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“Sentados no Café, estamos viajando, como num trem, num hotel ou pela rua, temos conosco bem poucas coisas,não é possível apor a coisar alguma qualquer vaidosa marca pessoal, não somos ninguém. Naquele anonimato familiar podemos nos dissimular, livrar-nos do eu como de uma casca. O mundo é uma cavidade incerta, na qual a escrita penetra perplexa e obstinada…”
Em outubro, sai o Nobel. No ano passado ganhou o francês J.G.M. Le Clézio, mas o favorito nas bolsas de apostas era o italiano Claudio Magris,conhecido sobretudo pelo inclassificável Danúbio. Além deste e do pequeno relato O senhor vai entender, os quais têm edições recentes pela Companhia das Letras, o único outro livro de Magris publicado no Brasil até agora, salvo engano, é MICROCOSMOS (Microcosmi, 1997), que, há alguns anos, saiu pela Rocco (responsável pela primeira edição brasileira de Danúbio, nos anos 90). É outra obra que não se pode classificar. Dividido em nove partes, é uma tessitura textual em torno de Trieste, a exótica cidade natal de Magris, italiana só em parte (o grande Italo Svevo também era de lá),e por certo tempo nem italiana foi. Hermann Bahr dizia se sentir bem ali porque “tinha a impressão de não estar em lugar algum”.
Há um curioso vezo na melhor literatura italiana das últimas décadas: os escritores-ensaístas, aqueles que escrevem coisas lindas,mas que a princípio poderiam ser considerados escritores teóricos ou acadêmicos (no sentido universitário) e que em aparêcia só pertenceriam a um setor secundário da literatura: Carlo Ginzburg (O queijo e os vermes é um dos livro fundamental e temos, também, entre outros, Mitos, emblemas, sinais), Pietro Citati (autor de fascinantes biografias de Proust e Goethe, biografias mesmo, como não conheço outras, não acúmulo de fatos e informações, porque totalmente calcadas nas obras deles), Roberto Calasso (que pode escrever Ka, fantasia ficcional em torno da mitologia indiana, e K., análise brilhante da obra de Kafka). E,é claro, o grande, o maravilhoso Umberto Eco (que, para mim, entre eles, é quem deveria levar o Nobel, ainda que todos mereçam). O que são eles? Ensaístas apaixonados por literatura e que fazem exercícios literários? Escritores da gema, porém forjados na pós-modernidade onde tudo se embaralha? Classifique-se-os como se quiser, mas eles em princípio são cinco dos maiores autores contemporâneos. O Nobel deixou boa parte da grande ficção italiana morrer sem premiá-la (Svevo, Carlo Emilio Gadda, Dino Buzzati, Alberto Moravia, Leonardo Sciascia,Italo Calvino, Elsa Morante, Cesare Pavese, Primo Levi), a não ser pelo caso de Grazia Deledda e sobretudo de Pirandello. Premiou mais a grande poesia italiana (Carducci, Salvatore Quasímodo, Eugenio Montale). O último premiado foi, na minha opinião, discutível: em 97 ganhou o teatrólogo Dario Fo. Na ficção propriamente dita, sobrou Aldo Busi (Seminário sobre a juventude & Vida padrão de um vendedor provisório de collant, ambos publicados pela Rocco).
“O San Marcos é um café de verdade, periferia da História marcada pela fidelidade conservadora e pelo pluralismo libral de seus habitués. Pseudocafés são aqueles em que acampa uma única tribo, pouco importa se de senhoras de bem, de rapazes ambiciosos, de grupos alternativos ou de intelectuais up to date. Toda endogamia é asfixiante: até os colégios, os campi universitário, os clubes exclusivos, as classes dirigentes, as reuniões políticas e os simpósios culturais são a negação da vida, que é feito um porto de mar, passa de tudo.”
“O Café é uma academia platônica… Nessa academia não se ensina nada, mas aprendem-se e apreendem-se a sociabilidade e o desencanto. Pode-se papear, contar casos, mas não é possível pregar, fazer comícios, lecional. Cada qual, à sua mesa, está próximo e distante em relação a quem está ao seu lado. Ama o teu próximo como a ti mesmo, ou seja, suporta a mania que teu vizinho tem de roer as unhas, assim como ele suporta algum tique teu mais desagradável ainda. Entre essas mesas não é possível lançar modelos, criar alinhamentos, mobilizar prosélitos e imitadores, recrutar discípulos. Nesse lugar do desencanto, no qual já sabemos como o espetácul termina, mas nem por isso perdemos o gosto de assistir a ele ou a indulgência para com o lapso dos atores, não há lugar para falsos mestres, que seduzem com falsas promessas de redenção aqueles que tem uma ansiosa e vaga necessidade de fáciel e imediata redenção.