“E eis que ali em plena opacidade Tu me viste com a nitidez da transparência que atravessa o opaco…” (António Vieira, Jonas ou Os benefícios da prece)
“Num ponto só os dois trajetos luminosos se tocavam (o que dela lhe chegava e o que dele partia em vã procura), e por esse ponto a vitalidade vinda da luz o despertava e um clarão parecia-lhe irromper no mundo ali das sombras—clarão contido, que não infringia ainda as leis da Noite, tão-só animava o seu desejo. Eis que a obstinação desse ponto onde os dois filamentos secretos convergiam, e a imagem que por ele eclodia, o incitaram a um caminhar interdito para a luz.” (António Vieira, Eram tons só cinzentos sobrepostos)
“Um momento há na vida, de hora nula,
em que o poema vê tudo,
e a si mesmo, na cera em que se anula,
sob o fogo dos céus, consumir-se-á.” (Jorge de Lima, Invenção de Orfeu)
(o texto abaixo foi escrito especialmente para o blog, em janeiro de 2014)
I
“Tu, Obscuridade de onde emana
meu ser, amo-te mais do que à chama
que o mundo reduz
ao círculo da sua luz:
ali dentro, resplandece;
fora dali, ser nenhum a reconhece.
Mas na Obscuridade tudo se contém:
as formas e as chamas, os animais e eu também,
nela que consorcia
existências e energias—
Pode bem ser que uma força sombria
se mova em minhas cercanias.
É às noites que minha alma se confia.” (Rainer Maria Rilke[1])
Além de uma segunda versão de seu Doutor Fausto por uma editora brasileira (a Topbooks), António Vieira publicou em 2013 uma coletânea de 12 “contos órficos”, OLHARES DE ORFEU[2].
O mote do livro, por assim dizer, vem das considerações de Maurice Blanchot sobre Orfeu no clássico O espaço literário (1955). Se no Segundo Fausto, Mefistófeles diz: “compreender à luz do dia é ninharia, mas na escuridão todos os mistérios palpitam”, o grande pensador francês radicaliza essa potência da noite, sua “dissimulação”, ao ponto de tornar a exploração dos seus mistérios sempre uma tarefa oblíqua, um “risco do olhar”:
“Orfeu pode tudo, exceto olhar esse ponto de frente, salvo olhar o centro da noite na noite. Pode descer para ele; pode, poder ainda mais forte, atraí-lo a si e, consigo, atraí-lo para o alto, mas desviando-se dele: tal é o sentido da dissimulação que se revela na noite (…) A profundidade não se entrega frontalmente, só se revela dissimulando-se na obra (…) ao voltar-se para Eurídice, Orfeu arruína a obra, a obra desfaz-se imediatamente, e Eurídice retorna à sombra; a essência da noite, sob o seu olhar, revela-se como não-essencial. Assim traiu ele a obra, Eurídice e a noite…” [3]
Não se espante o meu leitor, e muito menos se retraia, ao constatar que antes mesmo de comentar os textos de Olhares de Orfeu, já saí citando Goethe e Blanchot (para não falar das epígrafes de Rilke e Jorge de Lima). Os relatos aí enfeixados exploram o órfico, o ctônico, e também o imaginário dito “primitivo” (O bom selvagem transcorre nas Ilhas Marquesas), além das tradições orientais (“exóticas”, portanto, mesmo hoje) e, claro, linhas de força da tradição greco-romana em nossa constituição mental; sobrepairando, a tradição judaico-cristã, tanto nos aspectos bíblicos (em particular, o Velho Testamento) quanto nas suas explorações mais audaciosas (o veio cabalístico).
