MONTE DE LEITURAS: blog do Alfredo Monte

30/04/2013

Destaque do Blog: A SOLIDÃO É UM DEUS BÊBADO DANDO RÉ NUM TRATOR, de Diego Moraes

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“Manaus é tão triste que às vezes tenho a sensação de estar morto há muito tempo. Quando caminho pelo Porto e vejo barcos ancorados, recordo-me de pessoas que escrevem mal.”  ( Diego Moraes, trecho de Cansaço, em A fotografia do meu antigo amor dançando tango)

“Era tão drogado que escrevia como trem descarrilando e num estilo de matar personagens num jeito só dele.”  (Diego Moraes, trecho de Travadão, em A fotografia do meu antigo amor dançando tango)

“Meu amor é guiar este trator na escuridão.”

“As definições de mágoas foram atualizadas.”  (Diego Moraes, A solidão é um deus bêbado dando ré num trator)

(uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 30 de abril de 2013)

I

“__ Sabe o mais escroto de ser Poeta?

__ Não faço a mínima ideia.

__ A gente não para de pensar nem um segundo…” (trecho de Abre um mar no espelho do banheiro, de A fotografia do meu antigo amor dançando tango)

A princípio fiquei desconfiado com A solidão é um deus bêbado dando ré num trator, coletânea de um jovem autor de Manaus, lançada pela pequena editora Bartlebee, de Juiz de Fora[1]: boa parte dos 139 poemas  contém às vezes uma frase, com a mesma toada aforismático- epigramática do título. Tirando alguns mestres (Oswald de Andrade, Millôr Fernandes, José Paulo Paes são os que me acodem à memória de imediato), essa forma convida à facilidade (e esta ao esquecível). Para piorar, uma apresentação insistindo na “visceralidade” do poeta; ora, caracterizar um artista como visceral se tornou um clichê tão vazio, propício para retóricas ocas, quanto falar em “transparência” ou em “sustentabilidade”.

Mas, visceralidades à parte (o que não poderia deixar de acontecer com um admirador de Bukowski, o autor “visceral” por excelência[2]), não há facilidade, frouxidão, nada para ser esquecido, em A solidão é um deus bêbado dando ré num trator. Como prolixo incurável, sempre admiro aquele que é capaz de dizer muito com o mínimo, e assim como outro escritor jovem e portador do “charme do dizer mínimo”, o gaúcho Éder Fogaça, Diego Moraes o tem de sobra. A diferença entre os dois é que, enquanto o talentoso do Sul, na sua exatidão, é mais para suave e sutil, o talentoso do Norte é mais pândego e paradoxalmente “derramado”, algo assim como a diferença entre a prosa de Lygia Fagundes Telles e Hilda Hilst[3].

Diego tem uma linguagem carismática, uma incrível capacidade de criar uma dicção lírica que, escorregadia, flerta com epigramas,  micronarrativas e o mais arrebatado lirismo, que compensam uma certa presença demasiada da entidade “Literatura”. Ele mesmo diagnostica que há literatura (às vezes mais como pose do que como inquietação autêntica) demais na vida de muito escritor em desmame por aí, e experiência da “vida” (por mais discutível que seja a tal “experiência da vida”) de menos. Se “Deus é uma caneta bic azul e a vida um monte de rabiscos literários numa folha de papel almaço”, “Se não fosse a literatura, eu seria mais um playboy idiota/mexendo os quadris numa festa à fantasia”, e então “Uma geração inteira fazendo literatura como se estivesse/comendo coxinha na hora do recreio”[4]. Não você, Diego.        

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II

“… meu desgosto é da cor de um pântano e mesmo assim continuo escrevendo”

Um lirismo a contrapelo: uma angústia palpável e desmoralizante convive com percepções e imagens que roçam o haicai, se o pensarmos numa modulação radicalmente moderna: “Ela só de calcinha abrindo desastrosamente a latinha de atum/Chupando sangue do dedinho lascado/Fazendo carinho no bicho em cima do 2666 do Bolaño; “Bússolas quebradas/Cartas anônimas nunca me disseram nada/Isso não é literatura. É só minha dívida no Bradesco.

Por caminhos tortuosos, roídos e varridos pelo rancor ou pelo câncer (“Próxima estação: Consolação./Hoje é rock in roll. Amanhã é solidão num hospital com câncer), pela esquizofrenia ou pela overdose, pela ressaca infernal ou pelas referências à cultura pop do tipo mais desesperado[5], o eu lírico predominante em A solidão é um deus bêbado dando ré num trator é aquele mesmo (só que totalmente deste nosso século, sem nada anacrônico) “gauche” na vida, piadista de si mesmo, que forneceu as senhas para o lirismo superior de um Drummond ou de um Bandeira (nem sei se são influências que o autor reconhecerá, mas lá estão, queira ou não queira): “Você mora longe/Não tenho binóculo/Você num castelo/Não sei tocar violoncelo/Você pinta os cabelos/Não me olho no espelho/Você tem olhos verdes/Roubaram minha bicicleta.

Um lirismo muito localizado: “Cartas de ex-namoradas viraram sábados//Parece que as coisas que escrevi quando estava infeliz tornaram-se/pássaros mergulhando no chafariz// Eu sou a solidão da cidade de Manaus. Um Drummond que tivesse como irmão xifópago Plínio Marcos: “Sensação escrota de não entender as coisas/Às vezes penso que sou adereços de um carnaval de 1977”; “A polícia não liga/ Solidão não preenche ficha de condicional. Há mesmo um inesperado toque de Adélia Prado (que é da mesma linhagem) em: “Deus manda tsunamis como minha mãe joga farelos de pão no Rio Amazonas/Faz pequenos redemoinhos azuis no meio da confusão/ Se eu fosse cineasta, pediria para ela lagrimar e falar bobagens de mansinho/A gente pensa que não, mas os peixes entendem.

Portanto, mais do que falar sobre uma “Literatura” que ninguém sabe direito onde está e o que seria exatamente, ele dialoga com a melhor literatura lírica feita em nosso país após o modernismo[6]: “Ligo o Arno/As folhas viram garças desembestadas/Correm pelo chão gélido/Transam com as paredes e não dão poesias. Dão sim, Diego.

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III

“__ Não queria que as coisas ficassem num tom sépia—disse Frederico batendo as cinzas do Marlboro.

__ Estão pretas—disse Carla fechando os olhos numa sensação via-láctea.

__ Vão ficar azuis. Prometo.” (trecho de Polônia, de A fotografia do meu antigo amor dançando tango)

Às vezes todos os elementos se entrelaçam com fôlego maior: Um índio bêbado escrevendo peças de teatro que nunca serão montadas//Seu vizinho desmanchando automóveis e revendendo tudo a preço de banana//Sou tão carente que entro de cadarços desamarrados na padaria/só pra ver se ela se importa e diz alguma coisa// Anteontem andei de roda gigante e o cara disse que não era preciso/pagar o ingresso porque eu parecia o avô dele//O mais foda é que só tenho 29 anos”.

Outro belo momento de respiração mais longa: “Você disse que sonhos é como fazer musculação//Você disse que Vou à Bahia leva crase//Você disse que queria adotar um cachorrinho e fazer Teatro/ de Rua em São Paulo//Você disse que Roberto Piva era o poeta mais lindo do mundo//Você disse tantas coisas bacanas quando eu tava fudido// Você disse que eu sairia dessa e levou livros e cigarros quando/eu tava internado naquela clínica para drogados//Você foi minha garota e foi foda ver seu sorriso de mãos dadas/com outro cara// Sempre fico sem jeito com o meu passado…”  

      Não sei se A solidão é um deus bêbado dando ré num trator foi um momento feliz, que não se repetirá,  ou se a forma aqui tão concentrada e eficaz poderá virar maneirismo fácil, fórmula, cacoete banal. Só sei que, caminhando entre os muros e monturos da condição humana, é muito mais estimulante imaginar que eles estejam grafitados por esse grande lírico na periferia do “espetáculo de crescimento” brasileiro: “Você cai uma vez/Quebra o braço/Você cai duas vezes/Quebra a perna/Você leva paulada na rua/Escreve um poema/Você leva facada/Escreve uma crônica/Você leva tiros/Escreve um Romance/Você morre/Deus acha que é peça de teatro e aplaude”.                                

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ANEXO- Texto selecionado:

“Duas semanas atrás eu estava à procura de alguém que fosse

                                                                                              [capaz de perdoar

  Que fosse capaz de esquecer os borrões do desgosto e seguir em                  

                             [frente como um navio desviando dos bancos de areia                                                                                                      

                                                                 Triste       

Agora percebo que morri e reencarnei num Sebo cheio de                                                               

                             [livros de poemas velhos.”

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[1] Que lançou também a coletânea de contos com o título igualmente chamativo de A fotografia do meu antigo amor dançando tango, que também li por estes dias.
[2] Não me definiria como admirador incondicional do autor de Cartas na rua, mas alguém cujo universo deu origem ao filme que mais amo dos anos 1980, Crônica do amor louco, obra-prima de Marco Ferreri, não me pode ser indiferente.
[4] Essa presença opressiva da “Literatura” é muito mais evidenciada em A fotografia do meu antigo amor dançando tango, que praticamente gira em torno do assunto, o que me deixa um pouco incomodado com o livro, o qual, todavia, tem peculiaridades muito atraentes, construído boa parte através de diálogos, cheio de momentos notáveis, e que tem o charme adicional de ter vários “vasos comunicantes”  (perdoe-me, leitor, o pedantismo da expressão) com relação ao livro de poemas.
       Há um texto por exemplo, chamado Pegadas na neve, que transcrevo abaixo:
“Manaus abaixo de zero. Drogados quentam as mãos em volta do camburão vomitando fogo. Natália caminha com sacolas de supermercado e puxa um sanduíche de atum dando para Diego, que não hesita em devorá-lo como morta-fome.
Natália: Cada vez que venho aqui tenho a impressão que você fica mais preto.
Diego: Deve ser sujeira.    
Ela ri timidamente acendendo um Marlboro.
Natália: E os papéis chamuscados de loucura? Achou?
Diego: Nem tive tempo de procurar.
Natália: Às vezes acho que você não quer sair desse buraco.
Diego: Acostumo-me em qualquer lugar.
Natália: Barata. Tu és uma barata burra e cascuda.
Diego: Não. Sou a neve, o urso e as pegadas no meio da solidão.
Natália: Tem um monte de gente torcendo pela tua felicidade, Diego.
Diego: A felicidade é apenas uma festa de aniversário recheada de idiotas com o nome do infeliz em cima do bolo.
Natália: Assim fica difícil te ajudar.
Diego: Nunca precisei de ajuda.
Natália: Então que faço nesse lixão todo final de semana?
Diego: Atrás de sarna pra se coçar. Desconfio que não seja Editora de droga nenhuma e que seu único vício seja me tirar do sério.   
  Ele tosse como chaminé no carnaval. Ela tropeça e aconchega-se nos braços do infeliz.
Natália: Para com isso. Não suporto mais viver dentro de mim. Esquece essa literatura perdida e vem comigo. Não precisa escrever nada pra me amar.        
      Olhos azuis dela enchem de água como represas na enchente.
Diego: Esse lance de escrever continhos enlouquece. Já chega de fantasiar desfechos prateados. O que sempre quis foi uma mulher pra chamar de minha e que me beije com bafo às sete.    
     Mãos dadas embaixo do guarda-chuva. Câmara dá ré brincando de transformá-las em casal urso.
Natália: Felicidade talvez seja caminhar sem rumo, né?”
             Em A solidão é um deus bêbado dando ré num trator:
“Sozinho com a espingarda repousada nos ombros/ Engraçado como o tempo fica instável quando tenho ódio/ de alguém// Pegadas de urso e respingos de sangue na neve.”
       E ainda: no final do conto Samurais, lemos:
“(…) Gregório puxa uma cartinha do bolso com desenho de uma mulher gorda abraçando duas loirinhas lindas. Gregório: Há cinco anos disse para a vida que iria para a cidade grande trabalhar num carrinho de cachorro-quente e escrever contos.
Túlio: E aí?
Gregório: As coisas não deram certo.
Túlio: O que ela diz na carta?
Gregório: Que se encontraria comigo nesta praça numa tarde de sábado.
Túlio: Sinto muito.     
      Lágrimas escorregam frouxamente do rosto dele até fechar os olhos de mágoas. Túlio o abraça e também repousa em silêncio como samurai em sentimento de pêsames. Um senhor assobiando vem dirigindo um trator e vai acabando com as cores, sonhos e os pombos do chafariz”.
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[5]“Você não é mais importante que meu disco do Joy Division e minha garrafa de Passport”; “Comprei um revólver e não paro de chorar ao som de Cass McCombs”; “Só preciso do Rio Amazonas e um rádio de pilhas tocando Bill/Callahan// Não gosto de ninguém//Sentir que deus é silêncio  quando chove dentro da gente”; “Meu amigo do peito morreu no mesmo deserto que Rimbaud/Paul Verlaine chorou tanto nesta noite que furou o disco de B.B. King/Não faço ideia onde fica Paris.”  
       Às vezes a referência é  menos “pop”: “Meu coração é um bar vazio tocando Belchior”.
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[6] O poeta brasileiro mais citado por Diego é Roberto Piva, que marca presença explícita em quatro momentos:
“Eu só tinha 21 anos. Não sabia o significado da palavra Literatura. Não sabia porra nenhuma da vida e sacava que as pessoas me tiravam como otário, mas queria escrever. Queria ser escritor. Lembro-me que vi a foto do Roberto Piva num livro todo fudido da biblioteca pública e fiquei horas achando que ele era uma espécie de santo e do nada poderia abrir a boca e falar coisas que precisava ouvir… [deixo para o leitor descobrir no próprio livro o resto];
“São Paulo devastada/Pantera descendo Augusta/Eu li Paranoia/ de Roberto Piva e nunca mais fui o mesmo”;
“(…) Você disse que Roberto Piva era o poeta mais lindo do mundo//Você disse tantas coisas bacanas quando eu tava fudido…”;
“Eu vi um fantasma declamando Roberto Piva/ Escrever poemas é remontar dinossauros com asas”.
     No texto de abertura de A fotografia do meu antigo amor dançando tango:
“Lembra de quando nós nadávamos nessa porra e sorríamos como se não houvesse amanhã e tudo que alimentava a gente eram os poemas do Roberto Piva?”
    E Diego não deixa de zombar de um falso e insuportável “lirismo contemporâneo” muito cultivado pelas redes sociais e por leitores incautos: “Fazer poesia é fácil. Difícil é não Carpinejar” e “Estava indo bem, mas acabou Carpinejando”.
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26/04/2013

Leituras em espelho: A CASA DAS BELAS ADORMECIDAS e MEMÓRIAS DE MINHAS PUTAS TRISTES

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VER TAMBÉM NO BLOG:

https://armonte.wordpress.com/2012/03/15/entre-a-implicancia-e-a-admiracao-a-necessidade-da-releitura/

https://armonte.wordpress.com/2012/03/15/uma-boa-hora-na-obra-de-garcia-marquez/

I

O declínio como perversão: “A casa das belas adormecidas”, de Kawabata

Ao escrever Memórias de minhas putas tristes, Gabriel García Márquez abertamente utilizou uma situação erótica (cliente idoso que aproveita um serviço de prostituição no qual meninas ficam adormecidas a noite inteira) já explorada em um dos mais famosos romances de Yasunari Kawabata, A casa das belas adormecidas, traduzido há pouco tempo no  Brasil. Para não haver dúvida sobre sua dívida com o autor japonês, García Márquez colocou como epígrafe o início do livro.

Aos 67 anos, Eguchi descobre os prazeres da casa do título e nós o veremos em cinco noites (a última, com duas garotas, uma das quais aparentemente morre em pleno serviço, por assim dizer). Opostamente a Memórias de minhas putas tristes, a perversidade da situação inicial nunca é abrandada, nunca se cai no sentimentalismo ou no barateamento, por mais que às vezes o velho Eguchi se enterneça consigo mesmo.

Perversidade é o que não falta no universo de Kawabata, que, entretanto, pelo menos nos textos que o responsável por esta coluna conhece (infelizmente, apenas cinco), sempre a usa lucidamente, como Henry James ou Nabokov, de forma que mesmo aqueles que, como o velho Eguchi apresentam uma sensibilidade requintada e compassiva. nunca deixam de ser desmascarados em sua monstruosidade. Por isso mesmo, A casa das belas adormecidas merece ser descrito como um “belíssimo relato, tal como o fez Mario Vargas Llosa no recente A verdade das mentiras, onde sintetiza muito bem o fascínio ambíguo e mórbido do texto: “O erotismo é fantasia e teatro, sublimação do instinto sexual numa festa cujos protagonistas são os obscuros fantasmas do desejo que a imaginação anima e que anseia encarnar, detrás de um prazer escorregadio, fogo fátuo que parece próximo e é, quase sempre, inalcançável. Trata-se de um jogo altamente civilizado, ao que somente acedem culturas antigas que alcançaram elevado nível de desenvolvimento e já mostram sintomas de decadência”.

A casa das belas adormecidas é também um ponto-limite a que chega Don Juan, o arquétipo do conquistador (ou predador sexual, como diríamos hoje). O ideal don-juanesco é a variedade, e as meninas adormecidas, tão diferentes entre si, fornecem munição para ele. Entretanto, a condição em que elas permanecem consolida ironicamente a derrota de Eguchi: ninguém é seduzido, nada é de fato conquistado, não há nem poderia haver posse verdadeira, não há consciência nem reconhecimento, só há o poder e o abuso (e as possibilidades que abrem para a crueldade e a degradação ficam evidentes ao longo da narrativa).

Restará apenas a memória, outro festa do fugidio. E, como todo Don Juan/Narciso, Eguchi encontrará, já prenunciado pelo cheiro de leite de bebê que invade suas noites, pela obsessão com o seio feminino, pelo jogo de contraste entre branco e vermelho, o fantasma primordial: a mãe (quem explorou isso aqui no Brasil, infelizmente com um resultado tosco, foi Autran Dourado em Confissões de Narciso).

