MONTE DE LEITURAS: blog do Alfredo Monte

31/07/2015

«O que viram os humanos é como um sonho que se perde»: António Vieira e os olhares de orfeu

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«É às noites que minha alma se confia» (Rainer Maria Rilke)

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Os 12 contos reunidos por António Vieira em Olhares de Orfeu têm como mote as considerações de Maurice Blanchot sobre Orfeu no clássico O espaço literário (1955)[1]. Se no Segundo Fausto goethiano, Mefistófeles diz: compreender à luz do dia é ninharia, mas na escuridão todos os mistérios palpitam, o grande pensador francês radicaliza essa potência da noite, sua “dissimulação”, ao ponto de tornar a exploração dos seus mistérios sempre uma tarefa oblíqua, um “risco do olhar”:

Orfeu pode tudo, exceto olhar esse ponto de frente, salvo olhar o centro da noite na noite. Pode descer para ele; pode, poder ainda mais forte, atraí-lo a si e, consigo, atraí-lo para o alto, mas desviando-se dele: tal é o sentido da dissimulação que se revela na noite (…) A profundidade não se entrega frontalmente, só se revela dissimulando-se na obra (…) ao voltar-se para Eurídice, Orfeu arruína a obra, a obra desfaz-se imediatamente, e Eurídice retorna à sombra; a essência da noite, sob o seu olhar, revela-se como não-essencial. Assim traiu ele a obra, Eurídice e a noite…

   Não se espante o meu leitor, e muito menos se retraia, ao constatar que antes mesmo de comentar os textos de Olhares de Orfeu, já saí citando Goethe e Blanchot. Os relatos aí enfeixados exploram o órfico, o ctônico, e também o imaginário dito “primitivo” (“O bom selvagem” transcorre nas Ilhas Marquesas), além das tradições orientais (“exóticas”, mesmo hoje) e, claro, linhas de força da tradição greco-romana em nossa constituição mental; sobrepairando, a tradição judaico-cristã, tanto nos aspectos bíblicos (em particular, o Velho Testamento) quanto nas suas explorações mais audaciosas (o veio cabalístico).

Além dessa mobilidade impressionante por entre tantas perspectivas culturais, deslocando-se totalmente da ancoragem no contemporâneo mais evidente e contingente, parece-me crucial chamar a atenção para o seguinte fenômeno: como Hilda Hilst —único caso de um escritor nas últimas décadas, entre os que eu conheço, que tem o mesmo destemor, e o escopo para tanto—, Vieira não tem medo de se colocar tête a tête com Blanchot, Nietzsche, Kafka (de quem retoma um conto fragmentário e inquietante, aquele do caçador Gracchus), Valéry, Kierkegaard, Walser, Kant, Stevenson, sem falar nos textos bíblicos; ou seja, ele sempre se situa nos cumes da criação e da reflexão (que me perdoem os desconstrucionistas e relativistas). E nem deveria ter: com relação a essa arriscada mirada de Orfeu, se o leitor se dá conta de uma ambição (e consequente dicção) invulgar nestes tempos que correm, também percebe nitidamente a falta de presunção, afetação ou recurso à erudição-google.

O fato é que estamos diante de um dos maiores praticantes do jogo literário contemporâneo (o virtuosismo de Vieira faz dele, mais do que um homônimo, um verdadeiro avatar no século XXI do “imperador da língua portuguesa”), e um dos mais singulares, justamente pela sua teimosia em não descer dos cimos.

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Dos doze relatos de Olhares de Orfeu, cinco são feitos na primeira pessoa. Um deles é o único inédito da coletânea[2], “Jonas ou Os benefícios da prece”. Seu protagonista é o personagem bíblico, que se encontra dentro do grande peixe (À náusea pelo conteúdo das entranhas do peixe—Teu servo quanto eu—e pelos odores fermentados que encerravam, sucedeu a náusea—esta exaltante em extremo—de sozinho, decidir com a razão se era vivo ou morto, e o que era a vida, e mesmo a morte, e o cenário de uma e outra, e a fronteira entre uma e outra em situação terrível) e coloca em equação tanto um dos riscos do Olhar (no caso, o de Deus focalizado em Jonas) quanto a exploração tópica da Noite, enquanto entranhas do ser e potência do não-ser (e por extensão, estas mesmas entranhas tornadas subterrâneo, descenso, experiência ctônica), porque na escuridão se me suscitaram luzes a que na luz nunca acedera. É como se assistíssemos ao parto de um novo Jonas, aquele que pode corresponder ao chamado de Deus, de que ele se esquivara.

