MONTE DE LEITURAS: blog do Alfredo Monte

28/11/2010

sintonia e focalização em MARCOVALDO E PALOMAR

(resenha publicada em A TRIBUNA em 22 de novembro de 1994)

     A certa altura de Seis propostas para o próximo milênio, de Italo Calvino (1923-1985), na conferência sobre a rapidez, o grande escritor italiano discute a complementaridade entre dois seres mitológicos, ambos filhos de Júpiter: Mercúrio e Vulcano, o primeiro representando a sintonia com o mundo, a participação no coletivo; e o segundo representando a focalização, isto é, a concentração em si mesmo.

     Essa dupla disposição ajuda a entender outros dois maravilhosos livros de Calvino, os quais, publicados em épocas diversas, são bem similares: Marcovaldo ou As estações na cidade, de 1963 (que, aliás, foi lançado na Itália como obra juvenil!), e Palomar, de 1983, respectivamente traduzidos por Nilson Moulin e Ivo Barroso.

    Seus protagonistas vivem a dicotomia sintonia-focalização de maneira mais complexa: ambos procuram focalizar sua atenção para conseguir uma sintonia com um mundo invisível (talvez a verdadeira “natureza”, esta palavra que é um saco de gatos, onde se coloca de tudo um pouco), esmagado pelas aparências, um mundo que pulsa sob as convenções, o espaço urbano e a destruição causada pela ação humana.

     Marcovaldo é um livro engraçadíssimo. E italianíssimo, se me permitem a tautologia. Lembra filmes de Vittorio de Sica, de Pasolini, de Fellini, Monicelli, Wertmüller ou Scola, ou seja, tem aquela mágica alquimia entre a crítica social, o patético e o ridículo, o cômico que beira a chanchada e uma imponderável poesia, que nos faz amar Umberto D, Cabíria, Brancaleone, os vitteloni, o quinteto irreverente, Mimi, o metalúrgico, os feios, sujos e malvados, e Mamma Roma. E amar Marcovaldo, esse carregador italiano, miserável, cheio de filhos, que procura uma impensável e impossível vida natural na cidade.O que engendra episódios deliciosos como o que apresenta o conselho de um médico da Previdência para o tratamento de reumatismo: areia. A única areia limpa que Marcovaldo descobre está numa barcaça. Ele pede aos filhos que o cubram para a efetivação do “tratamento” e eles afastam-se para brincar. A barcaça desamarra-se e lá vai nosso herói soterrado rio abaixo. Há ainda o episódio do coelho que ele rouba do hospital e que (como cobaia que era) está contaminado por uma doença religiosa. Ou os cogumelos que nosso ingenuamente ladino carregador descobre, maravilhado, num canteiro e os quais vai colher, com toda a família, indo todos parar no pronto-socorro, intoxicados.

       Palomar não é tão anedótico nem apresenta uma ternura tão explícita pelo seu protagonista, mas o senhor Palomar é no fundo um Marcovaldo mais culto, mais abstraído das contingências humanas (segue um pouco uma tradição intelectal  em que a figura mais ilustre é  M.Teste, embora a criação de Paul Valéry  este jamais tivesse o calor humano e a simpatia do personagem do autor italiano), porque o livro é mais abertamente filosófico, destilando as muitas experiências de Calvino entre a ficção e o ensaio.

    O senhor Palomar focaliza um ponto no mundo para tentar limpar, depurar sua percepção: uma única onda na praia, o seio nu de uma moça, as constelações no céu,  o vôo migratório dos estorninhos, sem nenhuma noção preconcebida. Parece insípido? Experimente, leitor, para ver o que é estilo, o que é humor refinado. Se trinta anos separam o carregador Marcovaldo do senhor Palomar, o mesmo homem brilhante os criou, e uma das delícias de Palomar é a confusão que ele cria à sua volta com suas “pesquisas”.

    Com esses dois livros belíssimos, a Companhia das Letras continua a publicação da obra de um escritor verdadeiramente fascinante, como já provaram O barão nas árvores, O cavaleiro inexistente, As cidades invisíveis, O castelo dos destinos cruzados ou a sua obra-prima suprema (publicada pela Nova Fronteira numa tradução esplêndida de Margarida Salomão,  que me apresentou ao universo calviniano), Se um viajante numa noite de inverno[1]. Sempre com um mistura da qual podemos tirar a fórmula nas Seis propostas:

     “Assim como a melancolia é a tristeza que se tornou leve, o humor é o cômico que perdeu peso corpóreo… e põe em dúvida o eu e o mundo, com toda a rede de relações que os constituem”.

 

ANEXOS

Trecho de Marcovaldo: a estação é o inverno e o capítulo se chama “O bosque na rodovia”. Os  filhos de Marcovaldo, tiritando de frio, após a leitura de um livro que falava de um menino, filho de um lenhador, que saía com o machado para cortar lenha no bosque,  resolvem sair à procura de um bosque para encontrar a madeira que os aqueceria a todos:

“Nas margens da rodovia, os meninos viram o bosque: uma densa vegetação de árvores estranhas cobria a vista da planície. Tinham os troncos finos, finos, retos ou oblíquos; e copas achatadas e amplas, com formas as mais estranhas e as mais estranhas cores, quando um carro passou e iluminou-as com os faróis. Ramos em forma de dentifrício, de rosto, de queijo, de mão, de navalha, de garrafa, de vaca, de pneu, constelados por folhagens de letras do alfabeto.

__ Viva!- disse Michelino—Isto é um bosque!

    E os irmãos observavam encantados a lua despontar entre aquelas sombras estranhas.

__ Como é bonito…

    Michelino lembrou-lhes logo o objeivo pelo qual tinham ido até ali: a lenha. Assim, abateram uma arvorezinha em forma de flor de prímula amarela, cortaram-na em pedaços e levaram-na para casa (…)

    Naquela noite, fora denunciado o fato de que na rodovia um bando de moleques andava derrubando os cartazes de publicidade.”

Trecho de Palomar:

“O senhor Palomar decide que doravante procederá como se estivesse morto, para ver como o mundo se comporta sem ele. Em pouco tempo se dá conta de que entre ele e o mundo as coisas não estão mais como antes; se antes achavam que esperavam algo um do outro,ele e o mundo, agora já nem se record do que haviam de esperar, de bom ou de mau, enm por que essa espera o mantinha em perpétua agitação ansiosa.

    O senhor Palomar deveria conseqüentemente experimenta uma sensação de alívio, não tendo mais que indagar o que o mundo lhe prepara, e deveria também perceber o alívio do mundo por não ter mais que se preocupar com ele. Mas até mesmo a expectativa de saborear essa calma é o bastante para deixar o senhor Palomar ansioso.

    Em suma, estar morto é menos fácil do que se poderia pensar. Em primeiro lugar, não se deve confundir estar morto com não existir, condição que ocupa também a interminável extensão de tempo que precede ao nascimento, aparentemente simétrica com a também ilimitada que se segue à morte. Na verdade, antes de nascer fazíamos parte das infinitas possibilidades de vida que poderiam ou não realizar-se, enquanto mortos já não podemos nos realizar nem no passado…nem no futuro…

       (…) Antes, por mundo ele entendia o mundo mais ele; agora se trata dele mais o mundo sem ele.

     O mundo sem ele significaria para ele o fim da ansiedade?”


[1] A companhia das Letras depois lançou sua própria tradução de Se um viajante numa noite de inverno..

O leitor-aventureiro de Italo Calvino

     Se um viajante numa noite de inverno, fora do povoado de Marbork, debruçando-se na borda da costa escarpada, sem temer o vento e a vertigem, olha para baixo onde a sombra se adensa, numa rede de linhas que se entrelaçam (numa rede de linhas que se entrecruzam), no tapete de folhas iluminadas pela lua, ao redor de uma cova vazia, que história espera seu fim lá embaixo?

      Essa é uma das questões que povoam o vertiginoso SE UM VIAJANTE NUMA NOITE DE INVERNO (Se una notte d’inverno un viaggiatore , 1979), de Italo Calvino(1923-1985), um dos romances centrais do século XX. Ele já havia sido lançado no final de 1982 (e tive a sorte de “descobri-lo” logo a seguir) pela Nova Fronteira, numa inesquecível tradução de Margarida Salomão, e agora volta numa versão de Nilson Moulin pela Companhia das Letras.

    Nessa verdadeira poética da leitura,o herói é o Leitor, que compra o livro chamado “Se um viajante numa noite de inverno”, num primeiro capítulo que por si só já vale o romance, e descobre, após algumas páginas, que, por um erro de encadernação, a leitura não pode ser continuada. Indo atrás de um exemplar sem defeito, acaba conhecendo uma Leitora, e ambos se envolvem num emaranhado de textos interrompidos cuja leitura é impossível prosseguir.

      O que parecia, a princípio, um inocente erro editorial, toma as proporções de uma conspiração mundial orquestrada por um tradutor, Ermes Marana, líder de uma organização que cria textos apócrifos, a partir de línguas exóticas (cimério, címbrio), distantes (japonês), ou, num ato de ousadia extrema, bem próximas (é o caso de textos do escritor irlandês Silas Flannery).

   Por que ele, ex-namorado de Ludmilla (a Leitora), perpetra tais atentados contra a Leitura?

   “Ermes Marana —desde sempre, porque seu gosto e talento o impeliram a isso, mais ainda depois que sua relação com Ludmilla entrou em crise— sonhava com uma literatura composta exclusivamente de obras apócrifas, de falsas atribuições autorais, de imitações, contrafações e pastiches. Se essa idéia conseguisse impor-se, se uma incerteza sistemática quanto à identidade de quem escreve impedisse o Leitor de abandonar-se com confiança —confiança não tanto no que é contado, mas na voz misteriosa que conta —,talvez nada mudasse no exterior do edifício da literatura. Mas, por baixo, nos alicerces, lá onde se estabelece a relação entre o leitor e o texto, algo mudaria para sempre. Então Ermes Marana não mais haveria de sentir-se abandonado por Ludmilla quando ela estivesse absorta na leitura; entre o livro e ela sempre se insinuaria a sombra da mistificação, e ele, identificado com cada uma das mistificações, teria confirmada sua presença”.

     É lógico que não se consegue abordar plenamente um empreendimento complexo e virtuosístico como SE UM VIAJANTE NUMA NOITE DE INVERNO numa resenha. Pode-se arriscar afirmar, porém, que seu tema central é: qual o lugar da leitura no mundo? Sendo reduzido o espaço da liberdade na nossa organização social (quando não na própria organização existencial), como a aventura da leitura, essencialmente marcada pela liberdade, pode ter ainda algum sentido?

