MONTE DE LEITURAS: blog do Alfredo Monte

06/11/2018

DO BAÚ DE SURPRESAS DE MARIA VALÉRIA REZENDE

(Uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos em 06 de novembro de 2018) 

Maria Valéria Rezende, campeã de prêmios de romances dos últimos anos, lançando livros de contos, “A FACE SERENA e “HISTÓRIAS NADA SÉRIAS 

O primeiro vem sendo burilado através de várias versões. Em meio a diversas histórias de adolescentes temos “Monstro” onde um bebê nasce pela metade, temos “Especulofobia”, onde um homem jamais viu o próprio reflexo. Temos o pungente, o juiz não entende onde uma mãe inteira o dinheiro para construir um quarto para o filho que está na FEBEM. E temos, finalmente, “O muro” obra síntese das escolhas de vida da grande escritora: “Nem pensei em voltar para a passagem no muro. Deus atirou-me para dentro de seu samburá de estreita boca, já não me debato. Soube logo que subiria, mas não por qual caminho, até que vi, pouco mais adiante, numa parede suja daquele mesmo beco, a marca do menino magro, fresca e brilhante, um fio de vermelho líquido ainda escorrendo. O único sinal que eu, vagamente, podia interpretar, neste mundo estranho onde nunca antes sequer imaginei penetrar. Meti-me pela viela que, alguns metros adiante, ao topar com uma parede de zinco e madeira carcomida, quebrava-se para a esquerda. Ninguém. Tive a impressão de que já não havia mais ninguém nesse labirinto, só eu e o menino pichador, porque pouco antes de que o caminho se bifurcasse, mais acima, vi outra vez a rubra assinatura. Sem outro fio senão aquele para guiar-me, eu o segui. Hesitei na bifurcação, mas ela estava lá outra vez, a marca, dizendo-me que lado escolher, direção que tomei sem mais duvidar, entranhando-me na armadilha das ruelas intrincadas”. 

Durante muitos anos, Valéria participou do clube do conto da Paraíba. Isso explica sua versatilidade e profissionalismo, destaco dois textos de “HISTÓRIAS NADA SÉRIAS“Happy hour” onde um empresário falido arrota mentiras até a hora de pegar seu táxi. Em “A chave”, uma ero moça é assediada por dois passageiros e tem uma solução genial. Os dois livros compartilham o mesmo texto com finais diferentes: “Vidraça” (de “HISTÓRIAS NADA SÉRIAS”) e “Pelas superfícies” (de “A FACE SERENA”). Confesso que prefiro o final ironicamente singelo de “Vidraça”.

24/04/2018

TODO LÉU É UM MUNDO: SEGUNDA PARTE

 

(Uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos em 24 de abril de 2018)

Na semana passada, iniciei um comentário sobre “CONVERSA DE JARDIM”, afirmando que “Vasto mundo” era o nó central do livro, pois Maria Valéria Rezende fazia uma segunda versão à época das conversas com Roberto Menezes.

A primeira versão foi considerada uma coletânea de contos, a nova provaria que se tratava de um romance, desfazendo o equívoco. Este assunto suscita contradições interessantes: fiquei chateado porque Maria Valéria desdenhou autores que planejam de antemão seus livros (assim fazia o grande Autran Dourado, o qual até escreveu uma obra detalhando os seus processos de criação: “Matéria de carpintaria”), e afinal lá estava ela com questões de planejamento e carpintaria.

No capítulo “V – Sucatas e quebra-cabeças”, lemos: “’O pessoal fica perguntando de onde saem os livros. Acho que os livros saem de um imenso depósito que tem na cabeça, um depósito de peças de vários puzzles de um quebra-cabeça bem peculiar, essas peças todas misturas que foram nos entrando pelos cinco sentidos através da vida, com todos os tipos de sensações que você tem, que vem de fora do mundo, que vem de dentro de seu estômago, do rim, do enjoo que você sentiu, da tontura, de tudo que a gente já viu e já sentiu’, Um grande quebra-cabeça, uma sucata, que dá no mesmo, uma sucata que a gente vai jogando lá o que a gente encontra na beira da estrada, com você falou, o tempo todo catando, e jogando lá, catando e jogando lá, e é uma sucata diferente, aqui os pedaços não preservam sua solidez, eles interagem, se interferem, numa transmutação à revelia da gente”.

Há uma confissão comovente de Roberto Menezes no capítulo “XVII – Qualquer mundo ao léu”: “Valéria, invejo a tua vasta experiência de vida, e dentro dessa tua experiência, a bagagem que você tem em literatura é admirável, você leu tudo o que quis, teve incontáveis escritores na família, estudou em boas escolas, pôde conhecer o mundo de perto, aí, até sem querer, fico aqui comparando tudo isso coma vida que tive, minha família era bem pobre, eu, meus irmãos, a gente estudava em escola estadual que quando podiam, meu pai, vendedor ambulante, nem quarta série estudou, minha mãe parou na segunda série, pois, bem distante da minha realidade, na infância a minha relação com os livros era de caça ao tesouro, livro pra mim era coisa rara, acredite se quiser, quando eu tinha uns oito, nove anos, eu torcia pra chegar aos sábados, nos sábados vinhas as testemunhas de Jeová, nem precisava bater, eu já tava lá esperando, a nova edição da revista A Sentinela”.

Parabéns às testemunhas de Jeová, nos deram um físico teórico e um grande escritor. Como já disse, um fabricador de frases de tirar o fôlego.

17/04/2018

QUALQUER LÉU É UM MUNDO: PRIMEIRA PARTE

 

(Uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos em 17 de abril de 2018)

Confesso que sou imodesto, pois vou comentar um livro que me é dedicado e no qual sou citado várias vezes. Trata-se de “CONVERSA DE JARDIM”, todo mundo sabe que Maria Valéria Rezende é uma das nossas maiores escritoras, mas talvez não saibam que a casa onde mora, em João Pessoa, tem um maravilhoso jardim (eu sei, pois estive lá em diversas ocasiões) e ali manteve entre 2015 e 2017 conversas com Roberto Menezes, físico teórico “fabricador de frases de tirar o fôlego” (como diz Maria, narradora do seu admirável “Palavras que devoram lágrimas”, editado pela Patuá).

Roberto organizou o livro de forma inteligente, não linear, com capítulos curtos celebrando o ato de escrever. Temos: “Disciplina sem rotina longe da ritalina”, “Sucatas e quebra-cabeças”, “A voz do chão”, “Regras próprias”, “Cemitério de planos cemitério de memórias”, “Vasto mundo” (que é a meada principal para a qual a conversa sempre volta), “Da mente pro papel”, “Escrita no gen”, “Qualquer mundo ao léu”, “Além do solipsismos”, “Apanhando o mundo com a mão”, “Da memória e seus ardis” e “Até já”, são alguns dos leitmotivs que conduzem fecundos diálogos desses dois geniais tagarelas (e quem conhece Maria Valéria sabe que ela é uma incansável Xerazade): “Tem um amigo que diz que sou uma escritora materialista. Nunca faço longas digressões sobre a subjetividade. Na verdade, o sentimento, o que pensam os meus personagens, passa através das ações, do movimento, das descrições das coisas. Ultimamente tenho usado sempre um narrador na primeira pessoa, uma narradora, aliás. É em primeira pessoa, mas não é por ser em primeira pessoa que vou cair na falácia de ficar dissecando os seus sentimentos, nem os meus, como já disse. Faço com que ela, do seu jeito, fale do mundo que está fora dela. E quando ela imprime sua visão do mundo, necessariamente revela o seu ponto de vista”.

No capítulo XVII: “não existe isso de não poder ser escritor pelo fato de nunca ter viajado. Faz assim, dá pra esse jovem ler o meu ‘Quarenta Dais’, que é a descoberta de mundo e mais mundos, você viaja, tem mil viagens a fazer. ‘Quarenta Dias’ é uma odisseia, ‘A pé, ao léu. Numa pequena parte de uma cidade. Qualquer léu é um mundo. Tem que absorver o mundo pelos cinco sentidos” (continua semana que vem).

09/01/2018

LEITURAS MARCANTES DE 2017: PARTE DOIS

(Uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos em 09 de janeiro de 2017)

A literatura brasileira atual vai muito bem, obrigado. Veja por que:

Modos inacabados de morrer”, André Timm, Editora Oito e Meio: apesar de algumas ressalvas, um romance talentoso. Sobre um protagonista que sofre de narcolepsia.

A oração do carrasco”, Itamar Vieira Junior, Editora Mondrongo: contos cheios de momentos impactantes.

Miss Tatto”, Luiz Roberto Guedes, Editora Jovens Escribas: as aventuras e desventuras dos “tiozões”.

A Jaca do cemitério é mais doce”, Manoel Herzog, Editora Alfaguara: ainda são poderosas a pena da galhofa e a tinta da melancolia, como nos ensinava Machado de Assis.

Outros Cantos”, Maria Valéria Rezende, Editora Alfaguara: a obra-prima da grande escritora (prêmio Casa de Las Américas, prêmio São Paulo de Literatura e Jabuti).

Naufragar jamais”, Pedro Alberto Ribeiro (poeta em queda), Editora 11Editora: em cadernos soltos poemas de grande força.

Diário da Cadeia com trechos da obra inédita impeachment”: Eduardo Cunha (pseudônimo), Ricardo Lísias, Editora Record: o poder absoluto da ficção.

Machado”, Silvano Santiago, Editora Companhia das Letras: um romance que eu gostaria de ter escrito, um mosaico em torno dos anos de viuvez de Machado de Assis (prêmio Jabuti e prêmio Oceanos).

