MONTE DE LEITURAS: blog do Alfredo Monte

30/06/2015

Destaque do Blog: AMORES, TRUQUES E OUTRAS VERSÕES, de Alex Andrade

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(uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 30 de junho de 2015)

«… no fundo, eu queria sair daquele enredo e logo chegar em casa, abrir imediatamente o aplicativo do celular, que não parava de piscar e apitar, e dar um jeito de mergulhar em outras tantas aventuras[…] Ele se despediu e eu retornei ao meu mundo virtual.

O próximo, pensei sorrindo…»

A leitura mais evidente das histórias narradas em Amores, Truques e Outras Versões, de Alex Andrade, é vê-las como fixação, no registro homoafetivo, de “amores líquidos”, no sentido de uma pós-modernidade baumaniana[1] em que afetos e laços são voláteis, o princípio do consumo norteando até a intimidade, sem falar no fetichismo tecnológico: «Às vezes é assim mesmo, bastou um simples toque ou mesmo me sentar no sofá com  o aparelho por perto e o laptop no colo e o mundo se abre como um passe de mágica […] estão entregues as chaves, os documentos e a porta do paraíso estão escancarados aos nossos pés, a poucos metros de distância de nós, como indica o GPS que sempre está em ação».

Dividido, de forma matreira e inteligente, em três partes, na primeira (Truques), o narrador utiliza um aplicativo para encontros com vários homens (há algumas abordagens fortuitas, por exemplo, no metrô), que emergem «da multidão de bíceps, bundas, sungas, muitas caras, apresentando contornos de membros avantajados, sorrisos blindados no photoshop e perfis desconexos…». Sempre fornece um nome falso, mal se lembra do nome do parceiro[2], mas isso já é normal num universo em que «A sacanagem é um fast food […] Posso pensar no que quiser, posso ser quem eu quiser»; na segunda (Outras Versões), temos o ponto-de-vista desses homens com os quais ele conversou virtualmente ou foi às vias de fato, multiplicando a cadeia de liquidez e descartabilidade, como espelhos infinitos; enfim, na terceira (Amores), reencontramos o narrador inicial, e o autor carioca frustra qualquer expectativa-clichê (especialmente se atentarmos para o título) e nos oferece o ponto alto do seu livro, um belo momento do conto brasileiro atual.

Essa terceira parte também me deixou convicto de que, tirando todo o aparato tecnológico, roupagem mais recente das relações humanas, o mais interessante em AMORES, TRUQUES E OUTRAS VERSÕES[3] é a revitalização de um arquétipo essencial, representante de um mundo em que as aventuras (no sentido antigo, de feitos heroicos[4]) foram cedendo campo à domesticidade e uniformidade. O narrador nos fala do «homem que cisma com o orifício alheio…». Hetero, bi ou homo, é Don Juan, aquele que busca na quantidade de experiências sensuais saciar uma fome que nunca será satisfeita, mas que sempre está sendo açulado por um contorno de lábio, por aquela pequena diferença que lhe encanta na multidão.

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O que faz da atualização do mito, esse donjuanismo de aplicativos, algo terrível e pungente, é que na sociedade do século XXI estamos morrendo mais velhos. E o corpo (como instrumento de conquista) se torna mais problemático porque ainda não inventaram nada que realmente drible o tempo, a não ser os “truques” (photoshop, cirurgias, malhação). E numa oferta de corpos em abundância, é fácil ser descartado, ficar “fora do mercado”, por não corresponder às exigências dessa demanda.

Don Juan está em apuros. Mesmo porque, com a proliferação de “chaves do paraíso” (laptops, celulares e mais o quê mesmo?), a imaginação corporal e erótico-afetiva da humanidade não se expandiu tanto assim, diria antes o contrário. E é nesse sentido que entendo uma frase do texto: «A danada da liberdade nos traiu»[5]. Pois a autoconsciência faz parte do jogo[6], embora seja uma carta que não nos possibilite vitória alguma: a ciranda (ou roda-viva) petrifica-se e a boca da fonte, como no poema de Rilke, fica a dizer a mesma água, inesgotavelmente: «Daí acionei o botão, liguei o aparelho e disparei com os dedos feito uma locomotiva. Logo foram surgindo as carinhas, contornos, silhuetas, mensagens e mais mensagens. Na verdade, as mesmas imagens de sempre…».

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TRECHO SELECIONADO

«Ei, tô pertinho de vc, dá para vc aparecer? Eu estou de camisa preta, calça jeans surrada, óculos escuros pendurados na gola da camisa, óculos de grau no rosto, cabelo preto, estou rodeando uma praça, é perto de vc? A praça tem um monumento, perae, me deixa ver que porra de monumento é esse (…) Pronto, entrei na praça, é um pouco fedida, tem cheiro de morrinha de mendigo, cheia de gatos. A estátua é de um carinha miudinho, feio pra cacete, empunhando uma espada, cacete, arrancaram a placa informativa, desce se vc estiver em algum prédio, aparece na janela pelo menos. Ele nem responde. Mas vejo que está online. Na verdade estou mesmo com raiva daqueles engravatados andando em fileira e tomando conta da calçada. Oi, estou sentado perto do monumento, tá me vendo? (…) Tem um cara vindo na minha direção, deve ser ele, não. Perae. O senhor tem como me ajudar com dois reais para pagar a minha passagem?, é que eu fui assaltado e me levaram tudo, eu consegui no bar esses dois reais, mas eu moro longe e está me faltando mais dois. O cara literalmente parou na minha frente. No banco da praça tem uma mendiga coçando a cabeça, com o cabelo pintado de louro e toda descabelada. O sujeito não sai da minha frente: amigo, não tenho dinheiro. Ponho as mãos nos bolsos, puta que o pariu,  saí do Centro Cultural sem a minha bolsa e sem os documentos. Olha aqui, meu camarada, só tenho esse celular que vc tá vendo na minha mão, entendeu? A mendiga começa a catar coisas do chão, vc tá vendo isso? Sou eu quem está perto dela, se vc está aqui por perto, se aproxima. Cadê o cara que queria dois reais?, filho de uma égua, ah lá vai ele atrás dos engravatados, olha isso, um deles é aquele carinha que se empanturrou de croissant de queijo catupiry no bistrô comigo, veado! Ai, meu Deus, a mulher tá comendo areia! Olha aqui… como é mesmo o seu nome?

    Desculpa, o meu é Felipe. Não, Bruno…. não. O meu nome, o que eu falo pra ele?»

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NOTAS

[1] VER AQUI NO BLOG: https://armonte.wordpress.com/2012/07/29/o-signo-de-bauman-um-aperitivo-de-%C2%B4modernidade-liquieda/

No livro de Alex Andrade, lemos: «… não importa mais nada, senão o momento presente […] Está tudo tão fácil de conseguir, então conseguimos, usamos, no outro dia não nos cabe mais, adquirimos outro com uma facilidade extrema, não nos bastamos, nem a ninguém, nem a nós mesmos. Não se criam vínculos, nem história, nem nada…»

[2] «… não respondi a respeito  do meu nome, porque não sabia ao certo o nome que tinha digitado no celular enquanto combinávamos o encontro»

[3] Em tempo: editado pela Confraria do Vento. A capa é sensacional.

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[4]  Provavelmente por esse motivo me veio fortemente à lembrança, no embalo da leitura do livro, uma fala de Tróilo e Cressida (que cito na tradução de F. Carlos de Almeida Cunha Medeiros & Oscar Mendes), embora a peça de Shakespeare trate de outra época, outros valores:

«ULISSES: Há um traço da natureza que torna todos os homens parentes e este traço é que todos, unanimemente, elogiam as frivolidades recém-nascidas ainda que sejam formadas e moldadas pelas coisas passadas e dão ao pó, embora seja este pó ligeiramente dourado, mais elogios do que ao ouro coberto de pó. Os olhos presentes admiram o objeto presente. Não vos espanteis, Aquiles, homem grande e perfeito, de que todos os gregos comecem a adorar Ájax, visto que as coisas em movimento atraem muito melhor que as imóveis. A aclamação, outrora, era dirigida a vós e ainda poderia dirigir-se  a vós, e poderá novamente, se não vos enterrásseis vivo  e se não guardásseis vossa reputação debaixo de vossa tenda…»

[5] «A danada da liberdade nos traiu, nos aprisionou no vazio, sozinhos, entre quatro paredes e com um aparelho celular entre os dedos…»

[6] A princípio, fiquei um pouco incomodado por essa “moral da história” (por exemplo: «Preciso de histórias, bem sei. Todos nós precisamos com a ausência de acontecimentos, a rapidez das horas e a globalização, o mundo anda numa aceleração contínua, a vida não nos dá tréguas, então vivemos nos reinventando a cada dia»), por assim dizer, ser dada tão de bandeja, ser tão explícita, mas dei-me conta de que esse automoralismo, consciente o tempo todo do esvaziamento das experiências e do enquadramento em padrões de mercado, já é um lastro do ser humano  “líquido”, cuja interioridade não tem força para se preservar diante dos assédios (fugazes), o dionisíaco eternamente prometido, a “falsa liberdade”.

Dito isto, creio que o ponto fraco de Amores, Truques e Outras Versões (do qual ele se redime na terceira parte) seja uma impregnação do tom da crônica. O autor que fique esperto com relação a isso.

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24/06/2015

Cem páginas que valem por três imagens

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(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 22 de junho de 2015)

   Três vezes ao amanhecer, como o título indica, divide-se em três episódios distintos (que poderiam ser momentos da vida de um mesmo indivíduo), todos eles iniciando-se num hotel.