     Mesmo quando uma história narra o destino limitado de seu personagem, ou uma trama que se apresenta como um jogo de cartas marcadas, ela abre para o leitor um labirinto, pois, como afirmou Paul Auster, num dos textos da Trilogia de Nova York, o que importa numa história é a sua relação com outras histórias. É o que realiza primorosamente o grande escritor italiano naquela que é talvez sua maior obra (afirmação temerária, se lembrarmos que ele é autor da genial trilogia Os nossos antepassados, composta por Visconde dividido ao meio, O Barão nas árvores e O cavaleiro inexistente; e autor também de Marcovaldo, As cidades invisíveis, O castelo dos destinos que se cruzam, Palomar…).

     Só que Calvino nunca perde de vista a tensão entre liberdade e possibilidades infinitas, de um lado, e aprisionamento e circunstâncias irrevogáveis, de outro, tensão que alimenta até as histórias interrompidas que o Leitor e Ludmilla tentam prosseguir, como se pode verificar, por exemplo, nas reflexões do protagonista de “Olha para baixo, onde a sombra se adensa” (a quinta história), descontando-se o aspecto paródico de que o texto se reveste:

     “A conclusão a que levam todas essas histórias é que a vida de cada pessoa é única, uniforme e compacta como um cobertor enfeltrado cujos fios não podem ser separados. E assim, se por acaso ocorre de deter-me num detalhe qualquer de um dia qualquer como a visita de um cingalês que pretendia vender-me uma ninhada de crocodilos recém-nascidos… posso ter a certeza de que nesse episódio insignificante está implícito tudo aquilo que vivi, todo o meu passado, os múltiplos passados que tentei inutilmente deixar para trás, todas as vidas que se consolidam numa só —a minha, que continua também neste lugar, o qual resolvi não mais deixar, esta casinha com quintal num subúrbio parisiense, onde instalei meu viveiro de peixes tropicais, um comércio tranqüilo, que obriga a uma vida estável como eu nunca tive, pois os peixes não podem ser negligenciados nem um dia sequer…”

    Calma, leitor, tudo parece extremamente sério e inquietante (e é), entretanto SE UM VIAJANTE NUMA NOITE DE INVERNO é uma imensa brincadeira, uma brincadeira no sentido mais prazeroso da palavra, como só um autor com a luminosa inteligência de Calvino poderia proporcionar. Que outro autor poderia inventar, para interromper a leitura de um livro, um ataque de um grupo de jovens que acredita em OVNIS e que é levado a crer que naquele exemplar, justamente naquele, encontram-se indicações de extraterrestres para a Humanidade? Ou inventar uma cena em que um personagem vai procurar outro num cemitério e pergunta ao coveiro: “Procuro o senhor Kauderer”. E o coveiro responde: “O senhor Kauderer não está. Mas como o cemitério é a casa dos que não estão, pode entrar”,

 resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos,  em 28 de dezembro de 1999

 

 se 1 viajantese-una-notte-dinverno-un-viaggiatore

26/11/2010

“digamos… para comodidade narrativa”

VER TAMBÉM NO BLOG:

https://armonte.wordpress.com/2011/11/18/um-terrivel-obstaculo-o-centenario-de-sob-os-olhos-do-ocidente-de-joseph-conrad/

https://armonte.wordpress.com/2011/11/18/joseph-conrad-medo-da-anarquia-politica-e-reconhecimento-da-anarquia-interior/

https://armonte.wordpress.com/2011/11/18/o-marido-era-o-culpado-mesmo/

https://armonte.wordpress.com/2010/10/29/o-romance-das-ilusoes-de-joseph-conrad-marlow-mar-e-memoria/

https://armonte.wordpress.com/2010/10/29/as-margens-derradeiras-aprisionados-pelo-inacreditavel/

https://armonte.wordpress.com/2010/10/31/o-fim-da-linha-para-a-aventura/

(publicada originalmente em 12 abril de 2008 em  A TRIBUNA de Santos, como resenha comemorativa dos quinze anos da minha coluna semanal)

CONRAD E A ERA NAPOLEÔNICA

Há exatamente cem anos, Joseph Conrad reuniu seis histórias numa coletânea chamada A Set of Six. Uma delas, a mais famosa, O Duelo, enfim encontra-se  traduzida no Brasil, trinta anos depois de sua bonita adaptação cinematográfica (Os Duelistas) ter revelado o estreante diretor Ridley Scott, que realizaria depois dois marcos do cinema, Alien, o oitavo passageiro e Blade runner, para depois, bem, depois…[1]

O grosso da ação se passa durante as guerras napoleônicas, no início do século XIX. Um tenente truculento e plebeu, Feraud (do sul da França), é procurado por um oficial da mesma patente (e nascido no norte, entre outras diferenças polarizadoras), o fidalgo D´Hubert, sob ordens superiores, devido a um duelo irregular com um civil que poderia virar escândalo. Ao ser detido por D´Hubert, Feraud o responsabiliza pessoalmente pela “injustiça” que estariam cometendo contra ele. A partir daí, conforme o tempo vai passando (começam a trama com 26 anos e os acompanhamos até os 40) e vão subindo de patente (até que a derrocada do império e o exílio de Napoleão arruínem a carreira de Feraud), eles se enfrentam em diversas oportunidades, com um interregno de insólita camaradagem em terras russas, num dos momentos mais penosos do exército francês.

Ninguém compreende a razão da pendenga. E se o rancor move Feraud (que fica nos calcanhares do adversário, para se igualar a ele em qualquer promoção), o sentimento de honra que faz com que D´Hubert sempre consinta nas convocações dos padrinhos para os confrontos, é a camada mais superficial para algo mais irracional e primordial.

O duelo contínuo entre ambos é um exemplo da convulsão social da França pós-revolucionária, já que a situação os iguala, o plebeu e o fidalgo. O tio da noiva de D`Hubert (um nobre do ancien régime) não compreende por que ele tem de se deixar arrastar por um sujeito que é “ninguém” (Não há qualquer razão terrena para um D´Hubert se acanalhar por causa de um duelo com uma pessoa dessa extração… essa gente não existe). Resposta: “O senhor não imagina como esse duelo é terrível para mim. E não há modo de livrar-me dele”.  

 O Duelo é mais uma volta do parafuso no fascínio de Conrad pelos dilemas cavalheirescos, e a aproximação perversa que ele fazia da honra com o descrédito e a infâmia (temas recorrentes em Lord Jim, Chance- A força do acaso ou Nostromo). De certa forma, ele se serve da mobilidade social da era napoleônica para enquadrar suas obsessões. Jorge Luis Borges, em Tema do Traidor e do Herói, uma das suas melhores e mais fantasmáticas Ficções (que, entretanto, gerou um filme muito talentoso de Bertolucci, A estratégia da aranha[2]), diz que imaginou “este argumento, que talvez escreva… Faltam pormenores, retificações, ajustes; há zonas da história que ainda não me foram reveladas; hoje, 3 de janeiro de 1944, vislumbro-a assim. A ação transcorre num país oprimido e tenaz: Polônia, Irlanda, a República de Veneza, algum Estado sul-americano ou balcânico… Digamos (para comodidade narrativa) Irlanda; digamos 1824.” Conrad fez o mesmo, mas envolveu sua fábula obsessiva com tantos detalhes realistas e com tal sentimento de época que sua “comodidade narrativa” quase nos engana completamente, assim como a do Tolstói de Khadji-Murát.

ADENDO de 2010:

Salvo engano, há atualmente três versões brasileiras de The duel: a de Julieta Cupertino para a Revan, a que foi comentada na resenha acima, a de André de Godoy Vieira, publicada pela L&PM com o título Os duelistas, decerto por causa do filme, e a de Cláudio Figueiredo (creio que a primeira delas), a qual aparece na antologia Mestre de Armas, publicada pela Companhia das Letras (em abril de 2007), e que reúne seis histórias que orbitam em torno da questão do duelo: além da de Conrad, histórias de Arthur Schnitzler, Maupassant, Heinrich von Kleist, Turguêniev e Nabokov.

Abaixo uma mostra de cada uma delas:

 

O general d`Hubert foi para casa com passos largos, apressados, mas de forma alguma enaltecido por um sentimento de triunfo. Ele havia conquistado, e no entanto não lhe parecia ter ganho muito com sua conquista. Na noite anterior reconhecera de má vontade o risco de sua vida, que lhe parecia magnífica, digna de ser preservada como uma oportunidade de ganhar o amor de uma jovem. Houve momentos em que, por uma maravilhosa ilusão, esse amor já parecia ser seu e sua vida ameaçada, uma oportunidade ainda mais magnífica de dedicação. Agora que sua vida estava salva, ela subitamente perdera sua magnificência especial. Em vez disso, adquirira o aspecto especialmente alarmante de uma cilada para a exibição do seu desmerecimento.  Quanto à maravilhosa ilusão de amor conquistado, que o visitara por um momento na sagrada vigília da noite anterior—que poderia ser a sua última noite no planeta—,ele compreendia agora a sua verdadeira natureza. Fora apenas um paroxismo de amor-próprio delirante. Assim, para esse homem, a quem a vitória num duelo havia devolvido a moderação, a vida mostrou-se destituída de encanto, simplesmente porque não estava mais ameaçada”. (versão de Julieta Cupertino);

“O general D´Hubert voltou para casa a passos largos e apressados, de modo algum enaltecido pela sensação de triunfo. Saíra vitorioso e, contudo, tinha a impressão de que não lucrara muito com sua vitória. Na noite anterior, lamentara ter de arriscar uma vida que lhe parecia magnífica, digna de ser preservada, em nome da oportunidade de conquistar o amor de uma jovem. Experimentara momentos em que,  por força de uma maravilhosa ilusão, esse amor parecia já lhe pertencer, e a vida ameaçada, uma oportunidade ainda mais magnífica  de devoção. Agora que estava salva,  perdera de súbito sua especial magnificência. Em contrapartida, adquirira o aspecto  particularmente alarmante de uma cilada preparada para expor a própria indignidade. Quanto à maravilhosa ilusão de amor conquistado que o visitara por alguns instantes em meio à agitada vigília da noite—noite que bem poderia ter sido sua última na Terra—,ele compreendia agora a sua verdadeira natureza. Não havia sido mais que o paroxismo de sua vaidade delirante. De modo que para esse homem, tornado sóbrio pelo desfecho vitorioso de um duelo,  a vida afigurava-se despojada de seu encanto simplesmente por já não estar ameaçada”. (versão de André de Godoy Vieira);

“O general D´Hubert caminhava de volta para casa com passadas largas e apressadas, de modo algum animado por uma sensação de triunfo. Ele havia sido vitorioso, mas ainda assim não lhe parecia que tinha conquistado muito com sua vitória. Na noite anterior ele havia reconhecido que valia a pena preservar o risco que sua vida corria—e lhe parecia muito grande—como oportunidade para conquistar o amor de uma jovem. Ele tinha vivido momentos em que, graças a uma maravilhosa ilusão, esse amor já parecia ser seu, e sua vida ameaçada, uma oportunidade ainda mais magnífica de devoção.  Agora que estava salva, sua vida de repente tinha perdido sua grandeza especial. Em vez disso, havia adquirido a aparência, especialmente alarmante, de uma cilada para revelar o quanto era sem valor.  Quanto à maravilhosa ilusão de um amor conquistado que o havia visitado por um momento durante a agitada vigília à noite, que bem poderia ter sido sua última na Terra,  ele agora compreendia sua verdadeira natureza. Tinha sido apenas o paroxismo  de uma presunção delirante. Assim, para esse homem, tornado sóbrio  pelo desfecho vitorioso de um duelo, a vida surgia agora despida do seu encanto, simplesmente porque não estava mais ameaçada”. (versão de Cláudio Figueiredo).