O passado é lugar estrangeiro”, Suelen Carvalho, Editora Patuá: uma estreante com voz própria.

Insolitudes”, Tiago Feijó. Editora 7Letras: contos humanos e irretocáveis.

Gotas no Asfalto”, Vlademir Lazo, Editora Penalux: expectativas frustrantes gerando boa literatura.

 

05/12/2017

OS SETENTA E CINCO ANOS DE MARIA VALÉRIA REZENDE

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(Uma versão da resenha abaixo foi publicada originamente em A TRIBUNA de Santos em 05 de dezembro de 2017)

Prestes a completar 75 anos (em oito de dezembro), a santista, paraibana, vastomundense Maria Valéria Rezende, recebeu o mais polpudo prêmio brasileiro, o São Paulo de Literatura. Talvez agora as pessoas se apercebam que ela é o nosso José Saramago. Ambos começaram tardiamente, contudo na plenitude de seus recursos de linguagem.

Já no seu primeiro e emblemático livro, “Vasto Mundo”, ela apresentava um universo completo, o mundo rural de Farinhada. Recentemente, ela unificou esse mar de estórias num romance na linhagem de “O Povoado”, de William Faulkner.

Seu segundo livro “O Voou da Guara Vermelha”, reafirma a necessidade de narrar o vivido para lhe dar um sentido e traz o tema atualíssimo do trabalho escravo. “Um corpo de homem aguenta mais do que a gente imagina, por vontade de viver, mas a alma é outras coisas, vai morrendo mais depressa quando perde a esperança”. Um decreto indecente tornou mais verdadeira e contundente esta frase.

Logo a seguir veio a coletânea “Modos de Apanhar Pássaros a Mão”, com temática mais urbana e técnicas diversas. Tinha até um vampiro que se apaixonava por nossas churrascarias.

Porém, durante uma década ela mergulhou na literatura infanto-juvenil, fora as traduções. Sua produção nessa área é excelente, mas eu temia que sua obra adulta caísse no esquecimento então apareceu o avassalador “Quarenta Dias”, tratando das pessoas “invisíveis” das grandes cidades. Ganhou o Prêmio Jabuti de romance e livro do ano. E com sua obra-prima “Outros Cantos”, sua produção adulta firmou-se de vez.

Um ponto que une Maria Valéria e Saramago é que eles nos reconectam à humanidade, ao que deveríamos ser. Por essa razão considero o conto “O Muro” (premonitório se pensarmos em Donald Trump) a chave de sua obra, uma mulher que escolhe o descenso social e a ascensão espiritual, isto é, fraternal: “Nem pensei em voltar para a passagem no muro. Deus atirou-me para dentro de seu samburá de estreita boca, já não me debato. Soube logo que subiria, mas não por qual caminho, até que vi, pouco mais adiante, numa parede suja daquele mesmo beco, a marca do menino magro, fresca e brilhante, um fio de vermelho líquido ainda escorrendo. O único sinal que eu, vagamente, podia interpretar, neste mundo estranho onde nunca antes sequer imaginei penetrar. Meti-me pela viela que, alguns metros adiante, ao topar com uma parede de zinco e madeira carcomida, quebrava-se para a esquerda. Ninguém. Tive a impressão de que já não havia mais ninguém nesse labirinto, só eu e o menino pichador, porque pouco antes de que o caminho se bifurcasse, mais acima, vi outra vez a rubra assinatura. Sem outro fio senão aquele para guiar-me, eu o segui. Hesitei na bifurcação, mas ela estava lá outra vez, a marca, dizendo-me que lado escolher, direção que tomei sem mais duvidar, entranhando-me na armadilha das ruelas intrincadas”.

 

31/01/2017

MARIA VALÉRIA REZENDE CONQUISTA O VASTO MUNDO

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(Uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 31 de janeiro de 2017)

O lendário prêmio Casa de Las Américas acaba de ser atribuído ao livro OUTROS CANTOS (Alfaguara, 2016) de Maria Valéria Rezende, poucos meses depois de seu romance Quarenta Dias ganha o Jabuti, não apenas como melhor romance de 2015, como também o de livro do ano. Estas premiações prestigiosas tiraram a grande escritora santista (embora radicada na Paraíba), de um limbo em que ela era mais conhecida e premiada por sua obra infanto-juvenil – não que isso fosse demérito (eu, por exemplo, adoro O Arqueólogo do Futuro e O problema do Pato) –, contudo a força do seu universo ficcional está nos romances e contos adultos.

Assim como José Saramago, ela começou a publicar tardiamente, o que se revelou uma dádiva, pois sua obra é uma poética da experiência, marcada pela materialidade do mundo e das relações humanas, desde o seu primeiro livro publicado, Vasto Mundo (Editora Beca, 2001). Ali conhecíamos as histórias do povoado de Farinhada, um ermo sertanejo invadido pelo “vasto mundo” numa incrível sucessão de estórias. Já era maravilhoso nesta primeira versão. Em 2016, ganhou fôlego ainda maior transformado definitivamente em romance.

Mas sua primeira obra no gênero foi o extraordinário O Voo da Guará Vermelha (Objetiva, 2005), o qual contava o amor entre uma prostituta com AIDS e um peão cujas peripécias eram a base de uma relação “pedagógica”. No ano seguinte apareceu Modo de Apanhar Pássaros à Mão, coletânea onde ela (e o leitor também) se comprazia em demonstrar sua versatilidade formidável, na abordagem tanto do meio rural quanto do urbano (com predominância do espaço urbano).

Depois veio interregno de quase uma década, em que ela esteve mais engajada na área infanto-juvenil, a explosão representada por Quarenta Dias, a segunda versão de Vasto Mundo e Outros Cantos. Agora aguardo ansiosamente não só um novo romance, como também a reunião de vários contos maravilhosos, dispersos aqui e ali, numa só coletânea, principalmente “O Muro”, genial texto alegórico, que sintetiza suas escolhas de vida, e muito pertinente num momento histórico nomeado por uma figura grotesca como Donald Trump. O conto narra o descenso social da narradora, que, é uma ascensão na escala solidária e humanitária: “Nem pensei em voltar para a passagem no muro. Deus atirou-me para dentro de seu samburá de estreita boca, já não me debato. Soube logo que subiria, mas não por qual caminho, até que vi, pouco mais adiante, numa parede suja daquele mesmo beco, a marca do menino magro, fresca e brilhante, um fio de vermelho líquido ainda escorrendo. O único sinal que eu, vagamente, podia interpretar, neste mundo estranho onde nunca antes sequer imaginei penetrar. Meti-me pela viela que, alguns metros adiante, ao topar com uma parede de zinco e madeira carcomida, quebrava-se para a esquerda. Ninguém. Tive a impressão de que já não havia mais ninguém nesse labirinto, só eu e o menino pichador, porque pouco antes de que o caminho se bifurcasse, mais acima, vi outra vez a rubra assinatura. Sem outro fio senão aquele para guiar-me, eu o segui. Hesitei na bifurcação, mas ela estava lá outra vez, a marca, dizendo-me que lado escolher, direção que tomei sem mais duvidar, entranhando-me na armadilha das ruelas intrincadas”.

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01/03/2016

AS VEREDAS DO MÍNIMO SERTÃO: “Outros Cantos”, de Maria Valéria Rezende

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“Nem pensei em voltar para a passagem no muro. Deus atirou-me para dentro de seu samburá de estreita boca, já não me debato. Soube logo que subiria, mas não por qual caminho, até que vi, pouco mais adiante, numa parede suja daquele mesmo beco, a marca do menino magro, fresca e brilhante, um fio de vermelho líquido ainda escorrendo. O único sinal que eu, vagamente, podia interpretar, neste mundo estranho onde nunca antes sequer imaginei penetrar. Meti-me pela viela que, alguns metros adiante, ao topar com uma parede de zinco e madeira carcomida, quebrava-se para a esquerda. Ninguém. Tive a impressão de que já não havia mais ninguém nesse labirinto, só eu e o menino pichador, porque pouco antes de que o caminho se bifurcasse, mais acima, vi outra vez a rubra assinatura. Sem outro fio senão aquele para guiar-me, eu o segui. Hesitei na bifurcação, mas ela estava lá outra vez, a marca, dizendo-me que lado escolher, direção que tomei sem mais duvidar, entranhando-me na armadilha das ruelas intrincadas”. (Trecho de O Muro, de Maria Valéria Rezende)

“… por estar mais familiarizado com o procedimento que consiste em negar tudo—para depois ver se em seguida se pode reafirmar alguma coisa—e, em desfazer tudo—para ver depois tudo se refazer em outro plano ou de outra forma…” (Trecho de A Obra em Negro, de Marguerite Yourcenar)

(Uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 1° de março de 2016)

Havia que aprender tudo para poder ensinar. Não havia fórmula já testada nem material a seguir. Inventar fazendo, era o jeito”. Depois de ganhar o Jabuti de livro do ano, com    Quarenta Dias, Maria Valéria Rezende lança um novo romance em meio à nostalgia do período autoritário que assola o país: Outros Cantos, onde registra as transformações sofridas pela sociedade brasileira nas últimas décadas.