Ao pensar que uma das meninas pode ser “a última mulher da sua vida”, Eguchi matuta: “Então, quem foi a minha primeira mulher?… Foi minha mãe. Não podia ser nenhuma outra. Era uma resposta realmente inesperada.”

Não tão inesperada, é a associação imediata da lembrança da mãe com a sua morte (descrita cruamente). No “frio desgosto da velhice, nenhuma fantasia erótica, nenhuma depravação, consegue nos desembaraçar do confronto com a mortalidade. Por isso, como aconselha a misteriosa mulher que faz as transações com Eguchi, nessa obra-prima da literatura que é A casa das belas adormecidas, o melhor é tomar o sonífero que fica ao lado do leito, fechar os olhos e mergulhar no clima de sono e suspensão de qualquer realidade ultrajante.

(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos,  em 24 de setembro de 2005)

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II

A má hora de García Márquez

Confesso que nunca gostei muito de Gabriel García Márquez e já detestei Do amor e outros demônios. Não esperava, contudo, que Memória de minhas putas tristes (“Memoria de mis putas tristes”, tradução de Eric Nepomuceno) fosse tão chatinho e que nele sobressaíssem as piores características do estilo do autor colombiano: a renitente cafonice das imagens e analogias e a insuportável maneira de caracterizar as personagens. Por exemplo, a mãe do nonagenário narrador, “a mulher mais formosa e de melhor talento que jamais houve na cidade”. A noiva frustrada: “Tinha uns olhos de gata fujona, um corpo tão provocador com roupa ou sem, e uma cabeleira frondosa de ouro alvoroçado e cuja emanação de mulher me fazia chorar de raiva no travesseiro”. A empregada, jorgeamadianamente, tem “coxas suculentas”. A puta (nada triste) que o desvirginou: “ se chamava Castorina e era a rainha da casa… me apresentou ao seu mundo de maldição e pecado”.

Apesar de sua tendência monocórdica, cada vez mais acentuada, García Márquez tem a chamada “carpintaria”. É o elogio que se pode fazer quando um escritor é ruim ou comercial, mas funciona de alguma forma e não se tem nada melhor para dizer dele. É por isso que Memória de minhas putas tristes passa uma falsa impressão de texto perfeitinho e límpido, de “mestre”, quando na verdade é um produto kitsch, no qual se tem de agüentar trechos como aquele dos conselhos da ex-puta (nada triste) Casilda Armenta, para o nonagenário apaixonado pela menina virgem (será?) de 14 anos: “Vá correndo procurar essa pobre criatura mesmo que seja verdade o que dizem os seus ciúmes, não importa, o que você viveu ninguém rouba…Acorde a menina, fode ela até pelas orelhas com essa pica de burro com que o diabo premiou você pela sua covardia e mesquinhez. De verdade, terminou ela com a alma: não vá morrer sem experimentar a maravilha de trepar com amor.”

A suposta virgem adolescente não tem voz na narrativa. O que importa é a fantasia pessoal do narrador, o vento de Eros que sopra na sua velhice murcha e apagada, um vento que pode também ser presságio da morte. Isso fica claro no seguinte trecho: “na penumbra do quarto imaginando Delgadina em sua vida irreal de acordar os irmãos, vesti-los para a escola, servir o café da manhã, se houvesse o que pôr na mesa, e atravessar a cidade de bicicleta para cumprir a pena de pregar botões” (pois a menina é uma operária). Poderia ser um remexer emocionante da solidão e das suas emoções, mesmo descontada a repelente situação inicial, poderia ser um grande exercício de “embriaguez metódica”, como no fundo é toda descrição de paixão. Infelizmente, todo o pathos da narrativa é absorvido pelo clima de bolero, como confessa o narrador, melômano e crítico de música clássica: “Havia mudado o velho rádio por um de ondas curtas que mantinha sintonizado num programa de música culta, para que Delgadina aprendesse a dormir com os quartetos de Mozart, mas uma noite encontrei-o numa estação especializada em boleros da moda. Era o gosto dela, sem dúvida, e o assumi sem dor, pois em meus melhores dias eu também havia cultivado os boleros com o coração. Antes de voltar para casa no dia seguinte, escrevi no espelho com o baton: Minha menina, estamos sozinhos no mundo.” García Márquez nos faz ficar com raiva de palavras como Amor, Coração, Alma, Ardor e afins. Nonagenário por nonagenário, é preferível a aridez implacável do narrador de Malone morre, obra-prima de Samuel Beckett.

(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA, de Santos, em 10 de setembro de 2005)

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24/04/2013

O ESCRITOR LIMITE (III): QUATRO ASES E UM CORINGA DE TOLSTÓI

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VER TAMBÉM NO BLOG:

https://armonte.wordpress.com/2013/04/24/o-escritor-limite-ii-tolstoi-em-capsulas/

https://armonte.wordpress.com/2013/04/24/o-escritor-limite-i-o-pregador-evangelico-e-o-diabo-fabulador/

https://armonte.wordpress.com/2010/11/24/caucaso-cosmo/

https://armonte.wordpress.com/2011/01/23/a-escola-da-possibilidade/

https://armonte.wordpress.com/2011/11/15/um-livro-total-a-ficcao-mais-verdadeira-que-a- vida/

 I

Por que terá calhado ao destino fazer viver como contemporâneos, e no mesmo país,os dois maiores gênios literários do século XIX  (junto com Flaubert): Fiódor Dostoiévski (1821-1881)e Lev Tolstói, o qual viveu um pouco mais (1828-1910) e terminou seus dias como uma espécie de Rei Lear?

Tolstói é um autor perigos para os demais. Sempre que o lemos parece que não se precisa ler mais nenhum outro escritor. Ele parece ser o limite do que pode ser dito e representado através das palavras.  O leitor pode verificar essa minha afirmação através da edição conjunta de cinco textos curtos que a Ediouro está lançando, As obras-primas de Leon Tolstói: A morte de Ivan Ilitch; Senhores e servos; Sonata a Kreutzer; A felicidade conjugal; Onde está o Amor, Deus está também, com traduções de Marques Rebelo, Boris Schnaiderman e Ruy Jungman.

O primeiro da coletânea, A morte de Ivan Ilitch (1886),  é também o melhor.Na verdade, é o texto mais cruel e terrível já escrito, uma assustadora reflexão sobre a mortalidade. Também assustador é o descuidado trato editorial da Ediouro. Não há uma única nota de rodapé, os termos e frases em francês (comuns em qualquer obra russa do século passado) não são destacados em itálicos; em compensação, há pedaços de palavras que estão assim incompreensivelmente grifadas, sem nenhuma razão aparente que não o mero desleixo. E o acento que o pronome tu ganhou várias vezes: Lindo, esse criado pela editora para,talvez,fazer brilhar mais o estilo de Tolstói, talvez fazê-lo competir com o Finnegans Wake de Joyce. E na pág. 73, a palavra decência (uma palavra-chave no texto)foi trocada por decadência. Será que a Ediouro queria ajudar a matar Ivan Ilitch mais depressa?

Mas do que morre Ivan Ilitch? Calma,leitor, a edição brasileira tem pouca participação nesse destino terrível. Ele é um juiz, um cidadão que leva sua vida comme il faut, isto é, dentro do convencional,do decente, do respeitável, apesar de alguns aborrecimentos domésticos. Um dia, sofre uma queda e machuca a ilharga. A partir daí, desenvolve uma doença misteriosa que lhe provoca dores lancinantes, as quais depois de certo ponto não são aplacadas com ópio nem com morfina.

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“Por favor, queria te falar, te falar da morte de Ivan Ilitch, da solidão dessehomem, desses nadas do dia a dia que vão consumindo a melhor parte de nós”. Nessas palavras de A obscena senhora D (1982), grande momento da sua obra, Hilda Hilst coloca o dedo na ferida: ao se perceber como moribundo, uma pessoa que já é considerada morta, mesmo em vida, Ivan Ilitch tem de enfrentar a solidão que, em última instância, é a nossa condição. E ao enfrentar essa solidão, faz uma descoberta mais aterrorizante ainda:a mentira do dia a dia(esses nadas que vão consumindo a melhor parte de nós), que, inclusive, quer varrer a idéia da morte para debaixo do tapete e vê no agonizante uma lembrete incômodo.Chega um momento em que o outrora juiz se vê reduzido à mesma condição de Gregor Samsa, de A metamorfose: é o monstro que tem que ser escondido para não horrorizar os outros.

É avassaladora a maneira como Tolstói faz Ivan Ilitch defrontar-se com a morte a partir da reminiscência do silogismo filosófico básico que aprendera quando jovem: “Caio é um homem, os homens são mortais; logo, Caio é mortal”. Como abstração, pairando no reino das generalidades, que coisa bonita e lógica!, só que, quando a sentimos na carne, nenhuma angústia é maior: “Que Caio,o homem abstrato, fosse mortal, era perfeitamente certo; ele, porém, não era Caio, não era um homem abstrato, era um ser completa e absolutamente distinto dos demais”. E, de repente, de idéia, a morte se torna uma evidência; mais ainda, uma vivência: “Ia para o escritório, deitava-se novamente ficava a sós com ela. Cara a cara, e sem nada poder fazer,salvo encará-La, enquanto o coração gelava-se no peito”. Radicalizando o processo de idéia e vivência, a Morte se torna um aprendizado, uma tabula rasa que mostra que, de fato, a verdadeira morte estava na vida alienada e medíocre que levara. Ao morrer, pensa: “Acabou a Morte, a Morte já não mais existe”.

Tal desfecho passa longe de ser otimista. Muito pelo contrário, é desolador. Porque joga uma luz negra sobre a existência que nós levamos, assemelha-se a um veredicto inapelável sobre a nossa maneira de viver. Lendo a obra-prima de Tolstói é que podemos ver como são acertadas as palavras de Harold Bloom em O cânone ocidental sobre a função da obra literária (e da obra de arte em geral).A alta literatura não torna ninguém melhor ou pior, mais útil ou mais nocivo. O que nos faz e nos traz é “o uso correto de nossa solidão, essa solidão cuja forma final é nosso confronto com nossa mortalidade”.

Com relação a isso, A morte de Ivan Ilitch adquire quase um caráter cósmico, é um texto-limite. Eu só lembro de uma outra obra que conseguiu quase o mesmo efeito, o lindíssimo filme de Bergman,  Gritos & sussurros (1972), que também desmascara os nadas do dia a dia que vão consumindo a nossa melhor parte: “Aquela mentira que lhe era pregada nas portas da morte, aquela mentira que rebaixava o solene e terrível desenlace ao nível das visitas sociais, das cortinas, do esturjão que se comera no jantar… O monstruoso, o horrendo ato da morte era por todos rebaixado ao nível de um acidente fortuito, desagradável, quase inconveniente(mais ou menos como se trata  alguém que entrasse numa sala fedendo a catinga),e tudo era praticado em nome daquela decência que ele tanto defendera durante toda a sua vida”.

(resenha publicada  originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 21 de novembro de 2000)

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II

Na seção anterior, foi colocado em evidência A morte de Ivan Ilitch porque ele está para a ficção do século XIX como A metamorfose, de Kafka, está para a do século XX.

Outro momento extraordinário incluído na seleção é Sonata a Kreutzer (1889): numa viagem de trem, no decorrer de uma conversa mundana, um dos passageiros, Pozdnichev, conta como assassinou a esposa, amante de um músico. Na verdade,o truque utilizado para apresentar a narrativa de Pzdnichev, o debate dos passageiros, cria de antemão a sustentação para o tom polêmico e provocativo de Sonata a Kreutzer, tom que se prolonga no famoso pós-escrito do auto, inexplicavelmente excluído da edição que ora se comenta (um dos seus inúmeros pecados). Como acontece sempre, quando um personagem tende a ser um pouco maníaco, na sua ânsia de provar a sua causa, ele acaba se revelando pelo avesso. Isso já acontecia com os personagens de Dostoiévski(e esse talvez seja o texto mais dostoievskiano de Tolstói) e acontecerá com o Bentinho de Dom Casmurro e com a governanta de A volta do parafuso, entre tantos outros.

O estranho é que Tolstói não se tenha apercebido disso e caído no ridículo de coincidir com as conclusões do seu maníaco: “A união com uma mulher, no casamento ou fora deste, é uma finalidade indigna de um homem. Apesar de tudo quanto dizem os poetas, é tão indigna quanto aspirar a engordar com uma superalimentação, coisa que alguns consideram o bem supremo… É isto a essência daquilo que pensei e que quis exprimir na minha narrativa. Acreditei que se podia discutir a maneira de remediar a situação atual…”O conde evangelizador procurava sanear os costumes com suas narrativas. Não importa: Sonata a Kreutzer é genial apesar da intenção moralizante e edificante que o seu autor pretendia, é uma das melhores histórias de adultério num século que era obcecado pelo assunto.

Muito antes, em 1859, aos 31 anos,ele escrevera uma belíssima novela sobre o casamento, instituição que ele anatematiza tão apocalipticamente em Sonata a Kreutzer: A felicidade conjugal, um tour de force  em que ele exercita uma narrativa em primeira pessoa sob o ponto-de-vista da esposa, a jovem Macha, que se apaixona e se casa com um homem quase vinte anos mais velho. É através das impressões e reflexões de Macha que o leitor vai acompanhando uma profunda e alquímica transformação de sentimentos, mas que ocorre em filigrana: temos as diversas nuances que constituem a “realidade” dos sentimentos. O amor romântico de Macha e Sierguei Mikhálitch morre e, como ela diz, “não tem mais força nem suculência”. O que sobrou? “Sobrou o amor” , isto é, a felicidade conjugal,como conclui a narradora num dos mais belos finais já escritos: “…terminou o romance com meu marido; o sentimento antigo tornou-se uma recordação querida, algo impossível de trazer de volta, e o novo sentimento de amor aos filhos e ao pai dos meus filhos deu início a uma nova vida, de uma felicidade completamente diversa e que ainda não acabei de viver”.

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As obras-primas de Leon Tolstói ainda reserva um grande texto, Senhores e servos (o título seria melhor traduzido no singular, Senhor e servo ou Amo e criado), uma espécie de contraponto ao tenebroso  Ivan Ilitch ao abordar a morte de uma forma mais redentora. Trata-se da história de um ganancioso proprietário que deseja fazer um negócio da China e sai num dia de nevasca com seu servo para efetivá-lo. Perdem-se no caminho e, com a chegada da noite e o frio intenso, a morte é certa. Temos, mais uma vez, uma situação-limite: Vassilii, o senhor, morre aquecendo com seu corpo Nikita, o servo: “Compreende que é a morte e não se sente desolado. Lembra-se de Nikita, que está debaixo dele, aquecido e vivo! Parece-lhe que ele, Vassilii Andréitch, é Nikita, e que Nikita é ele, e que sua própria vida não está com ele e sim Nikita… E lembra-se do seu dinheiro, do seu armazém, da sua casa, das vendas e compras…É  incompreensível como aquele homem que se chama Vassilii dava tanta importância a tais bagatelas”.

Onde está o Amor,Deus está também destoa na seleção. É uma historinha curta e edificante sobre um sapateiro que espera a visita de Cristo (anunciada num sonho) e que ajuda várias pessoas ao longo de uma jornada de trabalho, descobrindo, no fim, que todas elas eram avatares de Cristo. Ao invés dessa baboseira evangélica, que representa o lado pior de uma obra monumental, por que não colocaram Hadji Murat ou A cédula falsa, que são equivalentes em extensão e qualidade às outras quatro? Ou então, se havia necessidade de algo mais curto, contos mais expressivos como, por exemplo, Três mortes ou Kolstomer?

(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 28 de novembro de 2000)

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O ESCRITOR LIMITE (II): TOLSTÓI EM CÁPSULAS

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Cinco textos de Tolstoi, antes só encontráveis no Brasil, com muita sorte, nas suas Obras Completas pela Aguilar, foram reunidos por Paulo Bezerra, utilizando traduções de alunas suas (Beatriz Morabito, Beatriz Ricci & Moira Pinto) em O diabo e outras histórias, tornando-se um dos grandes sucessos editorais dos últimos tempos (também, há um excelente projeto gráfico de Fábio Miguez, inaugurando a coleção “Prosa do Mundo” da CosacNaify[1]).

É póstumo O diabo, o admirável texto que dá nome à coletânea (e que fecha a edição Aguilar), embora Tolstoi começasse a escrevê-lo em 1889. Nele, a obsessão sexual opõe-se à obsessão ética: Ievguiêni Irtiêniev, para não ficar “na mão” em sua vida rural, transa com uma camponesa casada, sob os olhares complacentes de todos (afinal, é o patrão), interrompendo a ligação ao se casar. Irtiêniev percebe, porém, que não consegue se livrar do seu desejo por Stiepanida: “Não conseguia parar em casa e, estivesse no campo ou no bosque, no jardim ou na eira coberta, não só o pensamento, mas a imagem viva de Stiepanida o perseguia de tal forma que só raramente ele a esquecia. Mas isso não era nada; talvez pudesse superar esse sentimento, mas o pior era que antes ele passava meses sem vê-la e agora a via a cada instante”.

Temos dois finais para essa contrapartida de Felicidade conjugal: num deles, Irtiêniev se mata; no outro, assassina Stiepanida. Seria muita ousadia minha ter a convicção de que dificilmente Tolstoi publicaria a segunda versão, por ser ela inconvincente? Da maneira como nos é apresentado, Irtiêniev é do estofo moral de Andriêi Bolkonski (Guerra & Paz), de Liêvin (Anna Karênina) e de Stiepan Kasatski, protagonista de Padre Sérgio, o qual, por orgulho, é capaz de mutilar-se (corta o indicador com um machado) para não pecar e destruir sua reputação como eremita. Diante do dilema que se apresenta para Irtiêniev, e com o sentimento de orgulho que o domina (como aos outros), a única saída lógica e verossímil é o suicídio.

Kholstomér (terminado em 1885) e Falso cupom (1904) são outras duas obras-primas relativamente longas.