[1] Confesso que não acho que o filme reproduza a intensidade e força do texto. Já não o achava o rival que diziam à altura do Barry Lindon de Kubrick, e depois de ler a novela, essa opinião se fortaleceu. Antes, porém, eu cheguei a atribuir certa ligeira tibieza da versão de Scott por conta da falta de carisma e presença de Keith Carradine, como D´Hubert, um ator que nunca me convenceu muito, principalmente quando jovem. Mas se pensarmos que no filme de Kubrick o astro é o também insosso Ryan O´Neal e isso não compromete em nada a densidade da história….

[2] Que só não é irretocável por causa daquelas esquisitices que parecem fazer parte de todos os filmes de Bertolucci, até os melhores. No caso, me incomoda a composição da personagem de Alida Valli, que em certos momentos beira o ridículo. No mais, o filme é brilhante, especialmente o final.

24/11/2010

CÁUCASO-COSMO

 

 

VER TAMBÉM NO BLOG:

https://armonte.wordpress.com/2013/04/24/o-escritor-limite-iii-quatro-ases-e-um-coringa-de-tolstoi/

https://armonte.wordpress.com/2013/04/24/o-escritor-limite-i-o-pregador-evangelico-e-o-diabo-fabulador/

https://armonte.wordpress.com/2013/04/24/o-escritor-limite-ii-tolstoi-em-capsulas/

https://armonte.wordpress.com/2011/11/15/um-livro-total-a-ficcao-mais-verdadeira-que-a- vida/

https://armonte.wordpress.com/2011/01/23/a-escola-da-possibilidade/

Em 1980, quatro anos antes de morrer, quando todo mundo esperava o aparecimento do mais-que-anunciado romance, Preces atendidas, Truman Capote lançou a inesperada coletânea Música para camaleões, seu mais belo livro, em cujo prefácio afirmava que gostaria de “ser simples, claro com um riacho no campo”, e ao mesmo tempo estava perseguindo uma forma nova de texto literário, onde pudesse combinar tudo o que aprendera praticando seu ofício, como prosador, roteirista, jornalista, ensaísta: “Um escritor precisa ter todas as suas cores, toda a sua habilidade disponível na mesma paleta para misturar e aplicar simultaneamente. Mas como?”1

Sem desmerecer Capote (um grande escritor), esse seu dilema já fora solucionado no derradeiro opus de Tolstói, Khadji-Murát, na qual ele trabalhou anos a fio, levando os manuscritos para todos os lados, inclusive na fuga patética2, que ocasionou sua morte, aos 82 anos, em novembro de 1910.

Publicado postumamente, esse romance tem cerca de 200 páginas, mas foram encontrados mais de duas mil páginas de rascunho e versões preliminares. Eu o conheci durante muitos anos como Hadji Murat, na versão de Natália Nunes, no volume II da Obra Completa publicada pela Nova Aguilar, até que descobri a tradução de Boris Schnaiderman editada pela Cultrix (e agora pela CosacNaify).

Trata-se de um Guerra e Paz em ponto minúsculo e no entanto todas as cores da paleta tolstoiana foram misturadas e aplicadas simultaneamente. E ainda assim temos a impressão de um texto simples e claro, onde se parece ter atingido uma primordialidade bíblica ou de tragédia grega. Há uma atordoante referencialidade no texto, uma materialidade do mundo gritante na representação, porém há também algo descarnado, um sentimento de que tudo é simbólico, eu diria mesmo emblemático, pois se avizinha do essencial ou que entendemos como tal.

A ação se passa em 1851-52 na Chechênia, na mítica região do Cáucaso, dominada império russo, o qual tem de enfrentar a resistência e insurreição da população muçulmana, motivada, como sempre, por uma noção de “guerra santa” (no texto, khazavát). Khádji-Murát, por desavenças com o líder supremo, Chamil, que mantém sua família como refém, bandeia-se para o lado dos russos. E esse homem façanhudo, célebre pela sua valentia e engenhosidade, e pelo orgulho feroz, de repente é um aliado com o qual não se sabe muito bem o que se fazer e como utilizar.

A traição de Khadji-Murát aciona também um caleidoscópio que percorre os mais diversos estratos sociais, do czar até o mais humilde soldado, de uma forma quase inacreditável se não conhecermos a obra final de Tolstói (contos como A cédula falsa ou O acontecimento supremo) e se pensarmos também nas vastidões narrativas de Guerra e Paz & Anna Karênina. Mostra-se de forma contundente a estupidez da guerra, a maneira insensível e insensata através do qual Nicolai I (que ele desprezava3) impõe sobre os costumes e a fé de outros povos a tirania russa (o que nos faz lembrar outro império tão arrogante quanto, em nossos dias). Para isso, o czar não se detém ante o desastre ecológico, ordenando o desmatamento deliberado e contínuo da região chechena como forma de expor os focos de rebelião. As variegadas cores da paleta de Khadji-Murát também revelam o sofrimento dos animais à mercê da humanidade e de suas necessidades bélicas4.

Um dos momentos mais pungentes e reveladores do relato se dá quando Tolstói nos apresenta um dos inúmeros personagens da sua pequena narrativa, o oficial Butler, mostrando-nos sua alegria de viver (apesar de uma tendência fatal para o jogo), seu senso de camaradagem e o estímulo proporcionado pela “aventura caucasiana”. Só que a companhia do alegre Butler, sem que ele se dê conta, assola, massacra e conspurca (no sentido religioso) uma aldeia na sua passagem.

Vale a pena transcrever uma parte do texto nesse passo da narrativa:

Butler e sua companhia entraram no povoado em passo acelerado, logo após os cossacos. Os habitantes haviam partido. Os soldados receberam ordem de incendiar os depósitos de trigo, o feno e as próprias sáklias[habitação dos comaponeses]. Por toda a aldeia, pairava uma fumaça penentrante, por entre a qual se movimentavam os soldados, retirando das sáklias tudo o que encontravam e principalmente apanhando ou fuzilando as galinhas que os montanheses não tiveram tempo de levar. Os oficiais sentaram-se um pouco afastados da fumaça, almoçaram e beberam. Um sargento trouxe-lhes alguns favos de mel, sobre uma tábua. Não se ouviam os chechenos. Pouco depois do meio-dia, recebeu-se ordem de abandonar a aldeia (…)

Na companhia de Butler ninguém fora ferido, e ele voltava no mais alegre e animador estado de espírito.

Quando o destacamento vadeou de volta o riacho por que passara naquela manhã, e se estendeu pelos prados e campos de milho, os cantores formaram na frente das companhias e ressoaram canções. Não havia vento. O ar era fresco, puro e tão transparente que as montanhas nevadas, a uma distância de cem verstas, pareciam muito próximas, e, quando os cantores se calavam, ouviam-se o pisar cadenciado e o tilintar das armas, como um fundo sobre o qual começava e terminava cada canção (…)

[Butler] esqueceu a pobreza a que se reduzira e as dívidas a pagar. O Cáucaso, a guerra, os soldados, os oficiais, aquele valente, borracho e bonachão major Pietróv, tudo isso lhe pareceu tão bom que às vezes não podia crer que não estivesse mais em Petersburgo, naquelas salas cheias de fumaça de cigarro, apostando contra a banca, odiando o banqueiro e sentindo na cabeça uma dor compressora (…) A guerra consistia, a seu ver, unicamente em que ele agora se expunha ao perigo e, desse modo, ficava merecendo condecorações, bem como o respeito dos seus companheiros de regimento e dos amigos que ficaram na Rússia. Por mais estranho que isso pareça, o outro lado da guerra, a morte, os ferimentos em soldados, oficiais e montanhosos, não lhe vinha sequer à lembrança. Inconscientemente, para manter essa imagem poética da guerra, sempre evitava olhar os mortos e feridos(…)

[Na aldeia] ouvia-se o uivar das mulheres em todas as casas e na praça, aonde foram levados mais dois corpos. As crianças pequenas urravam, acompanhando as mães. Urrava também o gado faminto, que não recebia mais nada para comer. As crianças mais crescidas não brincavam, encarando os adultos com olhos assustados.

O chafariz estava emporcalhado, provavelmente deixado assim propositalmente, de modo que não se podia apanhar água nele. Igualmente emporcalhada estava a mesquita, e o muezim com os mutalinsa estava limpando. Os velhos, chefes de família, reuniram-se na praça e, de cócoras, discutiam a situação. Ninguém falava sequer do ódio aos russos. O sentimento que experimentavam aqueles chechenos era mais forte que o ódio. Não odiavam, mas simplesmente não reconheciam aqueles cães russos como gente. Era uma sensação de asco e estupefação ante a crueldade absurda daquelas criaturas, e o desejo de destruí-las, a exemplo do desejo de destruir os ratos, as aranhas venenosas e os lobos, era um sentimento natural como o instinto de conservação.5

Os habitantes não tinham alternativa: permanecer nos próprios lugares e reconstruir, com esforço tremendo, tudo o que fora conseguido com tanto trabalho e destruído tão fácil e inutilmente, esperando a qualquer momento sua repetição, ou, contrariando a lei religiosa e o sentimento de repulsa e desprezo pelos russos, submeter-se a estes…”

Assim, através de pequenos incidentes como esse e da figura grandiosa e trágica, mas basicamente ambígua de Khadji-Murát, que pode ser tomado como um traidor ou um herói, como no conto Tema do traidor e do herói, de Borges (só que este nunca teve energia e vivacidade suficientes par compor um relato como o de Tolstói, apesar de admirar esse o gênero e tenha orbitado à volta desse universo épico em vários de seus textos), o maior de todos os escritores que já existiram, na sua obra-prima final consegue um efeito mágico: o Cáucaso vira o cosmo. Nada mais nada menos.