Além dessa mobilidade impressionante, para dizer o mínimo, por entre tantas perspectivas culturais, deslocando-se totalmente da ancoragem no contemporâneo mais evidente e contingente, parece-me crucial chamar a atenção para o seguinte fenômeno (e que tem a ver com o recurso a Goethe e Blanchot logo no início deste meu texto): como Hilda Hilst —único caso de um escritor nas últimas décadas, entre os que eu conheço, que tem o mesmo destemor, e o escopo para tanto— António Vieira não tem medo de se colocar tête a tête com Blanchot, Nietzsche, Kafka (de quem retoma um conto fragmentário e inquietante, aquele do caçador Gracchus), Valéry, Kierkegaard, Robert Walser, Kant, Stevenson, sem falar nos textos bíblicos; ou seja, ele sempre se situa nos cumes da criação e da reflexão (que me perdoem os desconstrucionistas e relativistas) [4]. E nem deveria ter: com relação a essa arriscada mirada de Orfeu, se o leitor se dá conta de uma ambição (e consequente “dicção”) invulgar nestes tempos que correm, também percebe nitidamente a falta de presunção, afetação kitsch ou recurso à erudição-google. O fato é que estamos diante de um dos maiores praticantes do jogo literário contemporâneo (o virtuosismo de Vieira faz dele, mais do que um homônimo, um verdadeiro avatar no século XXI do “imperador da língua portuguesa”), e um dos mais singulares, justamente pela sua teimosia em não descer dos cimos.
II
“Reverto-me no limbo original,
entre dois olhos entre duas órbitas;
dentro da névoa antes respirada;
dentro das coisas possuídas antes;
encolho-me no ventre anterior e ermo;
vejo-me as plantas, babo os meus calcâneos,
sugo os leites vindouros não jorrados,
embriono-me na luz que me cegou.” (Jorge de Lima, Invenção de Orfeu)
Dos doze relatos de Olhares de Orfeu, cinco são feitos na primeira pessoa. Um deles é o único inédito da coletânea[5], Jonas ou Os benefícios da prece. Seu protagonista é o personagem bíblico, que se encontra dentro do “grande peixe” (“À náusea pelo conteúdo das entranhas do peixe—Teu servo quanto eu—e pelos odores fermentados que encerravam, sucedeu a náusea—esta exaltante em extremo—de sozinho, decidir com a razão se era vivo ou morto, e o que era a vida, e mesmo a morte, e o cenário de uma e outra, e a fronteira entre uma e outra em situação terrível”) e coloca em equação tanto um dos riscos do Olhar (no caso, o de Deus focalizado em Jonas) quanto a exploração tópica da Noite, enquanto entranhas do ser e potência do não-ser (e por extensão, estas mesmas entranhas tornadas subterrâneo, descenso, experiência ctônica), “porque na escuridão se me suscitaram luzes a que na luz nunca acedera”. É como se assistíssemos ao parto de um novo Jonas, aquele que pode corresponder ao chamado de Deus, de que ele se esquivara.
Apesar dessa moral da fábula mais para o positivo (mesmo levando em consideração a agônica experiência), o relato de Jonas estabelece liames, ou antes, na linguagem muito recorrente do autor, filamentos, com os outros textos (estes, em terceira pessoa) que se valem da tradição judaico-cristã, no que ela tem de mais entranhado em nós: é o caso de O grande luto, onde um astrônomo judeu, Efraïm, tem em mãos o mapeamento dum setor do universo no qual se pode ver o cadáver de Deus:
“Mirava o grande corpo destroçado, ali, no umbigo cósmico, a dispersar-se por entre acúmulos de formas negras. Da mão, escapavam-Lhe ainda os primeiro fios do tempo; letras hebraicas desconjuntas jorradas da Sua boca (tinham composto a fórmula mágica do mundo!) dispersavam-se em redor da fonte de onde jorrara o Ente, sementeira improfícua… Provinham da palavra inacabada de Deus feita Ser, e logo feita caos, e juntavam estilhaços de verbo aos do divino espólio…” [6].