Em muitos trechos da obra tanto de Tolstoi como na de Dostoievski (basta lembrar de Crime e Castigo), cavalos são maltratados ou esgotados até a morte (o espantoso mesmo é que no nosso próprio cotidiano do século XXI, vemos a cada dia donos de anacrônicas carroças explorando cavalos de forma cruel, sem que nenhuma autoridade faça nada!). Em Kholstomér conta-se a história de um cavalo velho que mistura decadência e majestosidade. Esse rei Lear eqüino é contrastado a um antigo dono, outrora belo e riquíssimo, agora arruinado e repulsivo. Tolstoi faz o próprio cavalo contar sua vida, que serve como um comentário ao mundo humano, cheio de crueldade, egoísmo e sobretudo inutilidade.

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Após narrar o horripilante esfolamento de Kholstomér, mostra-se a mote de Siepukhóvskoi, o ex-dono: “Depois de muito andar pelo mundo, comer e beber, o corpo morto de Siepukhóvskoi foi recolhido á terra. Nem a pele,nem a carne, nem os ossos serviram para nada” (ao contrário do cavalo, embora a descrição detalhada dessa serventia só instigue no leitor um sentimento de repulsa pelo ser humano).

E Falso cupom (que tem o título de A cédula falsa na edição da Aguilar) também joga o leitor num mundo de corrupção, violência e degradação, só que com o contraponto evangelizante que norteou a fase final de Tolstoi.É assombrosa a perícia com que ele movimenta um imenso número de personagens (a partir da falsificação do cupom por dois adolescentes), que se estendem por toda a Rússia e cujas vidas vão se entrecruzando num enredo no qual abundam condenados dos mais diversos tipos (por sublevação, assassinatos, roubos, terrorismo). Quem acha que a violência é uma questão atual, basta ler Falso cupom para se curar dessa ilusão: poucas vezes se concentrou em tão poucas páginas tanta violência.

Há, por exemplo, a figura aterradora de Stiepan Pielaguiêiuchkin, que viveria muito bem na nossa época em que se incensam os serial killers: “…a lembrança daquele assassinato não só não era desagradável, como ele ainda recordava a chacina várias vezes ao dia. Agradava-lhe pensar que podia fazer a coisa tão bem feita, com tanta habilidade, que ninguém descobriria nem lhe impediria de repeti-la com outra pessoa. Sentado à mesa de uma taberna e tomando chá e vodca, observava os transeuntes com um só pensamento: de que maneira matá-los”.

Dois textos curtos abrem e fecham a seleção: Três mortes (1858) e Depois do baile (1903). Este último apresenta uma estrutura típica do conto nessa época: numa roda de discussão, alguém narra uma anedota que tem a ver com o que está sendo discutido (o homem é produto do meio?). Um dos membros da roda, Ivan Vassilievitch, mostra como se libertou do meio que faria dele um militar e marido de sua amada, Várienka. Depois de entusiasmar-se com a figura do pai dela (um coronel) num baile memorável, Ivan presencia a maneira como tal pai encantador manda açoitar um desertor. O problema é que a amada e o pai associam-se inapelavelmente na sua mente, como já acontecia no baile: “Pelo pai dela… de sorriso amável parecido com o dela, eu sentia naquele momento uma espécie de sentimento misto de enlevo e ternura”!!?? O título dá bem a medida da reversibilidade irônica que sustenta a história.

Três mortes é um dos momentos definitivos da obsessão de Tolstoi com a morte, um dos aspectos capitais da sua obra. Temos a morte de três seres: uma dama da sociedade, um cocheiro e uma árvore. A árvore é cortada numa solitária manhã na floresta, o cocheiro morre em meio à indiferença da isbá de uma estação do posto de carruagens, com gente entrando e saindo, a cozinheira trabalhando, e mesmo cercada por parentes, médico e sacerdotes, isto é, por todos os signos de seu status social, a dama enfrenta a mesma solidão diante do “acontecimento supremo” (como se diz em O divino e o humano, texto de 1906), ou melhor, uma solidão pior, porque reforçada pela inautenticidade.

O conto também revela sua aversão fisiológica à morte, reiterada várias vezes. Nenhum outro autor foi capaz de dar uma idéia tão física da extinção pessoal: “Na mesma noite, a doente era só corpo, e este corpo jazia no caixão, na sala do casarão…A luz viva das velas caía dos altos candelabros de prata sobre a fronte cérea da morta, suas pesadas mãos de cera sobre as pregas da coberta que delineavam espantosamente os joelhos e os dedos dos pés”.

(resenha publicada  originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 31 de julho de 2001)

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[1] É certo, porém, que o nome da coleção copia um empreendimento memorável da Francisco Alves dos anos 80, onde foram lançados textos de Marguerite Duras, William Golding, Samuel Beckett, Vladimir Nabokov, Isaac Singer, entre outros.

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O ESCRITOR LIMITE (I): O PREGADOR EVANGÉLICO E O DIABO FABULADOR

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“De uma maneira geral, a música é terrível! O que é a música? Não sei. Que efeito produz? E por que atua deste modo? Dizem que eleva as almas. É absurdo! É mentira! Exerce grande influência, mas não eleva a alma de maneira nenhuma. Como explicar isso? A música obriga-me a esquecer a minha existência, a minha situação real, transformar-me. Debaixo de sua influência parece-me sentir aquilo que não sinto, compreender o que não compreendo, ser capaz daquilo que na realidade não sou… Na China, a música é dirigida pelo Governo. Devia ser assim em toda parte. Como permitir que um homem qualquer, um músico, sobretudo se é uma criatura sem moral, hipnotize as pessoas e faça delas tudo quanto quer? Poderá, por acaso, tocar-se num salão, entre mulheres decotadas, o presto da Sonata a Kreutzer, por exemplo? Como será possível ouvir esse presto, aplaudir um pouco e depois bebericar e comentar a última fofoca? É preciso, depois de ouvir a música, fazer aquilo que ela nos inspirou. Não pode deixar de ser prejudicial provocar um sentimento que não possa manifestar-se.”

Esse é um trecho crucial de SONATA A KREUTZER (1889), de Tolstói, onde o personagem principal , Pozdnichev, conta a um desconhecido(o narrador), no decorrer de uma noite, em meio a uma longa viagem de trem, como praticou o uxoricídio por suspeitar que a esposa o estivesse traindo com um violinista.

A diatribe contra a música associa-se a um tom inquisitório que ataca o casamento, as relações carnais, o divórcio, a medicina, as mulheres, os judeus, os ingleses, o ócio e a superalimentação, tudo colocado numa mesma apocalíptica condenação moral. Isso não seria problema se estivesse restrito apenas à psicologia de Pozdnichev como personagem, o qual expõe suas idéias e a si mesmo, um pouco como os personagens ressentidos de Dostoiévski, como o narrador de Memórias do subsolo.

O problema de SONATA A KREUTZER (e que o torna um dos textos mais irritantes da literatura) é que Tolstói incluiu um pós-escrito, no qual encampa as teses centrais de Pozdnichev. Como se sabe,o grande escritor russo foi encaminhando-se para um evangelismo radical e anti-ocidental, com o qual procurou criar uma religião, o tolstoísmo. E SONATA A KREUTZER está na fronteira entre a representação ficcional e a pregação saneadora dos costumes.. Tolstói chega a afirmar, no seu pós-escrito que a união entre um homem e uma mulher, sob qualquer forma, institucional ou não, é “uma finalidade indigna de um homem”,similar a engordar pelo excesso de alimentação.

É certo que o casamento burguês foi um dos maiores alvos da literatura oitocentista, inclusive do próprio Tolstói no soberbol Anna Karênina (1875-77).É certo que o príncipe Bolkonski (com o qual Tolstói ficará cada vez mais parecido, antes de mergulhar no seu avatar final de rei Lear de Iasnaia Poliana), pai de Andriei, um dos protagonistas de Guerra & Paz (1865-69), afligia-se com a educação das mulheres e sua predisposição às frivolidades românticas, motivo pelo qual atormentava a filha Maria (o que não a impedirá de apaixonar-se tola e romanticamente e de casar-se desastrosamente).

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Mas nunca a pregação moral fora tão evidente, mesmo sabendo que Tolstói passara a renegar suas realizações artísticas anteriores.Basta ver a sua visão da música (hoje em dia compartilhada por uma grande escritora de fôlego épico similar: Doris Lessing, que tem a mesma desconfiança com relação a ela, mas com argumentos mais convincentes) para perceber como sua concepção artística resvalou para a severidade e a seriedade ridículas. Aliás, é a música que fará com que o demonismo e degradação latentes no casamento de Pozdnichev venham à tona,com a entrada em cena do violinista Trucachevski.

Três anos antes da história do uxoricida Pozdnichev, Tolstói já chegara a um patamar irretornável de denúncia do egoísmo e da vaidade humana na eclesiástica obra-prima A morte de Ivan Ilitch. E, a partir de então,resolveu pregar ao invés de ordenar artisticamente a realidade e a experiência, com suas contradições e impasses.

Contudo, assim como o destino de Pozdnichev representou uma grande vendeta moral contra sua fatuidade inicial, o Tolstói escritor genial vinga-se do pregador moralista ao longo de SONATA A KREUTZER. E só ir lendo e reparando como, após todas as páginas inicias de diatribes e arengas, a força da ficção vai se impondo, a história vai se enriquecendo, os detalhes vão sombreando o quadro maniqueísta proposto e vão surgindo ambigüidades dignas do Machado de Assis de Dom Casmurro e, ao fim e ao cabo, temos uma tela tão vívida da sociedade como os melhores momentos de Guerra & Paz, e um retrato da alma humana quase tão dilacerante e devastador quantos os grandes momentos de Dostoiévski.

O austero evangelizador encontra o solerte diabo fabulador (que tanto arrenegara) no meio do redemunho, rende-se e sela o pacto .E é por isso que SONATA A KREUTZER, esse texto exasperante , perturbador e feroz, resiste até hoje, mudem-se os tempos,mudem-se as vontades.

(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 29 de outubro de 1996)

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Adendo– Na resenha acima me vali da tradução de Natália Nunes no volume II das Obras Completas (Nova Aguilar).Em 2008, a editora 34 lançou a tradução de Boris Schnaiderman

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23/04/2013

RAÍZES EM ÁGUAS PARADAS: Os 50 anos de “Verão no Aquário” nos 90 de Lygia Fagundes Telles

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https://armonte.wordpress.com/2013/04/19/historias-de-desencontro-entre-lygia-fagundes-telles-e-seus-contos/

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(uma versão do texto abaixo foi publicada como resenha em A TRIBUNA de Santos, em 23 de abril de 2013)

“__ Somos capazes de ódio, mas não somos capazes de indignação, o que é diferente. Deus vai nos vomitar.

__ Não seja pretensiosa, estaremos em outros vômitos, não nesse, compreende?”

I

Em meio às comemorações dos 90 anos da grande Lygia Fagundes Telles (nascida em 19 de abril de 1923), outro marco a ela relacionado: o meio-século de Verão no Aquário, o qual ocupa uma posição ainda desconfortável e problemática: postado entre sua impactante estreia, Ciranda de Pedra (1954) — na qual exercitava de forma maravilhosa o discurso indireto livre (quando o narrador está tão “colado” ao ponto-de-vista do personagem que os discursos de ambos se “contaminam”), —  e a obra-prima As Meninas (1973) — mais polifônica e caleidoscópica —, até pela utilização da convencional narrativa em primeira pessoa esse segundo romance poderia ser tomado, no conjunto da obra, como uma realização mais tímida, menor.

Mas eu acredito que essa opção era essencial, pois a narradora, Raíza, se debate realmente no “aquário” em que transcorre sua vida, sintetizada e concentrada (com maestria) num único verão, especialmente sufocante. Por conseguinte, Ciranda de Pedra, Verão no Aquário e As Meninas, formam, a meu ver, uma belíssima trilogia (um quarto romance, bem mais tardio, As Horas Nuas, de 1989, também não faz feio junto a eles).

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II

“Minha mãe apertou um pouco os olhos. Como eu amava aquele sorriso de Gioconda a insinuar todo um mundo secreto e que jamais seria revelado! Para uma escritora famosa, só mesmo um famoso sorriso, não, mãezinha?”

Devido aos (sempre) inusitados mecanismos da memória, da minha última leitura do livro tinha ficado a imagem um tanto limitada de que ele se concentrava maciçamente na disputa entre Raíza e a mãe (Patrícia, famosa escritora—os demais personagens se referem com certa ironia aos seus livros porque neles sempre há um tom “sublime”) pelo amor de um atormentado ex-seminarista, cuja idade o aproximaria mais da filha: Raíza deseja André para afrontar a postura “olímpica” da mãe e para averiguar se de fato eles são amantes (nunca há uma confirmação cabal).

Não deixa de ser fascinante que Patrícia seja basicamente a personagem mais difícil de acreditar, mais irreal e “literária” de Verão no Aquário e, no entanto, também a que fica mais fortemente marcada em nossa cabeça. Como Lygia Fagundes Telles conseguiu fazê-la não soar postiça? Gastei o bestunto, caro leitor, para tentar descobrir como aconteceu essa façanha (personagem inverossímil num relato de tão vívido realismo = personagem que rouba o livro), e só posso arriscar a hipótese de que, como a vemos pelos olhos de Raíza, pela ótica da sua rivalidade, da sua má fé, do seu amor, da sua admiração ressentida, ela mantém seu mistério e cumpre a função de ser tanto obstáculo quanto figura de passagem para a heroína:

“Fiquei sorrindo e pensando em minha mãe. Tão deusa, tão inacessível, as vinte mil léguas submarinas longe daquela vulgaridade que se pintava diante de mim. E o mesmo triste lado humano na sede de mocidade: o mais velho sempre sugando o mais jovem na ânsia de alguns anos de seiva. E como ela soubera manejá-lo, com que finura conseguira atraí-lo criando uma atmosfera mística de incesto. A sonsa. Mas a mim não iludia da mesma forma que a mulher-gata não iludia o espelho: eu era o espelho da minha mãe, em mim ela se refletia de corpo inteiro. Senti um calafrio. Levantei-me. O suor corria pelo meu pescoço. E se eu fosse um espelho deformador de imagens como o espelho louco do parque de diversões?”

Pois Patrícia é um obstáculo por ser o superego de uma filha que teima em se autodestruir, e também por ser uma guardiã do “decoro”. Como um Thomas Buddenbrook de saias, Patrícia tenta salvar a dignidade familiar, mesmo com o alcoolismo do marido, a alienação da irmã, a loucura do cunhado, os aprontos da filha e da sobrinha, além da opressiva e patética presença de André e a decadência galopante do patrimônio familiar; enfim, o “aquário”: “ajudai a ela para que os que dependem da sua força sejam ajudados também, eu, Marfa, André, tio Samuel, tia Graciana, Dionísia… A frágil família. Tinha ainda o aquário com os peixes nadando em círculo, amigos e inimigos condenados à mesma água…”

E é uma figura de passagem porque Raíza percebe que não pode se conformar às (escassas) opções das mulheres da geração da sua mãe, mesmo que esta seja uma figura tão forte, esteio de uma família pusilânime e combalida.  Paradoxalmente, é ela quem alerta a filha a respeito do simbolismo explorado no título do romance (pois, seguindo as implicações do seu nome, a heroína se enraíza demais no fetichismo mortuário familiar, com seus objetos embalsamados e decadentes):

“Encarei-a. Via agora que assim nos tratávamos há anos, variando apenas a graduação da ironia que podia chegar até ao sarcasmo. Uma simples conversa de rotina, como tantas outras nas quais as estocadas mais ou menos profundas eram iniciadas por mim. E ela se defendia ou não se defendia, o que era pior ainda. Apenas não notara que no momento eu queria a trégua.

__ Vou pedir à titia que vista uma roupa de fada e me transforme num peixe. Deve ser boa a vida de peixe, murmurei.

__ (…) Não se esqueça de que eles vivem dentro de um palmo de água quando há um mar lá adiante.

__ No mar, seriam devorados por um peixe maior, mãezinha.

__ Mas pelo menos lutariam. E nesse aquário não há luta, filha. Nesse aquário não há vida.”[1]

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III

“Marfa entrou no meu quarto sobraçando um pacote. Deixou-o na mesa e abriu a bolsa.

__ Trouxe seu cheque. E mais esses três livros para traduzirmos, normas de bem viver, compreende? Precisamos decorá-las com urgência (…).

    Apertei com o polegar a tacha num dos cantos da gravura das rosas. Houve um dia em que elas me pareceram feitas de carne. Mas hoje eram apenas um punhado de rosas num pote. Cerrei as venezianas para que o quarto ficasse mais fresco. Era longo demais aquele verão. Era longa demais a vida. Seria bom morrer jovem, os deuses amam os jovens, André poderia citar na ocasião. Voltei-me para Marfa. E animei-me com sua tristeza.”

É interessante analisar a dinâmica da relação entre Raíza e sua prima Marfa (filha do tio doido, Samuel), a partir de um depoimento (foi publicado  no volume dos “Cadernos de Literatura Brasileira”, do Instituto Moreira Salles, dedicado à autora de Verão no Aquário, em 1998) ao mesmo tempo muito bonito e muito esclarecedor de Hilda Hilst sobre a sua amizade com Lygia Fagundes Telles:

“Todo mundo fez tudo pra criar uma animosidade entre nós. Os nossos universos são parecidos, mas se expressam de modos totalmente diferentes (…) Eu falo tudo claro. A Lygia se encobre. Quando ela está comigo, por exemplo,  ela é ela (…) ela teve também uma vida muito mais difícil que a minha. O pai dela era um jogador… Foi uma moça com a vida difícil. Eu sempre tive dinheiro e tal. Tudo isso é complicado de dizer (…).

(…) somos muito tristes, o tempo todo. Telefono pra ela e digo assim: Você acha normal a mulher que pariu num avião e teve a criança sugada pela turbina? (…) A gente tenta falar coisas agradáveis, mas não consegue. Ou então a gente faz humor negro pra não ficar muito mal (…).

  Mas a gente ri muito. Ela diz coisas incríveis. Um dia ligaram pra ela dizendo que um conhecido nosso, meio distante, tinha acabado de morrer. Eu estava lá. Ela perguntou assim: Mas, me diga uma coisa, ele estava bem? Aí o cara disse: Lygia, ele estava morto! Ela tinha distrações assim. Mas como ele estava, no caixão, estava bem? Não, ele estava morto. Aí eu tinha ataques de riso, porque não era isso que ela queria dizer. Ela queria saber se ele estava com uma parecença arrumada, porque tem aqueles bossa Oscar Wilde, caindo aos pedaços. Ela quis saber se a parecença dele era normal ou de assustar. Ela era distraída com essas coisas e eu ria muito. E outras coisas divertidíssimas.”