Apesar dessa moral da fábula mais para o positivo (mesmo levando em consideração a agônica experiência), o relato de Jonas estabelece liames, ou antes, na linguagem recorrente do autor, filamentos, com os outros textos (estes, em terceira pessoa) que se valem da tradição judaico-cristã, no que ela tem de mais entranhado em nós: é o caso de “O grande luto”, onde um astrônomo judeu, Efraïm, tem em mãos o mapeamento dum setor do universo no qual se pode ver o cadáver de Deus:

Mirava o grande corpo destroçado, ali, no umbigo cósmico, a dispersar-se por entre acúmulos de formas negras. Da mão, escapavam-Lhe ainda os primeiros fios do tempo; letras hebraicas desconjuntas jorradas da Sua boca (tinham composto a fórmula mágica do mundo!) dispersavam-se em redor da fonte de onde jorrara o Ente, sementeira improfícua… Provinham da palavra inacabada de Deus feita Ser, e logo feita caos, e juntavam estilhaços de verbo aos do divino espólio…

Orfeu ousou olhar o que não podia ser olhado e, a seguir, tentando evitar as consequências dessa mirada escatológica, metamorfoseia-se ironicamente em Narciso, diante do mar (que se fará presente em muitos dos relatos):

Debruçou-se. Um turbilhão contorcia a água obscura, movia a película em que cintilavam fogos efêmeros, separando um véu de sombra da luz nascente. Enigma… Pareceu-lhe que aquele mar repetia algo do céu profundo onde pulsava o inaudito. Foi quando entreviu, sem a reconhecer, a própria sombra, estampada na pele tremeluzente da água junto ao sorvedouro, entre laivos de luz. Sentiu o terror e a atração daquela silhueta, como se algo ali se repetisse. Para ver mais de perto inclinou-se das rochas, mas precipitou-se, e com o seu segredo se perdeu…

É o caso, igualmente, de “O festim”, onde há uma aposta pelo destino do mundo entre Deus e Leviathan, o monstro das profundezas: Porque Deus queria dar rumo ao tempo e fazê-lo atingir um ponto fixado desde o início; quando Leviathan tomara gosto pelo jogo enquanto puro jogo, o que arrastaria à anarquia cósmica. A aparição de um anjo (só mesmo um autor do quilate de Vieira pode tornar isso de aparição de um anjo possível, e conseguir que o levemos a sério) é arauto de uma festa universal, onde será conhecido o vencedor do Jogo.

É difícil pensar em qualquer paralelo para esse trio de textos na ficção atual, quanto ao que eles entretecem de especulação metafísica e utilização das grandes fontes do misticismo judaico-cristão, e mais ainda quanto ao seu tom elevado. No entanto, logo em sequência a “Jonas”, temos o extraordinário “O último fio do tempo”, ponto altíssimo na obra de Vieira, no qual mais um anjo aparecerá, a buscar a alma de Gabriel, cabalista que chegara à seguinte e sombria conclusão: As criaturas eram-lhe impenetráveis, devia renunciar a captar a verdade mais profunda que habitava nas coisas.

Toda a construção fabular do conto é muito marcante: a linguagem corporal do anjo, as suas plumas, o seu falar que é também um destilar de caracteres hebraicos, o “ponto” que vai sugando os elementos da “realidade”: … as suas palavras, desenhadas com elegantes caracteres hebraicos negros e fecundos, saíam outra vez de sua boca, ondeavam junto ao cone de luz do abat-jour, rodavam em espiral, afilavam-se e iam perder-se no ponto misterioso que rondava…

E, por fim, Gabriel conhecerá (mas não o acompanharemos) o que a Noite dissimula (Blanchot: Olhar na noite o que a noite dissimula, a outra noite…). E tudo sempre regido pelo compasso do Olhar, nesse livro de implacável coesão.