Orfeu ousou olhar o que não podia ser olhado e, a seguir, tentando evitar as consequências dessa mirada escatológica, metamorfoseia-se ironicamente em Narciso, diante do mar (que se fará presente em muitos dos relatos):
“Debruçou-se. Um turbilhão contorcia a água obscura, movia a película em que cintilavam fogos efêmeros, separando um véu de sombra da luz nascente. Enigma… Pareceu-lhe que aquele mar repetia algo do céu profundo onde pulsava o inaudito. Foi quando entreviu, sem a reconhecer, a própria sombra[7], estampada na pele tremeluzente da água junto ao sorvedouro, entre laivos de luz. Sentiu o terror e a atração daquela silhueta, como se algo ali se repetisse. Para ver mais de perto inclinou-se das rochas, mas precipitou-se, e com o seu segredo se perdeu.”
É o caso, igualmente, de O festim, onde há uma aposta pelo destino do mundo entre Deus e Leviathan, o monstro das profundezas[8]: “ Porque Deus queria dar rumo ao tempo e fazê-lo atingir um ponto fixado desde o início; quando Leviathan tomara gosto pelo jogo enquanto puro jogo, o que arrastaria à anarquia cósmica.” A aparição de um anjo (só mesmo um autor do quilate de Vieira pode tornar isso de aparição de um anjo possível, e conseguir que o levemos a sério) é arauto de uma festa universal, onde será conhecido o vencedor do Jogo.
É difícil pensar em qualquer paralelo para esse trio de textos na ficção atual, quanto ao que eles entretecem de especulação metafísica e utilização das grandes fontes do misticismo judaico-cristão, e mais ainda quanto ao seu tom elevado. No entanto, logo em sequência a Jonas, temos o extraordinário O último fio do tempo, ponto altíssimo na obra de Vieira, no qual mais um anjo aparecerá, a buscar a alma de Gabriel, cabalista que chegara à seguinte e sombria conclusão: “As criaturas eram-lhe impenetráveis, devia renunciar a captar a verdade mais profunda que habitava nas coisas”.
Toda a construção fabular do conto é muito marcante: a linguagem corporal do anjo, as suas plumas, o seu falar que é também um destilar de caracteres hebraicos[9], o “ponto” que vai sugando os elementos da “realidade” : “… as suas palavras, desenhadas com elegantes caracteres hebraicos negros e fecundos, saíam outra vez de sua boca, ondeavam junto ao cone de luz do abat-jour, rodavam em espiral, afilavam-se e iam perder-se no ponto misterioso que rondava…” [10]
Um dos momentos mais bonitos é quando Gabriel estende ao anjo uma foto antiga e já meio desbotada:
“E o anjo olhou-a com o fulgor do seu olhar e viu um menino de ar triste que esboçava um sorriso e não escondia o espanto pelo que se desenrolava em frente dele, no espaço. A seu lado, outros meninos, e adultos, no convívio enigmático entre mortos e vivos que existe nalgumas das velhas fotografias: ali, um muro, um chão de ervas, uma árvore de inverno despida de folhas… e os humanos. Reparou o anjo que a marca do menino no papel era mais viva do que a das outras figuras—por ser ainda o único sobrevivente.
__O menino, era eu… sou eu, posso dizê-lo. Acaso sabes o que o atraía nesse instante preciso? O que havia de extraordinário diante dele?
O anjo esteve mudo um momento. Disse enfim:
__ Eis o que não me ocupa nem me interessa. O que viram os humanos é como um sonho que se perde.”
E, por fim, Gabriel conhecerá (mas não o acompanharemos) o que a Noite dissimula (Blanchot: “Olhar na noite o que a noite dissimula, a outra noite…”). E tudo sempre regido pelo compasso do Olhar, nesse livro de implacável coesão.
III
“___ (…) Assim é que eu, que queria viver só nas montanhas, viajo, depois da minha morte por todos os países da Terra.
