sociedade contemporânea[2].
O autor de The Bad Place-A Casa do Mal nos apresenta prósperos pais de família que sempre parecem achar não merecer tal bem-estar e o amor das esposas e dos filhos, e aí então se abre uma brecha para que o avesso ameace instalar-se. Isso já transparecia fortemente em Esconderijo[3], onde um pai de família, após morrer clinicamente e ser revivido, adquiria uma ligação mental com um psicopata dominado por um demônio, e agora é levado ao extremo em Sr. Assassino (Mr. Murder, 1993,traduzido por Reinaldo Guarany).
Dessa vez, a ligação mental do escritor Martin Stillwater é com um clone sociopata criado por conspiradores do goveno americano, os quais cometeram um engano e utilizaram amostra da medula óssea de Stillwater (maiores detalhes, só lendo o romance). Tal clone, Alfie, sósia do escritor, vivia indo “a lugares sem saber o objetivo de sua viagem até chegar a seu destino, e matou pessoas sem saber por que deveriam morrer ou para quem estava fazendo a matança”. Ele renega seu condicionamento e resolve tomar a vida de Stillwater, que conhecêramos no início de Sr. Assassino tendo uma premonição de desgraça.
Como em Stephen King nem sempre dá para levar a sério ou ficar sem rir. Koontz também acumulou uma avalanche de clichês considerável até mesmo para um gênero saturado como o terror. Não faltam as burrices proverbiais dos protagonistas, que são capazes de ficar um tempão arrumando malas para uma fuga (enquanto Alfie sequestra as filhas) ou aquela velha mania de se esconder num local o mais isolado possível—que, entretanto, não impede o acesso do vilão[4]. Qualquer leitor atento verá como é fácil prever boa parte das soluções da trama, até mesmo a identidade do salvador da família.
Mas, em igual porção, assim como sr. Terror do Maine, o sr. Terror da Califórnia sabe como prender a atenção e encantar com mil detalhes supostamente secundários. E Koontz ainda vai além, pois cria uma empatia com os personagens raramente alcançada pelo autor de O Cemitério. Os heróis de Koontz se sentem atraiçoados pelo sistema: “Se não podiam receber assistência e proteção oficial, então o governo falhara com eles no dever mais fundamental: proporcionar a ordem civil através da aplicação justa porém estrita do código criminal. Apesar da máquina complexa na qual viajavam, apesar da moderna autoestrada na qual rodavam e da rede de luzes suburbanas que cobria a maior parte dos morros e vales do sul da Califórnia, essa falha significa que não estavam vivendo num mundo civilizado… Na verdade, viviam numa anarquia com alta tecnologia”. Se eles viessem para o Brasil, aí sim é que eles veriam o que é bom para a tosse.
(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 23 de janeiro de 1996)

A trama de Os Escolhidos (The Select, 1994, traduzido por Sylvio Gonçalves) dá a impressão de que F. Paul Wilson resolveu invadir a lucrativa seara de Robin Cook, o especialista em thrillers médicos. Os três personagens principais, Quinn, Tim e Matt, prestam exames para uma conceituada faculdade de medicina, a Ingraham, onde se estuda de graça e se vive em tempo integral no campus.
Como moça pobre, Quinn é a que mais deseja ingressar na Ingraham, mas fica na lista de espera, enquanto seus dois amigos passam. Matt desiste de fazer a matrícula e ela, graças a um artifício, consegue a sua vaga. E então, ela e Tim (que estão apaixonados) descobrem qual é a visão da medicina que se cultiva na cobiçada instituição.
Nesse ponto é que é o romance se torna um autêntico F. Paul Wilson, com seu soturno tom conspiratório e sua denúncia dos surtos fascistas que pipocam aqui e ali na sociedade (basta relembrar de Renascido & Represália).