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O próximo relato em primeira pessoa é “A passagem ou O regresso do caçador Gracchus”. Desta vez, o caçador que morreu e não consegue deixar o nosso “plano” terreno e material, devido a um erro de pilotagem (Sim, perdeu-se o ângulo justo para o continente da morte. Um grão de caos infiltrou-se na bússola…), aporta em Kirkenes, povoado onde mora o narrador, o qual sonhou que o amaldiçoado viajante chegaria, augúrio confirmado pela aparição de pombos, um dos quais martela com o bico o vidro de uma janela, transmitindo a mensagem do retorno cíclico e vão, a rota absurda de quem deixou de existir e no entanto erra pelo mundo.    Como o cabalista Gabriel, como o astrônomo Efraïm, em seus vastos universos do Conhecimento, há algo que se recusa a se deixar apanhar, uma equação que se furta; assim como o Livro (seu único Livro, a obra de uma vida) do filósofo JL, em “A Paixão Segundo JL”[3], no qual tentava sintetizar toda a questão da liberdade:

…se afadigava em reunir todos os fios do problema que na mão lhe coubessem (…) O que procurava, obstinado, era um ponto de apoio contra o universo fluido heraclitiano onde a água das aparências corria pelo tempo do rio e a fúria do fogo. Queria, pela força só da reflexão e a caução da escrita—como o grande Cartesius—encontrar, criar esse ponto imóvel, firme e improvável, de onde pudesse lançar um olhar absoluto sobre a Coisa crua que rondava, e submetê-la…

   Aquém (no sentido de ser uma vida individualizada) dessas abissais “solidões”, desses seres/não-seres (Deus, Gracchus) em que a sempiternidade confina com a morte tornada condição essencial, temos o espécime único (Singular condição, a de estar só na sua espécie—ser o primeiro? Ou o último), ser bizarro, agrilhoado entre sua natureza animal e o espaço humano, em “Hapax”, outro relato em primeira pessoa. Estamos no reino parcelar da memória individual, aquele mesmo tão merecedor do desdém do anjo (em “O último fio do tempo”):

   A memória, mesmo a de um animal estranho, é um fenômeno que perturba: esquece o fundamental, guarda o supérfluo, distorce o real, mistura o que vivemos com o que nos contam, junta razão e emoções, palavra e mundo, cede ao esquecimento que chega a encobrir de nós o nosso passado—e ainda assim forma o pilar da identidade e da possibilidade de conseguirmos algum saber a partir das coisas em redor…

Uma névoa cobre as origens de Hapax. Ele começa a contar sua vida a partir do ponto em que foi capturado na floresta e se torna animal de estimação e companheiro dos filhos de Robert, Felix e Flori: Cresci, portanto, entre aquela família, afeiçoei-me aos seus padrões, ritmos e preceitos (…) Cedo os meus captores se habituaram à minha presença, e eu fui sentindo-me absorvido pelos seus hábitos, dia após dia. E como os humanos se prendem aos animais que crescem no seu espaço, Felix e Flori afeiçoaram-se a mim, e eu a eles. Brincávamos juntos. Sendo todos meninos, dormíamos em camas semelhantes, comíamos em gamelas gêmeas…

Malgrado a incontornável situação do Ser cativo, poderia ser um quadro idílico, mas vejamos a continuação do texto: Às vezes, enrolava-me sobre as coxas da pequena Flori, sorvia-lhe o doce cheiro; mas pouco tempo Flori ficava imóvel, um frenesim infantil a agitava, que me impedia de entrar no paraíso quando me sentia já às suas portas… Quer dizer, a animalidade adormecida explodirá no tempo azado, já se está tecendo uma crise (e, portanto, um impasse) nessa aparente calmaria (Mas eis que Flori desabrochou de súbito em formas, cores e cheiros de mulher…).