No primeiro, um quarentão está sentado no hall. Chega uma mulher a qual, embora se dizendo hóspede, pede que ele a leve para o seu quarto. A todo instante, o homem reitera que precisa partir, pois tem um compromisso, no entanto fica, como se sua vontade “amolecesse” junto àquela estranha. Amanhece. Saberemos que seu o nome é Malcolm Webster quando a polícia bater à porta para levá-lo; no segundo, um velho porteiro noturno observa a chegada de um casal: deplora que a moça, adolescente de encanto irresistível, embruteça-se e se desperdice com um parceiro violento e barraqueiro. Consegue convencê-la a sair do hotel em sua companhia, após revelar que passou anos na prisão. O amanhecer os surpreende em fuga: «Seria uma trabalheira compreender a história deles, ao vê-los…Talvez um pai e uma filha, mas nem isso».  Acabam separando-se, e quem alcança o porteiro é o parceiro dela; no terceiro, uma policial cinquentona decide ser um pardieiro inaceitável o hotel para onde foi levado um garoto (chamado Malcolm) que perdeu os pais num incêndio criminoso; contrariando ordens superiores, coloca-o num carro e dirige noite afora para deixá-lo, ao amanhecer, junto a um homem que constrói barcos e com quem tem uma longa história de idas e vindas…

Três vezes ao amanhecer já seria notável pela intensidade dramática que todos os episódios alcançam. Que filme ou peça poderiam ser extraídos das situações, no deslocar da impessoalidade que o próprio espaço—os hotéis—sugerem para uma intimidade perturbadora e lancinante! Todavia, para mim o supremo encanto da leitura foi a “janelinha”, por assim dizer, que ela abre com relação ao romance anterior desse talentoso escritor da atualidade que é Alessandro Baricco: Mr. Gwyn (também lançado pela Alfaguara[1]), contra o qual a única queixa era de que ele nos deixa na mão num ponto crucial, o experimento dos “retratos em palavras” de seu protagonista. Eles permanecem mais um conceito do que uma experiência narrativa, apesar de tudo o que o relato tem a nos oferecer em matéria de fabulação e reflexão (e é pródigo em ambos).

Pois Jasper Gwyn, um cultuado escritor, anuncia o encerramento da sua carreira. Dedica-se, então, a um inusitado experimento: observando uma pessoa, como um “quadro vivo”, num cenário totalmente controlado, compromete-se a entregar a ela (e tão somente a ela, sem publicidade) o resultado verbal dessa longa contemplação Era como fazer-lhes uma mesa, ou lavar-lhes o carro. Um ofício. Escreveria o que eram, só isso»). Até que a discrição com que exerce essa arte de “copista” (como a denomina) é comprometida e transformada em escândalo. Ele desaparece. Sua colaboradora e modelo inicial, Rebecca, lê um livro chamado “Três vezes ao amanhecer”, de Akash Narayan, dando-se conta de que ali está reproduzido um dos quadros de Gwyn. Como eles nunca foram divulgados, suspeita que Narayan é o escritor trânsfuga, ainda assombrado pelas palavras.

A princípio, o leitor pode achar que, à moda de um Paul Auster, Baricco se compraz em jogos de espelhos ao escrever o romance que Rebecca leu. No prefácio, o italiano afirma que o fez «um pouco para dar uma leve e distante sequência a Mr. Gwyn e um pouco pelo simples prazer de perseguir certa ideia que eu tinha na cabeça».

Não sei qual ideia ele tinha na cabeça e perseguia. O que ele realizou, de maneira alguma leve e distante, foi justamente criar “quadros escritos”, concretizar, enfim, o projeto de seu peculiar herói. Afirmei que Três vezes ao amanhecer funcionaria no palco ou nas telas. Mas sua leitura é muito mais a experiência de ter quadros (como os de Edward Hopper, por exemplo, que se prestam muito a um olhar narrativo) metamorfoseados em palavras. Cem páginas que valem por três imagens.

VER AQUI NO BLOG:

https://armonte.wordpress.com/2015/05/07/os-quadros-escritos-de-alessandro-baricco-mr-gwyn-e-tres-vezes-ao-amanhecer/

Daniel Pereira

NOTAS

[1] Ambos traduzidos por Joana Angélica D´Ávila Melo (o título original de Três vezes ao amanhecer é “Tre volte all´alba, 2012—Mr. Gwyn foi publicado no ano anterior).

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16/06/2015

Kazantzákis, o olhar cretense e o abismo de Deus: “Relatório ao Greco”

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«… sempre me senti seduzido por essas três criaturas de Deus e me sentia em uma misteriosa unidade com elas; elas me pareciam ser o símbolo da travessia do meu espírito: a lagarta que se transforma em borboleta, o peixe-voador que pula da água lutando para ultrapassar sua natureza, e o bicho-da-seda que transforma suas entranhas em seda…»

«Sei bem que o que escrevo nunca será completo em termos de arte; como minha intenção é lutar para ultrapassar as fronteiras da arte, deturpo a essência da beleza, a harmonia […] escrevendo, não lutava para atingir a beleza, e sim a salvação… sou um homem e um “eu” que sofre e se angustia pedindo a salvação, para libertar-me de minha escuridão interna e transformar em luz os meus terríveis antepassados que rugem, e torná-los homens…»

(uma versão da resenha abaixo foi publicada em A TRIBUNA de Santos, em 16 de junho de 2015)

Além de A Dificuldade de Ser, de Jean Cocteau (VER: https://armonte.wordpress.com/2015/06/02/destaque-do-blog-a-dificuldade-de-ser-de-jean-cocteau/), outro clássico que subverte o gênero autobiográfico se destaca entre os lançamentos recentes: Relatório ao Greco[1], cuja edição (pela Cassará) viabilizou-se graças a um sistema de cooperativa[2]. Após a leitura dessa luminosa obra póstuma (1961) de Níkos Kazantzákis (1883-1957), não é difícil entender o interesse em investir num projeto como a sua tradução direta do grego, realizada por Lucilia Soares Brandão.

Curiosamente, embora não pudesse haver escritores mais antípodas do que  o cretense e Cocteau (este, vanguardista, multimídia, imiscuído nos meios culturais mais sofisticados; aquele, místico, ligado ao telúrico, aos elementos primordiais, anti-moderno[3]), ambos, na rememoração não-linear e sinuosa de suas vidas e realizações, apelaram a ancestrais da “raça”, do século XVI —no caso do francês, Montaigne; no de Kazantzákis, já a partir do título, o conterrâneo de ilha, Doménikos Theotokópoulos, que fez carreira como pintor na Espanha com a alcunha de El Greco. Outro traço que os aproxima, apesar dos contrastes, é o gosto por debruçar-se em mitos e lendas e dar-lhes novo sopro. O autor de A Dificuldade de Ser recriou, por exemplo, a história da bela e da fera, sem falar da sua obsessão com Orfeu. E aquele que, nos seus últimos anos, presta contas ao simbólico “avô” (como se refere ao Greco), transitou por uma nova Odisseia, pelo palácio que abrigava o labirinto e o minotauro (No Palácio do Rei Minos), e pelas trajetórias simbólicas de São Francisco (O Pobre de Deus) e Cristo (A Última Tentação)[4].

Ser escritor parece constituir uma certa derrota para Kazantzákis, uma espécie de vida menor. Crescendo numa época de jugo de Creta pelos turcos, contra o qual seu pai foi um dos líderes rebeldes (fornecendo a atmosfera de romances como O Cristo Recrucificado e Capitão Mihális), nunca se sentiu talhado para a ação (embora relate um marcante episódio em que ajudou a resgatar milhares de gregos no Cáucaso). Como primeiro “letrado” da família, deveria lançar-se numa carreira política, essa era a expectativa geral (pois um lema atravessa o livro: “nunca envergonhar Creta”). Só que desde a infância, a santidade exerceu um fascínio irresistível sobre sua imaginação: «Não nasci puro; luto para sê-lo. Para mim, a virtude não é um fruto de minha natureza, é o fruto de minha luta».

Dessa forma, boa porção da sua mocidade (e do seu Relatório) foi orientada por viagens de peregrinação, ao Monte Athos (cheio de mosteiros e eremitérios ortodoxos), pela Itália são-franciscana, a Jerusalém, ao Monte Sinai, numa torturada dialética entre o cristo crucificado e a ressurreição, sempre lutando com concepções brutais e conflituosas de Deus e com a imagem da “ascensão” (isto é, de uma possível transcendência[5]): «Avô, o nosso centro, que seduziu o mundo visível em seu giro e luta para suspendê-lo ao mais alto grau da coragem e da responsabilidade, é o seguinte: nossa luta com Deus. Que Deus? O selvagem cume do espírito do homem que estamos sempre atingindo e que está sempre saltando e subindo ainda mais alto[…] subida, abismo e solidão».