Trata-se de uma narrativa-palimpsesto: Maria, a narradora, empreende uma viagem de ônibus pelo sertão pós-2002, impactada pelo seu desenvolvimento, inclusive nos piores aspectos (consumismo, uniformização, diluição da cultura popular autentica), e numa longa noite entre vigília e sonolência, raspa camadas da memória de sua primeira experiência sertaneja em plena ditadura, quando se esconde num finalzinho de mundo chamado Olho d’Água, como militante subversiva ao regime militar, com a missão de preparar a futura—mas incerta—vinda de outros revolucionários. O tempo passa, sem notícias do exterior; sem orientação e objetivos a longo prazo, ela descobre “um mundo ao rés do chão”, “o território das coisas mínimas”, a opressão da materialidade do existir, da necessidade de não desperdiçar nada, que rege o cotidiano de um lugar onde a miséria é soberana. Contrariando estereótipos consagrados pela literatura e pela indústria cultural, também descobre a vitalidade, o humor e a alegria desse povo, apesar do fatalismo de suas crenças e relações e da meta (ainda utópica, infelizmente) de emancipá-lo: “Pareciam todos ter nascido já sabendo o que fazer, o que cantar, dançar, recitar, eles, a face festiva, o contraponto da natureza hostil ao seu redor”.

Além da sobreposição de tempos diversos do sertão, Outros Cantos, também aproxima instancias espaciais diversas: temos cidades “desenvolvidas” do vasto mundo, como Paris e Rio de Janeiro, até outros rincões de penúria e populações explorada por onde a viajada Maria teve experiências que colorem ainda mais os fios do tear de sua permanência em Olho d’Água – o deserto argelino, o México. Não falta sequer uma misteriosa e multiforme figura masculina a desassossegá-la em todos os momentos, originando uma coleção de objetos-talismãs.

Portanto, são muitas as viagens que o leitor poderá percorrer nas páginas – porventura as mais belas que a grande escritora santista já produziu, em especial as 50 primeiras. Em sua memória, contudo, será impossível de raspar alguns trechos extraordinários do sertão-palimpsesto: a tortura e a beleza do trabalho com o tear e suas tinturas, a projeção cinematográfica em Olho d’Água, as festas que marcam o final de ano e da lida (cujo material é escondido do Dono – pois há um latifundiário – e seus jagunços). A precisão do texto e as formulações definitivas sobre as “lições de coisas” (para usar um título de Drummond) e seres fazem com que essa veterana de muitas veredas da luta ao lado do povo se aproxime de uma antípoda (no espectro político, não no talento), também apaixonada por viagens e obrigada a uma vida imóvel e vertiginosa em suas descobertas: a conservadora Marguerite Yourcenar (1903-1986), em obras como Memórias de Adriano e A Obra em Negro. Findo o livro, temos a forte impressão que as aventuras de Maria jamais terão um desfecho.

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TRECHO SELECIONADO:

Trabalhava-se ali tanto quanto nunca pensei que se pudesse trabalhar. O caminhão chegava aos sábados, carregado de fio de algodão cru. Aos domingos, todos, menos os poucos vaqueiros, permaneciam escondidos em suas casas, por respeito estrito à lei divina do repouso semanal ou pela exaustão feita lei, e a rua se despovoava como as cidades sagradas do M’Zab às sextas-feiras. Mas na madrugada do dia seguinte, neste outro vale, de areia entre paredes brancas, recomeçava-se um ciclo eterno: velhas banheiras de ágate rachado e salpicado de ferrugem, sobre suas patas de animais estrangeiros, resgatadas de algum ferro-velho de antiga vida urbana, serviam como cubas para tingir o fio que devia ferver por horas, em água salobra e anilinas corrosivas, sobre fogueiras alimentadas sem cessar pela lenha pobre, rapidamente consumida, exigindo um constante vaivém de meninos, fileira de formigas bípedes.

Mexer, sem parar, o fio e a tinta borbulhante, retirar com longas varas as meadas coloridas, fumegantes, e pô-las a secar sobre uma sucessão de cavaletes rústicos, desenlear o fio, já seco, e enrolá-lo em grandes bolas para depois urdir os liços, entremeando as cores em longas listras, transformar o povoado naquele espantoso arco-íris desencontrado, era trabalho de macho. Começava ao primeiro anúncio de luz do dia, no meio da única rua, e prosseguia até que eles já não pudessem mais ver as próprias mãos e o som do aboio viesse rendê-los, interrompendo-se apenas com o sol a pino, quando desapareciam todos por cerca de duas horas, prostrados pela fome e pelo calor. Em uma semana estava pronta a urdidura para transformar o fio bruto nas redes que me haviam embalado a infância e cuja doçura em nada denunciava o esforço sobre-humano e a dor que custavam.

Às mulheres cabia a estranha dança para mover os enormes teares, prodígios de marcenaria, encaixes perfeitos, sem uma única peça de metal, apenas suportes, traves, cunhas, pentes e liços, chavetas e cavilhas de jacarandá, madeira tanto mais preciosa quanto de mais longe vinha, os pés saltando de um para outro dos quatro pedais que levantavam alternadamente os liços, os braços a lançar as navetas e a puxar o fio, estendendo faixas de cor, a fazer surgir o xadrez das redes que eu tão bem conhecia, feitas berços no alpendre de meu avô, feitas mercadoria nas estreitas ilhas de verdura no meio das avenidas da metrópole, braços tão rápidos que pareciam ser muito mais de dois, transfigurando aquelas sertanejas em deusas indianas.

A cadência para seu trabalho e para o trabalho dos outros vinha do baque ritmado dos liços e dos pés, do assobio das lançadeiras e do rascar dos pentes, que escapava pelas portas e janelas dos quartos de tear que constituíam quase toda a casa de cada família. A melodia, quando havia, era a da cantilena das velhas e das meninas, assentadas em tocos de troncos tortos, à pobre sombra das algarobas, a trançar varandas e punhos para as redes.

Era das mulheres também a tarefa infindável de buscar água potável na única fonte a escorrer, preguiçosa, em oásis com coqueiral, mancha verde à meia encosta da colina que se elevava sozinha na paisagem, assim como a obrigação de controlar o movimento do burro a mover a nora para fazer subirem os alcatruzes de barro do fundo de um poço estreito, trazendo a água salobra, único bem que lhes dava fielmente aquele fundo de mar há milênios esvaziado. O canto sob as algarobas era sinal de que já estavam os potes cheios, as cabras amarradas a algum esqueleto de arbusto, o fogo aceso sob os telheiros entre as casas e os currais, moído o milho e consumido o cuscuz da madrugada, o feijão a ferver nos caldeirões de barro enegrecido, ou sinal de que já se haviam esvaziado os pratos de sua parca mistura de feijão com farinha, talvez enriquecida por laivos de sabor da carne de um preá ou de uma rolinha, saídos do bisaco de algum vaqueiro. Aquelas tarefas também eu tinha de aprender a cumprir”.

edição de alfredo monte

08/04/2014

Destaque do Blog: QUARENTA DIAS, de Maria Valéria Rezende

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«Sabe o nome da rua que ele mora aqui na Vila? Aqui é grande demais pra gente conhecer todo o mundo (…) Aqui mesmo na vizinhança só tem uma pessoa de lá, Ô, Baiana!, guri, tu corre e chama a Baiana pra ver se ela conhece, Pobrezinha dessa mãe!, Filho perdido é coisa que mãe nenhuma aguenta. Vai, piá, vai ver se a Baiana está aí, que ela é de lá, de Fortaleza, é lá de Minas…».

(uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 08 de abril de 2014)

Como balizas deste meu texto, vou convocar algumas figuras femininas, a primeira delas Macabéa, a alagoana de A hora da estrela (1977), de Clarice Lispector, que conta justamente «as fracas aventuras de uma moça numa cidade toda feita contra ela »(no caso, o Rio de Janeiro).

A paraibana Alice, narradora de Quarenta dias, de Maria Valéria Rezende, é mais bem-aquinhoada pela sorte material e está para entrar na dita “melhor idade” («… meia-idade?, já ninguém mais diz isso, meia-idade, fica-se jovem até ser promovida a velha avó, mesmo sem netos, e olhe lá! A idade adulta sumiu, comprimida entre a juventude esticada até o limite do indisfarçável e a tal da melhor idade»)[1]. Contudo, é a uma inóspita (para “brasileirinhas” feito ela, no melhor estilo do racismo que nunca ninguém acha que existe por aqui) Porto Alegre que ela chega para cumprir a sina de “avó profissional”, após uma feroz conspiração familiar orquestrada pela filha, Norinha, a qual, tendo feito a mãe desenraizar-se tão traumaticamente, não hesita em partir para a Europa para uma temporada acadêmica. Afinal, a mãe já viveu o que tinha de viver…

Para escrever sua história, de como fugiu sorrateiramente daquele apartamento-arapuca preparado por Norinha e de como, por 40 dias, vagou por uma cidade toda feita contra ela, palmilhando favelas, bibocas, prontos-socorros, rodoviárias, subúrbios e lugares de pouso para sem-teto, na busca do paradeiro do desaparecido Cícero Araújo, peão de obra, filho de uma conterrânea[2], Alice se vale de um antigo caderno espiral com uma Barbie na capa. Sim, ela, o ícone da domesticação fetichista do que se pretende como “o feminino”, incluindo comportamentos e uma aparência física que só pode existir por meio de manipulação cirúrgica[3].

É nessa Barbie sempre passiva que ela descarrega sua revolta, contando suas andanças, das quais traz “detritos” (que compõem a estrutura visual do livro: panfletos, comandas, folhetos, e citações de outros autores[4]) e a memória convulsa de «toda essa gente que tomou conta de mim e grita e anda pra lá e pra cá e chora e xinga e gargalha e geme e mija e sorri e caga e fede e canta e arenga e escarra e fala e fode e fala e vende e fala e sangra e se vende e sonha e morre e ressuscita sem parar».