__ E não tem parte alguma no Além? –perguntou o prefeito, com a testa franzida.
__ Estou sempre na grande escada que leva para o alto –respondeu o caçador. –Fico dando voltas por essa escadaria infinitamente ampla, ora para cima, ora para baixo, ora à direita, ora à esquerda, sempre em movimento. O caçador tornou-se borboleta (…) Estou aqui, mais que isso não sei, mais que isso na posso fazer. Meu barco não tem leme, navega com o vento que sopra nas regiões inferiores da morte.” (Franz Kafka, O caçador Graco[11])
O próximo relato em primeira pessoa é A passagem ou O regresso do caçador Gracchus. Desta vez, o caçador que morreu e não consegue deixar o nosso “plano” terreno e material, devido a um erro de pilotagem (“Sim, perdeu-se o ângulo justo para o continente da morte. Um grão de caos infiltrou-se na bússola…”), aporta em Kirkenes, povoado onde mora o narrador, o qual sonhou que o amaldiçoado viajante “chegaria” [12], augúrio confirmado pela aparição de pombos, um dos quais martela com o bico o vidro de uma janela, transmitindo a “mensagem” do retorno cíclico e vão, a “rota absurda” de quem deixou de existir e no entanto erra pelo mundo. Como o cabalista Gabriel, como o astrônomo Efraïm, em seus vastos universos do Conhecimento, há algo que se recusa a se deixar “apanhar”, uma equação que se furta; assim como o Livro (seu único Livro, a obra de uma vida) do filósofo JL, em A Paixão Segundo JL[13], no qual tentava sintetizar toda a questão da “liberdade”:
“…se afadigava em reunir todos os fios do problema que na mão lhe coubessem (…) O que procurava, obstinado, era um ponto de apoio contra o universo fluido heraclitiano onde a água das aparências corria pelo tempo do rio e a fúria do fogo. Queria, pela força só da reflexão e a caução da escrita—como o grande Cartesius—encontrar, criar esse ponto imóvel, firme e improvável, de onde pudesse lançar um olhar absoluto sobre a Coisa crua que rondava, e submetê-la.”
Aquém (no sentido de ser uma vida individualizada) dessas abissais “solidões”, desses seres/não-seres (Deus, Gracchus) em que a sempiternidade confina com a morte tornada condição essencial, temos o espécime único (“Singular condição, a de estar só na sua espécie—ser o primeiro? Ou o último?…”), ser bizarro, agrilhoado entre sua natureza animal e o espaço humano, em Hapax, outro relato em primeira pessoa[14]. Estamos no reino parcelar da memória individual, aquele mesmo tão merecedor do desdém do anjo (em O último fio do tempo):
“A memória, mesmo a de um animal estranho, é um fenômeno que perturba: esquece o fundamental, guarda o supérfluo, distorce o real, mistura o que vivemos com o que nos contam, junta razão e emoções, palavra e mundo, cede ao esquecimento que chega a encobrir de nós o nosso passado—e ainda assim forma o pilar da identidade e da possibilidade de conseguirmos algum saber a partir das coisas em redor”.
Uma névoa cobre as origens de Hapax. Ele começa a contar sua vida a partir do ponto em que foi capturado na floresta e se torna animal de estimação e companheiro dos filhos de Robert, Felix e Flori: “Cresci, portanto, entre aquela família, afeiçoei-me aos seus padrões, ritmos e preceitos (…) Cedo os meus captores se habituaram à minha presença, e eu fui sentindo-me absorvido pelos seus hábitos, dia após dia. E como os humanos se prendem aos animais que crescem no seu espaço, Felix e Flori afeiçoaram-se a mim, e eu a eles. Brincávamos juntos. Sendo todos meninos, dormíamos em camas semelhantes, comíamos em gamelas gêmeas…”[15].
Malgrado a incontornável situação do Ser cativo, poderia ser um quadro idílico, mas vejamos a continuação do texto: “Às vezes, enrolava-me sobre as coxas da pequena Flori, sorvia-lhe o doce cheiro; mas pouco tempo Flori ficava imóvel, um frenesim infantil a agitava, que me impedia de entrar no paraíso quando me sentia já às suas portas…” Quer dizer, a animalidade adormecida explodirá no tempo azado, já se está tecendo uma crise (e, portanto, um impasse) nessa aparente calmaria (“Mas eis que Flori desabrochou de súbito em formas, cores e cheiros de mulher…”).