Alguns desvios de peso (o mergulho, em Paris, na obra de Nietzsche, essa  negação do cristianismo desfibrador do destino humano[6]; depois na concepção budista do nirvana; e ainda o entusiasmo pela Revolução Russa e por Lênin—Kazantzákis chegou a viajar para Moscou) não descaracterizam substancialmente os pilares dessa existência: essa procura do que está atrás do “rosto de Deus” (e Cristo como arquétipo do confronto entre o humano e o divino), mesmo que seja caos e abismo; e—despontando em momentos decisivos—aquilo que o criador de Zorba[7] denomina “olhar cretense”, primeiramente uma apologia da encruzilhada que a Grécia representou na civilização, harmonizando e unificando instinto e razão, forças primordiais e simbólicas, depois um reencontro com aquele que representa a plenitude do homem grego, Odisseu (com traços zorbescos)[8]: «eu já tinha me prendido no papel e na tinta; quando conheci Zorba já era tarde demais, já não existia salvação para mim, já tinha me tornado um incorrigível escrevinhador». Não por acaso, a recriação, em 33.333 versos iâmbicos de 17 sílabas não rimadas, divididos em 24 livros (um para cada letra do alfabeto grego), da Odisseia (1938) foi a obra que o consolidou como um dos maiores autores do século passado, antes mesmo de seus extraordinários romances[9].

Cretense ou cristão, o olhar de Relatório ao Greco, também marcado pela dificuldade de ser, opta pela “fé desesperançada”: «talvez não a mais verdadeira, e sim a mais corajosa; e a esperança metafísica, uma isca que um homem verdadeiro não aceita morder».

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TRECHO SELECIONADO

«O Palácio, meio em ruínas, meio renovado, depois de milhares de anos, brilhava e se alegrava de novo, ao sol de Creta. Nesse Palácio, não se vê o equilíbrio, a arquitetura geométrica da Grécia; aqui impera a imaginação, a alegria, a livre brincadeira da força criadora do homem. Esse Palácio cresceu e se espraiou com o passar do tempo, como um organismo vivo, como uma árvore; não foi construído de uma só vez seguindo um projeto firme, estudado; era completado brincando e se harmonizava com as renovadas necessidades do tempo. Aqui a severa e inflexível lógica não guiou o homem; a mente era útil, era o empregado, não o patrão; o patrão era outro. Que nome lhe damos? […]

   Paramos diante de uma coluna quadrada de gipsita brilhante sobre a qual estava gravado o símbolo sagrado, o machado de duas faces. O abade juntou suas mãos, dobrou um pouco os joelhos e movimentou os lábios como se estivesse rezando. Surpreendi-me:

__ O senhor está rezando?

__Mas é lógico que estou rezando, meu jovem amigo. Cada raça e cada época dá a seu Deus a sua própria máscara. Mas atrás da máscara de cada época e de cada raça, encontra-se sempre o próprio Deus.

   Na época, eu era muito jovem, não entendi […] depois de muitos anos, meu cérebro pode comportar e frutificar aquelas palavras; atrás de todos os símbolos religiosos também eu distingo o irremovível, o eterno rosto de Deus e, mais tarde ainda, quando a minha mente se alargou ainda mais, quando meu coração ficou ainda mais ousado, começou a distinguir o que tinha atrás do rosto do próprio Deus, uma terrível escuridão desabitada, o caos…»

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NOTAS

[1] “Αναφορά στον Γκρέκο”, no original. A Artenova publicou, nos anos 1970, uma tradução indireta de Clarice Lispector, com o título Testamento para El Greco, a qual, eu—como muitas outras pessoas que conheço—li e achei bonito (malgrado certos aspectos retrógrados e chauvinistas me desagradassem), conquanto “torturado”, porém sem um impacto maior, como tive com outras obras do autor, e principalmente longe do impacto existencial que ele teve sobre a existência de Hilda Hilst. Veja-se o seguinte depoimento da autora de A obscena Senhora D:

«Quando eu estava com 33 anos, um querido amigo que morreu, Carlos Maria de Araújo, poeta português, me deu um livro de [Nikos] Kazantzákis: “Carta a El Greco”. Eu o li e fiquei deslumbrada. Era um homem que ficava lutando a vida toda até terminar de uma maneira maravilhosa, escrevendo um poema de 33 mil versos, “A nova odisseia”, onde lutava com a carne e com o espírito o tempo todo. Ele desejava ao mesmo tempo esse trânsito daqui pra lá. Era o que eu queria: o trânsito com o divino. E também o trânsito com o homem e todas as maravilhas da vida, o gozo físico, a beleza física do outro. Era um consumismo meu, absolutamente terrível, porque ofendia muito as pessoas. Eu me impressionei tanto com a caminhada desse homem admirável, que resolvi ir morar num sítio. Achei que, longe e de certa forma me enfiando também (porque eu era uma mulher muito interessante), durante um certo tempo bem longo, eu pudesse trabalhar, escrever. E foi maravilhoso. Foi justamente nesse lugar, nesse sítio, que eu, longe de todas aquelas invasões e das minhas próprias vontades e da minha gula diante da vida, pude escrever o que escrevi. Acho que é verdade que qualquer pessoa que deseje realmente fazer um bom trabalho tem que ficar isolada, tem que tomar um distanciamento. É mais ou menos uma vocação. Você sente que aquele momento é o momento e que não há muito tempo. Às vezes, as pessoas dizem: “Eu vou quando estiver mais velhinho, ou mais velhinha. Ou quando eu estiver pior. Aí eu começo”. Mas acontece que não dá tempo. Então, aos 33 anos, fui para esse sítio onde moro até hoje, e me entreguei a um novo trabalho».

[2] São 55 os listados, entre eles o saudoso poeta Donizete Galvão.

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[3] «Não consigo me lembrar de meus vizinhos sem chorar e rir ao mesmo tempo. Naquela época, os homens não entravam, às dezenas, na mesma embalagem, cada um deles era um mundo à parte, tinham as suas estranhezas, às vezes riam uns dos outros, outras vezes falavam, fechavam-se dentro de casa, mantinham seus mais preciosos desejos escondidos por vergonha ou por medo, e esses desejos cresciam dentro deles e os sufocavam, mas não falavam sobre eles, e suas vidas adquiriam uma severidade trágica. Além disso, havia a pobreza e, como se não bastasse, o orgulho de que ninguém viesse a saber de sua condição, e se alimentavam com pão, azeitona e mostarda para não saírem de casa com suas roupas remendadas…»

[4] Outro fator em comum é o autocentramento quase canceroso, seja lá como ele se manifeste em ambos; atrelado a ele (ou consequência dele, melhor dizendo), uma certa “reordenação” dos fatos, um mito pessoal.

[5] Muito fortemente associada à metamorfose física, a transmutação que ele admira nos três seres da natureza da epígrafe deste meu texto: a lagarta, o peixe-espada e o bicho-da-seda.

[6] Na capital francesa, onde estudou na Sorbonne, Kazantzákis teve aulas com Bergson, a quem muito admirou e sempre incluiu entre os grandes homens na sua trajetória (aliado a Homero,  Buda, Lênin, Cristo, São Francisco, Nietzsche e Zorba: «Bergson trouxe alívio para algumas insolúveis perguntas filosóficas que me torturavam na juventude. Nietzsche me enriqueceu com novas angústias…». E isso se tratando de um indivíduo de uma atrasada aldeia cretense, imobilizada no tempo, cuja adolescência foi convulsionada ao tomar conhecimento, através de um professor mais “esclarecido, de que a Terra não era o centro do universo e que o homem era uma espécie na escava da evolução, “feridas” que demoraram muito tempo para cicatrizar.

[7] Protagonista do mais famoso livro de Kazantzákis, Vida e Proezas de Aléxis Zorbás (tal como publicado pela Grua, e 2011), mais conhecido pelo título da bela adaptação cinematográfica de Cacoyannis, Zorba, o grego (1964).

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[8] « Era isso o que eu estava procurando, era isso o que eu queria, tenho que encher os olhos de Odisseu com esse Olhar Cretense […] Minha juventude foi cheia de angústias, pesadelos e perguntas; minha idade adulta, cheia de respostas pobres e falta de coragem; eu olhava as estrelas, olhava os homens, olhava as ideias, que caos! […] Todos os caminhos da mente levavam ao abismo; pânico e esperança, os dois polos onde perambulavam no ar minha juventude e minha vida adulta. Mas agora, na velhice, fico tranquilamente de pé diante do abismo, sem medo; já não fujo, já não me desvalorizo mais. Não eu, o Odisseu que esculpo; crio-o para olhar o abismo com calma e, criando, luto para que ele se pareça comigo. Crio a mim também. Confio a esse Odisseu todas as minhas ânsias; ele é o molde que escavo para dele sair o futuro homem […] Ele é o Arquétipo; é grande a responsabilidade do criador; abre caminhos que podem seduzir o futuro e fazê-lo tomar uma decisão».

[9] Não existe tradução brasileira integral do poema, mas o trabalho de Carolina Dônega Bernardes, A Odisseis de Nikos Kazantzákis- Epopeia moderna do heroísmo trágico, publicado pela Cassará em 2012, traz várias amostras; entre elas uma espécie de “novo decálogo” (ao longo do RELATÓRIO, o autor nos fala da necessidade interior que sentia dessa reinvenção do decálogo):

«Deus geme, faz palpitar eu coração e me grita: Socorro!

Deus salta das tumbas, não o pode conter a terra!

Deus sufoca nos seres vivos, com ira os chuta e marcha!

Todos os seres vivos, à esquerda e à direita, são seus apoios fiéis!

Ama já ao pobre ser humano, pois ele é você, filho meu!

Ama já os animais e as plantas, pois isso era você, e agora

na inflamada batalha o seguem como fiéis servidores e companheiros.

Ama toda a terra, água e pó e pedras;

Sobre eles me sustento para não cair, e não tenho outro corcel!