1 “…como um escritor pode combinar com sucesso dentro de uma única forma—digamos, um conto—tudo o que ele sabe sobre todas as outras formas de escrita? Porque essa era a razão pela qual meu trabalho era sempre insuficientemente iluminado; a voltagem estava ali, mas restringindo-me às técnicas da forma em que eu trabalhava no momento eu não usava tudo o eu sabia sobre escrever—tudo o que aprendera com os roteiros para o cinema, as peças, as reportagens, a poesia, os contos, as novelas, o romance…”

2 Tolstói e a esposa viviam em estado de guerra, o que se agravou quando em 1909 ele renunciou aos direitos autorais pela sua obra. Em 25 de junho, a condessa Tolstói finge que se envenenou, comédia que interpretará ainda outras vezes, enquanto ele “sonha” em abandonar o lar e aderir á pobreza evangélica que prega.

Quando, em outubro, ela revista seus papéis, às escondidas, ele escreve uma carta despedindo-se dela e foge de casa. Entre outros incidentes melodramáticos, ela tenta se atirar no laguinho da propriedade deles (a célebre Iásnaia Poliana), sendo “salva” pelos filhos. Em compensação, na movimentação da fuga, o octogenário é acometido por um acesso de febre que o faz delirar durantes dias, até sua morte em 7 de novembro.

3 Mas o czar é a única figura em que a interferência do narrador é visível, em que sentimos o contorno explícito de uma opinião sobre o personagem, que não seja fornecido pelos outros. No mais, há a sublime equanimidade épica, em que se mergulha em cada ponto-de-vista como se fosse a vida que se desenrolasse à nossa frente.

4 “Essa comunicação foi mandada para Tiflis em 24 de dezembro. E, na véspera do ano-novo de 1852, um mensageiro, depois de extenuar uma dezena de cavalos e espancar atrozmente uns dez cocheiros, entregou-a ao ministro da guerra…” Confesso que tenho muito mais pena dos cavalos extenuados do que dos dez cocheiros espancados.

Outro exemplo:

…as balas foram assobiando e zumbindo, derrubando folhas e galhos e acertando na trincheira, sem atingir, todavia, os homens abrigados nela. Somente o cavalo de Gamzalo, que havia escapado e se distanciara, foi ferido na cabeça. Não caiu, mas, dilacerando a peia, fez estalar a moita em volta, lançou-se na direção dos demais cavalos e apertou-se contra eles, regando com seu sangue a erva recém-brotada”.

5 Para indicar a diferença das duas traduções, a de Natália Nunes e a de Boris Schnaiderman, transcrevo a versão do último parágrafo citado pela tradutora da Aguilar: “As mulheres gritavam nas casas da aldeia e na praça, para onde tinham trazido outros cadáveres. As crianças choravam. O gado, esfomeado, mugia por todo lado, mas não havia nem uma fibra de pasto.

A água da fonte estava turva, provavelmente tinham-na sujado de propósito para que os montanheses não pudessem servir-se dela. Também a mesquita estava cheia de imundícies: o sacerdote e os acólitos limpavam-na agora. Os velhos da aldeia reuniram-se na praça: sentados de cócoras, discutiam a situação. Não falavam do ódio que sentiam pelos russos. O sentimento que possuía os indígenas [sic], desde o mais novo até ao mais velho, era mais forte do que o ódio. Não imaginavam que os russos fossem pessoas e a sua repugnância e indignação perante aquela crueldade eram tais que desejavam exterminá-los como a ratazanas, a aranhas venenosas ou a lobos. Era um sentimento natural como o instinto de conservação. Os habitantes da aldeia podiam escolher entre duas alternativas: restaurar com esforços sobre-humanos aquilo que conseguiram com tanto trabalho, temendo que a cada momento sucedesse o mesmo, ou submeterem-se aos russos, contrariamente á lei religiosa e ao sentimento de repulsa e desprezo que eles lhes inspiravam”. Nas transcrições das duas versões, fiz ligeiras modificações.

22/11/2010

“Mundo imerso no mundo”: A maior rival de Tolstói

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Resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos,  em 02 de julho de 1998

Já tive a oportunidade de citar nesta minha coluna [de “A Tribuna”] a bela definição de romance feita por Osman Lins: “mundo imerso no mundo”. Mesmo que Guerra e Paz, de Tolstói, trate de um período específico, o das guerras napoleônicas,  mesmo que A montanha mágica, de Thomas Mann, retrate o cotidiano de um sanatório alguns anos antes da guerra de 1914, mesmo que Ulisses, de James Joyce, retrate apenas um dia na vida de moradores de Dublin, a impressão que se tem é de que eles e alguns outros poucos romances contêm a vida inteira.

É uma experiência desse tipo que o leitor tem com MIDDLEMARCH (1871-72, de George Eliot[1],  finalmente traduzido no Brasil (um admirável feito de Leonardo Fróes), num dos eventos literários desta década.

A grande escritora inglesa parece ter sido a coisa mais próxima de Tolstói que a ficção já produziu, pois ao retratar três anos (1829-1832) da pequena e corriqueira cidade de Middlemarch e seus arredores, ela aborda todos os grandes temas: o conflito entre tradição e progresso, o amor, o casamento, a maternidade, o conflito de gerações, a realização profissional, a perspectiva da morte… Curiosamente, na mesma época em que Eliot terminava Middlemarch, Tolstói começava a escrever Anna Karênina, que apresenta várias similaridades.

O impacto de Middlemarch é tal que, nas três semanas em que fiquei mergulhado na sua leitura, parecia que os habitantes da cidade eram tão reais quanto as pessoas à minha volta, e era com muita má vontade que eu largava o romance para tratar de outras coisas. Leituras assim a gente experimenta pouquíssimas vezes na vida, leituras em que a gente vive o livro quase fisicamente, mais do que meramente ler.Nem mesmo a alta qualidade de outras obras da Eliot, como O moinho sobre o rio ou Daniel Deronda, me preparara para esse “mundo imerso no mundo”.

Uma multidão de personagens aparece em Middlemarch, contudo o leitor fica ávido de saber especialmente o que vai acontecer com Dorothea Brooke e Tertius Lydgate, embora não haja envolvimento romântico entre eles (o mesmo acontece com o “casal” de Daniel Deronda,  o personagem-título e Gwendolen Harleth).

Por causa de sua ardente espiritualidade e necessidade de conhecimento, Dorothea casa-se (desastrosamente) com o clérigo Casaubon, o qual a mantém num estado de revoltante submissão e tortura psicológica, tentando perpetuar tal situação até mesmo após sua morte, quando coloca em seu testamento a interdição de que ela se case com Will Ladislaw (justamente o homem que ela ama e que foi privado de duas heranças, como ficamos sabendo ao longo do complicado enredo).

Lydgate, por sua vez, é o médico com métodos modernos que incomoda seus colegas provincianos ao seu instalar em Middlemarch. Seu erro é similar ao de Dorothea: projetar suas fantasias numa pessoa e casar com ela.  E seu matrimônio com a frívola Rosamond (que por pouco não se torna a Emma Bovary da literatura inglesa) o leva a abdicar de seus altos sonhos profissionais e reformadores e envolver-se num escândalo que remonta ao passado do  homem mais rico da região, o senhor Bulstrode, escândalo que envolve Ladislaw e  aproxima o casal Lydgate de Dorothea (há, inclusive, uma cena entre as duas que é um dos maiores momentos da história da ficção).

Pois um dos temas dominantes da obra-prima de George Eliot é a impossibilidade do heroísmo, isto é, a necessidade de ideais mais elevados, moldar uma vida nos dias atuais (se era uma impossibilidade no tempo dela, imagine hoje), tendo de atuar de maneira mais difusa e resignada: “Pois não há criatura cuja vida interior seja tão forte para não ser grandemente determinada pelo que está fora dela”. Para usar uma imagem do próprio Lydgate, é preciso tentar manter-se um ser vivo dentro da concha que se cria para a sociedade.

Essa concepção poderia levar a um determinismo que limitaria o escopo do livro, não fosse George Eliot um gênio narrativo e uma incrível criadora de personagens, diálogos, situações (é por isso que é tão difícil colher uma citação em Middlemarch). Até no quesito “enredo folhetinesco” ela se mostra extraordinária, com uma trama de mil meandros e cheia de surpresas. Mesmo quando ela se afasta de Dorothea e Lydgate, os personagens que dominam a cena por algum tempo, como Fred Vincy e seus familiares, os quais ficam na expectativa do testamento de um velho tirano moribundo, garantem o interesse.

É espantoso como as grandes autoras inglesas do século XIX (Jane Austen, Mary Shelley, Emily e Charlotte Brönte) diferem umas da outras. O que distingue George Eliot é sua vontade de pensar sobre tudo, de refletir minuciosamente sobre os sentimentos, as instituições e o lado imponderável  e indizível da vida, o que faz do seu estilo uma experiência quase impossível para o leitor atual apressado, e torna a sua obra duplamente difícil de se popularizar, ao contrário das outras escritoras citadas.  E olhe que Middlemarch está longe do estilo intrincado  que ela ousou em Daniel Deronda e que faz dele uma espécie de preâmbulo para várias experiências da mais alta literatura do século seguinte consideradas herméticas e inacessíveis.

Se o leitor tiver paciência e persistência (e puder desembolsar cinqüenta pilas, preço que a Record absurdamente colocou no livro) certamente descobrirá por si mesmo que Middlemarch é um livro supremo.

VER TAMBÉM NO BLOG:

https://armonte.wordpress.com/2010/11/22/o-projeto-mais-ambicioso-da-voz-do-seculo-xix/

https://armonte.wordpress.com/2013/10/14/tijolaco-biografico-pouco-ajuda-a-conhecer-george-eliot/


[1] Na verdade, Mary Ann Evans

O projeto mais ambicioso da “voz do século XIX”

 

resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos,  em 25 de agosto de 1998)

Após a biografia de George Eliot, assunto na semana passada desta coluna [VER: https://armonte.wordpress.com/2013/10/14/tijolaco-biografico-pouco-ajuda-a-conhecer-george-eliot/], parece oportuno comentar também DANIEL DERONDA (1876), o projeto mais ambicioso da autora inglesa (para ela, seria sua obra-síntese), e que só no início deste ano apareceu em edição brasileira (pela Paz & Terra, em tradução de Marisis Aranha Camargo).

     Daniel Deronda entrelaça a história do personagem-título com a de Gwendolen Harleth. Ambos se conhecem num cassino, pouco tempo antes de Gwendolen saber que sua família está arruinada. Ela se salva da pobreza casando com Grandcourt, herdeiro do “padrinho” (e, para muita gente, pai verdadeiro) de Daniel, e o casamento é mais uma daquelas armadilhas que os autores do século XIX adoravam preparar para suas heroínas.

Se Casaubon, marido de Dorothea Brooke, a heroína de Middlemarch, era mais patético do que perverso, mesmo atormentando-a, Grandcourt é um dos maiores vilões psicológicos da literatura, antecipando um pouco Gilbert Osmond, de Retrato de uma senhora. É engraçado que Henry James tenha criticado tão duramente Daniel Deronda quando apenas quatro anos depois apresentaria uma trama tão similar, em que o marido sente prazer em tolher e aterrorizar a esposa.