   Nos últimos anos, ao ler as cenas em que Lygia mostra seu gume afiado ao enfocar as relações femininas, sempre penso nessas palavras de Hilda. E não teve como isso não lançar sua sombra nos meandros dessa amizade que é também um pouco disputa, que é também um pouco de impaciência (da moça prática e despachada, sem frescura, com a moça contemplativa e passiva), com essa cumplicidade que é também um pouco de espera de Godot, ou pelo pior, e que é meio desencantada mas também tão afetiva e intensa. E só uma ficcionista do quilate de Lygia e com amizades como a que ela manteve com uma pessoa como Hilda poderia escrever que sua heroína, para quem até a reprodução do quadro de Van Gogh (que sempre lhe fora tão viva), murchara, desvanecera, “sente animação” com a tristeza da prima/confidente[2].

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                                                       IV

“Raíza, você está linda demais, disse Eduardo, limpando o peito nu na tira do pulso. O vestido colara-se ao meu corpo e agora já não me repugnavam os outros corpos também molhados que se encostavam ao meu: o suor nos irmanava, o suor e a aflição. Ele me beijava e eu me enxugava nas suas bandagens encharcadas e suas mãos me penetravam e a língua buscando mais fundo — o quê?

   Um homem pintado de preto puxou-me pela cintura, mordeu-me de leve o ombro. Segui-o enternecida. Poderia me entregar a todos, se isso lhes dava prazer, todos tão afobados, que custava satisfazê-los com aquele meu falso corpo: ah, tão longe eu estava!… É indiferente, eu murmurei ao homem. Mas Eduardo já me arrastava com violência para a mesa. Antes, cravou as unhas no meu braço e beijou-me com a mesma força com que me feriu, não banque agora a…

(…) Pensei em Eduardo e sorri para Marfa que refazia a pintura dos olhos. Entendi agora o que me ordenara: em meio do ciúme ela queria, com todas as forças queria que eu me entregasse a ele. Precisava de mim, não fique negaceando!

(…) Fui recuando de costas. Se conseguisse sair dali, poderia ser salva mas tinha que ser já (…) Fui envolvida num bloco de palhaços. Desvencilhei-me e entrei numa ciranda de bêbados em meio dos quais distingui, em pânico, o dominó roxo que me conhecia. Fugi agachada como uma barata passando por debaixo de uma porta. E caí nos braços de um homem calvo que tentou prender-me, a loura de vermelho que eu procurava!… Deixei nas mãos dele um punhado de franja do vestido e prosseguindo fugindo até tropeçar em dois corpos fundidos junto de uma coluna. Tombei de joelhos em meio de um desfalecimento. Onde estaria a saída?! Alguém levantou-me por detrás. As mãos eram delicadas, tão delicadas que estremeci. Voltei-me. Um homem com cabeça de urso estendia-me os braços, fica comigo! A voz era triste como os olhos lá no fundo dos buracos do papelão envernizado. O focinho ria numa alegria alvar mas esse era um riso desmentido pelos olhos que imploravam, fica comigo!… Recuei. A enorme cabeça oscilava como a de um animal decapitado. Lembrei-me da história da fera de olhos pungentes, bastava beijá-la e ela se transformaria num príncipe. Sim, seria fácil amá-lo com aqueles seus olhos humanos. Mas quem daria o beijo em mim, quem?”

Na citação acima “pesquei” do aquário trechos de uma passagem extraordinária, uma festa a fantasia na qual Raíza comparece vestida de “loira de gangster”, seduzindo,  entre outros, o namorado atual de Marfa, Eduardo (cujas bandagens de “múmia” estão impregnadas de éter, de lança-perfume, fazendo com que todo o relato em primeira pessoa adquira um tom “fora do ar”).

Acompanhamos então o mergulho da heroína em sua geração, um retrato que, 50 anos depois, soa tão moderno e acurado, que imediatamente faz envelhecer num átimo vários textos supostamente atualíssimos em seu afã de representar jovens enfronhados no sexo desregrado, no uso de drogas (no caso de Verão no Aquário, ainda não há o rock´n roll, já que os personagens curtem mais música clássica e jazz).

Ao inventariar as suas relações com vários parceiros, a experiência de Raíza esbarra num ponto fundamental: nosso aprisionamento na ciranda de certos padrões afetivos que se repetem, se petrificam. Ao saber que o seu mais recente caso já está com outra, lemos: “Fernando, Fernando. Tínhamos nos amado. E agora ele amava outra e depois amaria outra ainda e os amores e desamores iriam se renovando com a mesma naturalidade com que Dionísia renovava a água do aquário: assim que o visgo acumulava no fundo, ela abria a torneira e o jato d´água limpa subia cobrindo tudo. Apoiei-me nos cotovelos e olhei minhas mãos sujas de poeira. Antes tinham existido as de Germaine. Agora, cobrindo as minhas, tinham vindo as de Josefina. E embora durassem no tempo um minuto, de certo modo não mudavam porque a essência era a mesma.”

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V

“E de repente tudo aquilo me pareceu já ter acontecido há muito tempo: era como se em outra tarde igual eu tivesse estado naquele mesmo lugar, fazendo os mesmos gestos e à espera do mesmo milagre enquanto secava nos joelhos o lenço molhado de lágrimas. Tudo estava disposto como já estivera antes. O acontecido ia-se repetir, por experiência eu sabia que nada podia ser mudado e embora me doesse a certeza do inevitável, cheguei a sentir um certo alívio, porque esse desespero era meu conhecido e conhecendo-o, podia agora suportá-lo.

    Não haveria milagre. Dentro em pouco Marfa aparecia sem pressa, naquele andar de quem não precisa mais se apressar. Diria: Acabou-se, compreende? Ou nem diria nada, apenas me lançaria um olhar penalizado e eu ficaria sabendo: acabou-se.

    Lembrei-me do nadador tragado pelas ondas e do meu rancor pelo mar que não esperou pela corda. Mas lembrei-me também de quando chegou a noite e vi as ondas estourando na pedra, esqueci o nadador, ah, eu amava o mar, amava-o acima de tudo, podia acontecer o que fosse e eu continuaria a amá-lo com um amor que seria uma condenação se nele não houvesse alegria. Que importava os nadadores que iam e vinham? Ele continuava. Cruzei as mãos. Seja feita Vossa vontade, seja feita Vossa vontade….”

É preciso dizer que esse é um romance, mais do que qualquer outro da obra lygiana, marcado explicitamente pelo catolicismo. Tivemos uma plêiade de escritores de estridente obsessão com os temas da culpa, pecado, transgressão e degradação. De Lúcio Cardoso ao primeiro Vinícius de Moraes, de Octávio de Faria a Otto Lara Rezende, não faltaram católicos expiando e gozando seus tormentos  em nossa ficção. No entanto, sem alarde e muito cruamente, a autora de Verão no Aquário vai mais longe e mais fundo do que qualquer um deles, com a agudeza adicional de mostrar a formação de uma mulher (e sob a ótica feminina) em meio a todo esse contexto moralista (de angústia e penitência) e, ao fim e ao cabo, bem machista (quantos Mauriacs tupiniquins não se debruçaram sobre suas Thérèses Desqueyroux locais).

E ainda, como sombra a se esgueirar pelo vidro do aquário, o clima político ameaçador: “Tem lido os jornais? Já está engrossando por aí uma revolução para derrubar o presidente, coisa de militar, compreende? Me dá depressa a fórmula, impedir uma outra ditadura, hem? Posso escrever às chamadas cúpulas políticas meus bilhetinhos de protesto, me enfiar numa armadura e ir à luta — é isso que você espera de mim?” Alguns personagens que frequentam o romance de Lygia conhecerão pouco depois alguns lugares bem mais abafados do que o aquário da burguesia enclausurada em seus valores de fachada: os porões do DOI-CODI.

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ANEXO- TRECHOS SELECIONADOS:

“Há alguma santa com o nome de Raíza? Perguntei e Dionísia hesitou: Que eu saiba, nenhuma. Raíza era o nome de sua tia avó, disse-me ela e eu tive um certo desaponto porque me parecia mais fácil atingir a santidade com um homônimo no céu.

    E agora ali estava eu em meio das pedras e das velas que pareciam sempre as mesmas. O leve torpor que senti também era igual ao que me vinha quando assistia à primeira missa do dia. Quis rezar mas as orações estavam rotas, esgarçadas. Advogada nossa, murmurei e prossegui repetindo, advogada nossa, advogada nossa

   Pensei em minha mãe. Lá devia estar ela na sua sala, tão bem-penteada, tão bem-composta que parecia recear algum fotógrafo invisível, pronto para o flagrante do descuido, caso se descuidasse. Advogada nossa, ajudai-a! pedi colhendo com a unha do polegar duas gotas de cera que escorriam da vela mais próxima. E pensei em André com suas unhas roídas e batina esfarrapada, pregando na Indonésia, tinha que ser na Indonésia, tudo bem difícil para que ele sofresse ainda mais na sua punitiva vida. Havia os padres tranquilos e os padres aflitos, ele seria sempre aflitíssimo, debatendo-se como um homem atirado ao mar.

     Como aquele homem junto das rochas. Vimos tudo e não pudemos fazer nada a não ser gritar por uma corda. Mas não havia nenhuma corda em redor. Ele sentara-se para tomar banho de espuma das ondas que se chocavam na pedra, quando um vagalhão mais violento o levou para o mar alto. Pusera-se então a nadar, ele nadava com a segurança de um matemático expondo um teorema. Nem perdera os óculos, o que era extraordinário: um jovem de óculos tentando vencer pela lógica das braçadas a ilogicidade das ondas que o levavam até próximo das  pedras para puxá-lo novamente assim que ele chegasse a tocar nelas. Voltava nadando, a argumentar com os longos braços que se estendiam como réguas de cálculo, pronto, agora vai conseguir! eu pensava. Mas nova onda formava-se maliciosamente e arrastava-o para longe. Até que o jogo cansou o nadador e o mar. Num dos seus retornos, em meio do caminho ele ergueu os braços e ficou se debatendo, numa fração de segundos ficou se debatendo sem esperança e sem os óculos. Depois, só ficou o mar e o grito do pescador que chegou correndo com um rolo de corda embaixo do braço (…) Nessa mesma noite, voltei às pedras. O luar prateava tudo. Pensei no afogado da manhã e quis odiar o mar mas ele estava tão suave assim banhado de lua. Disse adeus ao afogado. Ele já se desintegrava como um naco de miolo de pão, só o mar era eterno.

   Colhi na unha uma gota de cera que escorreu da vela, não, não era um desconhecido que se debatia na água, era André, tão difícil a pedra, o equilíbrio, só minha mãe tinha o rolo de corda, advogada nossa, ajudai-o!…

    Concentrei-me na oração sem oração, só pensamento ardendo com aquela chama. Fechei os olhos: ajudai a ela para que os que dependem da sua força seja ajudados também, eu, Marfa, André, tio Samuel, tia Graciana, Dionísia… A frágil família. Tinha ainda o aquário com os peixes nadando em círculo, amigos e inimigos condenados à mesma água…”

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[1] Não resisto a citar outro belo momento entre as duas “antagonistas”:

“E pensando em ir para o meu quarto achei-me defronte do escritório da minha mãe. A porta estava entreaberta.

__ Estou interrompendo?

     Ela pousou as mãos no teclado da máquina. Tirou os óculos.

__ Não, não está interrompendo… Quer uma xícara de chá?

     Comecei a rir. E inclinei-me para cheirar o solitário botão de rosa espetado no vaso.

__ Há bandejas de chá em todos os cantos desta casa, acho que nossa família tem raízes no Oriente. É ver a China.

      Ela serviu-se, imperturbável. Havia duas xícaras na mesa, naturalmente Dionísia se esquecera de que André estava ausente.

__ E então, Raíza? Quais são as novidades?

__ Faz tempo que não acontece nada, mamãe, a não ser este calor… Mordisquei uma torrada. Mas sabe, só mesmo nesse aspecto vocês duas se parecem, quero dizer, titia e você. Acho que é o único traço familiar entre ambas: um bule de chá. E também essa preferência pelas cores tímidas, vocês só usam o rosa, o lilás, o azul-claro, cores assim. Titia está cortando um vestido cor de mel…

    Ela encarou-me. Usava uma blusa de percal com delicadas ramagens num fundo verde-água. Os cabelos presos. O rosto liso, limpo. Que beleza era aquela que parecia vir de dentro, tão mansa? Grave. Era incrível como enfrentava a claridade perigosa de um dia assim.”

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[2] Ao pensar na amizade entre Lygia-Hilda e na estatura das duas enquanto escritoras, acho-as similares ao que acontecia entre Thomas Mann e Hermann Hesse. Enquanto este último era objeto de culto pessoal (como Hilda), para além de seus textos—havia todo o lado místico, de inquietação espiritual— Mann, mesmo quando respeitado como escritor, era objeto de certa reserva por seu apego ao formalismo (no sentido social da palavra, não literário), ao “decoro” (como seu personagem Thomas Buddenbrook e Patrícia, mãe de Raíza), como Lygia. E ambos sempre deploraram a tentativa de se colocar um contra o outro (o que não impede de modo nenhum uma, digamos, rivalidade literária “do bem”), explorando essas polaridades maniqueístas.

Talvez o respeito mais do que a admiração apaixonada que Lygia suscita, de um modo geral (como Mann, e curiosamente sou apaixonado pela obra dos dois), aconteça porque ela não se transformou num mito como Clarice Lispector, e em menor medida, a própria Hilda (o que eu considero péssimo para a apreensão das qualidades das duas como grandes escritoras que foram). Na minha história pessoal mesmo posso recordar de, no início dos anos 1980, conviver com um grupo de leitores meus amigos para quem Clarice era “a” escritora, uma ciranda de pedra onde não haveria lugar para uma Lygia Fagundes Telles (brincavam com um de seus títulos, “os mistérios de Lygia que são nenhuns”). Para o bem ou para o mal, sem desdenhar nunca dos desafios da obra clariceana (apesar de me irritar com seus “seguidores”), cada vez mais descobri os seguramente muitos mistérios lygeanos, além-cerimônias do chá e outras práticas recônditas e decorosas.

Quanto a Verão no Aquário, foi uma história um pouco demorada. Conhecia sua história e algumas passagens longas, por causa do volume dedicado a Lygia em LITERATURA COMENTADA (1980), mas só o li integralmente (justamente na edição da Nova Fronteira cuja foto aparece abaixo), após me impressionar (e com isso voltar a ler seus textos mais intensamente) com As horas nuas (que tem uma parte final discutível, porém na sua maior parte é um romance poderoso).

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19/04/2013

O TEATRO DA INOCÊNCIA

DEBAIXO DA LUPA DE LYGIA FAGUNDES TELLES

para Nilton Resende

No centro de A noite escura e mais eu, há uma história chamada “O segredo”, na qual a narradora, uma menininha,  espia pela janela a casa onde ficam as prostitutas. Apanhada no ato, explica (mas é  mentira) que veio atrás da bola que caiu no quintal delas. Elas fazem com que entre, a menina observa tudo tão intensamente que é como se o leitor estivesse ali, e, ao ser informada de que está falando com a filha do delegado da cidade, uma das prostitutas lhe pede para guardar segredo. Mais ainda, ela ensina a menina que os segredos são necessários, que eles fazem parte da vida. Portanto, a visita inesperada funciona como um rito de passagem, onde há o aprendizado da duplicidade, como se os mundos (o decente e o “sórdido”) fossem nitidamente separados, num “teatro da inocência” que é sempre desmascarado com precisão pela grande Lygia Fagundes Telles.

Publicado originalmente em 1995 (pela Nova Fronteira), A noite escura e mais eu agora é reeditado pela Companhia das Letras.  Das coletâneas da autora  é mais coesa, mais amarrada, tanto porque os contos foram pensados para pertencer a essa reunião (muitas vezes, suas coletâneas são rearranjos de contos de outras), e não há nenhum que lhe dê o belo título (tirado de um poema de Cecília Meireles), como porque até a ordenação das nove histórias parece ter obedecido a um propósito férreo, seguindo um ritmo ternário, que propõe três conjuntos.

As três primeiras (“Dolly”; “Você não acha que esfriou?” e “O crachá nos dentes”) são histórias em que os protagonistas, através do acaso, da curiosidade perversa ou de uma brecha fantástica no cotidiano, têm acesso a uma situação passional ou violenta: a moça estudiosa (que lembra a Lorena de As meninas), louca para sair da pensão onde mora e que  atende a um anúncio para dividir casa com uma aspirante a starlet,  porém fica assustada com esse território estranho, mas que esquece seus cadernos ali, e na volta, encontra  a outra   assassinada; a esposa que resolve ter um caso com um amigo que é apaixonado pelo marido; o cachorro de circo (que, como punição pelos erros e desatenções, tem as patas queimadas por cigarros) que vive por algum tempo a vida humana.

As do meio ((“Boa noite, Maria”; “O segredo” e “Papoulas em feltro negro”) mostram imagens da Mulher em idades diferentes, e confrontada com as “inconveniências” da condição humana como o envelhecimento, a morte, o sexo, para os quais se recomenda restaurações, decoro ou hipocrisia: a sexagenária que teme a decrepitude e que encontra um estranho que pode ser o “bom anjo”, aplicando-lhe a eutanásia no momento certo; a menina que, como já citado, tem um vislumbre da prostituição; e, por fim, a mulher que, chamada para uma reunião em torno de uma professora que já está com um “pé na cova” relembra sua meninice e seus embates com a mesma professora, e que deseja explicações, só conseguindo obter da moribunda uma imagem dissonante da que tinha de si mesma (diga-se de passagem, na minha opinião, esse conto, “Papoulas em feltro negro” talvez seja o melhor da seleção).