Renegue todas as alegrias, as riquezas, as vitórias a cada dia!

A virtude maior da terra não é chegar a ser livre,

mas sim, vigilante e implacável e indestrutivelmente querer a liberdade.

E apanha a última rocha e grava uma esbelta seta

Com um bico sedento, que se lança ao alto, rumo ao sol» (Do Canto XV, v. 1161-1174)

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NEBULOSA E CONSTELAÇÃO: modesta carta celeste dos motivos joyceanos em “Stephen Herói” e “Os Mortos”

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[uma versão do texto abaixo foi publicada no LETRAS IN.VERSO E RE.VERSO em 16 de junho de 2015, VER: http://letrasinversoreverso.blogspot.com.br/2015/06/a-cristalizacao-do-universo-de-joyce.html]

«__ Mas, seguramente, você tem opiniões políticas, homem!

__ Vou pensar a respeito. Eu sou um artista, você não percebe? »

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Durante a primeira década do século XX, quando tinha vinte e poucos anos, James Joyce produziu os contos que, publicados somente em 1914, formam a coletânea Dublinenses; por essa mesma época também se dedicava a um imenso manuscrito, Stephen Herói [Stephen Hero], no qual inovava radicalmente uma das linhas mais fortes da ficção europeia, a do “romance de formação”.

Ao contrário de Goethe (o ciclo Wilhelm Meister) ou Keller (O Imaturo Henrique), não se tratava de um autor já vivido meditando e recapitulando o aprendizado de um jovem (geralmente, um artista), e sim do próprio autor em formação relatando esse processo enquanto o vivia. E não através da mera transposição autobiográfica, como é comum (ainda mais em escritores iniciantes), pois a Joyce pouco interessava o anedótico pessoal (pelo menos, nesse período de composição do romance de estreia), planejando que avultasse o lado “épico” da escolha do destino como poeta (daí o altissonante “herói” do título), «uma inteligência que tanto amava o riso quanto o combate»[1].

A forma linear adotada revelou-se pouco funcional e Joyce reescreveu todo o material de forma a aglutinar diversas experiências, no passado e no presente, de seu protagonista nos cinco densos capítulos que formam Um retrato do artista quando jovem, que, aparecendo em 1916, encerra a fase inicial da prosa joyceana.

O autor de Ulysses morreu em 1941, com a aura de maior e mais ousado escritor de sua época. Três anos depois, publicou-se Stephen Herói. Apesar de alguns poucos acréscimos em razão do aparecimento de outros trechos, até hoje seu status é o de um longo fragmento que sobreviveu aos inúmeros deslocamentos da família Joyce, começando no meio do capítulo 15 (e mesmo assim, logo a seguir faltam duas páginas, e depois é que começa uma leitura mais regular) e terminando após algumas páginas do capítulo 26. Os onze capítulos representam cerca de um terço do material original.

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Aqueles que costumam ler meus textos sabem que tenho horror a “achados de especialistas”, fragmentos póstumos de obras que não foram consideradas dignas de publicação pelo autor quando vivo. E realmente, no estágio em que se encontrava a redação de Stephen Herói, seu criador fez muito bem em deixá-lo de lado e reescrever tudo com outro método (o que resultou numa de suas obras-primas). A narrativa é frouxa; a estrutura, informe (mesmo dentro dos capítulos sequenciais que sobreviveram); o estilo, muitas vezes aborrecido.

Ainda assim, trata-se de um caso defensável de publicação póstuma, pela riqueza bruta ali contida e pelo que apresenta de revelador da verdadeira formação de Joyce, no amplo sentido do termo, e também da cristalização de seu universo.

No capítulo 15 o encontramos no primeiro ano da universidade, sofrendo as agruras da pobreza (sua família foi progressivamente arruinando-se), a tacanhice do seu meio, ainda mais por injunções religiosas (além do catolicismo onipresente, ele estuda numa instituição jesuítica). Ademais, ele rejeita o patriotismo exacerbado, que condena o uso da língua inglesa, e exige o estudo e a prática do gaélico, a “autêntica língua nacional”. Esse ponto era tão nevrálgico para Joyce, que voltará como um dos motivos centrais de Os mortos. Ali, o protagonista, Gabriel Conroy, colaborador de um jornal inglês, é admoestado por uma companheira de geração, miss Ivors, que o xinga de “anglófilo”:

«__Você não precisa praticar o seu próprio idioma, o irlandês?

__ Bom, disse Gabriel, a bem da verdade, o irlandês não é o meu idioma. »[2]

Em Stephen Herói acompanhamos o percurso de perda de fé do protagonista (que rende uma cena pungente com a mãe[3]), sua procura de companheiros intelectuais que fujam das limitações provincianas (isso ainda aparecerá em Ulisses, onde Stephen também é um dos personagens principais), e a concepção de uma teoria sobre arte, a partir da sua admiração por Ibsen, o grande dramaturgo de Um inimigo do povoCasa de Bonecas Peer Gynt, que, a essa altura, para Stephen-James Joyce era o Dante da nossa época, afirmação escandalosa para um ambiente dominado por padres e por interditos morais.

Um dos grandes incidentes do livro é a leitura de um ensaio escrito pelo jovem herói para expor suas ideias estéticas, e que é combatido e ridicularizado quase da mesma forma como foram recebidas as primeiras conferências psicanalíticas de Freud. Entre essas ideias, uma se destaca e subverte o estereótipo do Joyce vanguardista e experimentador linguístico (uma concepção que ainda vige, infelizmente). Ele opta por ser um artista “clássico”: «O classicismo não é o estilo de uma era determinada ou de um país determinado: é um estado constante da mente artística. É um temperamento que mescla segurança, satisfação e paciência».

Tendo em vista a carreira posterior desse gênio da literatura, trata-se de um (auto) diagnóstico para lá de exato.

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2-CONSTELAÇÃO

Fico sempre assombrado com a idade em que certos textos foram escritos. É o caso de Os Mortos (The Dead), último e mais famoso relato de Dublinenses. James Joyce estava lá pelos 25 ou 26 anos ao escrevê-lo, naquela primeira década do século XX (nascera em 1882) em que se dedicava à criação da versão inicial do seu romance de formação, que só seria publicado, depuradíssimo, como Um retrato do artista quando jovem (dois anos antes, ele conseguira publicar, tardiamente, os quinze contos de Dublinenses).

Se Stephen Herói resultava informe, desagregado, frouxo enquanto narrativa, os contos daquela época mostram que Joyce poderia ficar na história como um dos grandes do gênero, independentemente da sua reputação futura, mais calcada na ruptura e na ousadia formal. São textos perfeitos, com um sopro do teatro de Ibsen neles[4], mas perfeitamente alinhados a grandes mestres “atmosféricos” (Maupassant, Turgueniev, Tchekhov) do gênero.

Assim como A festa de Babette, uma das “anedotas do destino” de Isak Dinesen, Os Mortos trata das pequenas ironias e truques da fatalidade, do trançamento dos fios do cotidiano. Com seu espantoso senso do detalhe material, Joyce narra o pequeno baile tradicional na casa das tias solteironas do protagonista, Gabriel Conroy, as irmãs Morkan (e sua sobrinha, também solteirona) Mary Jane, na época do Natal. Apesar de se sentir um tanto “estrangeiro” e superior ao ambiente, por ser um intelectual mais “continental” do que arraigadamente irlandês, Gabriel tem muito carinho pelas tias, um sentimento cálido pelo pitoresco dublinense que elas representam, e no discurso obrigatório que é incitado exalta a “hospitalidade” como uma qualidade nativa que quase não encontra eco no resto da Europa.

O próprio Gabriel não se destaca de forma tão evidente na tessitura narrativa que dá conta dos eventos da festa, pois ali são muitos os centros de atração, como um microcosmo da “gente de Dublin”, não numa primeira leitura.

Mas, ao se reler o texto, vemos como Joyce calcula cada momento da festa de uma maneira a preparar o extraordinário clímax, centrado no casal Conroy, em que a materialidade toda aí narrada se torna insubstancial. E aí, durante a releitura, o leitor se dá conta de como o casal praticamente não é visto junto e mal interage durante a festa, tal como nos é narrada. Há um pequeno episódio de hostilidade, em que ele dá uma resposta atravessada à esposa, e há um momento de contemplação: no andar de baixo, a vê encostada na escada, no andar de cima, enlevada com uma canção, da qual ele mal ouve a letra, cena que é reelaborada na mente dele como motivo para um quadro, ou seja, é como se a esposa e o seu momento de enlevo fossem um “motivo” artístico.

Apesar do carinho e respeito das tias e dos demais presentes, Gabriel é alvo de vários “foras” ao longo da narrativa, sempre de forma a frustrar um intento da parte dele, onde ele parece querer mostrar o melhor da sua natureza. Faz uma observação entre jocosa e paternal à jovem serviçal da festa, Lily, e dela recebe uma áspera réplica, dança uma quadrilha com a Srta. Ivors, sua contemporânea de geração, fervorosa patriota («o grande broche que trazia preso à parte da frente de seu colarinho tinha um emblema irlandês e um lema gaélico»[5]), que o espicaça como intelectual e escritor anglófilo, quase um traidor, colaborando com um jornal “inglês” e desconhecedor do idioma da terra natal. É quando ele dá a famosa resposta, de que o “gaélico” (o irlandês) não é a sua língua.