Enquanto Gwendolen se debate entre as poucas opções reservadas à mulher de sua época (ao contrário das suas pueris suposições juvenis), mesmo que tocada pela “influência” de Daniel, este por sua vez vai ter de ajustar contas com seu passado misterioso.

Até salvar a judia Mirah do suicídio e começar a procurar os parentes dela (mãe e irmão) no bairro judeu, ele acreditava ser filho bastardo de sir Hugo Mallinger. Acaba descobrindo que também tem ascendência judaica, e da tentativa de ser um “cavalheiro” inglês, ele passa, por causa do seu amor por Mirah (e por causa do fascínio pela figura de Mordecai, o irmão dela) a “tornar-se um judeu” para servir sua raça.

Sempre atenta para a possibilidade de trazer o trágico e o mítico das literaturas clássicas para o mundo vitoriano, George Eliot faz da evolução pessoal de Daniel uma espécie de atualização da história de Moisés, o judeu que foi criado longe da sua raça, mas que o destino acabou encaminhando para ela no sentido de tornar-se um líder. É preciso que o leitor de hoje perceba como foi audaciosa a atitude da autora de O moinho sobre o rio em abordar o universo judaico, praticamente ignorado e desprezado na sua época.  E, como se vê, o homem tem, em Daniel Deronda, uma possibilidade de heroísmo e transcendência de si mesmo que são negadas à mulher.

Apesar da grandiosidade da concepção de Daniel Deronda e do teor enciclopédico que vai adquirindo, a partir da seção chamada Mordecai, e que o torna precursor do romance do nosso século, é preciso admitir, como tantos já fizeram antes, que há um desequilíbrio gritante entre as partes de Gwendolen e Daniel.  Até o final da seção chamada Gwendolen faz sua escolha, o livro é uma obra-prima perfeita e consumada. Depois, embora continue extraordinário e inusitado, mostra-se muito exagerado e atravancado ao narrar a amizade de Daniel e Mordecai e a conversão do primeiro ao judaísmo.

O grande problema, talvez, é que enquanto Gwendolen e Grandcourt são personagens incríveis, complexos, absorventes, Mordecai, Mirah e as mulheres da família Meyrik que a acolhem, são nobres demais, chegam às raias do insuportável de tanta boa vontade e bom caráter, além de serem “literários” demais, quase pomposos.

Acaba sendo um alívio quando Gwendolen volta à cena (para que o  leitor testemunhe a morte de seu marido, um ponto alto do romance), quando Daniel tem um terrível e cruel encontro com a mãe,  que nunca conhecera (outro ponto alto) ou quando reaparece na vida de Mirah e Mordecai seu pérfido e decaído pai (mais outro ponto alto).

Toda a sordidez, o egoísmo, a angústia e o sofrimento que um ser humano pode causar a outro garantem mais interesse e charme ao romance, por incrível que pareça, do que todo o projeto utópico e messiânico que George Eliot incute na “conversão” de Deronda à causa judaica, embora ela funcione como um contraste fascinante com a limitação do destino de Gwendolen.

Mesmo assim, com todo esse desequilíbrio, Daniel Deronda é um romance estupendo, lembrando os livros tumultuados, sobrecarregados e geniais que D.H. Lawrence viria a escrever (por exemplo, Mulheres apaixonadas) e que Doris Lessing vem escrevendo nas últimas décadas (por exemplo, Os filhos da violência).

Quando se lê no prefácio de O caderno dourado afirmações discutíveis de Lessing, tais como “George Eliot foi razoável na sua  pequena ousadia;  acho que ela pagou o preço de ser uma mulher vitoriana; ela precisava se mostrar uma boa mulher; mesmo quando não estava de acordo com as hipocrisias de sua época—há muita coisa que ela não entende porque é moralista”, só se pode crer que, assim como no caso de Henry James, trata-se da velha questão do discípulo renegando o mestre. E que mestre!

nota- o título deste post se deve à biografia de Frederick R. Karl, George Eliot, a voz de um século, publicada pela Record em 1998.

VER TAMBÉM NO BLOG:

https://armonte.wordpress.com/2010/11/22/mundo-imerso-no-mundo-a-maior-rival-de-tolstoi/


 

17/11/2010

A MELHOR IDADE DE RACHEL DE QUEIROZ

Introdução a três resenhas:

      Durante muito tempo, Rachel de Queiroz (nascida em 17 de novembro de 1910 e falecida em 04 de novembro de 2003) foi mais importante como tradutora para mim do que como autora dos próprios livros; destes, pouco me lembrava de João Miguel e Caminho de Pedras, ela era mais a autora de O Quinze e As Três Marias (além, é claro, de crônicas que nunca foram as minhas favoritas). Em compensação, são essenciais na minha história de leitor suas traduções de Dostoievski (especialmente  de Os Demônios e Os Irmãos Karamázov), hoje tão criticadas, mas que defenderei sempre; suas traduções de Galsworthy, da Crônica dos Forsythe (O proprietário e Irene), sua tradução de Mansfield Park, de Jane Austen, de O morro dos ventos uivantes, de Emily Brontë, sua tradução das Memórias de Tolstoi. No entanto, acho que além de Dostoievski, a tradução feita por Rachel de Queiroz (se bem me lembro, esta foi em colaboração com alguém) que mais me marcou foi a de O mágico de Lublin, de Isaac Bashevis Singer.

    Só com a leitura de Memorial de Maria Moura nos anos 90 é que comecei a ver a escritora Rachel de Queiroz, mais que a tradutora. E ainda assim, como logo em seguida tive o desprazer de ler a coletânea de crônicas As Terras Ásperas, continuei sempre com uma sensação de antipatia e distanciamento.

   Por conta do centenário de nascimento de Rachel, fiz uma seqüência de leitura de quatro livros: O Quinze, As Três Marias; Dôra, Doralina e O Galo de Ouro.

 

Dedico o texto abaixo à minha querida amiga CLÁUDIA

I.                  O MELHOR ROMANCE:  SEM ENJÔO NA VIAGEM

(resenha publicada em A TRIBUNA de Santos, de forma mais condensada, em 16 de novembro de 2010)   

 

“…já levava muito gosto naquela vida da Companhia, a luz e os aplausos e os homens assobiando, e o dia trocado pela noite, e a gente hoje aqui amanhã além. Era uma aventura que não parava e eu sempre tinha sonhado com aventuras”.

                 (Rachel de Queiroz, Dôra, Doralina)

     João Fonseca da Nogueira, alter ego de Autran Dourado em algumas das suas histórias dizia que gostava de  ficar perto de velho, pois velho é quem sabe das coisas importantes.    Ou qualquer coisa bem parecida.

    A melhor coisa que aconteceu para Rachel de Queiroz enquanto escritora foi ter ficado velha. Sempre pensei que tivesse dado um salto de qualidade já octogenária, com Memorial de Maria Moura (1992), entretanto descobri nos últimos dias sua melhor obra, publicada aos 64 anos: Dôra, Doralina (1975), um quarto de século depois da sua última experiência no gênero (O galo de ouro, só publicado em livro em 1985).

    Nesse romance excelente, ela apresenta não só o fôlego narrativo e a vitalidade da história de Maria Moura, como também um universo mais rico, mais variado, e sobretudo uma narrativa em primeira pessoa que é um show à parte [1]. Chega a ser irônico que, ano após ano, Rachel de Queiroz venha mantendo a aura de nome importante na literatura brasileira mais pelo livro de estréia, O quinze (cujas qualidades inegáveis não o impedem de ser limitado, indicando mais um talento mediano) enquanto Dôra. Doralina é o ponto mais próximo a autora cearense que chegou de produzir ficção de primeira, vigorosa.

     O livro é dividido em três partes: na primeira, numa fazenda no interior do Ceará, Dôra descobre que sua dominadora mãe (chamada por todos de Senhora) mantém um romance com seu marido, Laurindo, o qual será assassinado por um protegido da moça, um ex-bandoleiro esquisito, Delmiro. Após a morte de Laurindo, conhecedora do segredo da mãe e não conseguindo enfrentá-la, Dôra vai para fortaleza e se incorpora a uma trupe teatral das mais mambembes (ela representará os papéis de “ingênua” na companhia, apesar dos avanços de alguns: “Bom, nisso tudo o que eu quero dizer é que antes de eu entrar na Companhia, tinha o meu corpo como se fosse uma coisa alheia que eu guardasse depositada, e só podia dar ao legítimo dono, e depois de dar a esse dono era só dele, não adiantava eu querer ou não, porque o meu corpo eu não tinha o direito de governar, eu vivia dentro dele mas o corpo não era meu. Já agora o corpo era meu, pra guardar ou pra dar, se eu quisesse ia, se não quisesse não ia, acabou-se”), com a qual excursiona pelo Norte e pelo Nordeste, sempre em situações precárias e incidentes deliciosos (o episódico é a seara de Rachel de Queiroz).

    Durante a Segunda Guerra, fazem uma viagem por Minas até o Rio, e é nesse momento     que Dôra conhece aquele que será seu grande amor, o contrabandista Asmodeu, mais conhecido como o Comandante (a essa altura da sua vida, ele dirige uma barca pelo rio São Francisco, antes de perder o posto devido a seu negócio paralelo).

    Através das trajetórias da narradora, do Comandante e do pessoal da trupe (especialmente o casal que a comanda, Carleto Brandini e Estrela) vamos descortinando nosso país dos anos 30 aos 50, e também o arco que a literatura brasileira vai fazendo no século XX, do poderoso romance regional nordestino dos anos 30 até o triunfo da ficção urbana, concentrada justamente no Rio de Janeiro, no qual se passa a maior parte do terço final de Dôra. Doralina. É como se fôssemos de José Lins do Rego para Rubem Fonseca, passando por alguns mineiros de permeio.