Virou moda um escritor se alojar por curto tempo numa cidade que lhe é alheia e produzir um livro a partir da experiência fugaz[5]. Ou então, como em Budapeste (2003), de Chico Buarque, o nome da cidade (que acaba sendo um lugar-nenhum) servir como mote de uma trama que enfatiza uma “poética da pós-modernidade”, por um lado, até angustiantemente fantasmagórica; por outro, sofisticada e cosmopolita. Nada mais distante do que os desígnios de Maria Valéria Rezende no seu contundente romance. Nele, a sensação de “não-lugar”, transmitida em vários pontos do relato, mostra é a dinâmica da exclusão, a urbanização segregacionista que faz com que, sob o anseio de um perfil Dubai,  onipresente nas metrópoles, aquele que porventura se extravie, encontre brechas inquietantes, realidades alternativas, como aquelas que Alice encontra na sua peregrinação ziguezagueante por conta de Cícero Araújo. Fendas («rachaduras na superfície da cidade») por onde é fácil desaparecer para sempre, tornar-se invisível e não-cidadão…

Cercada pelo «país das maravilhas cruéis», Alice se reporta amiúde à sua xará, a menina inglesa criada por Lewis Carroll, também antípoda a ela quanto à idade (como a citada Macabéa), a jovem sempre às turras com as regras e a lógica do mundo adulto, que resultam arbitrárias e grotescas. Ingressando na “melhor idade”, da Alice paraibana se exige também que siga determinadas regras de conduta e assimilação[6], e ao se largar pela inóspita Porto Alegre da superfície, embarafustando-se pelos seus desvãos, ela descobre o que é ser uma figura desconstruída de mulher, «quase um monte de trapos, enrolada num trapo há muito tinha deixado de ser de luxo… Por não suportar o olhar do dono do bar que se tornava hostil, saí e retomei meus caminhos que levavam a tantos lugares e a lugar nenhum».

Mas no país das maravilhas cruéis, da gentrificação, há um estreito espaço para um Brasil profundo, para um povo brasileiro que não se ajustou ao padrão-Fifa, e especialmente para a compaixão, no sentido que aprendemos com a ficção da grande autora de O voo da guará vermelha (2005): não apenas uma comiseração mútua, e sim o envolvimento e engajamento solidário entre as pessoas para além da degradação que a realidade monolítica que o capitalismo vem tentando construir e o cotidiano brutalizado podem oferecer[7].

Pois, como espero ter conseguido demonstrar (com a ajuda de Macabéa, de Barbie, das Alices), Quarenta dias é uma tremenda e necessária reflexão ficcional sobre o Brasil de hoje, que já foi o país do futuro, que está ameaçando se tornar um país xing ling das maravilhas, porém ainda tem suas Vilas Degoladas (favela onde supostamente vivia Cícero Araújo) e seus “brasileirinhos” incômodos e renitentes.

boneco do quarenta diaspágina

TRECHO SELECIONADO

«Tive de voltar atrás, lembrando que, pra um banho valer a pena, era preciso, no mínimo, uma toalha, uma calcinha e um par de meias limpas, daquele jeito eu não podia continuar, só de pensar dava nojo. Percorri um corredor de lojinhas e logo ali, entre um balcão de perfumes e outro de relógios, celulares sem marca e chinesices semelhantes, achei um comerciozinho com todo tipo de roupa pendurada das paredes e do teto, consegui uma toalha de rosto não muito pequena, mas que ainda cabia na minha mochila, um par de meias, de homem (…) Enfim, Barbie, comprei as meias, a toalha e pedi calcinhas. Ai, nem você ia querer usar as calcinhas que a moça me mostrou, todas apropriadas pra eu voltar àquela pensão-hotel que me tentara, mas eu não estava pensando nisso, deusmelivre!, deviam pinicar, cheias de babadinhos de renda de material sintético, três cores a escolher, pretas, vermelhas ou, Olha que lindas essas, roxas! (…) eram aquelas coisinhas só pra constar ou pra efeitos supostamente eróticos. Pedi Não tem alguma coisa bem simples de algodão, sem nada de enfeito, bem confortável?, sumiu o sorriso aliciante debaixo da expressão de desinteresse, desprezo?, De algodão?, não tenho não, está em falta, faz tempo que não vendo calcinha de algodão, ninguém procura, de algodão só tem mesmo cuecas, tipo zorba, pra homem. Eu pedi Deixe ver as cuecas (…) Fiquei surpresa: a cueca exposta era uma calcinha com um aspecto mais confortável do que qualquer calcinha que eu conhecesse, mais folgada nas entrepernas, só tinha umas costuras a mais e a frente reforçada, nem sequer buraco pra tirar fora coisa nenhuma, era uma ótima calcinha, por que não?, se eu quisesse aquilo era uma calcinha, sim, comprei, feliz. Em oferta, três por 12. Pode crer, Barbie, foi uma descoberta e tanto!…».

detalhereportagem

[1] Num dos melhores episódios do romance, Alice se vale das indicações dos porteiros do edifício em que Norinha a alojou em Porto Alegre para conseguir uma faxineira. Aparece uma candidata: «… dei com uma mulher alourada, bem mais nova, mais corpulenta e mais alta do que eu, que respondeu ao meu Boa-tarde com um resmungo, enquanto me olhava de cima a baixo». No final de uma rápida interlocução, a suposta interessada no serviço diz: «É… não vai dar certo pra mim, não, senhora» e logo depois se retira. Consultando o porteiro, a perplexa Alice diz a ele que não entendeu patavina da atitude da moça. Algum tempo mais tarde, ele acha outra candidata: «Dona Alice, estou mandando aí pra senhora uma diarista que, essa sim, a senhora vai gostar demais e tenho certeza de que ela vai ter tempo e querer lhe servir, vão se dar bem, que ela é brasileirinha, assim como a senhora». Trata-se da baiana Milena, «companhia da minha própria espécie».

[2] «Um rumo vago. Que eu seguiria se quisesse. Talvez tenha sido o nome estranho do lugar que me despertou da letargia. Talvez tenha sido, sem que eu percebesse, a dor da outra mãe tomando o lugar da minha, um alívio esquisito, uma distração, e eu quis, sim, sair por aí à toa, por ruas que não conheço atrás do rastro borrado de alguém que nunca vi…».

Ao longo do relato, o fio de informação que ela tinha a respeito de Cícero Araújo para tentar encontrá-lo vai se transformando numa invenção, aumentada, refundida, deformada («…achar ou inventar novas pegadas de Cícero Araújo…», mas sempre comovendo e interessando as pessoas, pois todo mundo conhecia uma história assim, e dor de mãe é dor de mãe (chega uma hora em que ela começa a referir o caso como a “lenda de Cícero Dias”, «Imediatamente comecei a desenrolar minha lenda de Cícero Araújo», o que não deixa de ser um expediente bem nordestino): «Criei coragem, invoquei mais uma vez Cícero Araújo, desfiei minha fábula…».

Os motes se dão a mão na tessitura perfeita de Quarenta dias: «Eu nem percebi, naquele dia, quando saí atrás de um quase imaginário, um vago Cícero Araújo, que estava, na verdade, correndo atrás de um coelho branco de olhos vermelhos, colete e relógio, que ia me levar pra um buraco, outro mundo. Também, que importância tinha? Acho que eu teria ido de qualquer jeito, só pra cair em algum mundo…».

[3] Quarenta Dias vai fundo nesse questionamento do “feminino”, inclusive nas suas formulações modernosas: «O psicólogo discorria sobre o assunto e a entrevistadora escutava atentamente, com um sorriso beato. Verdade seja dita, o rapaz era bonito, simpático e falava bem, sem aqueles aaaa eeee costumeiros de intelectuais entrevistados, mas aquilo que ele dizia pra mim soava como um monte de besteiras. Então a mulher entra numa fase muito particular em que todo o seu organismo se prepara pra chegada de sua menstruação, conforme seu ciclo, blá-blá-blá… e seus hormônios se agitam e agem modificando as emoções e o comportamento, causando depressão, irritabilidade, mal-estar físico e até cólicas. Faça-me o favor! Ter de ouvir estas coisas calada!, havia mais pessoas na sala, inclusive um rapaz. Minha vontade era de responder com uma pergunta: E daí? Cólica, dor nas pernas, que mulher nunca teve coisas assim, quando a menstruação se aproxima?, desde que o mundo é mundo!, sem precisar de siglas pra se saber que bastava uma cafiaspirina pra resolver um bocado daquilo (…) Mas a explanação continuava: Então as pessoas mais próximas tem que estar atentas, ter tolerância, tratar com carinho e respeitar esse momento delicado, e mais blá-blá-blá… Veja só, Barbie, onde foi dar aquela conversa piegas. Ainda estavam nisso quando chegou a minha vez de ser atendida. A doutora me abriu a porta, séria, e pensei Só espero que ele não esteja com a tal de TPM. Imóvel na cadeira reclinada, enquanto ela cutucava o canal do meu dente, nem vi o tempo passar, a tal síndrome dando voltas na minha cabeça, novidade inventada pra dar lucros a médicos, psicólogos, anunciantes de televisão, laboratórios, revistas femininas, farmácias, ou pra dar mais e mais espaço às grosserias e descontroles que a minha geração vinha permitindo aos mais novos, eu com vontade de cuspir fora aqueles rolos de algodão e explicar pra pobre da dentista que, desde muito antes dela nascer, eu, minha mãe e minhas avós fomos mulheres, e nunca nos permitimos comportamentos parecidos com o que hoje ouvia que devem ser tolerados em nome da tal de TPM. E argumentava comigo mesma Pra mim sempre será só falta de educação tratar mal a quem quer que seja, e qualquer dia do ciclo…».

artigo sobre quarenta dias

[4] Colhidas em sebos.