A Srta. Ivors insiste, convidando-o a excursionar pelas Ilhas Aran no verão. Gabriel declina (ele, que se gabara de conhecer “não pouco da Europa” em outro momento da festividade):

«E o senhor não tem que visitar a sua própria terra—continuava a senhorita Ivors—, que o senhor mal conhece, ou o seu próprio povo, e o seu próprio país?

__ Ah, para ser sincero—retorquiu Gabriel subitamente—, eu estou cheio do meu país, cheio!

__ Por quê?—perguntou a Srta. Ivors.

    Gabriel não respondeu, pois estava fervendo depois de sua reação.

__ Por quê?—repetiu a Srta. Ivors. »

    Ao comentar com a esposa a proposta de excursão para as Ilhas Aran e constatar o entusiasmo dela, é que ele dá a resposta atravessada já mencionada. O ponto a se destacar aqui é que o casamento de Gabriel com a bela Gretta não acontecera sem tensões. Para a mãe de Gabriel, ela não passava de uma camponesa sonsa, que havia realizado um casamento além da sua condição social (esse desnível entre casais protagonistas é recorrente em Joyce). E essa lembrança vem à tona na festa justamente por conta dessas provocações.

Findando a festa, após contemplar Gretta ouvindo a canção e compondo uma “figura de quadro”, amortece em Gabriel a tensão entre sua “anglofilia” (que o afasta até da esposa) e sua condição de “dublinense”. E na ida para o hotel, com a magia da neve e das lembranças de momentos “encantados” do casal, desde a lua-de-mel, vai emergindo nele um furor de desejo por Gretta, tanto que ele não vê a hora em que estejam a sós.

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Se podemos aproximar a parte da festa do modo cinematográfico (em que tantos mortos são evocados, de uma forma nostálgica e num misto de respeito e irreverência), é evidente que Joyce teatraliza ao máximo a parte final, ao concentrar-se no casal. Gabriel dispensa até a luz da única vela que o idoso funcionário do hotel trouxe até o quarto, e temos apenas a luz que vem dos lampiões da rua na madrugada de neve intensa. Não quero entrar em mais detalhes, mas é nesse momento em que ele já ruminou vários momentos íntimos do seu casamento, e o desejo está mais forte do que nunca, em que ele calou as provocações e acicates das suas posturas éticas e intelectuais, que Gretta resolve confessar que a canção ouvida na festa fê-la lembrar-se de um rapaz, Michael Furey, antiga paixonite adolescente, que “morrera por ela”. Eis aí um morto para a qual não há solução respeitosa ou irreverente, quase tão insidioso quanto o amante fantasmático da esposa do Fridolin de Breve romance de Sonho, de Arthur Schnitzler. Como vencer um amante morto? Que figura de homem cunhada por Gabriel em sua trajetória de marido e intelectual tem a virtude e o ímpeto de se impor a essa figura do passado? Pois o passado não é apenas o território das perdas, no sentido de mortes pessoais, mas das perdas, no sentido de possibilidades (o casal Bloom tematizará tudo isso com muito mais nuances, mais tarde, o espantoso é Joyce levantar tais questões na idade que tinha, e ele ainda tão autocentrado, apesar de já se valer dos benefícios que Nora trará a ele no sentido de libertá-lo desse emparedamento, tão visível em Stephen Herói, em Um retrato do artista quando jovem, e mesmo na primeira parte de Ulisses).

Não é à toa que uma das pedras-de-toque para Os Mortos fosse uma das Irish Melodies de Thomas Moore (“O ye dead”):

«É verdade, é verdade, somos sombras frias e pálidas

E os belos e bravos a quem amamos na terra se foram;

       Mas mesmo assim na morte,

       Tão doce o hálito vivo

Dos campos e flores sobre os quais caminhamos na nossa juventude,

        Que embora aqui condenados vamos

        Congelar nas neves de Hecla,

Saborearíamos isso por um momento, pensando que vivemos outra vez! »

  É bom não perder de vista que esse amor da juventude de Gretta é justamente de uma região próxima àquela que despertara nela o entusiasmo em revisitar (para irritação de Gabriel) e que ela viu pela última vez Michael Furey na neve. Ou seja, todos os elementos e leitmotivs de Os Mortos se ligam e se entretecem nos mínimos detalhes da trama, um tipo de composição (embora em ponto pequeno) que nortearia toda a futura produção joyceana.

Sobre essas reverberações, Richard Ellmann em sua magnífica biografia comenta: «Os Mortos começa com uma festa e acaba com um cadáver, assim misturando funferal, como na vigília de Finnegan». E num trecho posterior: «Na sua lírica, melancólica aceitação de tudo o que a vida e a morte oferecem, é uma chave na obra de Joyce. Existe aquela situação básica de adultério, real ou imaginário, que existe em toda ela. Há a comparação joyceana especial de detalhe específico elevado a uma intensidade rítmica. O objetivo final da história, a dependência mútua entre vivos e mortos, é algo sobre o que ele meditou bastante desde sua juventude».

E há a célebre e considerada enigmática frase do último parágrafo: «Era chegada a hora de ele partir em sua jornada rumo oeste». Esse “rumo oeste” seria a indicação da curva que a vida tinha dado, em direção à morte, ou à consciência da mortalidade, pelo menos, no seu sentido mais pungente? Ou da aceitação de sua pátria, da qual deveria forjar a consciência incriada? Seu retorno à Ítaca para recuperar, enfim, a mulher?[6]

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NOTAS

[1] Utilizo a tradução de José Roberto O´Shea, publicada pela Hedra.

[2] Em Stephen Herói, lemos: « O grito de alerta era Fé e Pátria, palavras sagradas naquele mundo de entusiasmos engenhosamente inflamáveis».

Madden, camarada do protagonista, procura justificar para ele essa proximidade entre nacionalismo e religião: «Se a menor infidelidade fosse elevada as pessoas se afastariam e por isso os mentores desejavam tanto quanto possível, trabalhar de braços dados com os sacerdotes. Stephen expressou a objeção de que esse trabalho de braços dados com os sacerdotes tinha diversos vezes arruinado as chances de revoluções. Madden concordava: mas ao menos agora os sacerdotes estavam do lado do povo.

__ Você percebe—disse Stephen—que eles incentivam o estudo de irlandês para que os rebanhos possam ser protegidos dos lobos da descrença; eles acham que isso propicia uma oportunidade para isolar o povo num passado de fé literal, implícita?

__ Mas na realidade o nosso camponês não tem o que ganhar com a Literatura Inglesa.

__ Asneira!

__ Ao menos, a moderna. Você mesmo está sempre se queixando…

__ O inglês é o veículo para o Continente.

__ Nós queremos uma Irlanda irlandesa.

__ Acho que você não se importa que um sujeito expresse banalidades desde que o faça em irlandês.

__ Eu não concordo muito com as suas ideias modernas. Nós nada queremos dessa civilização inglesa.

__ Mas a civilização de que você fala não é inglesa… é ariana. As ideias modernas não são inglesas; apontam o caminho de uma civilização ariana.

__ Você quer que os nossos camponeses imitem o materialismo grosseiro do camponês de Yorkshire?

__Parece até que o país é habitado por querubins. Que diabo! Eu é que não vejo grandes diferenças entre camponeses: para mim, todos se parecem, como um grão de ervilha se parece com outro grão de ervilha. Talvez o camponês de Yorkshire seja mais bem nutrido. »

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[3] «__ Nunca pensei—disse a mãe—que a coisa chegaria a este ponto… que um filho meu perderia a fé.

__Mas a senhora já sabe disso há algum tempo.

__ Como eu poderia saber?

__ A senhora sabia.

__ Eu desconfiei que algo estivesse errado mas nunca pensei…

__ E mesmo assim a senhora queria que eu recebesse a Santa Comunhão!

__ É claro que agora você não pode comungar. Mas eu achei que você fosse cumprir o seu dever de Páscoa, como tem feito todos os anos até agora. Não sei o que o desviou, a menos que tenham sido aqueles livros que você lê (…) Você foi educado por jesuítas, num lar católico…

__ Lar muito católico!

__ Nenhum dos seus antepassados, seja do lado do seu pai, seja do lado do meu, tem nas veias uma gota de sangue que não seja católica.

__Bem, eu serei o primeiro da família.

__ Isso é resultado de excesso de liberdade. Você faz o que quer e acredita no que quer. »

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[4] «É preciso que se diga direta e imediatamente que àquela época Stephen sofreu a influência que mais lhe marcou a vida. O espetáculo do mundo conforme apresentado por sua inteligência com todos os detalhes sórdidos e enganosos alinhado ao espetáculo do mundo apresentado pelo monstro que o habitava, agora guindado a um estágio razoavelmente heroico, também costumava levá-lo a um desespero tão súbito que só podia ser aplacado por meio da composição de versos melancólicos. Estava prestes a considerar os dois mundos alheios entre si—por mais dissimulados que fossem ou por mais que expressassem o mais completo pessimismo—, quando encontrou, valendo-se de traduções pouco procuradas, o espírito de Henrik Ibsen. Compreendeu tal espírito instantaneamente (…) as mentes do velho poeta nórdico e do jovem celta inquieto se encontravam num momento de radiante simultaneidade. Stephen foi cativado primeiramente pela nítida excelência da arte: não demorou muito para ele afirmar, mesmo com escasso conhecimento do tratado, obviamente, que Ibsen era o melhor dramaturgo do mundo (…) Ali e não em Shakespeare ou Goethe estava o sucessor do primeiro poeta dos europeus, ali, somente como em Dante, uma personalidade humana se unira a um estilo artístico que em si mesmo constituía quase um fenômeno natural: e o espírito da época promovia uma união mais imediata com o norueguês que com o florentino».