   Ao contrário das protagonistas da juventude de Rachel de Queiroz, Dõra é irresistível: trata-se de uma mulher machista, submissa ao seu homem, passiva, deixando mais as coisas acontecerem do que tendo participação ativa, sendo “levada pela vida”, por assim dizer  (ao contrário da autoritária mãe), e no entanto o sabor da sua “fala”, o colorido da sua peculiar voz narrativa são cativantes, assim como a voz e a fala de Holden Caulfield de O apanhador no campo de centeio ou da Romana de Alberto Moravia. Alguns exemplos: quando o Comandante é preso por suas atividades ilegais, “Corri a telefonar ao Chefe Conrado e foi uma demora enorme para ele atender, acho que lá por dentro aquele quartel do morro era um vaticano”; ou quando procuram casa no Rio: “Meu sonho era um apartamento, e bem alto, acima do décimo andar. Porque, pra mim, criada onde fui, morar em apartamento era o máximo, a própria essência de viver no Rio de Janeiro”.  Ou ainda o “negócio” do Comandante: “E, desse dia em diante, as coisas que ele começou a trazer para casa eram de muito maior valor,  cortes de linho, sedas de Hong Kong (até aquela data, nunca na minha vida eu tinha escutado falar em Hong Kong), ventarolas, um serviço de chá, tudo ajaponesado, que eu não sabia de onde vinha. E perfumes, e bebidas, na maioria argentinos. Era o tal negócio prometido pelo Chefe Conrado que já ia começando…”

   Não é à toa que, ao contrário de Maria Augusta de As Três Marias, ao sair em viagem de barco Dôra não enjoa a viagem toda. Ela tem muito a viver…

II- ROMANCE POPULAR

  O galo de ouro  (não confundir com o livro homônimo do grande escritor mexicano Juan Rulfo)  foi inicialmente publicado em 1950 seriado na revista O Cruzeiro. Rachel de Queiroz tinha lá seus 39,40 anos. A publicação em livro se deu em 1985. Creio que ela mexeu muito no texto (embora não tenha como fazer essa apuração), transformando-o, aos 75 anos,  num romance perfeito, seu maior livro ao lado de Dôra Doralina.

    Explicitamente exumado por nostalgia a uma vida mais idílica e menos urbana na Ilha do Governador (onde ela morou por muitos anos), O galo de ouro é um dos poucos (e um dos melhores) exemplos de um verdadeiro “romance popular”, ou seja, de um romance que se passa no meio do povo e convence totalmente.

   É um encanto supremo acompanhar as aventuras da Macabéa de A hora da estrela, de Clarice Lispector, mas não se trata de um romance popular, no sentido que evoco aqui. É um encanto acompanhar a voz peculiar de Dôra  em Dôra, Doralina, e a narrativa é mais criativa, mais evidentemente “literária”. Mas o que conquista o leitor no romance-folhetim (segundo classificação da própria autora cearense) é a quase invisibilidade do literário, seus truques de transparência. Em nenhum de seus livros a “sabedoria épica”, acompanhar cada personagem sem tomar partido de nenhum, em todas as contingências da vida, foi tão forte.

    A trama acompanha Mariano. A princípio, garçom, ele se envolve com Percília, vão viver juntos, têm uma filha (Gina) e aí a companheira, que freqüenta uma tenda espírita e fez amizade com uma moradora da Ilha do Governador, dona Loura, tenta convencer o marido a se mudarem para lá, levantarem uma casinha e sair da casa de cômodos onde se espremem com diversas outras famílias.

   Após uma primeira visita à Ilha, o casal é atropelado por um automóvel: Percília morre, Mariano fica meses internado e quando sai está com um braço inutilizado. Não dá mais para garçom. Começa a trabalhar no jogo do bicho. Enquanto isso, comadre Loura toma conta de Gina e o próprio Mariano se instala na casa dela e de seu companheiro, José Galego, após uma prisão (causada por problemas com os “secretas” da polícia que extorquem os bicheiros), Mariano fica de molho por algum tempo e resolve levar adiante o plano de erguer ali na Ilha uma morada. Mesmo porque começa a se interessar por uma doidivanas local, Nazaré, que apesar da vigilância da mãe, é louca por bailes, cinemas, a vida na cidade, e que além de envolver-se com Mariano, tem um namorado metido a malandro, um ex-pivete, Zezé, candidato a cafetão.

    Como se vê, cruzam-se muitas linhas caras à população brasileira nesse enredo: o jogo do bicho, a inclinação pelo espiritismo em suas diversas formas, um pé na respeitabilidade e na honestidade, outro pé na contravenção e na informalidade… Mas Rachel de Queiroz vai além. Ao mostrar o relacionamento (depois eles acabam se casando) de Mariano com Nazaré, ela nos desenha dois personagens inesquecíveis, e incrivelmente autênticos nos mínimos detalhes (a seqüência narrativa que começa com Zezé dando de presente um anel roubado para Nazaré e que terminará na morte do malandrinho, devido a uma trampa armada por Mariano e policiais conhecidos, é particularmente memorável, inclusive pelo apego de Nazaré ao anel que faz com que ela minta, afronte os tiras, faça o diabo…).

     Se em 1950, O galo de ouro já era assim, eu fico assombrado de não ter tido a menor repercussão, e fico assombrado mais ainda com a modéstia da autora, que não cogitou de publicá-lo, sendo ele tão melhor que seus quatro romances anteriores. Como não acredito em milagres nem em modéstia de escritor, é por isso que prefiro acreditar (a não ser que venha prova em contrário) de que foi na demão de 1985 que o livro ganhou a forma atual, absolutamente inesquecível. Trata-se de um texto tão irretocável que não consigo nem citar parte alguma, pois ele é ação narrativa pura, uma tessitura inconsútil. A experiência  de ler O galo de ouro é a de ler o tipo de romance que apaixona Vargas Llosa, nas suas próprias palavras:

“Eu quisera que meus livros fossem lidos como eu li os romances de que gosto. Os romances que me fascinaram, mais do que entrar pela inteligência, através do puro intelecto, da pura razão, me enfeitiçaram literalmente, quer dizer, se converteram em histórias que de certa forma destruíram toda capacidade crítica em mim. E me faziam perguntar: O que vai acontecer? O que vai acontecer? Este é o tipo de romance que eu gosto de ler e este é o tipo de romance que eu gostaria de escrever. Então para mim é muito importante que todo elemento intelectual, que é inevitável que esteja presente em um romance, de alguma forma esteja dissolvido fundamentalmente em ações, em episódios que deveriam seduzir o leitor não por suas idéias, mas por sua cor, por seu sentimento, suas emoções, suas paixões, por sua novidade, por seu caráter insólito, pelo suspense e o mistério que possa emanar deles. Para mim, a técnica do romance é fundamentalmente conseguir isso, conseguir diminuir e, se possível, abolir a distância entre a história e o leitor. Nesse sentido eu creio que sou um escritor do século XIX. Para mim o romance continua sendo o romance de aventura, que se lê desse modo especial, tomado pela história.”

 

III- MOURÍADA

Resenha publicada em 31 de maio de 1994, com o título “Maria Moura resgata a subversão feminina”, em A TRIBUNA de Santos, na época da exibição da minissérie da Globo.

   Pega-se para ler MEMORIAL DE MARIA MOURA com má vontade e pé atrás. Sem contar as posições políticas de Rachel de Queiroz durante a ditadura, sua obra (iniciada em 1930, com O quinze) sempre foi mais para mediana. Apesar disso, ou talvez por isso mesmo, foi eleita para a Academia Brasileira de Múmias (aliás, foi a primeira mulher).

    Parece, entretanto, que 80 anos de vida serviram para alguma coisa. Cega como cidadã, ela mostra como narradora, em MARIA MOURA, a vidência de um Homero ao relatar como três trajetórias paralelas se unem na Casa Forte da Serra dos Padres: a da personagem-título, a de sua prima Marialva, e a do padre José Maria.

     Rachel de Queiroz não apenas narra com um fôlego até então insuspeito, que faz com que nos sentemos pensando em ler dez páginas e acabemos lendo duzentas, para usar o velho chavão, como também utiliza habilmente um repertório literário que resgata temas caros ao século XIX (no qual é ambientada a trama, ainda no Império). Temos um pouco do mundo de José de Alencar (aliás, antepassado da autora cearense), o de O sertanejo & O guarani (a casa-fortaleza); o mundo da Luzia-Homem de Domingos Olímpio; o mundo do Seminarista e do Padre Amaro.

    É por isso que, se há clichês, e os há, eles não incomodam em nada. Toda história de ação meio folhetim, seja uma novela de cavalaria, faroeste ou thriller, manifesta suas convenções como marcas de identidade. Note-se também que Maria Moura se inscreve numa linha de subversão feminina, das “donzelas guerreiras” (ligadas à figura paterna) que assumem a linhagem e o destino masculino, como a Luzia de Domingos Olímpio, a Guidinha do Poço, e mais recentemente a Diadoriam, de Grande sertão: veredas.

    As “donzela guerreiras” do século passado eram vencidas muitas vezs pelo seu “lado feminino”. Maria Moura, contudo, mesmo enredada na sua paixão pelo jagunço Cirino consegue dar a volta por coma e ainda mandar executar o amante traiçoeiro, sem precisar cair nos braços da outra ponta do triângulo, Duarte.

    Como nos poemas homéricos, não há “dramaticidade”, no sentido que atribuímos geralmente à palavra. Tudo é narrado de forma equânime e tudo flui sem tensão. Pode-se observar essa característica com relação aos primos de Maria Moura, Tonho e Irineu, que brigam com ela pelas terras do Limoeiro e depois desaparecem da narrativa, quando se esperaria (numa história mais “dramática” e concentrada) algum tipo de revanche, em prol do “suspense”. MEMORIAL DE MARIA MOURA é um romance de aventuras e tende ao infinito, como deixa claro o final em aberto. Só a história do padre/beato Romano apresenta certa dramaticidade, mais esta serve mais como contraponto à evolução de Maria Moura, como a de Marialva: três pessoas que “ganham o mundo” para cumprir diferentes sinas.

    Ao contrário de outros ficcionistas nordestinos, Rachel de Queiroz carrega muito pouco na religiosidade. Há fé, mas a vida pragmática predomina, e muito mais importante é a “posse da terra”, como revela Marialva: “A verdade é que todo aquele povo, tal como os meus irmãos e a minha cunhada, só davam valor à terra, sobre tudo neste mundo. E não só os fazendeiros, mas os padres, as beatas, os comerciantes,  o pessoal da rua e do mato; pra eles só vale a terra, acima de qualquer outro bem… Por causa de um corredor de terra de uma braça de largura, numa extrema,  todos são capazes de matar, de morrer e de mandar matar”.

 

  


[1] “E então deu-se, quando eu andava pelos meus quatorze anos, apareceu na Soledade um homem, um estranho, por nome Raimundo Delmiro.

    Aliás tinha outro nome, contudo esse ele só me disse mais tarde e bem no ouvido e eu jurei nunca repetir a ninguém—jurei e cumpri. O seu nome segundo era Lua Nova, mas isso já fica sendo um caso dentro do outro e terá de vir depois”.

“Do outro lado da parede uma folhinha com figura de mulher nua. Cem anos que viva não esqueço. Pior do que os quartos de pensão onde a gente às vezes se hospedava. Cem anos? Mil anos que eu viva não esqueço”.