Mas além da bonita estranheza que a situação-chave de “Hapax” nos proporciona, gostaria de chamar a atenção, mais uma vez, para os liames-filamentos através dos quais Vieira aproxima as mais diferentes (no sentido de ambientação e espaço civilizatório) situações:  o mar arrebatou Efraïm, o astrônomo, e JL, o filósofo, e Robert, o pai (que evoca, por efeito do empréstimo de alguns nomes, Robert Walser, o grande autor suíço), citando o exemplo de Kant, leva todos para conhecer o mar (Num dia outonal de céus cinzentos, Robert levou-nos a ver o mar. Até o filósofo Kant—disse-nos—interrompeu um dia seu trabalho para ir conhecer o mar) cuja visão deslumbra e perturba Hapax, que pensa em volta do fogo, à noite:

Ser plenamente humano, pensei, era talvez partir à procura das raízes-razões mais fundas do mundo, como fizera o filósofo Kant: partir a interrogar o que havia sob as aparências, por baixo das cintilações sombrias do mar e coruscantes do fogo. Gostaria de o saber fazer, apesar dos riscos que antevia, da grande solidão que adivinhava em tal projeto…

À descoberta do mar vem se acrescentar um olhar sobre o evento do cometa Halley, registro contingente de uma passagem “histórica”, mas também um dos rastros da dissimulação da Noite, com suas mensagens crípticas.

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Uma constante da existência cativa de Hapax é o olhar sobre a sua aparência:

Quando a minha figura assomou por fim à luz e lhes foi entregue sem defesa, logo se abandonaram a grandes risos, coro de clamores ritmados, ondulantes, que lhes contorciam as faces e me apavoraram. Vi, assestados em mim, os grandes olhos claros com discos azuis dourados como astros: eram olhos-globo luminosos, transparentes, sobre os quais se recortavam reflexos de objetos. Distingui mesmo entre estes um vulto fusiforme e furtivo de cor fulva, inepto no mover-se, inábil no erguer-se, vulto de um ser fugidio, assustado, e concluí que era a imagem espelhada de mim próprio…

A aparência (ou aparências sucessivas) e o papel social que é reservado aos seus portadores, é uma tônica dos textos da segunda metade de Olhares de Orfeu. Como antes, tomo como eixo um dos relatos em primeira pessoa, “A transmigração” (embora neste caso o narrador seja um nós, representando um grupo de arqueólogos, e os fatos centrais não sejam diretamente ligados a ele). No Japão, um túmulo é descoberto e explorado para pesquisa: …tratava-se da última morada da princesa Nakonokimi, que na primeira juventude se casara com o imperador Toba e fora mãe do futuro imperador Sutoku…

Apesar de uma beleza fenomenal, ela fora repudiada duas vezes: primeiro, pelo homem que a tomara (ainda criança) como concubina, o imperador Xirakawa. Para mexer os pauzinhos e permanecer no poder, ele renunciara (parecia, nessa época, mais interessante ser regente do que imperador em efetivo exercício, há uma miríade de imperadores-crianças e regentes com todo o poder) e a forçara a casar com o neto, Toba, que depois fez o mesmo. Uma história típica da complexidade da Corte japonesa; todavia, como nos alerta o narrador: O que nos atraía e obcecava, nesses momentos que precederam a abertura da câmara, não era tanto a elucidação histórica de um período remoto e venerável como o desvendamento da pessoa secreta de Nakonokimi, mantida sempre na sombra da História; sentíamos o desejo instante de desvendar algo da sua figura nebulosa…

A câmara mortuária decepciona os pesquisadores. Tudo o que era importante encontra-se devastado e restaram pouquíssimos traços que ajudem a entender a pessoa secreta de Nakonokimi (… dois espelhos de bronze, porventura oferecidos a Buda—e fizeram-nos sonhar com o reflexo ausente da princesa, que decerto outrora os animara. Mas não sabíamos como interrogar a memória dos espelhos).