No último conjunto (“A rosa verde”; “”Uma branca sombra pálida” e “Anão de jardim”), temos testemunhas impotentes e desesperadas, deixadas de lado, nos bastidores do “teatro da inocência”: a menina que perdeu os pais e que, vivendo na fazenda dos tios, observa o universo dos insetos e seres minúsculos com uma lupa, e descobre que “aumentados eles eram horríveis por se parecerem demais conosco, com suas crueldades e mesquinharias (“debaixo da lente era medonho demais); a mãe que assistia calada a o desabrochar da paixão entre a filha e uma amiga e que ao confrontá-la, causa o seu suicídio e que, nas visitas ao túmulo entra numa espécie de disputa de flores (ela leva brancas, a outra vermelhas) com a amiga da filha, disputa que no entanto é uma maneira de mantê-la viva; e, por fim, o anão de pedra que acompanha os acontecimentos terríveis da casa onde foi instalado (o sujeito que o comprou, por achá-lo parecido com o avô, com um ar de “juiz”, é assassinado pela esposa), e que espera a demolição da propriedade o alcançar para mudar de condição, pois (de uma forma que deixa o leitor comovido) ele sabe que tem uma alma, uma fome de deus, algo que persistirá mesmo quando a sua forma for feita em pedaços. Ele sabe que aqui, debaixo da lente, tudo é medonho demais, mas quer existir, como todos nós.

Eu  gostei muito de “Anão de jardim” em 1995, quando  A noite escura e mais eu  apareceu. Agora o achei ainda mais bonito do que da primeira vez, assim como o livro inteiro.

(resenha publicada originalmente em “A Tribuna”  de Santos, em 15 de dezembro de 2009)

ADENDO

O leitor que porventura queira mais de Lygia Fagundes Telles encontrará aqui no blog:

https://armonte.wordpress.com/2013/04/19/historias-de-desencontro-entre-lygia-fagundes-telles-e-seus-contos/

A respeito de A noite escura e mais eu, só acrescentaria algumas coisas, digamos, “negativas” (uma palavra meio forte para uma coletânea tão boa), e que me fizeram da primeira vem em que li o livro achar que a prosa de Lygia estava “estática”, em ponto morto (e por isso gostei tanto de Invenção e Memória, que veio cinco anos depois cheio de garra e verve):

__ há uma certa aura “recôndita” e passadista em alguns contos que caem muito bem nas coletâneas mais antigas tipo Antes do baile verde ou em romances como  Ciranda de Pedra, devido à passagem do tempo, mas que  parecem desconfortavelmente antiquada e anacrônica para textos publicados em 95: é o caso do casal de “Você não acha que esfriou?” ouvindo “Carmen” e Mozart, por exemplo (mas há outros exemplos, como o violoncelo de “Anão de jardim”, etc etc). Também as referências dos personagens mais velhos são muito antiquadas, até mesmo para a sua idade…
        Além disso, há aspectos “mundanos” no conto “Boa noite, Maria” que não me agradaram novamente nessa releitura: por que colocar, por exemplo, que a protagonista mora num triplex, esse tipo de informação parece de best seller, parece uma coisa que o Rubem Fonseca, na sua caricaturização de ricos e novos ricos colocaria. Aliás, todo o lado “mulher de negócios” parece mais uma informação telenovelesca e irreal do que um dado importante no texto, e para mim fica como uma nota dissonante.
         De um modo geral, além de “Papoulas…”, os contos de que mais gostei foram “A rosa verde”, “Anão de jardim” (apesar das referências antiquadas), “O segredo” e “Dolly”.
      Acho inferiores por causa dos motivos alegados acima, embora ainda assim muito bom “Boa noite, Maria” e “Você não acha que esfriou?”
       Os que eu gosto menos são “Uma branca sombra pálida” (não gosto da conversinha com a borboleta, e também porque me parece que teria mais força e convenceria mais  se tivesse sido escrito entre os anos 40 e 60; aliás, a preocupação da mãe com o que acontece no quarto entre a filha e a amiga me lembrou um filme de 1973, que já era antiquado na época: Lembranças, de Gilbert Cates, com Joanne Woodward; de qualquer forma, apesar desses senões, foi desse texto que tirei o título “O teatro da inocência“) e “O crachá nos dentes” (que, para mim, é um projeto de conto mais do que um propriamente realizado).
         Finalizando, aproveito aqui para evocar minha inesquecível gatinha Donguinha, que  peguei, filhotinha, abandonada no estacionamento do Pão de Açúcar, à época da minha primeira leitura de A noite escura e mais eu (no final de 95) e que morreu agora nessa época da releitura.

Inês não é morta, muito pelo contrário

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(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 13 de junho de 2000)

Embora tenha gostado da coletânea  A noite escura mais eu, de 1995, pensei comigo mesmo: Lygia Fagundes Telles atingiu o ponto que Alberto Moravia intitulava de “grande escritor estático”, aquele que é incapaz de renovar sua fórmula, mesmo que a requente dignamente, até com maestria em alguns instantes.

Pois foi um prazer encontrar em Invenção e Memória, cinco anos depois, uma vibrante refutação da idéia empoeirada de uma grande escritora estática. Entre outras coisas, se trata de um livro charmoso, jovial, no qual a verve encontra um tom preciso e econômico para se expressar. Nos seus 15 textos, só três me desagradaram, “A dança com o anjo”, “A chave na porta” e “Potyra”. Todos os três com um pé no fantástico, o que pode indicar uma implicância minha, pois creio que não é bem no fantástico que se encontra o melhor de Lygia, embora ela utilize muitas vezes pitadas do gênero (e são as pitadas a sua peculiaridade, não o exercício do gênero). Para outros leitores, inclusive a garotada que mantém a vitalidade da ficção fantástica, pode ser que eles funcionem perfeitamente. “A dança com o anjo” tem a situação engraçada do Dia do Pindura (que já existia nos tempos de estudante da autora), mas o tal anjo não diz a que veio; “A chave na porta” narra o encontro com um colega de faculdade, 40 anos depois, só que ele aparentemente já morreu. Nesse encontro a narradora se sente “com a mesma idade daquela estudante da academia. Outra vez inteira? Inteira. E também ele com o seu eterno carro, meu Deus! Na noite escura tudo parecia ainda igual ou quase. Ou quase, pensei ao ouvir sua voz um tanto enfraquecida, rareando como se viesse de alguma pilha gasta. Mas resistindo”. Há algo de fundamentalmente forçado e artificioso na situação, algo muito “arrumadinho” para se enquadrar bem na instigação fantástica. Talvez porque há um sub-tom meio edificante, diluindo o clima elegíaco e pretensamente comovente deixado pelo “encontro/desencontro”; e “Potyra” é uma fantasia meio descabida, que parece destoar completamente do conjunto do livro. Parece Todos os homens são mortais, de Simone de Beauvoir, com um piteco de O perfume, de Patrick Süskind.

O resto, porém, é luxo só. Nesses doze textos, apenas dois contos (cruéis) não envolvem a autora-narradora como personagem, “Se és capaz” e “História de um passarinho”. Os outros dividem-se, grosso modo, em dois grandes grupos:

1) aqueles que exploram a trajetória da vida como memória ou como invenção, seguindo o famoso mote de Mark Twain: “Quando eu era mais jovem podia lembrar-me de qualquer coisa, tivesse ou não acontecido; mas agora as minhas faculdades estão decaindo e em breve só serei capaz de me lembrar das coisas que nunca aconteceram”. Diga-se de passagem, haverá melhor definição do que seja a ficção do que o título da coletânea de Lygia Fagundes Telles?

Nessa vertente, encontramos textos sobre a velhice, sobre a maturidade (acho extraordinário “Rua Sabará, 400”), sobre a juventude (aqui o destaque vai para o igualmente notável “Nada de novo na frente ocidental”), sobre a infância , fase que apresenta primorosos relatos, por exemplo, “Que se chama solidão” e “Cinema Gato Preto”; neles, encontramos o fabuloso uso que Lygia faz dos ditos populares (um dos traços da sua obra mais apreciáveis): “Sua tia vive falando que agora é tarde porque Inês é morta, quem é essa tal de Inês?Sacudi a cabeça, não sabia. Você é burra, Maricota resmungou… Não sei da Inês mas sei do seu namorado, tive vontade de responder”; e, mais tarde, após o evento central do texto: “Tia Laura demorou para falar: Agora é tarde! Mas não tocou na Inês”(“Que se chama solidão”); “Segundo a minha mãe, Matilde já tinha dobrado o Cabo da Boa Esperança e embora eu não soubesse que cabo era esse, desconfiava que não poderia ser boa coisa” (“Cinema Gato Preto”);

2) aquelas que parecem crônicas e que trazem um olhar sobre o  presente da  autora-narradora. “O Cristo da Bahia” é um texto bonito, mas eu ainda prefiro os mortíferos “O menino e o velho” e “Dia de dizer Não”: “Estou ótima! Posso até declarar aos quatro ventos, quais são os quatro ventos? Esqueci. E principalmente “Que número, faz favor?” Este último tem uma graça especial. Durante anos impliquei com os pronunciamentos públicos, palestras e participações em simpósios de Lygia, que sempre repetia os mesmos chavões, “grande escritora estática”, empoeirada. Agora ela mesma varre a poeira e vem brincar com essas suas aparições de grande dama, de forma mordaz e brilhante.

Os textos dessa vertente me lembram a evolução da obra de Truman Capote. Há um curioso paralelo entre os dois: Antes do baile verde poderia fazer companhia ao primeiro Capote, seus primeiros contos e romances; Invenção e Memória me lembra as vinhetas cotidianas que Capote desenvolveu (narrando fatos corriqueiros com a perícia da ficção) no genial Música para camaleões (para mim, um dos livros fundamentais do século XX) e certamente não passa vergonha na comparação: é de certa forma um mesmo emparedamento na vida de escritor consagrado, sem novos temas, mas fazendo do próprio cotidiano uma ponte entre a memória e a invenção. Nada de meta-ficção, mas o escritor é o personagem.

Como ponto de ligação das duas vertentes há uma lembrança de infância que se desdobra na dolorosa anedota de um galo suicida em “Suicídio na granja”. É impossível descrever a emoção que esse texto me causou, só posso dizer que é um exemplo definitivo do dom especial da grande (e nada estática) autora paulista para lidar com os bichos. Não é à toa que ela criou o inesquecível gato Rahul em As horas nuas (1989).

Para terminar por hoje, algo não tão desolador, mas um trecho especialmente lindo de “Rua Sabará, 400”: “Abri a janela. Mas o céu está desabando de estrelas, eu disse baixinho. Como se tivesse me entendido, a Pum-Gata aproximou-se com um miado amoroso, subiu no espaldar da poltrona verde e esfregou a cabeça acariciante no meu braço. Em seguida, com seu ar bem comportado ela sentou-se no topo da almofada e ficou olhando a noite”.

Um clássico do romance brasileiro: CIRANDA DE PEDRA

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https://armonte.wordpress.com/2013/04/19/historias-de-desencontro-entre-lygia-fagundes-telles-e-seus-contos/

(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 07 de setembro de 2004, em função do cinquentenário do romance)

Lygia Fagundes Telles, exímia contista (basta ler Antes do baile verde), estreou há exatamente cinquenta anos na área do romance com CIRANDA DE PEDRA. Até agora publicou mais três, todos excelentes (Verão no aquário; As meninas; As horas nuas), sem que isso tire o status de clássico desse seu primeiro trabalho.

Há um aspecto relativamente envelhecido, ou melhor, datado, em CIRANDA DE PEDRA, aquele em que o olhar de Virgínia, filha bastarda de uma mãe que abandonou o lar para viver com o homem amado e que, entretanto, acaba vivendo com o falso pai, serve como instrumento de desmascaramento da hipocrisia e da podridão da sociedade burguesa.

Há muito tempo os alicerces da burguesia já foram carcomidos. Por isso, não será nenhuma surpresa para o leitor de hoje descobrir que os jovens que encantavam Virgínia e alimentavam seu sentimento de inferioridade e exclusão, na infância, revelar-se-ão ídolos com pés de barro: Conrado, seu amor “infantil” e um tipo recorrente na obra da grande escritora paulista, é impotente; a virtuosa Bruna, uma das suas meio-irmãs, e quem mais condenava a atitude da mãe, casa-se com toda a pompa e circunstância, mas mantém um caso com um tenista, Rogério, o qual fica atraído pela cinderelesca Virgínia que ressurge após anos de internato, assim como o marido de Bruna, Afonso; Otávia, a outra irmã, é quase um símbolo do descaso e da desfaçatez; Letícia, a irmã de Conrado, enveredou pelo lesbianismo e também se interessa pela heroína, a qual, dessa forma, é insistentemente convidada a entrar na “estranha ciranda! Eram solidários e no entanto se traíam. Eram amigos e contudo se detestavam”.

Esse lado mais epidérmico, mais condicionado pela expectativa de um enredo “ousado”, é superado totalmente pela brilhante construção do foco narrativo. CIRANDA DE PEDRA é uma das obras mais bem elaboradas e talentosas, do ponto de vista técnico, da nossa ficção, e sem o aparato laborioso e afetado de autores que se esforçaram para alcançar tal ‘sofisticação”, como José Geraldo Vieira, Lúcio Cardoso ou Octavio de Faria.

Lygia Fagundes Telles pratica o chamado discurso indireto livre, colando o discurso do narrador à percepção e linguagem da sua protagonista, de forma a garantir adesão total do leitor ao seu processo de decifração dos códigos que regem a ciranda desse grupo de familiares e amigos. Mas ela vai mais além: praticamente em todos os capítulos do romance, ao mesmo tempo em que acontece a cena presente, emergem reminiscências do passado, intuições do futuro, fantasias, de maneira natural e  quase imperceptível, fazendo jus ao universo sorrateiro e em surdina que retrata.

Cada momento se torna, dessa forma, riquíssimo e ampliado. E também perfeitamente adequado a uma personagem que diz: “…sinto os meus mortos em redor. Eles continuam, embora nenhuma força consiga governá-los. Mortos e vivos, estão todos por aí, completamente soltos. E a confusão é geral”.

A TAPEÇARIA E SUAS DIMENSÕES

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“O problema do heroísmo é o problema central da vida humana, que penetra mais a fundo na nossa natureza do que qualquer outra coisa, por basear-se no narcisismo orgânico e na necessidade de autoestima (…) A sociedade propriamente dita é um sistema de heroísmo codificado, o que confirma ser a sociedade em toda parte um mito vivo do significado da vida humana, uma criação desafiadora de sentido.” (Ernest Becker, A negação da morte)

“Houvera homens assim, já houvera, sim, homens cuja alma passara a existir em atos…” (Clarice Lispector, A maçã no escuro)

“Não sei, mas os mitos… Devia morrer cedo, os mitos. Antes da queda dos cabelos, dos dentes, das carnes…”(Lygia Fagundes Telles, As horas nuas)

INTRODUÇÃO

Como a memória é intuída, pensada e interiorizada no discurso narrativo de AS HORAS NUAS(1989)? Neste quarto romance de Lygia Fagundes Telles  (após Ciranda de Pedra, 1954; Verão no aquário, 1963; As meninas, 1973) a invocação da memória se dá em dois níveis da narrativa (os quais, no entanto, não abarcam todo o discurso): o de Rosa Ambrósio, atriz autorretratada com “decadente” (“Só se fala na decadência dos usos, decadência dos costumes, está na moda a decadência. Sou uma artista decadente, logo, estou na moda”); e o de Rahul, seu gato (“um gato que  sonha com o homem assim como o homem sonha com Deus”). Ambos vivem enclausurados num luxuoso apartamento em São Paulo.

No último capítulo de Mimesis, Erich Auerbach analisa a importância da apreensão temporal para o narrador do século XX. Tal apreensão toma a forma sugerida pelas considerações de Kant, em Crítica da Razão Pura: “O Tempo nada mais é senão a forma do sentido interno, isto é, do intuir nós mesmos e nosso sentido interno. Com efeito, o Tempo não pode ser uma determinação de fenômenos externos; não pertence a nenhuma figura ou posição, etc, determinando, ao contrário, a relação das representações em nosso estado interno”.

Ou, como coloca poeticamente uma narradora do século XX contemporânea de Lygia Fagundes Telles, Clarice Lispector (em A maçã no escuro, 1961): “Quantos minutos tinham se passado? Tinha-se passado a espécie de minutos em que o pensamento é o tempo”.

1-A MEDUSA (Rosa e a memória);

Entro no quarto escuro, não acendo a luz, quero o escuro… eu queria ficar assim quietinha com a minha garrafa, ô! delícia, beber sem testemunhas, algodoada no chão feito o astronauta no espaço, a nave desligada, tudo desligado. O que já é uma proeza num planeta habitado por gente visível demais, gente tão solicitante, olha meu cabelo! olha meu o meu sapato! Olha aqui o meu rabo!”

O início de AS HORAS NUAS leva a muitas direções.

A primeira é a que se refere ao desejo de escuridão e de quietude que remete ao aspecto iniciático das trevas (por isso grifei o trecho).

A memória e a iniciação solitária ocupam importante função em diversas tradições místico-poéticas, como a dos bardos celtas. Segundo Jean-Pierre Vernant (em Mito e pensamento entre os gregos), um dos exercícios do noviço consistia em ficar numa cela baixa, sem janelas, em total obscuridade, compondo e memorizando, no silêncio e na quietude. O iniciado era versado na prática de metros e artifícios poéticos, mas também em práticas de magia e adivinhação, em história, genealogia e topografia. Os aedos da Antiguidade, por sua vez, entrelaçavam memória e vidência. Poetar era ver, graças à inspiração das Musas e ao dom concedido pela mãe delas, Mnemosyne, que podia neutralizar a ação do irmão, Cronos.

Inspiração (quase possessão) e ordenação, eis a  dinâmica iniciática: “As diversas tradições lendárias sã codificadas, a matéria das narrativas míticas é organizada, é classificada (…0 a este ordenamento do mundo religioso está intimamente associado o esforço do poeta para determinar as ´origens´”.