Centenário de Rachel de Queiroz: AS TRÊS MARIAS- enjôo na travessia da vida

     Neste mês (dia 17) se comemora o centenário de nascimento de Rachel de Queiroz que, na sua longa vida [1], teve como atividade principal a crônica em jornais,  e  foi uma romancista bissexta, ou seja, passava largos períodos sem publicar nada no gênero: após uma década inicial produtiva (O quinze, 1930;  João Miguel, 1932; Caminho de pedras; 1937; As três Marias, 1939), ela escreveu um folhetim para a revista “O Cruzeiro”, O galo de ouro, em 1950 (só publicado em livro em 1985); um quarto de século depois, Dôra Doralina (1975); e em 1992, Memorial de Maria Moura, grande romance de aventuras, no qual a octogenária narradora mostrava uma vitalidade admirável, que até então não fora a tônica da sua obra ficcional. E até então eu nunca fora  leitor entusiasta de Rachel de Queiroz. Sempre considerei suas crônicas bastante discutíveis, especialmente do ponto de vista ideológico, por seu conservadorismo e reacionarismo (mas elas também são fracas de um ponto de vista estritamente literário), e embora O quinze tivesse seu valor, o restante era muito fraco.

    Motivado pela data comemorativa, e porque mesmo depois de Maria Moura não fizera ainda uma revisão a sério dos livros da escritora cearense, reli nos últimos dias O quinze e As três Marias. O primeiro apresenta qualidades inegáveis, inclusive a sabedoria épica que norteia o seu livro da velhice (e, afinal, ela tinha cerca de 20 anos quando o publicou)[2]. Entretanto, ao terminar As três Marias dá para entender o motivo por que Rachel de Queiroz produziu tão espaçadamente romances. Ela simplesmente não tinha paciência nem se interessava em narrar uma história mais longa, isso é gritante, pelo menos nessa fase da sua vida.

     O romance é narrado por uma das Marias, Maria Augusta (as outras duas, Maria da Glória e Maria José mal aparecem[3]), desde o momento em que ingressa num internato dirigido por freiras (onde conhece as outras). Rachel de Queiroz perdeu uma grande chance de apresentar um equivalente feminino de tantas narrativas masculinas de confinamento em colégios e internatos, sendo a mais ilustre (no Brasil) O Ateneu, de Raul Pompéia. Acompanhamos a violenta veia anti-religiosa da autora de Beata Maria do Egito[4], sentimos a insatisfação feminista com o destino oferecido à mulher, e a vida irrisória e asfixiante destinada às moças da Fortaleza do começo do século (ainda que a própria mulher interiorize o moralismo e a estreiteza da sociedade à sua volta) [5].

    Volta e meio nos surpreendemos com um trecho que poderia pertencer à literatura existencialista (Camus, Sartre, Simone de Beauvoir), até com impressionante antecipação (pois eles ficaram famosos depois e começaram a escrever por essa época)[6], ainda que houvesse uma tendência católica que apresentava esse mesmo tema do abafamento existencial e angústias de formação.

    O que falta é empenho da autora, e por isso As três Marias não se tornou o romance marcante que tinha tudo para ser. Ela tem pressa de terminar, as histórias são mais vinhetas do que partes de um romance (e olhe que acontece coisa: ela tem um romance com um pintor casado, viaja e conhece um imigrante judeu, por quem se apaixona, volta para o Ceará, sofre as conseqüências de um aborto que ela mesma provocou), o tom adotado por Maria Augusta é mais de explicação didática (e crescentemente pobre [7]) dos seus problemas do que uma verdadeira narrativa, e a própria Maria Augusta no fundo é uma personagem bastante antipática (a Conceição de O quinze já não era nenhuma maravilha em termos de empatia).Que distância estamos da Joana de Perto do Coração Selvagem (Clarice Lispector) ou da Virginia de Ciranda de Pedra (Lygia Fagundes Telles), protagonistas inesquecíveis. Maria Augusta descortina o que parece ter sido o grande mal de Rachel de Queiroz, pelo menos a julgar pela sua literatura: a parcimônia, a avareza com que ela enfrentou a existência. Nada enriquece suas personagens, nada as aprofunda,  tudo parece sempre descolorido e ressequido. Ela só adquiriu alguma grandeza, 53 anos mais tarde, quando aderiu à ação pura, sem tempo para seus dramas mesquinhos (que a sua prosa torna mesquinhos): “Nunca eu tinha estado a bordo antes. Um navio era, para mim, o palácio feérico, levando através do mar toda uma carga de prazeres inéditos e de deliciosas convivências…Rapazes estrangeiros, vestidos de fazenda clara, contando histórias de terras longínquas, orquestras às refeições, bares, coquetéis, salões de dança… Tudo o que eu nunca vira, que nunca me atrevera a desejar, na minha vida sempre austera e sem prazeres… E naturalmente não encontrei nada disso… Enjoei toda a viagem”. Antes disso, seus romances eram isso: um enjôo durante toda a viagem.


[1] Ela faleceu em 2003.

[2] Tenho certa dificuldade de determinar se o livro está mais para resignado do que para revoltado. Quando falo em “sabedoria épica”, estou dizendo que a narração dos aspectos contingentes e imanentes da existência  é de tal forma poderosa que o autor nos fornece a ilusão da “realidade” quase tal qual. Porém, e isso é intrigante, quase todos os narradores pós-homéricos que apresentam essa qualidade (a sabedoria épica), e entre eles coloco Tolstói e Doris Lessing como os maiores,também apresentam uma contrapartida de visionarismo. Mesmo Vargas Llosa, que decerto não é nenhum visionário, em A guerra do fim do mundo, por estar tratando de visões apocalípticas e escatológicas, não deixa  de ser contamnado por essa característica radicalmente antípoda. Rachel de Queiroz, porém, nunca apresenta mais do que a superfície, não há profundidade ou sombreamento no quadro de O quinze: acompanhamos a atração frustrada entre os primos Vicente e Conceição, e a terrível miséria de retirante da família de Chico Bento, e é isso: tudo muito bem contado, e nada por trás.

     E quanto à resignação, ela parece alimentar até a frase mais revoltada de Chico Bento (no sentido de que a vida é assim mesmo, não há outro jeito): “Deus só nasceu pros ricos!”.

    

[3] No começo, parece que ela traçará destinos paralelos e que as três terão um peso equivalente, mas tal expectativa não se cumpre: “São as inseparáveis! Já notaram, meninas? [aqui quem fala é Irmã Germana] Essas três vivem juntas, conversando, vadiando, afastadas de todas. São as três Marias…

          A classe achou graça, o apelido ficou. Nós mesmas nos orgulhávamos dele, sentíamo-nos isoladas numa trindade celeste, aristocrática, no meio da plebe das outras… Adotamos superiormente a divisa…” Tanto que resolvem fazer uma tatuagem consagrando o apelido: “…sentadas no chão, com as meias descidas, fizemos na coxa,com a ponta da tesourinha, as três estrelas juntas, em fila.”

[4] “…é preciso dizer que já há muito tempo eu me desprendera da religião trazida do colégio… A verdade é que nunca acreditei direito em nada, a crença era, em mim, uma casca exterior, e o meu maior ato  de fé talvez fosse  me exaltar liricamente pelos mistérios da comunhão e do êxtase, assumir a atitude da prece, ´sentir´ a devota em mim, como o ator no palco sente em si o personagem que encarna.

     A falta de prática foi me mostrando a fraqueza de minha fé. Deixei de crer porque deixava de orar, deixava imediatamente de sentir o meu personagem quando não o representava mais em cena… e perderam-se as convicções. Tentei segurá-las, talvez me doesse um pouco sair da trilha em que as outras andavam, perder aquele apoio místico, que é como as muletas naturais de muita gente. Mas não lutei muito, ou não lutei nada, deixei a crença me fugir do coração como um pouco de água livre me escorrendo entre os dedos”.

[5] Foi assim com a Conceição de O quinze, que fica horrorizada com a intimidade do primo (de quem ela gosta) por uma capiau “negra”, é assim com a narradora de As três Marias: “Agora Violeta estava perdida, rapariga. Interroguei  Maria José de todas as maneiras, para conseguir detalhes. Ela, porém, não sabia quase nada, pouco perguntara à ´Vovó´, horrorizada com a frase dela, Perdeu-se…

    Fiquei pensando nos olhos bonitos de Violeta, na sua alma terna e arisca. Agora estava perdida, com a porta aberta, para todos os homens. E eu tentava imaginar o horror daquela vida (…) De repente, lembrei-me de mim. Não estava também em caminho de perdição, namorando com um homem casado?”

[6] “Eu ia fazer 14 anos quando tive, pela primeira vez, vontade de me matar.

      Naturalmente sem motivo. Creio que nesse caso é elemento secundário o que costumamos chamar ´o motivo´: isto é, uma causa concreta, imediata, responsável pelo impulso suicida. Os que precisam desse motivo, matam-se por acidente. Mas quem tem vontade de se matar, mata-se sem carecer de um pretexto trágico, tremendo e instransponível; mata-se em razão mesmo dessa sua obscura aspiração de morte, mata-se porque uma coisa chama, porque sofre uma atração violenta e invencível”. Ou mais adiante: [eu e Maria José] “éramos como duas mulheres de nações diferentes e língua estranha… Acordei mais tarde, assustei-me com um vulto inclinado junto  à cama de Maria José. Era ela, que ainda rezava. Punia-se, naturalmente, pelos gozos terríveis que o seu coração desejava, pelos maus desejos que teimava em alimentar. Como se eles existissem, Maria José. Como se as coisas ruins não fossem apenas ruins, sem poesia nem beleza…. Quem sabe neste mundo, onde estão os culpados? Quem sabe mesmo se há culpados?”

[7] Já quase no final: “Parece que a vida só chega para cada um tratar de si mesmo e vagamente circular os olhos pelas caras mais próximas”.

resenha publicada, sem as notas de rodapé, em “A Tribuna” de Santos, em 09 de novembro de 2010

A LIÇÃO DA “MESTRA”: anti-homenagem ao centenário de Rachel de Queiroz

resenha publicada em 05 de maio de 1998, em A TRIBUNA, de Santos)

    A coleção da Record/Altaya, “Mestres da Literatura Brasileira e Portuguesa” tem se mostrado uma decepção. Como explicar que dela faça parte um insignificante volume de crônicas como AS TERRAS ÁSPERAS? Aliás, a própria inclusão de Rachel de Queiroz numa coleção de “mestres” da literatura de língua portuguesa já é discutível, pois numa carreira de romances chinfrins, só mesmo Memorial de Maria Moura (1992) se salva, não por ser grande literatura, e sim por ser uma leitura envolvente e agradável. Nesse livro, nossa pretensa “mestra” conseguiu a coisa mais rara na ficção brasileira: entretenimento de boa qualidade.