[5] Aliás, a origem de Quarenta dias está no projeto lançado em 2011, afinal não levado a cabo, “Redescobrindo o Brasil”, meio que nos moldes da série Amores expressos: seriam 14 escritores para 14 capitais brasileiras. Por isso, Maria Valéria perambulou por Porto Alegre. Felizmente, ela não desistiu de aproveitar a experiência.

[6] Um dos motes mais vivazes do texto é a referência aos “tamanhos” assumidos pelas duas Alices. Por exemplo: «Quando Umberto [o genro gaúcho] embicou o carro num portão, diante de um prédio qualquer daquela cidade nenhuma, acionou um controle remoto e entrou, parando ao lado de uma guarita, encolhi-me ainda mais, Alice diminuindo, diminuindo…»; em outra passagem: «… acordei logo cedo, disposta a deixar pra lá o ressentimento, ser realista, encarar as coisas como eram agora, como gente grande, voltar ao meu tamanho normal…».

Mas há inúmeras outras analogias tecidas em torno das aventuras das xarás. Deixo ao leitor o prazer de descobri-las, identificá-las.

[7] Cf. o episódio de Lola, em Quarenta dias, por exemplo.

VER TAMBÉM AQUI NO BLOG:

https://armonte.wordpress.com/2012/12/08/a-verdadeira-senhora-do-destinoo-mundo-cada-vez-mais-vasto-de-maria-valeria-rezende/

https://armonte.wordpress.com/2012/12/06/por-detras-das-palavras-desencontradas-a-estreia-memoravel-de-maria-valeria-rezende/

https://armonte.wordpress.com/2012/12/04/a-linguagem-contra-o-esquecimento-do-ser-num-dos-grandes-romances-brasileiros/

https://armonte.wordpress.com/2012/12/07/universo-em-expansao-o-exodo-do-rural-para-o-urbano-de-maria-valeria-rezende/

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https://armonte.wordpress.com/2012/12/04/a-voz-do-povo-ouro-dentro-da-cabeca/

                         Balada Literária 2012

22/02/2014

Apresentação de KIM, de Rudyard Kipling

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(o texto abaixo foi publicado como Apresentação à tradução de Maria Valéria Rezende, editora Autêntica, 2014)

Logo no início de Orlando (1928), famoso romance da escritora inglesa Virginia Woolf, o personagem principal—então um rapazinho do final do século XVI—se diverte chutando a cabeça de um “mouro”, morto em combate pelo pai (ou pelo avô, não se sabe bem), e encenando combates.

Com variações, essa poderia ser a caracterização da disposição da meninada em todas as épocas e lugares: o desejo de aventuras, de viver experiências vibrantes. Por outro lado, a formação de um ser humano no século XXI pressupõe que nele se desenvolva uma cultura de paz e tolerância, de respeito pelo Outro, pela diversidade cultural e religiosa.

Portanto, embora o desejo aventureiro de Orlando seja compreensível para qualquer um que foi garoto, é chocante para nós a sua expressão, através da exaltação da guerra e da visão de outras culturas como “inimigas”. No momento em que Virginia Woolf escrevia seu livro, os países da Europa, especialmente a Inglaterra (mais conhecida como Império Britânico) ainda colonizavam boa parte do globo terrestre, praticamente continentes inteiros, como a África e a Ásia.

Poucos anos depois da cena acima citada em Orlando,  isto é, em 1608,  ingleses aportaram na Índia com carta branca para explorar o comércio de especiarias. Pouco a pouco, o Império foi estendendo seu domínio territorial e militar até que, em 1858, após o esmagamento de  uma rebelião (chamada de Grande Motim pelos colonizadores) liderada por membros nativos do exército imperial,  a rainha Vitória tornou-se oficialmente a governante do território. A característica mais acentuada da presença britânica era o corpo de funcionários civis, quase todo composto por pessoas do país colonizador. Mesmo com a enorme população local e a existência de instituições milenares, a espinha dorsal da administração era toda anglo-saxônica.

Essa situação política perdurou até 1947, quando finalmente o país conquistou a Independência (é verdade que, depois da Primeira Guerra Mundial, o Império já estava bastante debilitado para manter suas colônias).

O escritor mais representativo dessa era de domínio da Índia pelos ingleses e, por extensão, de toda a ideologia que moveu a conquista do mundo pelos europeus é, sem dúvida nenhuma, Rudyard Kipling. E Kim —que você, leitor, está lendo na primorosa tradução de Maria Valéria Rezende— é, entre os seus livros, o que melhor expressa a situação curiosa desse gênio literário (imensamente popular enquanto viveu) que angariou, talvez injustamente, certa antipatia por sua condição de propagandista do imperialismo.

Kim é o órfão irlandês (ou seja, ele não é nem indiano nem inglês “legítimo”), o “amigo de todo mundo”, que vive ao deus-dará por Lahore, na província de Punjab (que hoje faz parte do Paquistão), até que se torna o chela (discípulo) de um lama, um sábio tibetano engajado numa busca mística (a amizade entre os dois é um aspecto muito bonito do romance); ao mesmo tempo, no mundo prático, torna-se um agente (aproveitando seu grande talento para o disfarce e facilidade em dominar vários dialetos) do coronel Creighton, o sagaz chefe do Serviço Secreto, que está tentando descobrir os detalhes de uma conspiração na qual  espiões russos estão envolvidos. Kim se entrega de corpo e alma ao que, ao longo da narrativa, é chamado de Grande Jogo.

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Na verdade, Kim (publicado em 1901) é a realização artística da nostalgia de Kipling pela Índia (especialmente pelo Punjab), onde nasceu em 1865 e viveu uma infância tão feliz que a viagem para a Inglaterra, onde foi educado em internatos, como comum naquele período, causou-lhe um grande trauma, que está muito presente na sua obra. De volta ao Punjab, ali exerceu o jornalismo e começou a escrever contos e poemas, com enorme repercussão, até sair da colônia (em 1889) para nunca mais.  A evocação do país em que nascera foi o impulso principal para a criação das mais celebradas obras kiplinguianas (que lhe valeram o prêmio Nobel), e apesar de justificar o domínio imperial, não vemos nelas aquela visão hostil dos povos não-europeus nem o racismo, tão presentes na atitude “guerreira” e na mentalidade em formação do jovem Orlando; pelo contrário, sentimos que Kim está tão à vontade no mundo indiano, que os ingleses se surpreendem ao constatar que ele é um sahib.

Agora adulto, percebo facilmente todas essas questões complicadas e delicadas em Kim. Quando o li pela primeira vez, na versão clássica de Monteiro Lobato, aos 11 anos, o que me chamou a atenção e fez dele meu livro predileto (junto com As aventuras de Tom Sawyer) foi o lado da aventura, da disponibilidade tanto espacial quanto existencial de Kim: ele podia se mover livremente por todo o território indiano, disfarçar-se, viver ao ar livre, sem entraves, quase sem regras. Todo o resto (a dominação inglesa, a opressão do povo indiano, o lado angustiante da sua condição: ele não pertence a nenhum lugar ou povo, no final das contas) passou batido, como se diz.

As aventuras do pequeno espião (associadas às dos heróis do que chamávamos então de gibis, que então eu venerava) me marcaram tanto, ali nos já longínquos anos 1970, que tomei a seguinte decisão: iria combater o crime (assim mesmo, vagamente, sem a menor noção da realidade)! Alta noite, comecei a me esgueirar para fora de casa e sair numa ronda “heroica”. Curiosamente, essas andanças acabavam por me levar aos mesmos lugares frequentados durante o dia (ia para os lados da escola, por exemplo); e nunca encontrei—felizmente—o que combater (ah, aqueles tempos em que um pré-adolescente podia sair pelas ruas na madrugada sem qualquer perigo!).

Após algumas experiências desse tipo, minha carreira de aventureiro noturno chegou a um fim abrupto porque um vizinho me viu saindo (ou voltando, tanto faz) e informou meus pais. A minha saída do apuro foi… passar-me por sonâmbulo. A partir daí, a vigilância materna nunca mais me deu trégua. Para minha tristeza, acabei não participando de nenhum Grande Jogo, a não ser o amor pela literatura.

A moral dessa história, caro leitor, é que hoje em dia precisamos ficar atentos a todas as conquistas humanistas, as quais permitem que a educação seja inclusiva, ecumênica, antirracista ou etnocêntrica, e instauradora da noção de que não há povos ou culturas superiores ou inferiores; mas, ao mesmo tempo, nunca devemos deixar que se perca o crescimento da imaginação e da sensibilidade que o desejo pela aventura carrega consigo. Os Grandes Jogos mudam, mas os pequenos Kims, cada um na sua medida, sempre estarão aí para o que der e vier.

nota- Nas antigas Sessões da Tarde vi muitas vezes a adaptação cinematográfica do livro, de 1950, dirigida por Victor Saville e estrelada por Errol Flynn, com Dean Stockwell ainda guri, no papel-título.

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08/12/2012

A VERDADEIRA SENHORA DO DESTINO: o mundo cada vez mais vasto de Maria Valéria Rezende

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A Valentina, que sem saber me deu um presente tanto para o leitor quanto para o homem, em termos de literatura, amizade e aprendizado de vida. Aqui vai meu agradecimento tardio.

Já contei essa história algumas vezes, mas nunca por escrito:

Um dia, em 2001, encontrei na minha caixa de correio o exemplar de um livro. Nunca ouvira falar da autora ou da editora. Uma carta o acompanhava:

Prezado Senhor,

   Tomei a liberdade de pedir seu endereço para a ***********[o nome da pessoa não vem ao caso].