Para Mircea Eliade, o mito também é relacionado às origens. Lemos em Mito e realidade: “…Os mitos, efetivamente, narram não apenas a origem do Mundo, dos animais, das plantas e do homem, mas também de todos os acontecimentos primordiais em consequência dos quais o homem se converteu no que é hoje: um ser mortal, sexuado, organizado em sociedade, obrigado a trabalhar para viver e trabalhando de acordo com determinados códigos. Se o mundo existe, se o homem existe, é porque os Entes sobrenaturais desenvolveram uma atitude criadora ´no princípio´, mas, após a Cosmogonia e a criação do homem ocorreram outros eventos e o homem, ´tal qual é hoje´, é resultado direto daqueles eventos míticos”.

Origem coletiva, origem da espécie, ou como quer a interpretação de Lévi-Strauss para o mito de Édipo, tensão entre negação/afirmação de que o homem é oriundo da terra, o que descortina a função psicológica do mito. A tragédia do clã edipiano concentrar-se-ia basicamente nessa tensão e, derivada dela, a negação/afirmação dos laços de parentesco, a primeira estrutura social que o indivíduo normalmente conhece, o primeiro tempo “primordial” de cada um.

Origem coletiva origem do grupo origem individual, origem do “eu”. Os leitores dos três romances anteriores de Lygia Fagundes Telles sabem como os laços de parentesco e os acontecimentos de um tempo “primordial” na infância/adolescência são avassaladores para as protagonistas.

1,a- Idade de Ferro

“…Invisível. O que já é uma proeza num planeta habitado por gente visível demais, gente tão solicitante, olha meu cabelo! olha o meu sapato! olha aqui o meu rabo!”

   É lícito concluir que a função social do poeta, dentro da tradição mítica, é reportar-se às origens, o único tempo que conta de fato, e talvez nem seja muito correto falar em tempo onde inexiste a ação de Cronos,  ou seja, uma Idade de Ouro. O tempo primordial é também o paraíso.

Já o mundo contemporâneo, enredado em Cronos, representa efemeridade, decadência, envelhecimento, corrupção e mesmo destruição (em Os trabalhos e os dias, Hesíodo o denomina Idade de Ferro).

O trecho citado do início de AS HORAS NUAS nos lança nessa derivação do pensamento mítico: os tempos atuais vistos como degradação (“é tarde no planeta” é um dos motes do romance) e, dentro do discurso da chamada pós-modernidade, a própria abordagem mítica degradada, por tomar aspecto parodístico e irônico, uma vez que Rosa procura a quietude e a solidão das trevas como os iniciados, mas para alcançar a “leveza” do astronauta no espaço, efeito da bebedeira (contudo,  uma das forma de evocar o deus Dionísio não é a embriaguez, o sair de si?).

É um lugar-comum afirmar que a degradação em nossa época, além do fato de estarmos enredados como nunca no tempo cronológico, se deve à contradição entre um culto da democracia e dos valores do liberalismo, e o sentimento de encapsulamento e empobrecimento por parte do invidúo. À degradação da civilização corresponde um estreitamento da imaginação:

“…sou uma bêbada podre num mundo podre, você sabe, o mundo apodreceu completamente. Até o mar, lembra? também talhou. As pessoas chafurdam no lixo e parecem contentes, não sabem o lixo aqui fora, o lixo no particular, pisam nele e não se importam. Os homens da limpeza não dão mais conta, ou entraram em greve, a greve é geral.

   A rua suja, o teatro sujo. A televisão. Começaram a usar crianças nos anúncios de máquinas, sorvetes, refrigerantes. As menininhas fazendo gestos e esgares sensuais de putas. Não tenho nada contra as putas mas não é um exagero tanta lição de putaria?”

O que permite entrecruzar os dois pontos abordados, desde que Rosa entrou no quarto (não saímos disso ainda), núcleo gerador da narrativa. Como os neófitos celtas ela precisa da quietude e da escuridão para atingir “algo” (mesmo através da degradante bebedeira) que a estridência e excessiva iluminação contemporâneas não permitem, principalmente a uma atriz, o ser por excelência sob outros olhares, totalmente em exposição. E, é claro, isso é importante para ela, pois é justamente o que gera o discurso e revela-se um ponto doloroso bem mais tarde, quando resolve sair de casa e passear pela Praça da República:

“…acendo um cigarro, até agora nenhum assaltante, me esqueceram em todos os sentidos. E daí? Estou livre do flagelo de sair de moda, de ficar um dia como esses pobrezinhos que já saíram faz tempo e continuam em exposição, não virá aqui nenhum moço empunhando o microfone, seu nome? Idade?”

Os únicos que a abordarão na praça são os fantasmas do passado, que não deixam sua memória repousar, todos ligados àquele primeiro tempo “primordial”, no sentido de Lévi-Strauss. A memória, então, não é uma benção das Musas, mercê de exercícios constantes, e sim uma maldição, uma cruz (voltarei a isso). Pior ainda, é fragmentária, incapaz de formar um todo, de gerar uma visão totalizante e catalogante, enformar uma experiência, engendrar um aprendizado.

A incapacidade de o discurso de Rosa, imerso na Idade de Ferro, totalizar uma experiência talvez decorra do que Christopher Lasch caracteriza como minimal self (eu mínimo): o ego do homem contemporâneo, comprimido por incessantes analogias e profecias escatológicas,  e envolvido por uma sucessão ininterrupta de imagens e produtos que transformam o mundo das coisas num mundo de projeções e fantasias, já não pressupõe uma interioridade “segura” ou grandes ideais, resignando-se a vencer cada dia: “A trivialização da Crise, ao mesmo tempo que testemunha um difuso sentimento de perigo —uma percepção de que nada, sequer um simples detalhe doméstico, pode ser visto como garantido— também serve como estratégia de sobrevivência em si. Quando a impiedosa retórica da sobrevivência invade a vida cotidiana, ela intensifica e libera, simultaneamente, o terror do desastre”.

No seu estado de “minimalização”, Rosa é incapaz de uma cadeia de reminiscências que não seja um tecido narcisístico, espelhante e autoprotetor (como o tapete que colocaram no prédio inteiro porque ela tem mania de andar descalça pelos corredores), formado por lembranças e decepções amorosas (os três homens centrais em sua vida: Miguel, amor de adolescência; Gregório, o marido, intelectual acético, torturado pela ditadura; Diogo, o secretário-amante) e, sobretudo, a constatação do envelhecimento (lembrando que o mote “é tarde no planeta” projeta essa ideia de envelhecimento “degradado” para um plano geral).

Rosa sente a velhice como uma Medusa. Como se sabe, a figura mítica era sacerdotisa de Afrodite e admirada por sua beleza. Negligenciou, porém, seus deveres por amor a Poseidon e, como castigo, Afrodite transformou-a no ser monstruoso que se conhece da lenda e que morre pelas mãos do belo Perseu.

Após uma juventude de beleza, talento e sedução, Rosa amarga a velhice sem sabedoria ou serenidade (aqueles clichês do que é ser velho), renegando o corpo (“mania de banho, por que tanto banho se não tenho nenhum homem, não tenho ninguém”), renunciando aos pequenos rituais de rejuvenescimento testemunhados apenas pelo gato (“não sei por que fez isso na minha frente, isso que fez, tingir os pelos. Fui obrigado a ver tudo, eu. Valho menos do que a torneira. Ou do que o espelho sem memória.[1] O despudor das pessoas diante dos bichos…”).

Rosa amarga principalmente a perda de seu último elo com Eros (e sem ter condições de se voltar para o Ágape), com seu Perseu (Diogo), cuja partida foi como o primeiro convite a se deixar levar por Tânatos (“… sumiu tudo. Fiquei sozinha para me executar, sou meu carrasco. Pior do que um estranho porque já me amei, pum! disparo no coração. Caio redondamente morta”; o tom “engraçadinho” e autoparodístico não eclipsa a pulsão).

Como tudo o mais, o próprio Perseu do romance parece degradado, com sua posição meio de gigolô, com seu jazz e seu cinismo, incapaz de sentimentos verdadeiros e de ferimentos verdadeiros (o que parece ser uma característica central do pós-moderno: os sentimentos parecem todos de “referência a”, as analogias são imediatas, demasiado imediatas e, por vezes, até antecipam os sentimentos e substituem/simulam a experiência):

[Diogo] “…disse que teve de lavar latrinas e abominou esse tempo em que lavou as latrinas de um batalhão inteiro, tinha dezenas delas. Não contestei na hora porque minhas reações são lentas mas fiquei pensando onde ele tinha lavado essas latrinas se nasceu depois da guerra. E só na guerra circulava o sargento complexado que se vingava dos recrutas bonitões mandando que eles fizessem os serviços mais sujos. Fantasioso o meu menino, meu menino Diogo, não tem importância, eu também sou fantasiosa.

    Não é difícil perceber, nessa citação, as analogias do eu mínimo, a transposição  para tempos diversos e permutáveis que a ironia/pastiche do pós-moderno radicaliza. Como um bovarismo plural, as pessoas se evadem de uma realidade pobre e árida, fundando, elas mesmas, mesmo que numa gritante autoconsciência, seus “mitemas” (na terminologia de Lévi-Strauss), os quais nunca se sustentam por muito tempo. Outro exemplo é a descrição que Rosa faz da atitude do marido para com ela: “…ou se calava simplesmente porque estava se lixando? Um Rhett Butler já cheio de tudo e respondendo à Scarlet O´Hara, Estou cagando para o que você vai fazer”.

O outro lado da moeda, que complementa esse quadro: a admiração pela pureza, pela retidão, cristalizada na reverência de Diogo, Rahul e Dionísia (a empregada—aliás, a empregada de Verão no aquário também tinha esse nome e apresenta características similares, bem como a heroína, Raíza, com relação a Rosa) por Gregório, que se transforma numa espécie de inveja/ressentimente por parte da esposa, conforme constatamos em vários trechos:

“Tão estranho isso, o Gregório não acreditava em Deus, mas parecia completamente impregnado Dele, eu o encarava às vezes e de repente sentia que Deus estava ali presente”;

“Ele esboçou o sorriso para dentro, odeio esse sorriso interior de sábio da montanha tendo que tratar com a formiguinha”;

“Se Gregório reapareceu assim luminoso, é porque era um ser luminoso”;

“Vejo Rahul se lambendo debaixo da mesa. Também ele achava o Gregório deslumbrante. E até a analista aí em cima. Encontravam-se poucas vezes mas ele tinha a virtude dos deuses, era silencioso. Dois silenciosos se encontrando e se despedindo —mas por que o silêncio dá esse prestígio?”[2]

Encontramos a mesma atitude disseminada em outras personagens de Lygia, bem nítida por exemplo em Verão no aquário, na relação entre Raíza, a narradora, e a mãe: “Ah! como me irritava aquelas expressões veladas de Sábio do Sião conversando com a formiguinha! A dama esquiva. Se um pintor fizesse nesse instante seu retrato, tinha de batizá-lo assim: A Dama Esquiva”.

Escondido ainda na memória, Miguel, o amor de juventude, cujas características parecem dividir-se entre Gregório e Diogo, e que seria o ser, talvez, mais autêntico do livro, incapaz de continuar a viver em Cronos, morrendo jovem, como sempre acontece com os escolhidos dos deuses, Miguel também aponta, precursoramente, a insuficiência da experiência “real” (embebida em Cronos e na Idade de Ferro) ao consumir cocaína ao ponto de morrer (supõe-se) de overdose, já nos anos 1940.

1.b. O banimento

As mortes de Miguel (overdose) e Gregório (suicídio) —é interessante destacar a recorrência do suicídio e das mortes “inesperadas” de jovens na obra da autora— nos levam novamente ao mito, mas dentro de uma clave secundária na economia do livro.

Na concepção da tragédia grega proposta por Vernant & Naquet (em Mythe et tragédie en Grèce ancienne), o que estavam em jogo era a moral da cidade (coro= cidadãos, arauto dos tempos de instituições sociais e jurídicas) questionando o protagonista, representante de clãs ligados aos tempos míticos e funcionando como elemento desestabilizador ou mesmo desagregador por conta de seu descomedimento (hybris), que o projeta, durante a ação, do plano humano para o plano mítico. O resultado é a destruição inevitável do herói devido ás necessidades da nova ordem social: “Dans le cadre nouveau du jeu tragique, le héros a donc cesse d´être un modele; Il est devenu, pour lui-même et pour les autres, um problème (…)… la matière véritable de la tragédie, c´est la pensée sociale propre à la cite (…) La tragédie, observe justament Walter Nestle, prend naissance quand on commence à regarder le mythe avec l´oeil du citoyen”.[3]

Em AS HORAS NUAS o descomedimento troca de sinal e desloca-se para o estado das coisas, o mundo em geral, na (des)ordem social da qual são banidas a ética humanista, a pureza, a quietude, a autenticidade, a vidência, o ascetismo. Tanto de forma explícita quanto de forma camuflada. Estamos na cultura do eu mínimo: “O sobrevivencialismo leva a uma desvalorização do heroísmo (…) Um sentimento crescente de que os heróis não sobrevivem inspira o desencanto com os códigos convencionais de masculinidade (…) Não é apenas a masculinidade que perdeu o seu valor de sobrevivência, no entanto, mas todo o conjunto de ideais supostamente antiquados de honra, desafio heroico das circunstâncias e autosuperação” (Christopher Lasch).

A narrativa de Rosa deixa claro o banimento na anedota do rio-assassino:”… me lembro agora de um caso tão estranho que me contou, o caso do rio-assassino que rejeitava uma certa espécie de peixes, não queria esse peixe em suas águas. E o pobre peixe se abraçando desesperadamente à água que o expulsava, que o cuspia para a terra”.

Já no início do romance tal banimento bifurca-se com o controle mais ou menos camuflado do comportamento “destoante”, quando Rosa age “inconvenientemente” (principalmente por não estar mais “na moda”):

“…imagine se aquele avião pousou, está claro que comecei a gritar, Estamos caindo! Por favor, minha senhora, fique calma, pediu a comissária de bordo me agarrando com seus dedinhos de ferro e fazendo aquela cara suave. Tenho ódio de comissária de bordo, todas fingidas, me larga! Já estava em prantos quando ela me entregou suavíssima nas mãos da amiguinha fotógrada, clique!clique! Pouso péssimo, pose pior ainda, clique! A atriz Rosa Ambrósio é carregada para fora do avião completamente embriagada. Primeira página. Ou segunda, enfim não interessa”.

2. O EUNUCO: Rahul e o Esquecimento

Se o labirinto de memória de Rosa Ambrósio é individual (embora ela tente desesperadamente adquirir o “sentimento do mundo”, seu inferno continua sendo narcísico, e sua memória um jogo de espelhos, um eterno retorno do Mesmo: “Lembrar. Esquecer e de repente voltam os esquecidos com tanta força”; “Estou repetindo?”; “Já disse tudo isso e estou repetindo”), Rahul, seu gato, escancara para o leitor a memória mítica, não aprisionada por Cronos, a memória que corresponde à Visão (ou vidência). Ele será, no romance, o mais próximo de Mnemosyne. Tão próximo, mas ao mesmo tempo tão fatalmente distante.

Mircea Eliade vem lembrar que há uma diferença qualitativa entre Memória e recordação:”A recordação é para aqueles que esqueceram, escreveu Plotine. A doutrina é platônica. ´Para aqueles que esqueceram, a rememoração é uma virtude; mas os perfeitos não perdem jamais a visão da verdade e não têm necessidade de remeorar´(Platão). Uma memória perfeita é superior, portanto, à faculdade de rememorar. De uma maneira ou de outra, a recordação implica em ´esquecimento´ e este, como vimos, equivale, na Índia, à ignorância, à escravidão e à morte. Encontramos uma situação similar na Grécia”.

A jornada de Rahul pelos labirintos da memória suprapessoal passa pela degradação da própria ideia de memória que complementa a sua condição: um cotidiano empobrecido até da liberação dos instintos (“Afundo o focinho nas raízes…ah, se pudesse avivar meu instinto amortecido, eu inteiro amortecido”). O enclausuramento da imaginação e da libido são o correspondente atualizado e “degradado” (no sentido de Northrop Frye e sua Anatomia da Crítica) do avesso de Mnemosyne no panteão grego: o Letes, o rio do esquecimento. Inicialmente, argumenta Eliade, o esquecimento era associado à morte (“A fonte de Letes, o ´esquecimento´, faz parte integrante do reino da morte. Os defuntos são aqueles que perderam a memória”). Essa associação evoluiu para a doutrina da transmigração (onde quem lembra tem o controle de sua “evolução”), que vai contaminar, por assim dizer, o objetivo da vidência que Mnemosyne proporciona:

“O importante é conhecer não mais o passado primordial, mas a série de existências pessoais anteriores. A função do Letes é invertida: suas águas não mais acolhem a alma que acaba de deixar o corpo, com o fim de fazê-la esquecer a existência terrestre; ao contrário, o Letes apaga a lembrança do mundo celeste na alma que volta à terra para reencarnar-se. O ´esquecimento´não simboliza mais a morte, mas o retorno à vida. A alma que teve a imprudência de beber da fonte de Letes reencarna-se e é novamente projetada no ciclo do vir-a-ser”.

Na alma e no discurso de Rahul confrontam-se as forças de Mnemosyne e Letes, da memória e do esquecimento, as forças da intuição totalizadora (vidência) e da fragmentação e encapsulamento (eu mínimo). Autoconsciente, suscetível, ele será testemunha de Rosa Ambrósio e da sua própria encarnação como gato domesticado, sendo ao mesmo tempo espectador de suas vidas anteriores. É um espectador degradado (voyeur), pois o ato de ver ofertado por Mnemosyne não o liberta das cadeias temporais. E se Rosa Ambrósio está crucificada na sua memória narcísica, Raul também não atinge o que Eliade denomina “memória primordial”, permanecendo na “memória histórica”, quer dizer biográfica (ainda que coletiva):

“Para os primeiros [os da “memória primordial”] o importante é o que se passou ab origine. São os eventos primordiais, nos quais não estiveram envolvidos pessoalmente. Mas esses eventos —a Cosmogonia, a Genealogia— de certa maneira os constituíram (…) Ao contrário, aqueles que conseguem recordar-se de suas existências anteriores preocupam-se em primeira lugar em descobrir sua própria ´história´ dispersa através de suas inúmeras encarnações. Eles se esforçam por unificar esses fragmentos isolados, por integrá-los numa única trama, a fim de descobrir o sentido do seu destino”.