     Agora: o que dizer de As terras ásperas? Teria sido melhor que as crônicas nele reunidas tivessem ficado enterradas nas páginas dos jornais.Nos melhores momentos de Rubem Braga, Fernando Sabino ou Stanislaw Ponte Preta, uma anedota ilumina e resgata o cotidiano de sua banalidade. No caso de Rubem Braga, uma imponderável poesia transfigura seus insights sobre o cotidiano de uma forma que lhe garante lugar entre os grandes. As crônicas reunidas em As terras ásperas cobrem o período de 1988 a 1992. A “mestra” escreve sobre a falta de água no Rio, sobre ecologia, sobre o calor, sobre o hino nacional, sobre superprodução, sobre sua bisneta, sobre sua admiração por Floriano Peixoto (!!!???), sobre Paris, sobre as elites, sobre a queda do muro de Berlim, sobre o porte de arma, sobre a burocracia, sobre Santo Antônio, sobre a velhice, sobre a morte, sobre a pena de morte, sobre o índio, sobre as posses na Academia Brasileira de Múmias (ela foi a primeira mulher a pertencer a essa indigesta instituição), sobre a guerra, sobre a violência urbana, sobre as primeiras-damas, sobre o fuso horário, sobre Ulysses Guimarães, sobre Mikhail Gorbatchov…

    Como se vê, parece um rico panorama. Só que a “mestra” trai o espírito da crônica e, ao invés de valorizar através da escrita as “miudezas” do ramerrão diário, ela se põe a pensar. Ai, Jesus. É aí que o caldo entorna, porque a “pensadora” Rachel de Queiroz é de uma mediocridade atroz, é incapaz de enunciar qualquer coisa acima da superficialidade mais rastaqüera.  É claro que nenhum autor tem obrigação de ter um pensamento profundo e original. Porém, quando é o próprio autor que resolve coletar os frutos do seu “pensamento”, é impossível não criticá-lo no que tem de frágil e medíocre.

     Por exemplo, numa das piores crônicas do livro, Rio, coração do meu Brasil, onde defende o Rio dos seus detratores, a nossa “mestra” da literatura escreve as seguintes pérolas de originalidade: “E diga-se o que se disser, o fato é que o Rio continua lindo. Mesmo depois do furacão Brizola. Mesmo chagado de favelas, infestado de bandidagem, ninguém nos consegue tirar a montanha, a floresta e o mar. Ninguém nos tira a alegria da praia…”!!!??? Ainda bem que o Rio continua lindo, apesar do “estilo” das nossas “mestras” da literatura.

     Essa superficialidade e essa nulidade estilística não incomodariam tanto, se de vez em quando não emergisse das palavras da “mestra”, claro e indecente, um reacionarismo ultrajante, senão alarmante. É o caso do horroroso texto sobre porte de arma (que ela condena), no qual, fazendo uma analogia com o tráfico e o consumo de drogas, nossa “mestra” da literatura afirma: “Defende-se a sociedade de tudo que lhe ameaça a saúde e a sobrevivência. Tóxicos, por exemplo: produzi-los, transportá-los, vendê-los, usá-los, é crime gravíssimo em qualquer país. Desde plantar a maconha e a papoula, passando pelo fabrico, o refino, o transporte e a venda, até chegar ao consumo—todas essas atividades são perseguidas no mundo inteiro com louvável rigor. No Irã, enforca-se”.

    Note-se a expressão “com louvável rigor” que dá bem a medida da superficialidade reacionária da nossa “mestra”. Ela sequer é capaz de raciocinar que toda essa perseguição feita com “louvável rigor” esconde uma grande hipocrisia, uma vez que há uma indústria gerada pela ilegalidade,q eu favorece justamente os traficantes e quem se beneficia da repressão. E a naturalidade com que ela passa da frase “são perseguidas no mundo inteiro com louvável rigor” para “no Irã enforca-se” dá até um arrepio, pois a impressão que se tem é que ela aprova isso e aplaude (esquecendo-se de que, no Irã, também há sentenças de morte para escritores).

     Quando o interesse maior de um livro é a detecção das idéias reacionárias de seu autor, o negócio é grave. No seu texto sobre a posse de Ariano Suassuna na Academia Brasileira de Mun-Rás, a nossa “mestra” diz: “Afinal, a Academia não é um simples arquivo de vaidades, uma galeria de aposentados. Ali há talento, há sangue, há vida inteligente”. Não é, decerto, o caso de As terras ásperas.

 

07/11/2010

CADÊ A VOZ DO SERTÃO ?

“É, me deu vontade  de ter uma prosa mais compridas com o senhor. Então se prepare. Consinto lhe dizer umas verdades. O senhor vai gostar de umas, mas de outras pode ser que não. O senhor tem ciência dos livros, sabe dizer bem as coisas. Mas isso de anotar nossas falas, depois ajeitar na escrita, com uns retratos antigos,  uns desenhos,  palavras que a gente não sabe nem entende— é correto? Isso é o que se faz por certo desde muitos anos.

     Faz tempo que pessoas estudadas, assim como o senhor, vêm aqui e se tornam donas daquilo que antes só a gente sabia (…) Entenda bem: o senhor me ouve, eu lhe digo, o senhor escreve, faz um livro. O senhor fica ainda mais o senhor… Mas, e se o senhor escreve sua idéia em cima de minhas falas? E eu, minhas prosas, meus versos, minhas palavras, tudo isso quase se apaga no seu livro. Ficam sendo só suas palavras…”

       Quando se pensa na Guerra de Canudos, é impossível contornar a figura de Euclides da Cunha. Ao escrever Os Sertões, que, num certo sentido, é o maior livro já escrito neste país, ele parece ter se apropriado do evento, tornando-se inseparável dele, de uma forma que nem a maestria de Mario Vargas Llosa, em A guerra do fim do mundo, conseguiu driblar. Ele ficou ainda mais ele, com seu estilo inigualável , meio cipoal, como já foi caracterizado, e ficaram sendo só suas palavras…

       Em O Pêndulo de Euclides, o  baiano Aleilton Fonseca enfrenta o fantasma de Canudos e a figura de Euclides: num misto de relato de viagem, ensaio e ficção, narra como, após um congresso onde se dizia que o tema já fora exaurido, resolve conhecer (na companhia de dois amigos) o local no qual os sertanejos de Antônio Conselheiro foram massacrados por tropas da recém proclamada República. Ali  ele manterá colóquios com um nativo,  seu Ozébio (aquele que fala na citação que abre este meu texto),  o qual guarda um segredo que permite desvendar a feição definitiva que Os Sertões tomou: pois como se sabe, antes de ir pessoalmente a Canudos, como jornalista, escreveu artigos furibundos acusando os insurrectos de Canudos de tentarem sabotar o novo regime. Após o massacre, mudou seu posicionamento de forma radical. Ao que parece, um antepassado de seu Ozébio, sobrevivente da onda de degolas daqueles que se renderam, teria muito a ver com essa virada radical.

        Aleilton Fonseca imagina também um “Tribunal da História”, em que a República e os conselhistas seriam julgados… E é, claro, a República é condenada e os sertanejos absolvidos, sem mais…

         Infelizmente, a partir desse material riquíssimo, O Pêndulo de Euclides acabou se revelando um romance medíocre, falhando na sua ambição de capturar, mais que a de Euclides, a “voz do sertão”.  Tudo é chapado, visto do exterior, em sua feição mais clichê e rasa. Além disso, a visão de Aleilton Fonseca é constrangedoramente tosca: ele parece ainda acreditar que há uma “voz autêntica” da nacionalidade, e que o personagem que detém essa voz, essa brasilidade profunda, é o sertanejo. Enfim, a “voz do sertão” seria o que ouviríamos, a partir do episódio de Canudos, se colocássemos de lado as palavras de Euclides. Na verdade, para qualquer estudante de letras temos o velho conflito do narrador letrado versus narrador oral, tornado clássico pelo ensaio de Walter Benjamin, O narrador. Temos, então, a junção de um lugar-comum da teoria literária com uma visão maniqueísta e pseudocrítica da nacionalidade. 

     Seu Ozébio diz a certa altura: “Passei a imaginar como eram suas [as de Euclides]conversas com meu avô. É justamente por não tentar minimamente, no seu exercício narrativo, penetrar nessas conversas, na veia da sua história, que Aleilton Fonseca perde a partida. A voz do sertão se volatiliza e, na ânsia de provar que os revoltosos de Canudos é que detinham a razão e a verdade, ele romantiza (e simplifica) tudo, especialmente  a figura de seu Ozébio (que eu particularmente achei um velho chato e retórico, e um personagem quase kitsch), que faz as vezes de um sábio oracular (embora isso não o impeça de humilhar repetidamente um peão que trabalha para ele, numa das cenas finais do livro, e o narrador parece se divertir bastante com isso): “As narrativas e os cuidados do velho sertanejo nos deixavam comovidos. Diante do tom de sua voz e da força de seu discurso, percebíamos que aquele homem, em sua simplicidade, tinha convicções firmes sobre o mundo em que vivia. Era um guardião de muitas memórias. E experimentava várias formas de compreender os fatos e tirar suas conclusões. Demonstrava seus saberes com uma clareza espantosa…”[1]

      O estilo narrativo de Aleilton Fonseca parece o dos bons cantores de karaokê (tirando o fato de que não há bons cantores de karaokê, a priori): é correto, afinado e  encaixa direitinho na música, mas não cria nada, não apresenta nada de novo, não dá vida nova aos fatos, que ele mesmo acreditava não estarem ainda exauridos.

     Em A arte do romance, Milan Kundera diz, seguindo seu mestre Hermann  Broch,   que “Descobrir o que somente um romance pode descobrir é a única razão de ser de um romance. O romance que não descobre uma porção até então desconhecida da existência é imoral.

      O incrível aqui é que o texto que se encarregou de descobrir essa porção desconhecida da nossa existência nacional (justamente o livro desse incômodo Euclides), que  não foi um romance, embora seja um monumento literário (“ficaram sendo só suas palavras”). E o romance de Aleilton Fonseca, tão moralizante, tão encruado nos seus julgamentos inflexíveis, na sua distribuição de bons e maus (todos os sertanejos são inapelavelmente bons, todos os outros,  têm motivos escusos e/ou nem valem um tostão furado[2]), acaba sendo, do ponto de vista da ética do romance, imoral. Porque repisa o óbvio.

 


[1] E quando ele abre a boca é para dizer bobagens espantosas: “É preciso assuntar o sol de cada dia e imaginar as coisas que ainda vão chegar. Mesmo que tristes, são as pedras e os espinhos de nossas estradas. São as marcas de nossa experiência, neste viver perigoso.” Com certeza, ele não é nenhum Riobaldo, nenhum Donga Novais.

[2]  Por exemplo, os soldados que atacam Canudos: “Muitos eram homens sem vontade, fracos e covardes. Quando chegavam perto do lugar da batalha, se borravam de medo e debandavam pelas trilhas da caatinga. Viravam bichos do mato, com fome e com sede, pedindo clemência nas moradas que encontravam. Muitos deles atacavam, matavam e roubavam os sertanejos pacatos por onde passavam com sua covardia”.

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