A descoberta mais estimulante são algumas sementes de uma espécie extinta de magnólia. Os arqueólogos decidem plantá-las num canteiro protegido no campus. Ali nasce uma flor resplandecente e de cheiro delicioso, cheia de frescura e brilho. Sua existência é desalentadoramente efêmera e nunca mais se repete a floração: …dir-se-ia que se entregara ao nirvana, renunciando ao desejo de florescer, frutificar e dar sementes. Suspendera seu destino, como se nela transmigrara a princesa, tendo-se a sua essência entregado àquela única semente, àquela flor, repetindo nas seivas e ciclos da magnólia a sua existência mirífica, por forma a surgir ainda uma vez no mundo das aparências—a saudar, quem sabe, a nossa devoção—mas retirando-se definitivamente…

   Em terceira pessoa e aparentemente muito afastado dos temas japoneses da transmigração de almas e da beleza que se retira do mundo (é boa demais para ele, talvez; pelo menos não para o tabuleiro dos interesses do poder), “O bom selvagem” narra como H. ao evadir-se do mundo dito civilizado para viver nas Ilhas Marquesas (no final do século XIX) se deixa obcecar pela beleza da nativa O. e, para possuí-la, se submete aos ritos sociais: o homem para ter valor e ser aceito como marido precisa se deixar tatuar. O corpo inteiro, de preferência: As dimensões da tatuagem designavam a beleza, a riqueza e também a resistência física, tão dolorosa e arriscada era a sua escarificação. Durante um longo tempo, e utilizando praticamente todo o seu capital ele se isola para que os tukunas (os tatuadores rituais) lhe deixem o corpo no estado prestigioso para se oferecer como marido de O.

Se o olhar poético do presente tenta resgatar a beleza infeliz da princesa Nakonokimi da sua abjeção (na realidade histórica pretérita sem mistificação) como objeto de troca e barganha, o olhar que a dedicação de H. (em seu renascimento, transmigração simbólica) merece é o do desprezo e da derrisão: Ora, eis que, chegando O. diante dele, olhando-o com pasmo ao ver as negras marcas sobre a brancura nórdica da pele, explodiu num grande riso. Não podia tomá-lo a sério! De novo o olhou, de novo foi sacudida por esse riso insano. Voltando à sua presença em dias que se seguiram, sempre era possuída do mesmo riso louco e convulsivo, tornando-se incapaz de o olhar sem rir…

Assim como Hapax, mesmo humanizando-se. sempre será olhado como ser estúrdio (e por isso para ele é um alívio encontrar um cantinho escondido, coisa que todo Gregor Samsa em botão acaba aprendendo), mesmo retirando-se daquele mundo idílico (como fez a princesa) H. carregará em si as marcas que determinaram sua expulsão e um papel social impossível: nem poderá voltar totalmente ao mundo dos brancos nem poderá pertencer ao mundo de O., especialmente sob ridículo. Só poderá ausentar-se do mundo através do álcool, permanecendo como triste figura para os viajantes: Ébrio de álcool, ébrio de sol, parecia melancólico e como ausente, alheio ao mundo. Assim o avistavam os raros visitantes chegados da Europa, olhando-o, intrigados, consternados enfim ao escutarem rumores da sua história…

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E no último texto, “Eram tons só cinzentos sobrepostos”, como era de se esperar, Orfeu faz sua aparição encarando o que se dissimula na Noite, recolhendo do volume inteiro (e sintetizando) todo o jogo de sombra e luz, de manifestações transitórias e incognoscíveis forças eternas:

Como distinguir os mais densos cinzentos da perfeita treva? E quando dominaria esta todo o espaço, abolindo contornos e contrastes? Era um tempo que escasseava e descaía para zero, enquanto o Não-ser se avizinha para se fazer eternidade. Havia nele, isso sim, uma voz discorrendo sem som, flocos de discurso que se abriam para força de afirmação subsistente, ali onde presença alguma devia ser consentida…

Assim, Olhares de Orfeu estaca—grandiosamente, decerto (ainda que eu destacasse, no conjunto, “O último fio do tempo”, “Hapax” e “A transmigração”, caso tivesse de fazer tal exercício de preferência) — no pórtico de uma experiência-limite, o abismo entre trevas. A noite absoluta, a outra noite. Onde os mistérios palpitam.