Mas além da bonita estranheza que a situação-chave de Hapax nos proporciona, gostaria de chamar a atenção, mais uma vez, para os liames-filamentos através dos quais Vieira aproxima as mais diferentes (no sentido de ambientação e espaço civilizatório) situações: o mar arrebatou Efraïm, o astrônomo, e JL, o filósofo, e Robert, o pai (que evoca, por efeito do empréstimo de alguns nomes, Robert Walser), citando o exemplo de Kant, leva todos para conhecer o mar (“Num dia outonal de céus cinzentos, Robert levou-nos a ver o mar. Até o filósofo Kant—disse-nos—interrompeu um dia seu trabalho para ir conhecer o mar…”[16]) cuja visão deslumbra e perturba Hapax, que pensa em volta do fogo, à noite:
“Ser plenamente humano, pensei, era talvez partir à procura das raízes-razões mais fundas do mundo, como fizera o filósofo Kant: partir a interrogar o que havia sob as aparências, por baixo das cintilações sombrias do mar e coruscantes do fogo. Gostaria de o saber fazer, apesar dos riscos que antevia, da grande solidão que adivinhava em tal projeto.”
À descoberta do mar vem se acrescentar um olhar sobre o evento do cometa Halley, registro contingente de uma passagem “histórica”, mas também um dos rastros da “dissimulação da Noite”, com suas mensagens crípticas.
IV
“O meio de sedução deste mundo e o sinal que adverte do caráter unicamente transitório deste mundo são uma e a mesma coisa. Com razão, porque só desta maneira este mundo nos pode seduzir e isso corresponde à verdade. A desgraça é que depois de uma sedução conseguida, nos esquecemos da advertência e que assim, na realidade, o Bem nos arrastou para o Mal e o olhar da mulher para o seu leito.”
“A nossa salvação é a morte, mas não esta.” (Franz Kafka[17])
Uma constante da existência “cativa” de Hapax é o olhar sobre a sua aparência:
“Quando a minha figura assomou por fim à luz e lhes foi entregue sem defesa, logo se abandonaram a grandes risos, coro de clamores ritmados, ondulantes, que lhes contorciam as faces e me apavoraram. Vi, assestados em mim, os grandes olhos claros com discos azuis dourados como astros: eram olhos-globo luminosos, transparentes, sobre os quais se recortavam reflexos de objetos. Distingui mesmo entre estes um vulto fusiforme e furtivo de cor fulva, inepto no mover-se, inábil no erguer-se, vulto de um ser fugidio, assustado, e concluí que era a imagem espelhada de mim próprio.”
A “aparência” (ou aparências sucessivas) e o papel social que é reservado aos seus portadores, é uma tônica dos textos da segunda metade de Olhares de Orfeu. Como antes, tomo como eixo um dos relatos em primeira pessoa, A transmigração (embora neste caso o narrador seja um “nós”, representando um grupo de arqueólogos, e os fatos centrais não sejam diretamente ligados a ele). No Japão, um túmulo é descoberto e explorado para pesquisa: “…tratava-se da última morada da princesa Nakonokimi, que na primeira juventude se casara com o imperador Toba e fora mãe do futuro imperador Sutoku”.