[5] Utilizo a tradução de Caetano W. Galindo (Penguin/Companhia das Letras). Recentemente, a Grua lançou uma nova versão, dentro da coleção “A Arte da Novela”, realizada por Eduardo Marks de Marques.

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[6]   Essa belíssima anedota do destino que marca e constela definitivamente a primeira fase da obra de Joyce tem outra coisa em comum com o já citado A festa de Babette: ambos tiveram adaptações cinematográficas bem-sucedidas. A de Os Mortos marcou um último grande momento da carreira de John Huston; ao contrário dos seus filmes imediatamente anteriores (Fuga para a vitória, Annie, À sombra do vulcão, mesmo o delicioso A honra do poderoso Prizzi),não se trata de um filme menor, mas de um trabalho que pode se alinhar ao que de melhor Huston fez (O tesouro de Sierra Madre, O segredo das joias, Uma aventura na África, Freud, Cidade das Ilusões, O homem que queria ser rei)  e a única grande aproximação entre Joyce e o cinema, pelo menos aquele de apelo comercial. E o título brasileiro realçou a verdade poética da fábula: Os Vivos e os Mortos. Nada mais exato.

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12/06/2015

CALENDÁRIO GALEANO: “Os filhos dos dias” e as leituras de aeroporto

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 «Para muitos jornalistas estrangeiros, a Bolívia é um país ingovernável, incompreensível, intratável, inviável. São os que se enganaram de in: deveriam confessar que a Bolívia, para eles, é um país invisível…»

(26 de janeiro)

«…os militantes que matam para castigar a divergência são tão criminosos quanto os militares que matam para perpetuar a injustiça…»

(10 de maio)

Os filhos dos dias foi um dos últimos livros de Eduardo Galeano (1940-2015) e é belo experimento da imaginação do prosador uruguaio ao explorar a forma adotada pelo calendário (e que nos aprisiona em sua teia), legada pelos romanos e aperfeiçoada pela cristandade: «A data foi inventada por Roma, a Roma imperial, e abençoada pela Roma vaticana…»[1]. Na verdade, ao abordar a “data universal” (no sentido de confraternização dos povos), primeiro de janeiro, ele a ironiza como invenção de uma civilização vencedora e que escreveu, até certo ponto, a História Oficial, prática ainda adotada (em contrapartida, a epígrafe do livro, que justifica o título, é retirada de uma civilização vencida, a dos maias).

Através de faits divers, caleidoscopicamente indo e vindo no tempo e na geografia, esse livro-calendário-almanaque-miscelânea fala de vencidos, fuzilados, executados, exilados, muitas vezes silenciados (a língua e a memória de seu povo extintas), em contraste com o discurso oficial  («Não acreditem em nada até que seja oficialmente desmentido») daqueles que dominam o mundo, que exploram o trabalho, que destroem o meio-ambiente («O mundo diminui quando perde seus humanos dizeres, da mesma forma que encolhe quando perde a diversidade de suas plantas e bichos»), em nome de “ideais” como progresso e desenvolvimento, sempre invocando motivações filantrópicas ou religiosas (combater o atraso, a superstição, a barbárie, a ignorância)[2], muitas vezes ocultando um racismo irrefreável.

Essa feição do livro se adequa bem à realidade contingente que vivemos e até à babel de informações que consumimos. A linha de força, que faz da errância e da diversidade uma unidade, um canto geral (para evocar o poema-livro de Neruda) é o amor ao telúrico, à força da terra[3], congregando os demais elementos (água, vento), mesmo que por ela transitem as levas incessantes de irracionalidade, invasões, expropriações, conspurcações, os frutos do colonialismo e do imperialismo, «a ditadura universal dos banqueiros e dos guerreiros».

Nem sempre uma data do calendário galeano tem um fato concreto efetivamente ligado a ela, em termos “históricos”, vejamos por exemplo o 29 de abril:

«Quem conhece e reconhece os atalhos da selva africana?

Quem sabe evitar a perigosa vizinhança dos caçadores de marfim e outras feras inimigas?

Quem reconhece as pegadas próprias e alheias?

Quem guarda a memória de todas e de todos?

Quem emite esses sinais que nós, humanos, não sabemos escutar nem decifrar?

Esses sinais que alarmam ou ajudam ou ameaçam ou saúdam a mais de vinte quilômetros de distância?

É ela, a elefante maior. A mais velha, a mais sábia. A que caminha à cabeça da manada. »[4]

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Datas “abstratas”, aquelas que nos fazem sorrir quando sabemos da sua existência no calendário oficial, suscitam ora textos mais digressivos (quase manifestos), ora mais narrativos, vidas-exemplos.

No primeiro caso, temos o 28 de abril, Dia da Segurança no Trabalho:

«A falta de segurança pública é o tema preferido dos políticos que desatam a histeria coletiva para ganhar eleições. Perigo, perigo, proclamam: em cada esquina um ladrão ameaça, ou um violador, ou um assassino. Mas esses políticos jamais denunciam que trabalhar é perigoso […] a cada quinze segundos morre um operário, assassinado por isso que chamam de acidente de trabalho…»[5]

No segundo, o 30 de março, Dia do Serviço Doméstico, por causa do qual conhecemos a história de Maruja:

«De seus anos de antes, nada contava. De seus anos de depois, nada esperava.

Não era bonita, nem feia, nem mais nem menos.

Caminhava arrastando os pés, empunhando o espanador, ou a vassoura, ou a caçarola […]

Havia trabalhado em casas alheias desde que tinha memória.

Nunca havia saído da cidade de Lima…»

Particularmente saborosas são as datas inexatas, “supostas”, quando então lemos (como em 25 de março), «Em algum dia como hoje, dia mais, dia menos», afinal o calendário também é movente e movediço, existe até o 29 de fevereiro, tão arredio e estranho: «Mas esse dia não teve nada de estranho em Hollywood, em 1940. Com toda normalidade, em 29 de fevereiro Hollywood outorgou quase todos os seus prêmios a O vento levou, que era um longo suspiro de nostalgia pelos bons tempos da escravidão perdida».

E outro 29, o de janeiro, toma quase a forma de um lapidar haicai, para homenagear o nascimento do mestre Anton Tchekhov:

«Escreveu como quem não diz nada.

E disse tudo»

Nessa nebulosa tempo-espaço, há um considerável pedaço brasileiro, onde desfilam o cabo Anselmo, que delatou a própria esposa, Soledad, entre outros, para o regime militar nos anos 1970, Chiquinha Gonzaga, a “desguiada” (segundo seu próprio pai) que «inaugurou a história do carnaval carioca» com Ó abre alas, Noel Rosa, com sua cerveja, sua cachaça e sua genialidade, o desditoso Bispo Sardinha, refeição dos Caetés, além de várias libertárias, muitas delas escravas fugitivas e líderes quilombolas. De quebra, um curioso episódio de costumes e manifestação popular, ocorrido em Sorocaba, em 8 de fevereiro:

«Em plena ditadura militar, uma ordem judicial havia proibido os beijos que atentavam contra a moral pública. A sentença do juiz Manuel Moralles, que castigava esses beijos com cadeia, os descrevia assim:

Beijos há que são libidinosos e, portanto, obscenos, como o beijo no pescoço, nas partes pudendas etc., e como o beijo cinematográfico, em que as mucosas labiais se unem numa insofismável expansão de sensualidade.

A cidade respondeu se transformando num grande beijódromo.  Nunca ninguém se beijou tanto.  A proibição multiplicou a vontade, e teve muita gente que só de curiosidade quis conhecer o gosto do beijo insofismável».

Para concluir esse meu comentário sobre Os filhos dos dias, uma anedota pessoal: em maio de 2013, estava eu no aeroporto de Fortaleza, esperando para embarcar no voo para João Pessoa. Todos conhecemos esses micro-calendários visguentos da vida cotidiana que são os horários, e a espera em torno deles. Por conta do intervalo de tempo até o embarque, eu, um filho dos dias como qualquer outro, constatei mais uma vez a desolação que é uma livraria de aeroporto, viveiro de títulos óbvios e desinteressantes. Mas perdido ali, entre eles, o de Galeano, autor prolífico que eu pouco lera, embora As veias abertas da América Latina tivesse marcado meu final de adolescência, como fez com tanta gente, aliás. O formato me encantou sobremaneira (por ser ideal para passar o tempo), e fui fisgado pelo que li, naquele momento, como amostra, o dia 13 de fevereiro — e é com ele que encerro:

«No ano de 2008, Miguel López Rocha, que estava brincando nos arredores da cidade mexicana de Guadalajara, escorregou e caiu no rio Santiago.

Miguel tinha oito anos de idade.

Não morreu afogado.

Morreu envenenado.

O rio contém arsênico, ácido sulfúrico, mercúrio-cromo, chumbo e furano, jogados em suas águas pela Aventis, Bayer, IBM, Nestlé, Dupont, Xerox, United Plastics, Celanese e outras empresas, que em seus países estão proibidas de fazer esse tipo de doação».

[uma versão do texto acima foi publicada no LETRAS IN.VERSO E RE.VERSO em 03 de junho de 2015, VER http://letrasinversoreverso.blogspot.com.br/2015/06/eduardo-galeano-como-leitura-de.html]

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NOTAS

[1] Em todas as citações, utilizo a tradução de Eric Nepomuceno, publicada pela L&PM em 2012. O título original é Los hijos de los días.