Sem entrar em maiores detalhes, o tema central de Os Escolhidos é o uso de cobaias humanas em testes para novos medicamentos. No livro, pessoas consideradas inúteis socialmente (idosos, mendigos) são utilizadas ilegalmente para esse fim[5].
Wilson consegue um clima convincente e arrepiante justamente porque nós, no fundo, sabemos que coisas horríveis acontecem nos laboratórios da vida real. Aliás, como eu considero desprezível toda pessoa que utilize qualquer tipo de animal como cobaia, para torturá-lo e atormentá-lo (e sou um dos milhares de cidadãos que se chocam com a falta de controle e vigilância por parte das autoridades)[6], não acho nada surpreendente que, secretamente, se realizem experiências em seres humanos, num mundo como o nosso, em que se sequestram crianças para roubar órgãos sadios.
Portanto, não há nada de novo no cinismo e falta de escrúpulos que formam o pano de fundo a sustentar a teia da Ingraham, na qual ficam enredados Quinn e Tim e os outros “escolhidos” da faculdade, monitorados por microfones e bombardeados por mensagens subliminares. De fato, um dos quesitos que fazem parte da seleção em Ingraham é a receptividade a esse tipo de mensagem. E Quinn torna-se um problema: ela não é receptiva, e consegue ficar imune a elas.
Entretanto, não é só por esse motivo que ela é especial. O que torna Os Escolhidos interessante como leitura é o fato de Wilson conseguir nos envolver profundamente com a sorte de Quinn e Tim. O mundo é podre, a ética médica foi para o espaço, o grau de corrupção já chegou a um ponto sem volta, mas que pelo menos os dois escapem ilesos da conspiração, é isso que não nos deixa largar o livro.
Quando Tim é aprisionado na enfermaria onde fazem experiências com seres humanos (inclusive queimando-os para testar um novo tipo de enxerto), a leitura torna-se angustiante e Wilson obtém o triunfo que pode almejar o fabulador desse tipo de livro. Não dá para parar de ler, enquanto não se sabe o que vai acontecer com ele.
É bobo, é pueril, e absolutamente inócuo diante do quadro aterrador que o romance sugere, mas é por essa razão que Os Escolhidos é ótima diversão (uma das melhores dos últimos anos) vale cada centavo investido nele: seus heróis não são gente descartável. São os “nossos” eleitos.


[1] O fortim ganhou em 1983 uma adaptação cinematográfica de Michael Mann (se bem me lembro, com o título nacional de Fortaleza Infernal, a qual se distingue pela impressionante breguice (proporcional à sua pretensão). O filme, aliás, é tão cafona que até atores do quilate de Ian McKellen e o admirável Scott Glenn flertam perigosamente com a canastrice e o ridículo.
[2] Atualmente, eu não ficaria tão certo da exatidão dessas afirmações, por dois motivos: um, cada vez mais a obra de King—que antes me parecia enveredar sobretudo mais pelos caminhos morais—deixa-se permear pela política (eu teria de voltar aos seus primeiros livros, para conferir se isso já estava lá); o outro, já não acho correto colocar os dois autores na mesma balança—certamente Koontz está longe da proeminência e penetração cultural do seu colega do leste. Diga-se de passagem, Koontz é originário da Pensilvânia, mas o cenário de seus livros geralmente é a Califórnia.
[3] Cuja versão cinematográfica (dirigida pelo indefectível Brett Leonard em 1995) tinha Alicia Silverstone, a um passo de se tornar uma estrelinha (o que já deixou de ser há muito). É um filme bem assistível, embora nada de especial.
[4] Hoje em dia, já acho que são propositais esses ganchos: os autores esperam que o leitor tenha essa reação de impaciência, faz parte do repertório do gênero
[5] Um filme de 1996 (de Michael Apted), Medidas Extremas com Hugh Grant e Gene Hackman aproveitou o mesmo mote.
[6] Escrevi isso em 1996. Em 2013, desalentadoramente, nada mudou.