Apesar de uma beleza fenomenal, ela fora repudiada duas vezes: primeiro, pelo homem que a tomara (ainda criança) como concubina, o imperador Xirakawa. Para mexer os pauzinhos e permanecer no poder, ele renunciara (parecia, nessa época, mais interessante ser regente do que imperador em efetivo exercício, há uma miríade de imperadores-crianças e regentes com todo o poder) e a forçara a casar com o neto, Toba, que depois fez o mesmo. Uma história típica da complexidade da Corte japonesa; todavia, como nos alerta o narrador: “O que nos atraía e obcecava, nesses momentos que precederam a abertura da câmara, não era tanto a elucidação histórica de um período remoto e venerável como o desvendamento da pessoa secreta de Nakonokimi, mantida sempre na sombra da História; sentíamos o desejo instante de desvendar algo da sua figura nebulosa…”
A câmara mortuária decepciona os pesquisadores. Tudo o que era importante encontra-se devastado e restaram pouquíssimos traços que ajudem a entender a pessoa secreta de Nakonokimi (“… dois espelhos de bronze, porventura oferecidos a Buda—e fizeram-nos sonhar com o reflexo ausente da princesa, que decerto outrora os animara. Mas não sabíamos como interrogar a memória dos espelhos”).
A descoberta mais estimulante são algumas sementes de uma espécie extinta de magnólia. Os arqueólogos decidem plantá-las num canteiro protegido no campus. Ali nasce uma flor resplandecente e de cheiro delicioso, cheia de frescura e brilho. Sua existência é desalentadoramente efêmera e nunca mais se repete a floração: “…dir-se-ia que se entregara ao nirvana, renunciando ao desejo de florescer, frutificar e dar sementes. Suspendera seu destino, como se nela transmigrara a princesa, tendo-se a sua essência entregado àquela única semente, àquela flor, repetindo nas seivas e ciclos da magnólia a sua existência mirífica, por forma a surgir ainda uma vez no mundo das aparências—a saudar, quem sabe, a nossa devoção—mas retirando-se definitivamente”.[18]
Em terceira pessoa e aparentemente muito afastado dos temas “japoneses” da transmigração de almas e da beleza que se retira do mundo (é boa demais para ele, talvez; pelo menos não para o tabuleiro dos interesses do poder), O bom selvagem narra como H. ao evadir-se do mundo civilizado para viver nas Ilhas Marquesas (no final do século XIX) se deixa obcecar pela beleza da nativa O. e, para tê-la, se submete aos ritos sociais: o homem para ter valor e ser aceito como marido precisa se deixar tatuar. O corpo inteiro, de preferência: “As dimensões da tatuagem designavam a beleza, a riqueza e também a resistência física, tão dolorosa e arriscada era a sua escarificação”. Durante um longo tempo, e utilizando praticamente todo o seu capital ele se isola para que os tukunas (os tatuadores rituais) lhe deixem o corpo no estado “prestigioso” para se oferecer como marido de O.
Se o olhar poético do presente tenta resgatar a beleza infeliz da princesa Nakonokimi da sua abjeção (na realidade histórica pretérita sem mistificação) como objeto de troca e barganha, o olhar que a dedicação de H. (em seu “renascimento”, transmigração simbólica) merece é o do desprezo e da derrisão: “Ora, eis que, chegando O. diante dele, olhando-o com pasmo ao ver as negras marcas sobre a brancura nórdica da pele, explodiu num grande riso. Não podia tomá-lo a sério! De novo o olhou, de novo foi sacudida por esse riso insano. Voltando á sua presença em dias que se seguiram, sempre era possuída do mesmo riso louco e convulsivo, tornando-se incapaz de o olhar sem rir.”
Assim como Hapax, mesmo humanizando-se sempre será olhado como ser estúrdio (e por isso para ele é um alívio encontrar um cantinho escondido, coisa que todo Gregor Samsa em botão acaba aprendendo), mesmo “retirando-se” daquele mundo “idílico” (como fez a princesa) H. carregará em si as marcas que determinaram sua expulsão e um papel social impossível: nem poderá voltar totalmente ao mundo dos brancos nem poderá pertencer ao mundo de O., especialmente sob ridículo. Só poderá “ausentar-se” do mundo através do álcool, permanecendo como triste figura para os viajantes: “Ébrio de álcool, ébrio de sol, parecia melancólico e como ausente, alheio ao mundo. Assim o avistavam os raros visitantes chegados da Europa, olhando-o, intrigados, consternados enfim ao escutarem rumores da sua história”.