[2] Como a perseguição ao vodu haitiano:

«A igreja católica, onde não faltam fiéis capazes de vender unhas de santos e plumas do Arcanjo Gabriel, conseguiu que essa superstição fosse legalmente proibida no Haiti […] Nos últimos tempos, o combate contra a superstição corre por conta das seitas evangélicas. As seitas vêm do país de Pat Robertson: um país que não tem 13º. Andar em seus edifícios nem fileira 13 em seus aviões, e onde são maioria os civilizados que acreditam que Deus fabricou o mundo em uma semana».

E olhem que trecho bonito, comentando a divindade como encarada pelos “primitivos” do Havaí:

«…aqueles primitivos acreditavam que a água, mãe de todas as vidas, era sagrada, mas não se ajoelhavam nem se inclinavam diante de sua divindade. Sobre o mar caminhavam, em comunhão com sua energia».

[3] «…a lei da gravidade, essa irresistível força de atração da terra que nos chama, e nos chamando nos recorda nossa origem e nosso destino».

Em contrapartida:

«… a empresa Texaco cagou sobre a selva equatoriana setenta e sete bilhões de litros de veneno. Os indígenas não conheciam a palavra contaminação. Ficaram conhecendo quando os peixes desandaram a morrer nos rios de barriga para cima, as lagoas ficaram salgadas, as árvores secaram na beira d´água, os animais começaram a fugir, a terra deixou de dar frutos e as pessoas passaram a nascer doentes».

[4] Outro exemplo, o 12 de fevereiro, em que se narram o embarque de centenas de chinesas para Pequim:

«Em Pequim, todas darão de mamar a bebês alheios.

Essas vacas leiteiras serão bem pagas e bem alimentadas.

Enquanto isso, muito longe de Pequim, nas aldeias de Sichuan, seus bebês serão alimentados com leite em pó.

Todas dizem que fazem o que fazem por eles para poder pagar a eles uma boa educação. »

[5] Para meu propósito demonstrativo, fiz uma ligeira adaptação do texto original.

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09/06/2015

O planeta do Sr. Bellow- A escritura da meditação e da imaginação moral

Paris september 20. File photo: American writer Saul Bellow (1915-2005) Photo by Ulf Andersen / Getty Images

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«Mas não se atreva nunca a contradizer a sua época, não vá contradizê-la, só isso. A não ser que você seja do tipo Sammler, sentindo que o lugar de honra está do lado de fora…»

(uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 09 de junho de 2015)

Ao contrário da época de sua morte (em abril de 2005), quando havia um vazio editorial em torno de uma das mais importantes obras literárias contemporâneas (agraciada com o Nobel em 1976)[1], no centenário de nascimento de Saul Bellow (10 de junho), o leitor brasileiro encontrará facilmente títulos célebres como Henderson-O Rei da Chuva, Herzog, O Legado de Humboldt e As Aventuras de Augie March. Este último, seu terceiro romance, lançado em 1953, demorou para ser traduzido, mas foi o livro que o consagrou. Imenso, prolixo, tentacular, um pouco cansativo em alguns momentos, representou, contudo, um feito de imaginação e estilo, dentro daquela ambição arquetípica dos jovens escritores dos EUA de produzir “o grande romance americano”. Aliás, a geração a que o criador de Augie March pertence (que se consolidou nos anos seguintes ao final da Segunda Guerra) revelou-se pródiga em candidatos a essa realização: Norman Mailer, Truman Capote, J.D. Salinger, William Styron, Flannery O´Connor, Mary McCarthy, Gore Vidal, entre outros.

As peripécias do jovem judeu egresso dos bairros pobres de Chicago («Sou americano, nascido em Chicago, aquela cidade sombria, e faço as coisas do jeito que aprendi a fazer, estilo livre», declara de saída Augie, narrador das próprias desventuras[2]) destoam da atmosfera pesada e viscosa dos primeiros livros de Bellow (bem mais curtos), Por um fio(1944)[3], A Vítima (1947) e mesmo do posterior Agarre a vida (1956)[4], que podem ser tomados como uma trilogia sufocante sobre a obsessão em fugir ao fracasso, representado pela corda bamba financeira (seus protagonistas em geral não são exatamente hábeis em gerir ou manter seu dinheiro, e quase todos acabam enredados em situações sórdidas e desmoralizantes).

Em 1959, Henderson-O Rei da Chuva inaugurou uma fase fantástica, que se estendeu até Dezembro Fatal(1982)[5], no meio da qual encontramos suas obras-primas, caso do cultuado Herzog (1964); de O Planeta do Sr. Sammler (1970, a mais sentida ausência em termos de edição brasileira neste centenário: trata-se de uma poderosa meditação ficcional sobre a morte, o destino da civilização, a estatura contemporânea da ideia de ser humano—como se vê, Bellow não se intimidava diante dos assuntos grandiosos—a partir de um sobrevivente: o Sr. Sammler, vivendo numa Nova York babélica, havia sido fuzilado por soldados nazistas, junto a um grupo enorme de judeus, mas conseguira escapar abrindo caminho pela pilha de mortos (entre os quais, sua esposa); e de O Legado de Humboldt (1975). Em todos eles, intelectuais, muitas vezes autocomplacentes, semeiam (ou se envolvem em) confusões, e discute-se a natureza dos afetos, da amizade (um tema muito importante para Bellow), da lealdade, sempre com digressões brilhantes (e integradas ao movimento da narrativa), envolvendo balanços civilizatórios e inquietações sobre a condição humana: «Há no Livro de Jó aquela famosa queixa de que Deus exige demais. Jó protesta que está se sentindo atormentado de maneira insuportável […] Fora uma exigência grande demais para a consciência e a capacidade humanas, ultrapassando suas possibilidades de resistência. Não estou falando apenas das exigências morais, mas também da imaginação necessária para produzir uma figura humana de estatura adequada. Qual a verdadeira estatura de um ser humano?»[6].

Mesmo nos seus livros mais tardios, menos ambiciosos (onde ele parece ter retornado à forma mais curta dos iniciais), como Presença de Mulher(1997)[7], ou ainda nos contos (Trocando os pés pelas mãos, 1984)[8] seus anti-heróis introvertidos e voltados para si mesmo continuaram a se defrontar com pessoas extrovertidas, aparentemente ajustadas ao mundo ao redor (ao mesmo tempo, vivendo ilusões e autoengano), encarnações definitivas do modo junguiano de caracterizar os Tipos Psicológicos: «…o que tende para fora tem de viver o seu mito, o que tende para dentro sonhará seu meio ambiente, a chamada vida real». Saul Bellow sonhou a chamada vida real como poucos, desvelando seus mitos com argúcia, fôlego e uma extensa galeria de personagens inesquecíveis.

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TRECHOS SELECIONADOS DE O PLANETA DO SR. SAMMLER

«O Sr. Sammler tinha alguma experiência desses momentos de inaproveitável claridade…»

«Depois da guerra, Sammler mandara dinheiro, pacotes com víveres para Cieslakiewicz, Houve correspondência com a família […] após alguns anos, as cartas começaram a exprimir sentimentos antissemíticos. Nada de muito exagerado. Não fora uma grande surpresa, nem mesmo era inesperado. Cieslakiewicz tivera seu momento de honra e de caridade. Arriscara a vida para salvar Sammler. O velho polonês também fora um herói, mas o seu heroísmo acabara, terminara. Afinal, era um ser humano comum e desejava tornar-se novamente o que sempre fora. Fizera já o suficiente. Não tinha ele, então, o direito de ser outra vez ele próprio? De retornar a seus antigos preconceitos?…»

«O Sr. Sammler possuía um caráter simbólico… Mas de que é que era símbolo? Nem mesmo ele próprio saberia dizê-lo. Será que era porque sobrevivera? Mas se nem isso fizera, já que tanto da sua pessoa anterior desaparecera. Não se tratava de sobrevivência, apenas de duração…»

«O que é que havia para recuperar? Tinha pouca saudade das primitivas formas do que ele fora. Inamistoso[…] No ambiente humano, como todos os outros, dentro das particularidades da vida comum, ele era humano—e, aos poucos, voltava ao normal das criaturas, com as suas baixezas e o seu encanto animalesco. Assim, agora, realmente, Sammler já não mais sabia como enfrentar-se a si próprio. Desejava, com Deus, ficar livre dos liames do comum e do finito, tal e qual uma alma liberada da natureza das impressões e da vida diária. Para que isso pudesse acontecer, o próprio Deus estaria à espera, sem dúvida. E um homem que fora morto, e até enterrado, não deveria ter outros interesses. Deveria estar completamente desinteressado. Eckhart dizia que Deus amava a pureza e a unidade desinteressadas[…] E o que além do espírito havia de causar cuidados a um homem egresso do túmulo? Porém, misteriosamente acontecia, conforme Sammler pudera observar, encontrar-se novamente atraído, poderosamente atraído e devolvido à condição puramente humana. Assim sendo, aquelas manchas que se encontravam no interior da substância de cada um sempre pontilhariam de reflexos tudo o que o homem procura e tudo o que o circunda. E assim, a sombra dos seus nervos sempre projetaria listras, como as árvores por cima do capim, ou como a água na areia, uma rede feita de raios deluz. Era como um segundo encontro do espírito desinteressado com necessidades biológicas causadas pelo destino, uma luta permanente com a criatura persistente…»

«É isso o que acontece quando o indivíduo começa a voltar da área desinteressada para a condição de mera criatura. Parcelas ou aspectos de seu próprio ser anterior tendem a reviver. O caráter anterior reafirma-se novamente e mesmo, às vezes, de maneira bem desagradável, fraca e desgraciosa…»

«Dinheiro, jactância—fraquezas judaicas. Seriam também americanas? Sammler encontrava-se em dúvida, deficiente nas suas informações a respeito de americanismo contemporâneo…»

«Era europeu e o que aqui havia eram, afinal, meros fenômenos americanos…»

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NOTAS

[1] VER AQUI NO BLOG:

https://armonte.wordpress.com/2013/07/08/um-artesao-genial-das-palavras-e-a-respeitabilidade-mental-saul-bellow-1915-2005/

[2]  Utilizo a tradução de Sonia Moreira (Companhia das Letras, 2009) de The adventures of Augie March.