Vejamos o que o próprio Rahul tem a dizer:

“Tão pequena a minha cabeça. Não entendo como pode caber mais tanta coisa. Poeira de lembranças que caberiam até na casca de uma noz. Se eu conseguisse arrumar essa poeira quem sabe encontraria os cubos que faltam para formar os quadros do jogo…”;

“Teria de descobrir a morte enquanto vivo, antes de entrar no labirinto de onde só poderei sair morrendo de novo. Para retornar —quem sabe?— na poeira de outras vidas. Mais sofrimento….”

É superstição comum afirmar que gatos têm muitas vidas (assim como serem misteriosos e sorrateiros); também faz parte da doutrina transmigratória tanto pitagórica quanto budista a passagem de um tipo de vida para outro (homem para árvore, árvore para pássaro etc). Por isso não se pode estranhar que um gato rememore vidas anteriores como ser humano (particularmente três) e se sinta aprisionado em sua forma atual:

A literatura indiana utiliza indiferentemente as imagens de amarração, acorrentamento, cativeiro ou de esquecimento, ignorância, sono, para significar a condição humana; e, ao contrário, as imagens de libertação das amarras e de dilaceração do véu… ou de memória, rememoração, despertar, vigília etc, são usadas para exprimir a abolição (ou a transcendência) da condição humana… É assim que se passam as coisas, explica Çankara, com o homem levado por ladrões para longe do Ser e que se vê preso na armadilha do seu corpo… Os ladrões são as falsas ideias de mérito, demérito e outras. Seus olhos estão vendados com a venda da ilusão e o homem se vê tolhido pelo desejo que experimenta por uma mulher, seu filho, seu amigo, seus rebanhos etc. ´Sou o filho de fulano, sou feliz ou infeliz, sou inteligente ou estúpido, sou piedoso etc. Como devo viver? Onde existe uma via de evasão? Onde está minha salvação?´ É assim que ele raciocina, enleado numa rede monstruosa.” (Mircea Eliade)

O esquecimento, aqui, equivale (como na segunda concepção do Letes) à encarnação. E o pequeno corpo de Rahul, num supremo encapsulamento, reflete essa escravidão, essa ausência de liberdade no movimento do ser, a suspensão, inclusive, da possibilidade de espaço, preso que está no apartamento de Rosa Ambrósio (além da suprema armadilha que é o corpo, daí porque grifei o trecho correspondente no texto de Eliade). A única saída é uma espécie de transfiguração do tempo cronológico e a reminiscência das vidas anteriores (acrescida das “visitas” que ele detecta com seu olhar vidente, no apartamento, e das quais se falará adiante).

2.a.- Encarnações

Na primeira das pretensas encarnações de Rahul o que se evidencia é o problema da libido. Já se disse aqui que as pessoas, no mundo atual, têm sua imaginação estreitada, o que favorece o eu mínimo e a sensação de possibilidades esgotadas. Nesse ponto, a castração de Rahul, evocada várias vezes, é simbólica (assim como seu nome, Rahul=luhar=luar; a lua é um símbolo místico por excelência e rege os signos de água que são os mais intuitivos, domésticos e sexuais: peixes, câncer e escorpião; o nome também o ligado à Gregório que estudava mecânica celeste a amava particularmente a lua).

A liberação dar-se-á pela via do sexo (também porque, neste, é convocada a presença do Outro, o que é um acionar da imaginação). Rahul vê (e sente, até um ponto em que a sensação lhe é roubada, por assim dizer) uma relação homossexual de uma antiga encarnação em tempos romanos:

“…as batidas do meu coração ficam mais fortes. Para aplacá-las, procuro disciplinar a respiração recitando em voz alta, sou poeta… Quando as batidas no meu coração se aceleram quase insuportáveis, pressinto seus passos vindo por detrás.

   Cravo o olhar no baixo-relevo da parede onde há um jovem seminu montado num touro, agarrando-o pelos chifres. Mais próximo o ruído das suas sandálias no mármore polido. Não me volto nem quando sua mão afasta o pano que me cobre o ombro. Beija esse ombro, me toma pela cintura e colado no meu corpo ele vai me levando adiante feito um escudo. Tombo de joelhos no leito, os cotovelos fincados no coxim. Agora ele me agarra pelos cabelos e puxa minha cabeça. Vou cedendo, o pescoço distendido em arco. Ainda não posso vê-lo colado assim às minhas costas nem me esquivar quando sua boca voraz morde minha nuca, devo ter gemido porque em seguida a boca procurou suavemente a minha orelha, contornou a orelha com a língua…

   O grito. Pelo funil desse grito escapei do meu corpo que prosseguia livre em seu ritmo de gozo mas agora sem mim. Fiquei aturdido, sem entender, mas o que estava acontecendo: Quando decido me recuperar foi como se entre o meu corpo e entre mim mesmo se levantasse uma parede invisível, bati nesse vidro com os punhos desesperados, o que significava tudo isso? Ainda me via mas não me tinha, fui excluído para virar um pasmado espectador do corpo perdido… Lentamente a imagem dos jovens começou a se dissolver e evaporar… As cores escorrem confundidas como numa folha de papel mergulhado na água, escorreram os mármores. Escorreram os jovens num caldo cor de tijolo”.

Também Ananta, a analista de Rosa Ambrósio, dedicada à causa feminista, e que desaparece misteriosamente, numa segunda bifurcação do romance, embora descrita como um ser neutro, possivelmente virgem (e aqui entra novamente a ambivalência admiração-inveja pela conduta ascética, seja em que nível for), sente uma violência íntima insuspeitada ao imaginar as experiências do vizinho na andar de cima:

“Ananta fechou a janela. E com a naturalidade com que recebia seus pacientes, sentou-se na cadeira, entrelaçou as mãos no regaço, esperando pelos primeiros ruídos que foram emergindo em meio dos sons do cravo, ele estava entrando. Ouviu os passos circulares na ronda da fatalidade, ainda o espanto, ainda a contenção toda feita de cálculo, ele se preparava, o corpo crescendo intenso com a música (aumentou o volume) até estourar em focinho, cascos, crinas. Ela tirou os sapatos, deitou-se no divã e cobriu-se com a manta. O úmido resfolegar soparando furioso por entre os dentes, as veias saltadas, os olhos, o latejamento crescendona acomodação das carnes, peles…”

    A cena fala por si mesma.

A segunda encarnação entrevista por Rahul é  a de um atleta num tempo impreciso, que corre com uma tocha (“Inventei a corrida com a tocha e o parceiro que me substitui, claro símbolo da vida em outras terras ?”)

Numa terceira encarnação, a mais persistente e nítida, é que se esboça um dos aspectos em que AS HORAS NUAS aproxima-se dos mitos de origem (segundo Lévi-Strauss): Rahul se vê como um menininho (portanto, no seu tempo “primordial”), vivendo com mulheres numa casa de venezianas verdes, as mulheres com seus ritos domésticos, sobrevivendo numa moradia sem homens. Curiosamente, nos outros percursos “encarnativos” de Rahul havia a procura pelo masclino (o parceiro sexual, o companheiro atleta). E Rahul, como gato, também vive num mundo sem homens:

“…sempre com as mulheres ao redor —não é estranho? Estou sempre rodeado de mulheres que me pegam, me defendem, me ameaçam. Acariciam e castram. Os homens não se demoram muito mas as mulheres, essas resistem”;

[Rosa]”…não gosta de mulheres. Nem eu. E as mulheres sempre em redor. As mulheres da casa das venezianas verdes. As invisíveis mulheres da minha casa romana, mesmo sem vê-las sentia a presença delas nos alojamentos, discretas. Respeitadas. A rápida visão da jovem que estava na minha alcova, os olhos verdes, o colar. As mulheres atuais, Rosona, Cordélia, Dionísia, às vezes, Ananta. Lili. Os homens e os fantasmas sempre se despedindo, só a menina antiga… resiste. As mulheres me confundem e me escapam, mais perigosas do que os homens na conspiração. Conspiram como as nuvens, segundo Rosa Ambrósio. Mais vulneráveis no vício. No amor. Acredita Ananta Medrado que elas serão as únicas capazes de salvar esta vida sem qualidade”.

É a instauração do tema dos tempos míticos perdidos, deixados para trás, com a perda dos heróis, com a partida dos homens, situação que se multiplica no livro já a partir do fato de que o pai de Rosa abandonou a família (como acontece sob várias formas nos textos da autora).

Por outro lado, o trecho grifado “Acariciam e castram” merece ser examinado com mais detalhe, uma vez que o mito de origem na concepção de Lévi-Strauss de alguma forma relaciona-se com o de outro estudioso dos laços de parentesco, Sigmund Freud, e um dos momentos cruciais nos mitos de origem freudianos é o do “complexo de castração”, um rito de passagem traumático do outro lado do qual encontraremos nosso ajuste (ou desajuste) de “caráter”, a estrutura convencional de personalidade que utilizaremos em sociedade. Segundo nos ensinou o grande Ernest Becker: “Conforme Ferenczi tão bem sintetizou: ‘Sob o ponto de vista do psicanalista, o caráter é um tipo de anormalidade, um tipo de mecanização de determinada maneira de reagir, bastante análoga a um sintoma obsessivo´. Por outras palavras, o projeto narcisista de autocriação… está destinado a malograr. E a criança descobre isso: assim é como entendemos a força e o significado do que é denominado ´complexo de castração´, segundo Freud desenvolveu em trabalhos ulteriores e como Rank e Brown pormenorizaram. Nessa concepção mais atual do complexo de castração, não é às ameaças do pai que a criança reage. Como Brown tão bem afirmou, o complexo de castração somente se manifesta em confronto com a mãe…”

    Falar em mãe, em nossa cultura, é ainda falar do feminino. O tempo do livro é um tempo de mulheres, o que é vivido negativamente tanto por Rosa quanto por Rahul, o castrado. Para Rosa, a mulher é inimiga (“mulher não gosta mesmo de mulher, essa história de solidariedade, hem?”), e quando ele estiver vagando pela Praça da República os fantasmas que lhe aparecerão serão todos femininos: um, inclusive, de uma prima, relembra um episódio amoroso como o marido de Rosa, sem contar a comissária de bordo do início do relato a qual permite que ela seja fotografada embriagada e histérica; ou sua mãe, sempre mantendo as aparências ao ponto de obrigá-la a comparecer a um casamento , mesmo acabando de encontrar morto o amado primo.

2.b.-Aparições

Rahul percebe que entre os visitantes fantasmagóricos do apartamento (experiências diferentes dos recuos no tempo observando vidas anteriores), a que mais persiste é uma “tola menina com seu bordado”, enquanto os outros se esvanecem, incluindo Gregório, o marido de Rosa, que reaparece algumas vezes após o suicídio (e Rahul é um dos poucos que sabem que ele se matou, testemunha inexorável que está condenado a ser). Com a perda do fantasma amado (aliás, uma relação tornada enigmática —embora tenha indicado a possível explicação na seção anterior —pela seguinte passagem: “Podia ser que na morte eu voltasse à casa romana, certamente corriam outras águas no rio onde nadei mas eu seria o mesmo. Aceitando com naturalidade os prodígios até chegar à minha casa no ocaso da vermelhidão e vinho. Reconhecendo o amado que veio por detrás e tocou no meu ombro, Gregório”), ele chega a pensar numa mesma saída (suicídio) libertadora:

“Subi ao parapeito da janela e fiquei olhando o jardim. A morte seria fácil, bastava cruzar o vão da vidraça e despencar lá embaixo na direção da alameda de pedregulhos, a vida já me aproximara de Gregório. E se eu tivesse que morrer para nessa segundo oportunidade me aproximar dele novamente… Recuei. Saltei para o tapete. Agora tenho medo da liberdade…”

A morte de Gregório, após uma vida intelectual ascética e entretanto combativa, é vista como libertação. Esta última observação e o trecho grifado (“Agora tenho medo da liberdade”) reportam às considerações descritivas de Eliade sobre os pensamentos míticos grego e hindu. Mas também aqui paira a ideia de que com Gregório (assim como com Miguel) estava um princípio de heroísmo, que se sobrepunha a estes tempos medíocres (Idade de Ferro, tempos de ditadura no Brasil), um princípio de pureza/integridade, que foram perdidos, deixando um clima de irremediável nostalgia, uma prisão doméstica e a vida sufocada e sufocante de mulheres com suas miudezas e suas preocupações embebidas em Cronos. A morte de Gregório e a partida de Diogo correspondem à perda da existência do poeta nos tempos romanos (que, entretanto, eram vistos como decadência com relação ao mundo grego), com seu erotismo livre, e da liberdade do atleta correndo com sua tocha:

“Em nossa cultura… o heroico parece demasiado grande para nós ou nós excessivamente pequenos para ele. Diga-se a um rapaz que ele merece ser herói e ele ficará ruborizado. Disfarçamos nossa luta existencial acumulando em uma caderneta de banco para refletir em particular nosso sentimento de valia heroica. Ou tendo uma casa um pouco melhor, um carro um pouco maior e filhos mais inteligentes que os dos vizinhos. Por baixo disso, porém, pulsa a dor de ser melhor cosmicamente, não importa quanto a disfarcemos por meio de preocupações de aparência mais modesta (…) a sociedade ´civilizada´ é uma crença e um protesto cheio de esperanças de que a ciência, o dinheiro e as mercadorias fazem o homem valer mais do que qualquer outro animal. Nesta acepção, tudo o que o homem faz é religioso e heroico e, contudo, arriscado a ser fictício e falível (…) tornar-se cônscio do que se está fazendo para alcançar seu senso de heroísmo é o principal problema autoanalítico da vida. Tudo de doloroso e sensato que o gênio psicanalítico e o gênio religioso descobriram  acerca do homem gira em torno do terror de admitir o que se está fazendo para conquistar a própria estima…” (Ernest Becker)

   Citação longa,  mas que parece perfeita para arrematar as questões levantadas a respeito do heroísmo na visão de Rahul e Rosa, ainda mais se a entrelaçarmos com as considerações sobre o eu mínimo de Christopher Lasch.  Ainda resta, no entano, entrelaçar as encarnações, as aparições e o “complexo de castração” que apareceram ao longo das páginas anteriores o que se pode fazer com a ajuda de C.G. Jung, num trecho de O homem à descoberta da sua alma:

“… os nossos complexos fazem-nos viver num mundo de projeções, as quais, escapando correntemente aos nossos sentidos, invalidam grandemente o valor objetivo dos testemunhos que aqueles nos dão. O tempo da influência dos complexos não se restringe, porém, a esta revelação já perturbante. A autonomia especial deles, a faculdade que têm de tirar energia à consciência e de a utilizarem, de tomar por um instante o lugar dela, de a influenciarem e de a governarem, tudo isto se encontra de modo espantoso num complexo normal, o ´complexo do eu´. Supõe-se em geral que os complexos não são normais, mas na verdade eles são necessidades vitais (…) os complexos… foram vistos no passado como duendes, gnomos, serem sem coração e alma gelada. De gato, os complexos, na origem, constituem a representação dos ´espíritos subterrâneos´ que propriamente falando são a personificação de fragmentos psicológicos…”

Se há essa tendência da psique para a personificação dos complexos, isso deve valer também para aparições e visões.

2.c.-O que tudo isto tem a ver com um gato?

Resta a encarnação obsedante do menininho no clã feminino e a prisão no corpo de gato castrado. A Mnemosyne de Rahul é uma prática (no sentido iniciático mesmo, ainda que degradado) de libertação, porquanto ele tenta não submergir no esquecimento, tentando remontar as peças do seu “eu”, tentando mobilizar suas faculdades de vidência (o gato como habitante do umbral entre mundos, um psicopompo) mesmo nos limites restritos do apartamento luxuoso. E se ele nos parece a personagem mais humana e emocionante do romance, a bifurcação de AS HORAS NUAS que o torna um dos narradores enriquece, pelo menos é a opinião de quem aqui escreve, consideravelmente a tessitura e estrutura da narrativa. E se ele é um gato que sonha com o homem assim como este sonha com Deus, e se esse sonhar é uma ilusão (“Ainda a invenção? Simples necessidade de compensar a forma atual através da fantasia—será isso?… Procuro unir as pontas meio rotas através do tempo real ou inventado enquanto fico me perguntando o que tudo isto tem a ver com um gato”), essa ilusão –assim como a própria mitologia humana—reveste-se de dignidade e beleza. É a luta de Mnemosyne contra Letes, do poder de visão contra o embrutecimento das imagens incessantes e vazias da Idade de Ferro, do heroísmo contra as mesquinhas preocupações  narcísicas do eu mínimo e do “complexo de castração”.

3.BURGUESIA E MISTÉRIO

A segunda bifurcação da narrativa, que traz Ananta Medrado para o centro da cena e, após seu desaparecimento, seu primo Renato, conduz o leitor a certa perplexidade pela forma como é conduzida, inicialmente entremeada e depois sobreposta às narrativas de Rosa e Rahul.

O primeiro corte ocorre no capítulo 5, quando um narrador em terceira pessoa acompanha as ações e a corrente de consciência de Ananta. Esta, além da vida austera que a torna a contrapartida feminina (meio diluída, ou assim parece) de Gtegório (“Ananta não me responde, faz aquela cara vaga e não fala, só ouve. Essa analista marca barbante. O outro também só ouvia, Gregório e ela são da mesma escola”; “Tem belos olhos, descobri com certa surpresa. Destacavam-se luminosos na face de uma moça que a gente olha e esquece… No olhar azul-cinzento, a paciência. E um certo distanciamento, que me perturba, Gregório tinha esse jeito de olhar”), também  mantém fichários e agendas, como que representando um princípio ordenador contraposto ao caos por onde se movimentam as outras personagens. Até a anotação de acontecimentos anteriores é organizada, em contraste com o vai e vem dos capítulos anteriores. Somente a preocupação com o vizinho do andar de cima “quebra” essa ordenação plácida, pouco “sanguínea”.