V
“E de repente, nessa dificultosa Parte-Alguma, de repente
eis o inefável lugar em que o puro Muito-Pouco
incompreensivelmente se transforma—, muda-se num átimo
em vácua Demasia.
Onde a operação de tantas casas decimais
resolve-se sem números.”
“Quem nos fez virar de tal maneira que,
façamos o que for, imitamos a postura
de quem se vai? Como aquele que do alto
do derradeiro monte, a desdobrar-lhe uma outra vez ainda
seu vale todo, volta-se, detém-se e se demora—
assim vivemos nós em despedida sempre.” (Rainer Maria Rilke, Elegias Duinenses[19])
E no último texto, Eram tons só cinzentos sobrepostos[20], como era de se esperar, Orfeu faz sua aparição encarando o que se dissimula na Noite, recolhendo do volume inteiro (e sintetizando) todo o jogo de sombra e luz, de manifestações transitórias e incognoscíveis forças eternas:
“Como distinguir os mais densos cinzentos da perfeita treva? E quando dominaria esta todo o espaço, abolindo contornos e contrastes? Era um tempo que escasseava e descaía para zero, enquanto o Não-ser se avizinha para se fazer eternidade. Havia nele, isso sim, uma voz discorrendo sem som, flocos de discurso que se abriam para força de afirmação subsistente, ali onde presença alguma devia ser consentida”.
Assim, Olhares de Orfeu estaca—grandiosamente, decerto (ainda que eu destacasse, no conjunto, O último fio do tempo, Hapax e A transmigração, caso tivesse de fazer tal exercício de preferência)— no pórtico de uma experiência-limite, o abismo entre trevas. A noite absoluta, a outra noite. Onde os mistérios palpitam.
[1] Em tradução de José Paulo Paes (Poemas– Companhia das Letras, 2012). Para acompanhar o mote, poderia até ter me valido de algum dos Sonetos a Orfeu, mas o poema citado não é menos pertinente, creio eu.
[2] O livro saiu pela &etc, das Edições Culturais do Subterrâneo, de Lisboa. Não deixa de ser adequado que uma obra assim saia por uma editora cujo nome agrega a ideia de “subterrâneo” (lembremos que um dos contos, A aparição, já aparecera numa antologia publicada pelas Edições Labirinto).
A minha ressalva quanto a essa edição de Olhares de Orfeu tem a ver com a capa escolhida (de Luís Manuel Gaspar). Lembrando de certa forma as criações de Elifas Andreato, ela me parece “pop” demais, inadequada para o universo explorado por Vieira.
[3] Utilizo a tradução brasileira de O espaço literário, feita por Álvaro Cabral e publicada pela Rocco em 1987.
[4] Essa característica já tinha me impressionado ao ler o seu Doutor Fausto. Diga-se de passagem, é sempre a exploração dos veios mais significativos (e ao que parecem, inesgotáveis) da nossa “alta” cultura. A diferença entre os dois livros, mais do que o exercício do gênero, está no tom. Doutor Fausto entrelaça o imaginário fáustico, no que tem de luz e sombra, ao imaginário do don-juanismo (Eros com todos os seus atributos e contradições). Parece-me, se é que não me equivoco totalmente, que os relatos de Olhares de Orfeu são mais agônicos, mais sombra que luz, uma retração acentuada de Eros.
[5] Os demais apareceram em antologias ou revistas, em Portugal ou na França. O grande luto e Hapax (este com outro título, Névoa sobre as origens) são versões bem modificadas, mais sucintas, dos dois relatos iniciais de Sete contos de fúria, publicado em 2002, no Brasil, pela Globo.
[6] É impressionante como o texto ficou concentrado nessa nova versão. Na que abre os Sete Contos de Fúria há passagens que lamentamos terem sido “sacrificadas”, porém o efeito do texto se intensifica sobremaneira.