[3] No original, Dangling man.

[4] Esse é o título da tradução de Donaldson M. Garschagen (Rocco, 1986) para Seize the day. Há uma versão anterior, feita por Ana Maria M. Machado (Edições Bloch,  1967), com o título Aqui e agora.

[5] No original, The dean´s december.

[6] Trecho da tradução de Denise Vreuls (utilizo a edição da Abril Cultural, 1982) para Mr. Sammler´s planet. Em 1982, tive esse primeiro contato com a obra de Bellow, que se aprofundou nos anos imediatamente seguintes e até hoje, 33 anos depois, considero-o um escritor admirável, um dos mestres da imaginação moral na prosa de ficção.

[7] No original, The actual. A respeito, ver aqui: https://armonte.wordpress.com/2013/07/08/o-introvertido-junguiano-na-otica-de-saul-bellow/. Depois de Dezembro fatal, Bellow só publicou mais um romance de fôlego, o melancólico More Die of Heartbreak (1987), traduzido como A mágoa mata mais. Os posteriores, Um furto e A conexão Bellarosa, “novellas”, foram publicados no mesmo ano, 1989.

[8] Ver aqui: https://armonte.wordpress.com/2013/07/08/um-forte-candidato-a-maior-autor-dos-eua-saul-bellow/

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02/06/2015

Destaque do Blog: A DIFICULDADE DE SER, de Jean Cocteau

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«O ser humano procura no mito uma forma de fugir de si mesmo. E para tal utiliza-se de todas as formas. Droga, álcool ou mentira. Incapaz como é de adentrar em si mesmo, o ser humano se disfarça. As mentiras e imprecisões lhe proporcionam alguns instantes de alívio, o mesmo conforto provocado por um baile de máscaras. Desta forma, destaca-se daquilo que sente e daquilo que vê…»

(Jean Cocteau, 1889-1963)

«De manhã, debruço-me, debruço-me, e deixo-me cair. Caio de fadiga, de dor, de sono. Sou inculto, nulo. Não sei um número, uma data, um nome de rio, uma língua, viva ou morta. Tenho zero em geografia e em história. Se não fossem uns passes de mágica, corriam comigo. Além do mais, roubei os documentos a um tal J.C., nascido em M.L., no dia……, e que morreu com dezoito anos, depois de uma brilhante carreira poética.

Esta cabeleira, este sistema nervoso, mal implantados, esta França, esta terra, não me pertencem. Dão-me agonias. Sempre os dispo à noite, em sonhos.

Pois aqui largo o pacote. Que me fechem num hospício, que me linchem. Quem puder que entenda. Eu sou uma mentira que diz sempre a verdade»

(trecho de O pacote vermelho, tradução de Jorge de Sena)

(uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 02 de junho de 2015)

Neste primeiro semestre de 2015 a França detém os destaques entre as traduções: por um lado, o atualíssimo e perturbador Submissão, de Michel Houellebecq; por outro, a versão tardia (realizada por Wellington Júnio Costa para a Editora Autêntica) de A Dificuldade de Ser[1], um dos mais importantes títulos de um autor cultuado (devido às suas realizações em múltiplas áreas: poesia e romance, teatro, cinema, até designer e ilustração[2]), no entanto escassamente traduzido: Jean Cocteau.

Em 1947, exaurido pela realização do clássico A bela e a fera, uma de suas obras-primas, tomado por uma doença que se traduzia em torturante e dolorosa urticária, ele se isolou: «Os médicos me haviam prescrito a montanha, a neve. É, diziam eles, o único tratamento eficaz. Meus micróbios desapareciam como por encantamento»[3].

Não desapareceram, assim como suas obsessões («Meu pior defeito vem da infância como quase tudo o que tenho. Pois eu continuo a ser vítima desses ritos doentios que fazem das crianças seres obsessivos que colocam seu prato de uma determinada maneira sobre a mesa e saltam algumas linhas do passeio»). Admirador de Montaigne, pôs-se a escrever 31 pequenos ensaios em que temas “gerais” (conversa, amizade, sonho, medida dor, morte, frivolidade, juventude, beleza, riso e por aí vai) servem como mote para reminiscências e reflexões. O polêmico “príncipe frívolo” do surrealismo, personagem de si mesmo, figura performática da alta cultura francesa, de repente debruça-se sobre si mesmo, a existência e os valores morais, nos moldes do estilo clássico que marcou a prosa de seu país, com frases lapidadas como: «É por onde escapamos que a lenda caminha»; «Invisível sob tantas fábulas e monstruosamente visível por meio delas»; «O luxo do mundo está na perda».

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O título já sinaliza a simbiose entre a superfície anedótica («Minha lenda afasta os tolos. A inteligência suspeita de mim. O que me sobra entre esses dois?»[4]) e as correntes profundas que fazem de certas poesias (Plain-Chant é uma delas) e peças (A voz humana, A máquina infernal), mais alguns dos filmes de Cocteau, momentos fundamentais da arte do século passado: «Eu sinto uma dificuldade de ser. É o que responde o centenário Fontenelle quando ele vai morrer e seu médico pergunta: Senhor Fontenelle, o que o senhor sente? Só que a sua é da última hora. A minha data de sempre».

Pode-se indicar com entusiasmo um título que praticamente cai no vazio, com suas menções recorrentes a obras remotas ou inéditas entre nós? Sim, porque mesmo com o peso do teor biográfico e das referências culturais, o charme indispensável de A Dificuldade de Ser reside mais na luminosa miríade das reflexões minimalistas (ainda que autocentradas, até mitômanas, quem poderá dizer?) incrustadas na poesia da prosa de um homem que conseguiu traduzir em imagens cinematográficas indeléveis fábulas e mitos (como o de Orfeu): «É possível que eu acorde um belo dia sem sofrer de algum membro e que eu me engane completamente nos meus prognósticos. Será melhor assim, mas eu prefiro ser pessimista. Sempre fui, por otimismo. Eu esperava demais para não me precaver contra uma decepção». E como não se identificar com a desconfiança lírica diante da suposta exatidão numérica: «Dois mais dois são quatro? Gustave de Rothschild dizia: Dois mais dois são vinte e dois. E duas cadeiras mais duas maçãs não são quatro»?

Também a primorosa capa de Diogo Droschi para A Dificuldade de Ser já é um dos pontos altos deste ano, dando a ideia precisa desse homem multiforme e ainda incrivelmente moderno: «Gostaria de dizer a verdade/Gosto da verdade. Mas ela não gosta de mim/A verdade é esta: a verdade não gosta de mim/Mal acabo de dizê-la, ela muda de rosto e volta-se contra mim/Tenho o ar de mentir e todos me olham de revés…/Mentiroso, eu? No fundo, já não sei. Sinto-me confuso/Que tempo o nosso! Serei um mentiroso?/Pergunto–lhes. Sou antes uma mentira/Uma mentira que diz sempre a verdade» (trecho de O Mentiroso[5]).

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TRECHO SELECIONADO

«O que é a linha? É a vida… Na obra do escritor, a linha prima pelo conteúdo e pela forma. Ela atravessa as palavras que ele reúne. Emite uma nota contínua que nem o ouvido nem o olho percebem. De algum modo, ela é o estilo da alma e se essa linha parar de viver, se ela desenhar apenas um arabesco, a alma estará ausente e a escrita morta. É por isso que eu repito incessantemente que o progresso moral de um artista é o único que vale a pena, já que essa linha debanda desde que a alma enfraquece a sua chama. Não confunda progresso moral e moral. O progresso moral consiste apenas em resistir…»

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NOTAS

[1] “La difficulté d’être”, publicado originalmente em 1947 e revisado pelo autor pouco antes de sua morte, em 1963

[2] «Por que você escreve peças de teatro? Pergunta-me o romancista. Por que você escreve romances? Pergunta-me o dramaturgo.  Por que você faz filmes? Pergunta-me o poeta. Por que você desenha? Pergunta-me o crítico… Sim, por quê? Eu me pergunto. Provavelmente para que a minha semente se espalhe por toda  parte. Eu conheço mal o sopro que me habita, mas ele não é suave…»

[3] «Ocorre que há seis meses eu sofro cada minuto, vejo  a dor tomar todas as formas, frustrar a medicina e continuo alerta e corajoso…»

[4] «…Não aceito, porém, que me tolerem. Isso fere o meu amor ao amor e à liberdade…» (cito o trecho de O livro branco na tradução de Aníbal Fernandes, lançada pela Assírio & Alvim)

[5] Que eu cito em tradução de Gastão Cruz, em O filho do ar, edição da Relógio D´Água).

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