Toda a relação (unilateral, se é que ele é real; ela mesma duvida por vezes) com esse vizinho leva o romance (não bastasse a capacidade de vidência de Rahul) para o lado do fantástico-misterioso, uma das principais vertentes da obra de Lygia Fagundes Telles (mas que pela primeira vez aparece num romance). Um fantástico com forte lastro psicológico, já que acontece a partir das impressões de uma personagem: para Ananta seu vizinho metamorfoseia-se todas as noites num cavalo.

Ananta lembra, também, de forma mais amadurecida, uma das protagonistas de As meninas, Lorena, na qual —sob uma aparência um tanto insípida (Ana Clara, outra das “meninas” chama-a constantemente de “nhem-nhem”)— oculta-se uma fervilhante vida interior e violência de afeições.[4]

A vigília de Ananta com relação à metamorfose do vizinho é mais uma tentativa, dentro do romance, de imaginar o Outro, o alheio, de romper os limites de uma vida sem grandes possibilidades criativas (e, no plano mítico, de romper as cadeias temporais):

“…apoiou a face no braço estendido, ah, se pudesse alongá-lo e com ele chegar ao teto. Bater nesse teto… mensagem enérgica…

   A resposta veio inesperadamente. Contraiu-se inteira no susto e na alegria porque agora a resposta vinha tão nítida… Ananta ficou um instante imóvel, o pasmo somado ao pasmo de ser ainda capaz de se pasmar. E a excitação (quase insuportável) pela revelação do amor, abriu os braços. Fechou-os em seguida contra o peito e foi rolando suavemente até o toca-discos, rolando e repetindo Eu te amo eu te amo eu te amo. O choro contido soltou-se veemente, que ele ouvisse, sim, o pranto que era uma celebração”.

Mas a imagem que ela tem do vizinho tem um biombo de permeio, como parece ser obrigatório nestes nossos tempos de espelhos, referências cruzadas e visões indiretas, tempo de estilhaços e fragmentos, como Rosa e Rahul, de formas tão diferentes, já (com)provaram:

“Captava (em fragmentos, embora!) a sua imagem quando se concentrava, os olhos postos no teto: maxilares proeminentes, a boca bem desenhada, o queixo quadrado, nariz torto, olhar intenso, brilhando sob a aba do chapéu”.

O que leva a fantasia sexual a uma fantasia-fetiche codificada pela cultura, com a evocação do homem-galã, o “durão” do cinema noir. Ainda assim, em Ananta o problema que nos ocupa, a luta de Mnemosyne e Letes, toma o contorno de imaginação despertada via fantástico, mistério (atmosfera mais parecida com a dos contos da autora), como veremos.

3.a.-O viés do desaparecimento

Após os capítulos 5 e 6 dedicados a Ananta, há uma série de capítulos em que Rosa e Rahul revezam-se e nos quais uma das informações é o desaparecimento da analista.

No capítulo 14 aparece novamente o narrador em terceira pessoa acompanhando Renato Medrado. Com ele em cena, investigando o estranho sumiço,  a situação se inverte e é a desaparecida quem passa a exercer fascínio, muito embora AS HORAS NUAS —se é preciso fazer um juízo de valor— dê ao leitor a impressão de degringolar um pouco na reta final.

Para Renato a prima era figura apagada. E justamente a vida discreta que ela levava lhe confere agora poder de sedução. O primo aparece envolto em tédio e Ananta exerce o papel reservado ao romanesco.  O encapsulamento da vida de Renato e a nova relevância da prima são simbolizados pela reação dele à tapeçaria  da família que foi parar no apartamento da desaparecida. Na infância, ao mesmo tempo que considerava (ou desconsiderava —a velha exclusão do elemento estranho— e que ecoa, se forçarmos um pouco a barra, o impasse cidadãos da polis/herói mítico) Ananta uma prima esquisita, sem graça, Renato tinha medo da tapeçaria, a qual, para ele, parecia gigantesca e ameaçadora:

“… o que vi lá de mais importante foi uma velha tapeçaria da família que sempre esteve na casa dos meus avós nos Campos Elíseos, me lembro que essa tapeçaria me dava um medo danado com sua floresta que parecia esconder monstros. E depois de tanto tempo vou encontrar a antiguidade dependurada no escritório de Ananta e bem menor do que eu imaginava”.

Não esquecendo o que a expressão “casa dos meus avós” reporta em termos de tempo primordial e que a perda de reverência à tapeçaria é uma das consequências do afastamento desse tempo (ou pré-tempo), e da perda do sentido de mistério, é bom sublinhar que, se a tapeçaria reaparece diminuta e inofensiva para o adulto, retrospectivamente Ananta parece conter o mistério que ele perdeu nalgum ponto da vida, algo que ele esqueceu ou que não reparou (o que lembra a situação da novela de Henry James, A fera na selva), o que é sinalizado, no desfecho do livro, pelo canteiro de amores-perfeitos, o qual ele nem notara em visitas anteriores (“Mas não era mesmo incrível? Não ter visto o canteiro das pequenas mascaradas que sempre estiveram ali. O que mais teria deixado escapar?”):

“…coração flechado, apaixonado pela prima sem mistério e misteriosa. Rejeitada e recuperada. Perdida e achada.”

   A meu ver, essa é a forma que Mnemosyne assume para  o burguês Renato (a referência aos Campos Elíseos não é acidental): a luta contra o tempo perdido. Ele sente que, encontrando a prima, veria o passado sob nova perspectiva, e assim o recuperaria; caso contrário, ficaria tudo perdido, diminuído. Ele próprio:

“…os desaparecidos mais complicados são os de comportamento exemplar. Ananta medrado tinha um comportamento exemplar, organizada como a própria alcachofra com o coração esquivo  escondido no círculo fechado das sentinelas das folhas. A operação-busca exigia redobrada paciência.  E tempo. Paciência, eu tenho, reconheceu Renato Medrado, mas tempo? Tanta coisa lhe acontecera ultimamente, tanta”.

Ele enumera então as coisas com as quais está “enredado”: o pai doente, amante casada etc. E fantasia a prima liberta da  cadeia temporal que a tudo “diminui”, da gaiola burguesa, transformada voluntariamente em vegetal (note-se que ele não consegue imaginá-la no reino animal,  coisa bem masculina e estreita, quando se lembra das cenas em que ela espreita auditivamente o vizinho, por assim dizer, enleada pelo animalesco que ali pressente):

“E a priminha pirou como esse homem-árvore e virou vegetal. Em alguma praça do mundo estava Ananta Medrado esparramando as raízes, podia ser em Amsterdam”;

“Em que Ananta se transformaria? Numa cerejeira? Na primavera desabrocharia naquelas florinhas miúdas. E receberia um cartão, Estou florindo em Tóquio”.

3.b.-Uma digressão: E a narrativa?

Mas algo de frustrante acontece com a narrativa: abandona-se Rahul no meio do caminho, leva-se Rosa a um ponto a ser discutido adiante, após um capítulo (14) que é o diálogo de Renato com um delegado, onde este é informado de todos os dados relevantes sobre o universo de Ananta (e que envolvem, por derivação, Rosa e Rahul e todos os elementos já abordados, os quais aparecem tão diminutos quanto a tapeçaria —seria esse o objetivo da autora?).

Quando Renato reaparece nos dois capítulos finais  (17 e 18)[5], sempre com o narrador em terceira pessoa, espera-se  que a perspectiva da história mude, com algum detalhe despercebido, algum dado novo, reproduzindo o próprio processo interior de Renato que procurei sugerir.

O que acontece, todavia, é que esses dois capítulos limitam-se a repassar, sem novidades ou sutilezas insuspeitas, informações que o leitor já está cansado de conhecer ao longo do livro, e que já haviam sido suficientemente esgotadas no diálogo com o delegado. O capítulo da visita ao apartamento é particularmente redundante, nesse sentido, já que ele a relatara fielmente ao seu interlocutor.

A impressão final do leitor é que, com o capítulo registrando a conversa entre Dionísia, a empregada, e o visitante, há um olhar de fora por sobre todo o inferno particular de Rosa e Rahul, e que o estado (o prédio quase vazio, com a partida de Diogo, o sumiço de Ananta, a viagem de Cordélia—a filha—e o tratamento de Rosa Ambrósio) que esse olhar encontra aponta no sentido do velho chavão “a vida continua”, o qual ecoa ironicamente a aproximação feita por Rosa, dela própria e de Gregório como Scarlet O´Hara e Rhett Buttler, já que o final de E o vento levou apresentava moral semelhante: “amanhã é outro dia” (o que não deixa de ser uma curiosa adesão à vida vegetativa que Renato imaginou para a prima).

Um olhar de fora perturbado apenas pela visão do gato a espiar do quarto andar. O leitor sabe que esse gato é vidente, um psicopompo, e ele continua a seguir com os olhos o visitante que está deixando o prédio e, enfim, reparando no canteiro de amores-perfeitos. O olhar de Rahul encerra o livro e o posta como um guardião do apartamento-labirinto.

Mas o que aconteceu com a narrativa, volto a perguntar? Teria a autora levado o jogo de espelhos da pós-modernidade ao ponto de os dados do  livro espelharem-se infindavelmente, imutavelmente? Seria um objetivo consciente terminar AS HORAS NUAS nessa fantasmagoria narrativa, com todos os seus dados congelados por um olhar pior do que o da Medusa, pois não acrescenta nada e parece diminuir a tapeçaria inteira a um tamanho banal, um quadro imobilizado?

[Rahul] “Devido à exalação dos motores e gases de aquecimento até o mármore de Roma está virando gesso. E o resíduo da mimha memória continua inalterado feito pedra”.

4.A CRUZ: o mito da salvação

Antes do final desconcertante de AS HORAS NUAS há uma reformulação doa postura e do discurso de Rosa Ambrósio. No capítulo 13, ela —pela primeira vez no presente da narrativa— deixa o apartamento, num primeiro passo para que admita necessitar de tratamento para o alcoolismo.

Após a consulta, passeia pela Praça da República, um dos lugares mais degradados de São Paulo:

“Mas esta é a antiga praça? … a praça ocupada, a cidade ocupada. Mas de onde veio toda essa gente? Onde essa miséria se escondia antes? Eram gramados tão bem cuidados como os gramados dos parques londrinos e desceu um dos cavaleiros do Apocalipse, o mais descarnado e encardido”.

Pode-se afirmar que, nesse capítulo, a experiência (ou luta) de Rosa com a memória chega a um ponto crítico, com a sensação de anonimato e desalento (a “bruxa seduzindo o tempo”, na acepção depreciativa de Rahul, entrega os pontos), com um desfilo de fantasmas femininos importunando-a, o que conduz a narrativa a uma bela metáfora, que traz de volta o mito em meio à ironia do mundo degradado (Idade de Ferro):

“As testemunhas picadas em pedaços tão miúdos —adiantou? Aos poucos elas vão se refazendo e me seguindo passo a passo na procissão lamurienta, eu sangrando em frente com a cruz da memória”.

Rosa percebe os fantasmas como pássaros:

“Adeus, Zelinda, eu digo. Ela se afasta da minha lembrança num voo de pássaro que quer apenas se juntar aos outros na grande copa da árvore da praça”.

E após a “procissão lamurienta”:

“Na mais velha das árvores —aquela ali? deponho a minha cruz, posso? Essa cruz ainda vai voltar um dia, essa cruz da procissão da memória eu sei, mas por ora estou livre dela”.

A cruz é feita de madeira, Isto é, oriunda das árvores (e na mitologia celta há seres nas árvores, o próprio Merlim acaba aprisionado numa, em algumas versões da lenda), e os pássaros procuram as árvores para os seus ninhos, portanto não é estranho que os “pássaros da memória” procurem uma cruz para pousar. A metáfora se completa e se amplia com o fato de que Rosa mora num bairro “onda todas as ruas têm nome de passarinho”. E a sequência  toda transmite ao leitor um sentido de redenção (precária que seja) e libertação. Isso porque, para os cristãos, as cenas da paixão de Cristo constituem um mito primordial. Segundo nosso velho amigo Eliade:

“…Embora representado na História esse drama possibilitou a salvação; consequentemente, existe apenas um meio de obter a salvação: repetir ritualmente esse drama exemplar e imitar o modelo supremo, revelado pela vida e pelo ensinamento de Jesus. Ora, esse comportamento religioso faz parte do pensamento mítico autêntico… como já vimos, a imitação de um modelo transumano, a repetição de um enredo exemplar e a ruptura do tempo profano mediante uma abertura que desemboca no Grande Tempo, constituem as notas essenciais do comportamento mítico”.

Foi com esse olhar, conjugando as notas do “comportamento mítico” (embora não se possa deixar de observar o componente pós-moderno no ver tudo por imagens, referências, analogias), que Rosa descobriu o primo morto nos braços da tia:

“…ali estava Tia Lucinda sentada na cama com o Miguel nos braços… Fazia um ligeiro movimento de balanço como se embalasse o filho… ele tão grande transbordando do colo da mãe. Que desmaio era aquele?… Mãe e filho quietos na casa quieta…Recuei com o sentimento de que estava apenas diante de um quadro muito antigo, antiquíssimo com a Virgem e o Cristo Morto. Ele fora despregado e a Virgem o recebera sem gestos e sem lágrimas, o recebera nos braços singelamente”.

Tal cena leva ao cerne da reformulação vital no comportamento de Rosa: com o desaparecimento de Ananta e o primeiro passo dado para o exterior (ao ir à consulta e depois o ponto crítico da “procissão lamurienta”), ela rompe com a Medusa petrificante e passa a gravar as suas memórias, o que, já em princípio, é uma tentativa de ordenação para quem vivia no caos  (“o repertório da atriz se misturando ao das peças num caos que se assemelhava ao fundo da sua sacola lanvin onde ia enfiando  tudo —dinheiro, pente, batom, caderno de endereços, aspirinas, chaveiros, colírios. Tanta dificuldade em pescar um simples isqueiro naquele fundo”). E ainda que dramatize, seja “over”, se perca,  sua memória aponta para uma direção nítida: os tempos remotos da adolescência (e o mundo decadente da burguesia paulista), os quais estão justamente dentro de outra vertente central  da obra de Lygia Fagundes Telles, tanto nos seus contos quanto nos seus romances.

As memórias de Rosa estacionam aí, nos tempos da Segunda Guerra, com as esperanças da menina pobre com parentes ricos, o primo príncipe encantado, a religiosidade, a hipocrisia, a tirania da moda, da “glamour girl”. E se a deserção de Ananta projetou o romance no misterioso, o passado de Rosa na alta burguesia paulista emergindo de uma ordenação de suas memórias se entrelaça com esse misterioso, oferecendo uma síntese do universo ficcional da autora.

A evocação de Rosa termina justamente quando entra em cena meio obliquamente o futuro marido, no momento exato em que desaparece o príncipe encantado. Gregório fica, portanto, como a grande intersecção, como um guardião do umbral, para o outro lado da vida que Rosa conhecerá, embora sempre mantendo a mitologia mistificatória de menina-moça, meio leitora-meio heroína de romances de M. Delly.

E ela acaba por nos lembrar Mary (afinal de contas, trata-se de uma atriz), protagonista de Longa jornada noite adentro, a grande peça de Eugene O´Neill  onde, após uma noite de tormentos e recriminações, a mãe morfinômana inicia um monólogo final contando sua mocidade radiosa e como coroamento, final feliz, seu casamento —que foi, ao mesmo tempo, e de um modo terrificante para quem acompanhou a ação, o ponto de partida para a longa noite.

Em AS HIORAS NUAS (pelo menos no que se refere à personagem Rosa Ambrósio), o princípio é localizado no fim. E a memória percorre todo o círculo:

“Essa nostalgia do caráter. Da beleza. Eram belos os gestos secretos. As palavras secretas., toda a simbologia que Deus exige, Ele exige! Mas os padres ficaram íntimos, os mitos íntimos. Massificar heróis e desmistificar os mitos. É o fim deles? pergunto.”

Viçosa (MG), janeiro de 1990

nota especial– Escrevi o texto acima quando tinha 24 anos, por isso peço a caridade dos leitores quanto aos aspectos juvenis e imaturos que ele apresenta. Na verdade, seu maior defeito é tentar imitar um ensaio acadêmico, tanto que seu título original era O COTIDIANO MOVEDIÇO-ASPECTOS MÍTICOS NA REPRESENTAÇÃO DA REALIDADE EM ´AS HORAS NUAS´.  O que me fez relê-lo com prazer foi encontrar nele uma espécie de síntese de leituras que fiz no período. Espero que, além desse motivo absolutamente pessoal e egoístico, ele também seja útil a outrem.


[1] Muito significativo esse espelho sem memória (grifo meu) porque justamente o mais crucial nos espelhos é que eles só mostram o que se é (e na exterioridade), não importando o que se foi. Narciso requer um espelho eterno, mas isso se torna petrificante quando a face mostrada é a da Medusa.

[2] Ironicamente,Rosa procurará depois a quietude e o silêncio que a irritavam no marido.

[3] “No novo quadro do jogo trágico, o herói deixa de ser um modelo; torna-se, para si mesmo e para os outros, um problema (…) … O material verdadeiro da tragédia é o pensamento social próprio da cidade (…) A tragédia, observa com justeza Walter Nestle, nasce quando se começa a olhar o mito com o olhar do cidadão”.

[4] Outra que lembra As meninas, como também lembrava—como já apontado—a heroína de Verão no aquário, é Rosa, com cacoetes de linguagem que evocam Lorena, e uma caminhada para a autodestruição (que, entretanto, susta a tempo, ao contrário da predecessora), entremeada com um discurso prometendo a si mesma um futuro radioso, que em certa medida traz à mente a Ana Clara do romance anterior:

“…nem tem importância, paro quando quiser, desintoxicação. Ginástica. Nem preciso de outra plástica, de novo o palco, aplausos”. (As horas nuas)

“Com dinheiro e casada, não precisaria mais de nenhuma ajuda, ora, análise. Nenhum problema mais à vista. Livre. Destrancaria a matrícula, faria um curso brilhante. Os livros que teria que ler. As descobertas sobre si mesma. Sobre os outros”. (As meninas)

[5] No primeiro deles, aguardando Rosa numa clínica de repouso e, no outro, fazendo a inspeção do apartamento de Ananta, que, por sinal, já tinha sido referida no diálogo com o delegado.

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