[7] Nesse universo à Blanchot, de Noite e suas dissimulações, não podia ser o próprio reflexo, como na história do Narciso prototípico, e sim uma sombra.
[8] Como se diz em O grande luto, a morte de Deus (reconhecida na “indiscrição de um olhar”) reduz tudo à condição de Jogo: “…o novo soberano, o Jogo triunfante que restava…” (ou seja, “a razão da não-razão das coisas”).
[9] Uma referência a uma passagem do Diário de Kafka. Consultei a minha edição, sempre à mão, da seleção feita por Alfredo Margarido (Antologia de páginas íntimas, Guimarães Editores, 2002) e infelizmente não a encontrei (ela foi feita em 7 de janeiro de 1912, e a escolha de trechos deste ano feita por Margarido começa em 13 de fevereiro).
[10] “__ É o ponto ávido e sempre insatisfeito para o qual convergem todos os fios do tempo—pensou Gabriel—arrastando primeiro os objetos mais frouxos, que vão perdendo a sombra e aos quais me assemelho…”
[11] Utilizo a versão de Modesto Carone (Narrativas do Espólio, Companhia das Letras, 2002).
[12] Novamente temos aqui uma ideia necrofílica, em seu fundo fisiológico, de algo que está substancialmente morto, mas que ainda atua na realidade e nas consciências, e que encerra um enigma que pode ser, ao fim e ao cabo, gratuito e aleatório: “… correrei em vão todos os oceanos, regressando eternamente aos mesmos portos. Mas, se eu permaneço—ah, tristemente!—eles transforma-se. Pelas minhas viagens sem termo vejo o mar fenecer e a humanidade declinar, sem que os homens o sintam. Quando os humanos todos se perderem, o meu percurso, garanto-lhe, será ainda mais solitário.”
[13] Dedicado ao admirável Benedito Nunes, esse conto faz referência a um pensador de quem jamais li uma linha sequer, Jules Lequier.
[14] Coloquei o termo “aquém”, mas a ambiguidade do texto permite que o relativizemos. Lembrando das irmãs que, para os gregos, teciam o destino humano, Hapax afirma: “De resto, li que os deuses desse povo tomavam aspectos singulares—de camponeses, crianças, por vezes mesmo de animais nunca vistos…” Num mundo reificado e do qual o sagrado (no sentido “arcaico”) praticamente se retirou, não é de todo improvável que um deus perdesse a memória originária.
[15] Com relação à versão que aparece nos Sete contos de fúria, apesar de extensos cortes, não sentimos tão intensamente o efeito impactante de concentração extrema da 2ª. versão de O grande luto; no relato de que me ocupo agora, parece-me que houve mais uma revisão estilística rigorosa, mas sem o mesmo radicalismo.
[16] E Hapax nos diz: “Compreendi então a importância do mar, entidade para mim ainda abstrata: Se um filósofo—homem especial entre todos, que minimiza o trivial para se ocupar das raízes e razões últimas das coisas—suspendera o seu labor intenso para ir olhar algures a coisa mar, é que esperava dela argumento ou ardil para ajuizar do tecido do mundo…” Até pela presença de um incipiente erotismo (com relação a Flori), Hapax foi o texto de Olhares de Orfeu que senti mais próximo de Doutor Fausto.
[17] Utilizo a já citada versão de Alfredo Margarido (Antologia de páginas íntimas).
[18] A esse belíssimo relato ligam-se os dois textos anteriores de Olhares de Orfeu, A aparição (também em primeira pessoa) e A princesa de Nara, pelo tema da aparição efêmera e da roda do tempo; no entanto considero ambos os momentos mais frágeis da coletânea, quase notações—decerto com trechos maravilhosos—mesmo assim textos de um escopo mais evidentemente limitado.
[19] Cito mais uma vez em versão de José Paulo Paes.
[20] Não, leitor, nada a ver com aquele tremendo best seller pseudo-erótico.