   Maria Valéria Rezende é minha irmã.  Sua história de vida, um tanto quanto movimentada e rica, aliada a sua sensibilidade, fez dela uma escritora, conforme atesta Frei Betto no prefácio de “Vasto Mundo”.

   É com muito orgulho que me envolvo pessoalmente no lançamento de seu primeiro livro de ficção.

Etc etc. Fiquei muito bravo. Que folga! Que petulância! Imediatamente liguei para A TRIBUNA solicitando encarecidamente que não fornecessem mais meu endereço em situações similares, em hipótese alguma. Já pensou? Devia de ser uma senhorinha, como tantas as há, que transitam entre a coluna social e o exercício do beletrismo (o nome todo indicava isso: Maria Valéria Vasconcelos Rezende). Como moro na Baixada Santista, sempre fugi de um certo tipo de lançamento bem provinciano, sempre evitei fazer resenhas que só serviriam para vivificar a fogueira das vaidades locais.

Verificando o volume com mais atenção,pensei: não me faltava mais nada: uma freira, de uma tal Congregação  de Nossa Senhora-Cônegas de Santo Agostinho. Danou-se! Provavelmente eram histórias edificantes e piegas.

Então, caí vítima da dengue. E foi bravo. Fiquei umas duas semanas em estado de prostração, e nem tenho a certeza de ter me recuperado totalmente (acho que conheci o que era a depressão, no sentido orgânico). Fui me recuperar na casa dos meus pais, que depois, como sempre  faziam (e ainda fazem), viajaram para o sítio, me deixando ali. Até hoje não sei bem o porquê de ter levado o exemplar de Vasto Mundo comigo. Deve ter sido uma ação sorrateira do destino. Só sei, que após duas semanas sem a menor vontade de ler, devido aos enjoos e ao mal-estar geral, o livro que me fisgou, ao contrário dos outros que havia levado, foi o de Maria Valéria Rezende.

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Afora seus indiscutíveis méritos literários, o talento pronto e acabado da autora, nada titubeante ou inseguro, sua capacidade de envolver o leitor com suas histórias, a coletânea (ou romance?,pois —na trilha de Winesburg, Ohio, de Sherwood Anderson, Vidas Secas, de Graciliano,  O povoado, de Faulkner— poderíamos até avaliá-la nessa categoria) me fascinou porque, à época,  estava mergulhado no mundo de Duas Pontes, a mítica cidade criada por Autran Dourado, por conta da minha tese de doutorado. Como resultado das minhas leituras e encafifações, duas características muito relevantes e evidentes em Vasto Mundo me obcecavam: o uso do discurso indireto livre e a relação entre uma narrativa específica de um determinado autor com uma macro-narrativa. No mundo parabaiano-cósmico de Farinhada delineado por Maria Valéria, cada texto era uma peça autônoma, mas tanbém se juntando ao quebra-cabeças do conjunto ganhava em perspectiva e densidade. Valia para os dezesseis relatos ali reunidos a afirmação tão bela de Faulkner sobre a criação de Yoknapatawpha (imagine-se a minha empolgação quando descobri, muito mais tarde, que esse território literário fascinava a autora estreante tanto quanto a mim):

“Substituindo a realidade pelo apócrifo teria eu possibilidade de utilizar ao máximo o talento existente. Essa descoberta abriu uma mina de ouro em forma de pessoas e assim criei um cosmos próprio. Posso movimentar essa gente como se fosse Deus, não apenas no espaço como também no tempo… Gosto de pensar que o mundo que criei é uma pedra fundamental no universo, a qual, embora pequena, causaria o seu colapso se fosse removida.”

Não sei bem por que, também, do saldo da primeira leitura de Vasto Mundo fiquei com a ideia, ou melhor, com o “pensamento mágico”, de que Farinhada era a seara de Maria Valéria Rezende e que ela iria explorar continuamente esse universo, como Faulkner fizera com Yoknapatawpha, Autran Dourado com Duas Pontes, Onetti com Santa María… Talvez porque Farinhada, seus habitantes e suas histórias se imprimiram tão fortemente na minha cabeça, como mais tarde a Papaconha de Pedro Salgueiro, em outro livro maravilhoso, a transitar entre conto e romance: Inimigos (2007).

Devo acrescentar que, mesmo havendo futuras edições de Vasto Mundo, sempre terei apreço pela edição da Beca. Creio que foi o seu capricho, mais do que os encômios de Frei Betto (um autor pelo qual não tenho muita admiração), que me levou à leitura efetiva do livro.

De qualquer forma, interessados em saber a minha reação inicial ao livro, podem acessar: https://armonte.wordpress.com/2012/12/06/por-detras-das-palavras-desencontradas-a-estreia-memoravel-de-maria-valeria-rezende/. Só fiz ligeiras e insubstanciais mudanças no texto originalmente publicado em A TRIBUNA, em maio de 2001.

a releitura de vasto mundo para neoleitores

Fiquei, então, alguns anos sem saber nada de Maria Valéria (a quem não cheguei a encontrar pessoalmente em 2001), mas esperando que alguma hora aparecesse mais de Farinhada e sua macro-narrativa.

Saltando para 2005: recebi notícias de que a Objetiva lançaria um romance dela, e recebi em casa (agora sem escândalo ou chilique) um exemplar de O voo da guará vermelha. É claro que, como sou muito chato, tinha que implicar com alguma coisa. Dessa vez, com o título, que me parecia folclórico e perigoso. E é lógico que caí do cavalo, pois a leitura do primeiro capítulo já me fez perceber que todas as qualidades que apreciara no primeiro livro, ali estavam agudizadas e ampliadas: a frase lapidar, o ritmo perfeito, sem contar a técnica de encaixes narrativos que permitia que a história se desse em vários planos, literária e pedagogicamente criativos. Explico-me novamente: contra certas concepções pós-modernas, creio que há uma função pedagógica para a literatura, e procuro uma autoridade moral nos autores; enfim, não tem jeito,  sou um anacrônico. Quero crer que a humanidade aprende com a experiência, quero crer que haja uma função, ainda que imponderável, para o ato de escrever, de contar histórias, e para o ato de ler, de compartilhar histórias. Creio que para o leitor que persegue esse objetivo, mesmo que inconscientemente, O voo da guará vermelha é uma das grandes leituras que a arte do romance reservou para o leitor do século XXI.

Relendo-o agora, em 2012, mais uma vez me emocionou profundamente a compaixão entre os personagens, não no sentido de uma comiseração mútua, mas daquele envolvimento e engajamento solidário entre as pessoas para além  da degradação que a realidade e o cotidiano brutalizado podem oferecer. Maria Valéria Rezende renega totalmente aquele dito de Eugene O´Neill de que  “a vida é, para cada homem, uma cela cujas paredes são espelhos”.

Todavia, o mais bonito das minhas releituras atuais, tanto de Vasto Mundo quanto de O voo da guará vermelha, além de confirmar que eles só ganharam com  a passagem do tempo, e se mostraram mais densos e belos do que na leitura inicial, foi que —conhecendo pessoalmente Maria Valéria, como agora conheço— pude como que ouvir a sua voz narrando seus próprios livros, pois ela é uma contadora de histórias da própria vida digna de uma Sherazade. Já disse que ela entreteria qualquer sultão por mil e uma noites, e repito, porque o que não falta na sua vida é aventura e anedota, lugares, pessoas, línguas e experiências. Ela é a encarnação do narrador-viajante (em oposição ao sedentário), o narrador-marinheiro (em oposição ao narrador-camponês), caracterizado por Walter Benjamin. Esse foi outro ganho para a minha vida, eu que sou, por constituição psíquica, camponês-sedentário.

Então, reler esses livros ao “som” (mental) da fala de Maria Valéria foi uma prova da força da sua presença na minha vida.

voo

Antes de passar para a próxima etapa, aconselho aos que queiram saber mais sobre O voo da guará vermelha a acessar: https://armonte.wordpress.com/2012/12/04/a-linguagem-contra-o-esquecimento-do-ser-num-dos-grandes-romances-brasileiros/. Também só fiz alterações leves no texto original, de 2005.

Diga-se de passagem, a essa altura já achava natural, no comentário a outros autores, fazer comparações e aproximações com as narrativas de Maria Valéria. Um exemplo, tirado de uma resenha que escrevi sobre O morto certo, de Jorge Semprún:

“Esse morto do qual se necessita é, além de representante dos “dispensáveis” num modo de pensar em que só os fins contam, também representante dos “desamparados”, daqueles que desistem de viver na situação-limite, aqueles cujo olhar já abandonou o corpo e que não conseguem sustentar uma atitude positiva similar à do narrador: Assim, mesmo sentado sobre a viga das latrinas do Pequeno Campo; ou acordado no tumulto dos gemidos do dormitório; ou alinhado na fileira de detentos diante de um soboficial da SS fazendo a chamada; ou esperando que o serviço de alojamento cortasse com o fio de aço o derrisório pedaço de margarina cotidiana; em qualquer circunstância era possível se abstrair do imediatismo hostil do mundo para se isolar na música de um poema.

Esse morto tão útil, pelo menos enquanto morto, perece por não suportar o dilema retratado por Rosálio, protagonista de O voo da guará vermelha, de Maria Valéria Rezende, quando fica numa situação-limite bem atual, e que não tem guerra nem nazismo para justificá-la, o trabalho rural escravo: Um corpo de homem agüenta mais do que a gente imagina, por vontade de viver, mas a alma é outras coisa, vai morrendo mais depressa quando perde a esperança”.