[uma versão do texto acima foi publicada no LETRAS IN.VERSO E RE.VERSO em 29 de julho de 2015, VER: http://letrasinversoreverso.blogspot.com.br/2015/07/antonio-vieira-e-os-misterios-que.html][4]

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TRECHO SELECIONADO

     «E o anjo olhou-a com o fulgor do seu olhar e viu um menino de ar triste que esboçava um sorriso e não escondia o espanto pelo que se desenrolava em frente dele, no espaço. A seu lado, outros meninos, e adultos, no convívio enigmático entre mortos e vivos que existe nalgumas das velhas fotografias: ali, um muro, um chão de ervas, uma árvore de inverno despida de folhas… e os humanos. Reparou o anjo que a marca do menino no papel era mais viva do que a das outras figuras—por ser ainda o único sobrevivente.

__O menino, era eu… sou eu, posso dizê-lo. Acaso sabes o que o atraía nesse instante preciso? O que havia de extraordinário diante dele?

    O anjo esteve mudo um momento. Disse enfim:

__ Eis o que não me ocupa nem me interessa. O que viram os humanos é como um sonho que se perde»

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NOTAS

[1] Cito o livro na edição portuguesa da &etc (Edições Culturais do Subterrâneo), 2013. Quanto a Blanchot, me valho da tradução de Álvaro Cabral (Rocco, 1987).

[2] Os demais apareceram em antologias ou revistas, em Portugal ou na França. “O grande luto” e “Hapax” (este com outro título, “Névoa sobre as origens”) são versões bem modificadas, mais sucintas, dos dois relatos iniciais de Sete contos de fúria, publicado em 2002, no Brasil, pela Globo.

[3] Esse conto faz referência a um pensador de quem jamais li uma linha sequer, Jules Lequier, e dedicado ao grande Benedito Nunes.

[4] VER AQUI NO BLOG: https://armonte.wordpress.com/2014/01/31/destaque-do-blog-olhares-de-orfeu-de-antonio-vieira/

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28/07/2015

Destaque do Blog: O ORÁCULO, de António Vieira

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«O que está iminente, Priscos, é uma guerra dos mundos: não são mais dois impérios que se defrontam—gregos contra persas, romanos contra partas—mas duas religiões que disputam o poder no futuro. E quem vencer—mais na mente dos homens do que nos campos de batalha—mudará a sorte do mundo e dos povos, e o destino das mentalidades…

  Nunca o futuro pareceu tão opaco. Um só passo em falso, e entraremos num tempo de trevas…»

(uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 28 de julho de 2015)

O francês Michel Houellebecq conseguiu enorme repercussão com o romance Submissão, sua advertência ficcional sobre o perigo do fundamentalismo religioso triunfar por vias insidiosas, devido a uma anestesia ideológica generalizada[1].

De forma mais discreta (no quesito divulgação), nem por isso menos poderosa e eloquente, na peça O Oráculo, António Vieira, um dos maiores escritores vivos, se vale da malfadada tentativa de Juliano (331-363 d.C.) em deter o avanço de um cristianismo obscurantista e reviver os valores helenísticos. Como ele mesmo diz, no terceiro e último ato: «…sou e quero ser grego, mesmo como imperador romano (…) O mundo do futuro há de ser uma expansão da Grécia dos grandes séculos, ou não merecerá a História».

A essa altura, o chamado Apóstata saiu em campanha contra os persas, invadindo a Ásia, seguindo o exemplo de Alexandre[2]. Com isso, ele contraria o vaticínio do oráculo de Delfos, em demanda do qual enviara homens de confiança (o médico Oribase de Pérgamo e o filósofo Priscos), e que, proferido, indicara o fim dos deuses antigos e até mesmo do templo de Apolo: «Pode assim um grande deus significar o seu próprio crepúsculo, o fim da sua era, o declínio do seu povo? Ou uma nova ambiguidade se esconde sob os versos, que não logramos decifrar? » .