Também a essa altura, já começara a trocar e-mails com ela, e finalmente nos encontramos (aqui em Santos, ainda faltavam alguns anos para as memoráveis viagem a João Pessoa). Não que isso fosse inevitável ou necessário, pelo menos para a apreciação de sua obra (será que é preciso, de fato, enfatizar isso?). No entanto, pelas razões aludidas mais acima, foi um grande ganho na minha vida. Aliás, retomando o fio deste meu texto, penso que ele fala até mais de mim quanto da autora de que deveria me ocupar essencialmente. Deixo como está. Espero ter enriquecido a vida dela pelo menos ¼ do que enriqueceu a minha.

Aí veio sua participação na FLIP, o infarto em plena festa literária,  justamente quando ela alcançava seu momento mais midiático. E também veio  a coletânea que mostrava seu lado mais urbano, cosmopolita, também  um mundo da memória de gerações mais antigas, um recuo no tempo (recuo que dá o tom de várias narrativas), tanto quanto Vasto Mundo era um mundo regido pelo espaço: Modo de apanhar pássaros à mão, assim como o lançamento anterior, editado pela Objetiva.

Sempre penso nesse livro como uma paleta diversificada e caleidoscópica em que o pintor pôde exibir todas as suas cores, ou seja, como a prova—se é que era necessária—de que não havia recurso literário ou técnica  narrativa que Maria Valéria não dominasse, e que circunscrevê-la ao mundo rural, ao regionalismo, a um determinado contorno, enfim, era vã tarefa. Ela seria como Rosálio, seu protagonista tão carismático, de O voo da guará vermelha: sua sina era ganhar o mundo.

modo

Eu até tinha certa nostalgia de Farinhada, mas fiquei fascinado com a paleta que me era exibida (por isso, durante muito tempo, na minha cabeça, Modo de apanhar pássaros à mão se me afigurava meu livro predileto dela; relendo os dois primeiros constato que, malgrado sua alta qualidade, eu gosto muito, muito, muito deles, para que outro figure como um suposto “predileto”); e a partir daí, através de textos que infelizmente continuam inéditos, por razões editoriais, por razões do jogo da vida (uma existência muito ocupada com os outros, com os fatos, com os projetos, com o vasto mundo), percebi que esse universo estava mesmo em expansão.

Cf. a fusão que fiz de duas resenhas em:

https://armonte.wordpress.com/2012/12/07/universo-em-expansao-o-exodo-do-rural-para-o-urbano-de-maria-valeria-rezende/

Um universo tão voraz que me transformou até em personagem de um conto: ao participar de uma das inúmeras coletâneas que homenagearam Machado de Assis em seu centenário, em 2008, Capitu mandou flores (organizada por Rinaldo de Fernandes para a Geração Editorial), com o conto (que enceta o diálogo intertextual com A causa secreta) “Da Lapa ao Cosme Velho”, a marota da autora começa assim (já que eu lhe dera a sugestão de como abordar o relato machadiano):

“Sei da história toda porque me foi contada pelo próprio Machado de Assis. Hoje, lembrei-me dela, depois de muitos anos, e ocorreu-me escrevê-la porque alguém, o Monte, jovem colega de redação, na hora do café, comentou comigo que, entre os inúmeros contos de Machado que já lera, havia um que lhe parecia destoar dos demais, um conto estranho na sua crueza, sem aquela piscadela maliciosa, sem o sorriso do próprio escritor que acreditamos vislumbrar, por detrás das linhas, na maioria de suas histórias.”

Pois bem, ainda aguardo a publicação dos textos maravilhosos que li nestes últimos anos, tanto os acabados como os “work in progress”, um dos quais surgido com a estadia da intrépida autora, que não sossega (quando me dou conta, ela está alhures e acolá), durante um mês, em Porto Alegre, explorando as brechas na superfície aparentemente monolítica do mundo capitalista pós-industrial, pós-tudo.

Até por razões econômicas (devido aos programas do MEC de incentivo à distribuição de livros nas escolas), mas fundamentalmente  movida por sua preocupação com a formação de novos leitores (inclusive aquela fatia tão desprezada, a dos alunos do EJA, o antigo supletivo), Maria Valéria iniciou a partir de 2007 uma intensa produção na área infanto-juvenil, que vem se estendendo desde poemas e haicais (adoro o premiado Conversa de passarinhos, em co-autoria com Alice Ruiz, e No risco do caracol) até um delicioso livro infantil chamado O problema do pato (em que mostra, através da técnica consagrada pela tradição, de fazer um grupo de crianças viajar por diversos países e costumes, a preocupação das civlizações com a morte e as pompas fúnebres), passando por um conjunto de quatro relatos que compõem um livro eu considero uma obra-prima no gênero: O arqueólogo do futuro. Um pouco do meu entusiasmo pelo livro acho que transparece na resenha publicada em: https://armonte.wordpress.com/2012/12/07/um-momento-de-alegria-purinha-a-historia-sem-fim-de-o-arqueologo-do-futuro/

capitumandouflores

Mais recentemente, ela enveredou pela tradução (neste 2012, por exemplo, a Autêntica publicou sua versão do maravilhoso Micrômegas, de Voltaire, e agora a incansável trabalhadora das letras finalizou a nova versão de Kim; quando ela me disse que estava traduzindo o romance de Kipling, mais uma vez senti o sopro do destino, da “coisa feita lá no céu”: pois não é que esse livro é um dos pilares da minha infância, na versão clássica de Monteiro Lobato?  Kim foi quem eu sempre quis ser, quando garoto, tendo como o único rival à altura, Tom Sawyer).

Os “work in progress” e o volume de contos acabado, polido, depurado, quintessencializado, ainda não vieram a lume. Mas em 2012, ela que, três anos atrás, surpreendera com a reescrita de algumas de suas histórias em dicção mais popular (no sentido de acessível ao neoleitor), na coletânea Histórias daqui e d´acolá (que marcou o início de sua colaboração com o admirável ilustrador Diogo Droschi, um achado), utilizou as aventuras de Rosálio, de O voo da guará vermelha, rebatizado como Marílio, para nos dar um livro que deveria aparecer em todas as listas de destaque do ano: Ouro dentro da cabeça, com o qual minha coluna em A TRIBUNA reencontrou sua obra, após cinco anos de ausência, como se pode ver em: https://armonte.wordpress.com/2012/12/04/a-voz-do-povo-ouro-dentro-da-cabeca/

Maria Valéria Rezende gosta de descortinar e desbravar territórios novos (ela nos levou até a China, em um dos relatos de O arqueólogo do futuro). Foi assim que transformou o conto-título de Vasto Mundo (rebatizado em Histórias daqui e d´acolá em “O mundo visto do alto”) numa espécie de paradigma da sua visão-de-mundo, ao mostrar seu personagem subindo na ponta da torre da igreja:

“Preá  respira todo o ar do mundo e olha: lá embaixo o carro preto, a mala, a moça acenando. Só quando o carro que leva a moça desaparece ao longe, numa nuvem de poeira, é que o olhar de Preá, liberto, encontra o horizonte. Lá de cima, passeia, vaga, vê. E Preá descobre que vasto é o mundo.”[1]

Uma das anedotas biográficas de Rosálio em O voo da guará vermelha é retomada no capítulo “Um voo por cima do mundo”, em Ouro dentro da cabeça. Fugindo do mundo de obsessão doentia, ganância e, paradoxalmente, penúria, que é o da mineração de ouro, graças a compaixão (pois é, é uma palavra recorrente nesse universo autoral) da dona da pensão onde vive, o herói vive a experiência de ser passageiro de avião pela primeira vez (reproduzo a forma tipográfica peculiar e altamente expressiva do mais recente livro de Maria Valéria):

“Até hoje ainda não sei qual foi o maior benefício

que aquela mulher me fez, se me livrar dos perigos

da vida de garimpeiro ou se me dar de presente

um voo por cima do mundo. Eu subi no avião (…)

(…) Meu coração foi inchando

de uma emoção sem tamanho, e as palavras de alegria

querendo sair da boca. Olhei e não vi mais ninguém

que se importasse comigo nem com aquela maravilha

que eu via de lá de cima (…)

(…) Mas o avião subia, subia cada vez mais,

e de repente o mundo lá embaixo foi sumindo,

e eu me vi boiando dentro de um capucho de algodão.

Compreendi que era uma nuvem. Aí o susto foi grande!

Pensei:

__Com mais um pouquinho ele vai bater no céu,

o avião se despedaça, e eu vou chover na mata (…)

(…) até que vi, assombrado, que as nuvens foram passando,

e eu estava acima delas. Embaixo um colchão macio

como de penas de ganso, mais acima o céu azul,

azul de doer a vista. O avião, bem tranquilo, subindo,

subindo mais.

   Daí clareou-se a mente, conheci o meu engano,

porque eu pensava que nuvens, sol, lua e estrelas

viajavam agarrados num teto azul que era o céu

girando devagarinho como se fosse um moinho

carregando aquilo tudo.

   Agora eu via que o céu era um azul sem fim

e que as nuvens e os astros viajam livres e soltos.

Como? Eu ainda não sei, mas sei que é assim porque vi.

Há de ser arte de Deus.”

CONVERSA

   Portanto, resumindo o mote, o vasto mundo está sempre aí, para ser descortinado. Por isso, sempre penso no conto “O muro” como uma poética, e mesmo uma alegoria, do universo de Maria Valéria Rezende, das suas escolhas pessoais e das suas opções como escritora. Nele, uma narradora enfrenta, a princípio involuntariamente,  o descenso (no nível social, enquanto bandeação para o lado excluído e degradado, no caso, uma favela apartada do resto da cidade, através de um muro), que é, simbolicamente, uma ascensão (para  uma percepção diferente do Outro, a uma identificação com ele, a um encontro consigo mesma e com a ideia mais humana, demasiada humana, do que é o Divino; e, mais uma vez, a compaixão):

O MURO

…la resistencia absurda de un mundo resquebrajado que sigue defendiendo rabiosamente sus formas más caducas…

Julio Cortazar

Hoje fecharão a última brecha do muro. Já não haverá mais passagem alguma, nem um buraco para espiar de um lado para outro, nem uma frincha sequer por onde possa minar algum fluído, já nada nem ninguém poderá entrar nem sair. Há que escolher agora de que lado permanecer. Quem ficar lá dentro será para sempre, dizem eles, para sempre. A altura do muro, cuja beirada chega ao mesmo nível que o topo do morro que ele cerca, foi calculada para que ninguém possa ultrapassá-lo, já que eles têm certeza de que nenhum dos que ali se encerrarão é capaz de voar.

Não há hipótese de que os de dentro possam, como sempre fizeram, cavar túneis e, como ratos, escapar pelos esgotos da cidade. O grande império do norte cedeu imensos blocos de um novo material cuja fórmula é secreta, sabemos apenas que é produzido com substâncias de asteróides e poeira de cauda de cometas, fruto de um fantástico esforço de desenvolvimento tecnológico para a paz, explicaram, blocos impenetráveis, assentados desde profundidades insuportáveis para seres humanos e mesmo para ex-humanos. Este é o primeiro muro desse projeto. Os planos incluem mais de uma centena deles. Serão a solução, dizem, haverá paz no mundo, afinal.

Resta uma única brecha, estreita e vertical, sobre a boca de um fosso que desce até à porta do inferno. Uma ponte de tábuas mal pregadas atravessa o fosso neste último trecho ainda vazio. A ossada de um descomunal dinossauro de ferro retém nos dentes um dos últimos blocos, sobre as nossas cabeças. Eu aqui estou, a poucos metros da abertura, tenho medo, tento compreender por que vim parar aqui, ainda espero voltar para trás, talvez. Meus olhos e meu cérebro registram tudo, com a frieza de uma câmara digital, mas tenho medo, devo ter muito medo e confusão.

Desde o início acompanhei da minha varanda o movimento das obras, ao longe. Quando assentaram a fileira superior de blocos e o espantoso projeto revelou-se por inteiro, deve ter-me deixado boquiaberta pois, um dia, há cerca de uma semana, sem que eu percebesse o perigo, o anzol de Deus fisgou-me no céu da boca e desde então Ele vem puxando a linha, devagarzinho, incansável. Não me pude libertar do anzol e, debatendo-me, fui arrastada até aqui.

Deus é um pescador surdo e eu já mal posso gritar, com este anzol fincado na boca. Nem me mover posso, estendida assim, no chão, sob o corpo de um menino incrivelmente pesado, tão magro! Caímos aqui, os dois, embolados, bem no meio do rego de águas imundas que desce do morro e desaparece no sumidouro sob a ponte de tábuas. Estou do lado de dentro do muro. Nem percebi que entrava. Eu estava ainda lá fora, resistindo como podia à força da linha, quando vi um menino traçando, com um jato de tinta vermelha, sua marca tribal na superfície virgem do muro, bem ao lado da brecha, antes que os homens armados que vigiam a entrada o pudessem impedir. Mal vi quando o agarraram e lhe torceram o braço, porque a linha de Deus, como se passasse entre os corpos dos guardas e o da sua presa, num último puxão, atraiu-me contra eles com tal violência que os separou, atirando-nos, o menino e eu, através da abertura.

Devo ter batido a cabeça com muita força, ao cair, porque me dói e ainda estou um pouco tonta. Demorei-me estirada no chão, mesmo depois que o menino se refez, saltou de pé, libertando-me, e o vi correr em direção a uma das subidas do morro, levando na mão seu spray de tinta, na ponta do braço elevado, como se carregasse uma tocha. Tive vontade de simplesmente ficar ali deitada, numa espécie de paz que me veio quando deixei de sentir a dor do anzol no céu da boca, mas à minha volta formava-se uma multidão que se adensava rapidamente, acotovelando-se, afunilando-se em direção à precária ponte de madeira sobre o fosso. Temi ser pisoteada, levantei-me com esforço, tonta, empurraram-me, para dentro, mais para dentro até que me vi junto ao ângulo de um dos becos que se enrosca morro acima.

arqueólogoproblema do patonoriscoouro

Nem pensei em voltar para a passagem no muro. Deus atirou-me para dentro de seu samburá de estreita boca, já não me debato. Soube logo que subiria, mas não por qual caminho, até que vi, pouco mais adiante, numa parede suja daquele mesmo beco, a marca do menino magro, fresca e brilhante, um fio de vermelho líquido ainda escorrendo. O único sinal que eu, vagamente, podia interpretar, neste mundo estranho onde nunca antes sequer imaginei penetrar. Meti-me pela viela que, alguns metros adiante, ao topar com uma parede de zinco e madeira carcomida, quebrava-se para a esquerda. Ninguém. Tive a impressão de que já não havia mais ninguém nesse labirinto, só eu e o menino pichador, porque pouco antes de que o caminho se bifurcasse, mais acima, vi outra vez a rubra assinatura. Sem outro fio senão aquele para guiar-me, eu o segui. Hesitei na bifurcação, mas ela estava lá outra vez, a marca, dizendo-me que lado escolher, direção que tomei sem mais duvidar, entranhando-me na armadilha das ruelas intrincadas.

Afastei-me cada vez mais da saída para o mundo de fora, pouco a pouco os ruídos do tumulto lá de baixo foram-se apagando de meus ouvidos e pude perceber outros sons, muito mais próximos, por detrás das paredes lodosas que me cercavam, ruídos de vida, alguém que escarrava, alguém que gemia, sem que eu distinguisse se de dor ou de prazer, uma porta que rangia, e então comecei a vê-los, por toda parte, acima de minha cabeça, a mulher velha debruçando-se perigosamente da beirada de uma laje torta, mais adiante, um pequeno pé, calçado em borracha gasta, de alguém que virava apressadamente uma esquina, um olho congestionado, entre as duas folhas desencontradas de uma janela, uma cabeça de menina projetando-se de uma porta para logo esconder-se de novo. Espiavam-me, fugiam de mim como bichos ariscos, pensei, para em seguida perguntar-me se não teria, eu mesma, um aspecto amedrontador para eles. Mas as mal traçadas linhas vermelhas se repetiam a intervalos regulares, aparecendo sempre diante de mim quando o caminho parecia findar num ângulo abrupto, atraindo-me para cima, como antes me havia puxado a linha de Deus, e eu segui adiante porque nada mais podia fazer.

Segui, sem deter-me, sem reagir a nada, nem mesmo quando a subida tornou-se mais íngreme e custosa, nem quando as ruelas começaram a encher-se  de viventes que me olhavam descaradamente, já sem espanto, como a me desafiar, quando seu cheiro me agrediu as narinas e suas vozes me soaram duras, esganiçadas ou fanhosas, quando vi bocas que riam de mim, que estropiavam as palavras, caras escuras que eu não podia reconhecer, feios, talvez maus, imaginei, como disseram que eles são.

Compreendo agora porque já parecem ter-me esquecido. Eles continuam por aí, há milhares deles, milhares, amontoados, pelos becos, pelas vielas, nos cantos, por detrás das portas tortas, mas nem se importam mais comigo. Há pouco percebi que já não me vêem porque me estou tornando parecida com eles. Ao virar a esquina de uma ruela deparei-me com o vulto de uma mulher envelhecida, desgrenhada, escura, como todas as outras, mas vagamente familiar. Hesitei, surpresa, creio que esbocei um gesto qualquer, interrompido pela descoberta de que diante de mim, apoiada contra uma parede, o que havia era a porta arrancada de um guarda-roupa com  um resto de espelho.

Sinto-me invisível agora e por isso, talvez, segura. Continuo subindo. Irei até ao alto.

Vou chegando ao topo do morro, olho para baixo e contemplo o que desde agora será tudo. O mundo condenado. Ouço gritos, o som exasperante de uma sirene, vão concluir a clausura, meu olhar alcança ainda uma nesga do outro, o lá de fora, o que será preservado, dizem. O último imenso bloco cinzento encaixa-se no seu lugar com estrondo. Escurece e já não tenho mais para onde ir.

Estou só, aqui em cima, onde não há construções humanas, apenas um imenso ovo de pedra bruta para o qual me volto e no qual me absorvo até ensurdecer, sem saber se tudo o que vi ainda existe ou se o mundo ainda está por nascer.

De repente, entre eu e a pedra, o menino do spray de tinta, o gesto rápido, sua inscrição rupestre. “Quer pichar também, tia?”

Obrigado por tudo, Maria Valéria.

(escrito para o blog, em dezembro de 2012)

Nota- Este post era constituído, a princípio,  por alguns dos textos cujo link foi fornecido ao longo dessa minha homenagem aos 70 anos de Maria Valéria Rezende; portanto, todos os comentários com data anterior a dezembro de 2012 referem-se a eles.

cuoremicromegas[3]


[1] Em Histórias daqui e d´acolá, transformado em Tatuzinho o personagem, lemos:

“Tatuzinho respira todo o ar do mundo e olha: lá embaixo vê o carro preto, a mala, a moça dando adeus ao povo na praça. Tatuzinho vê tudo tão pequeno, lá longe.

   Só quando o carro que leva a moça desaparece na curva, numa nuvem de poeira, é que o olhar de Tatuzinho se liberta, encontra o horizonte.

  Lá de cima, a vista do menino passeia, vaga, vê campos, estradas, povoados e serras. E Tatuzinho descobre que vasto é o mundo.”

Valéria1

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