É o vandalismo dos cristãos mais fanáticos (representados, em cena, por São Gregório Nazianzeno), destruindo locais e objetos sagrados, que faz com que Juliano ignore tragicamente o augúrio oracular[3].  Afinal, ele vive um tempo de encruzilhada, um momento histórico «em que mil seitas e filosofias prosperam e todas nos prometem, cada uma a seu jeito, a salvação».

O escritor português revive com intensidade e precisão (seu texto sempre é fora do comum) um costume caído em desuso, o de utilizar figuras míticas ou históricas da Antiguidade para debater no palco assuntos candentes da hora. Exemplos ilustres (e ainda apaixonantes) dessa linhagem são peças como As Moscas, de Sartre, ou Calígula, de Camus. E nada mais urgente, quando a própria Grécia e seus impasses estão na boca de todos, do que discutir o futuro da civilização: se vamos retroceder em todas as conquistas humanísticas ou trilhar os vãos da intolerância, do fanatismo e do atraso (tanto no sentido econômico quanto no social).

Dissimuladas nas dobras dessa batalha entre forças luminosas e retrógradas, existem potências mais arcaicas, obscuras, oriundas da Noite e do Caos, perante as quais um iludido e incauto Juliano acredita poder triunfar, acampado no deserto, no derradeiro ato da sua existência, mas que já se faziam presentes desde a consulta ao oráculo: «Quem sabe se, acima dos olímpicos, outros deuses, mais remotos, mais poderosos, não conhecem os Fados? … estão junto a nós—imóveis, irreconhecíveis, imperecíveis. Chamam-se Caos e Cronos, Érebo, a Noite antiga. São os primeiros deuses, informes, nascidos sem amor. São os senhores do jogo: a História é seu brinquedo, e os humanos. Junto deles, no limite, abre-se um grande abismo».

Na segunda parte do Fausto, o Mefistófeles de Goethe nos diz «compreender à luz do dia é ninharia, mas na escuridão todos os mistérios palpitam». A excepcional obra de Vieira (coletâneas como Contos com Monstros, Sete Contos de Fúria, Olhares de Orfeu; sua versão romanesca da história de Fausto; seu aforismático e crispado Ensaio sobre o Termo da História), que há muito já deveria ser cogitada para o Nobel, sempre vem nos lembrar dessa verdade essencial. E poucas vezes os mistérios de uma noite ameaçadora palpitaram com tanta insistência como neste nosso próprio tempo de encruzilhada.

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NOTAS

[1] VER AQUI NO BLOG: https://armonte.wordpress.com/2015/05/05/submissao-tira-a-venda-dos-nossos-olhos/

[2] «O Imperador não visa apenas conquistar a Ásia e voltar aos deuses antigos, mas reformar a religião, reconstruindo-a segundo a ordem cósmica».

[3] De fato, esse é o único reparo que faço ao dramaturgo: que apenas uma feição mais vociferante e quase caricata do cristianismo seja colocada em cena. Poderia haver um personagem cristão que pusesse um peso mais moderado na balança. Da forma como é colocado, temos a visão à Nietzsche, de uma rebanhização desfibrante do ideal de humanidade.

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21/07/2015

«Mas não me exijam a lucidez constante, a sabedoria assertiva, a impossibilidade do erro»: a segunda vida de Mário Bortolotto

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(uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 21 de julho de 2015)

«Simples assim. As pessoas vão indo embora.  Eu fico. Eu sempre fico. Acordo com aquela sensação de um fantasma piscando cúmplice sentado no canto do quarto. E por enquanto ainda há outro dia. E outro». A sensação que se tem, ao ler os textos confessionais de Esse tal de amor e outros sentimentos cruéis (editora Reformatório), é a de um mapeamento (ou balanço) dos afetos de um homem que, ao tornar-se um cinquentão “derrotado”, ironicamente ganhou a oportunidade de uma “segunda vida”.

Pois Mário Bortolotto, figura bastante conhecida no meio teatral, foi vítima de um incidente trágico-folclórico (utilizo tal expressão devido à sua ligação com a boemia e ao seu “personagem”: «até me considero um pouquinho especial por conta dessa minha natureza avessa»): em 2009, tomou três tiros ao reagir à agressão de assaltantes, num bar da praça Roosevelt («Em vez dos caras me agredirem, deviam ter me dado logo mais uma dose de Jack. Eu teria capotado na mesa e nada disso teria acontecido»).

Para dizer a verdade, mesmo pertencendo à mesma geração, tudo me distanciaria desse londrinense radicado em São Paulo, já a partir do gosto literário. Nunca tive admiração pelos beatniks, por Jack Kerouac ou por Charles Bukowski, antes o contrário. Tampouco sou fã do som de Tom Waits ou Emmy Rossum, por exemplo. E, não dá para negar, as referências — antigas ou recentes — têm um peso inequívoco num universo como o de Bortolotto[1]. O leitor de Esse tal de amor também nunca consegue se convencer do encanto (para não dizer, integridade e autenticidade) de bebuns over que ficam alugativos, sempre relembrando eventos passados, quando não agressivos e grosseiros. Há toda uma evocação complacente («O que eu percebo é que existe uma solidariedade estranha no meio dos loucos») de tipos assim, inclusive um guardador de carros chamado Flávio: «Ele provocava. Ele importunava. Ele excedia. Ele passava da conta».

A continuação da última citação, «Mas qual é mesmo a medida? Alguém sabe? », sinaliza de certa forma o caminho para que meu leitor entenda o curioso poder que essas crônicas tiveram sobre mim, mesmo com todas as ressalvas: nem sei dizer se são “bem escritas” (um infame “houveram” na pág.141 deve ter escapado à atenção geral), contudo elas sustentam um diapasão de ternura (às vezes resvalando para o sentimentalismo) pelos seres e pela realidade cotidiana— com toda sua feiura, desencanto e prosaísmo («Gosto muito de tomar café da manhã. Eu não acordo pra tomar café da manhã. Eu tomo café da manhã pra ir dormir. É diferente») —, um lirismo crispado e renitente, de tal modo que não dá para ficar indiferente à visão de mundo desse redivivo de tiros, noitadas, bebedeiras rituais e confraternizatórias (apesar da melancolia e da solidão essenciais e inexoráveis[2]), fazendo a apologia da lealdade e da amizade («…o amor é um ônibus lotado e quebrado numa segunda-feira de sol no meio da estrada. Já a amizade é como uma ambulância que simplesmente liga a sirene e os carros abrem caminho pra que ela passe»), mesmo que, olhando para trás, para a sua primeira vida, por assim dizer, a paisagem seja de «destruição, casas arrombadas e árvores caídas na estrada».

Aos 50 anos, considerando um insulto o termo feliz («ninguém é feliz aos 20 anos, mas você ainda pode acreditar—ninguém é feliz aos 50 e não falemos mais sobre isso»), por paradoxal que seja, com os sentimentos cruéis (porque sempre presentes e cheio de arestas) destilados em Esse tal de amor, Mário Bortolotto apresenta aos leitores um dos lançamentos mais  prazerosos de 2015, dando carne e espessura às palavras de outra outsider que amava os avessos e as desmesuras:  «A loucura da recusa, de um dizer tudo bem, estamos aqui e isto nos basta, recusamo-nos a compreender» (Hilda Hilst). Ou então em bom bortolottiano, «É que na verdade eu sou o tipo de cara que nunca pensou em atravessar a rua. E tenho certeza de que vai ser sempre assim. Aos do outro lado, apenas aceno sem muito entusiasmo… ».

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TRECHO SELECIONADO

«Mas pra variar, eu divergi do tema que havia decidido escrever. Eu tava falando de livros e comecei a falar de inclusão (minha cabeça funciona assim). É que eu dizia que não suporto competição. Na Copa do Mundo eu gosto de assistir aos jogos, mas não sou do tipo que fica torcendo […] Porra, agora tô falando de futebol, sacaram? Deixa pra lá, eu queria mesmo falar de livros e sobre a minha dificuldade em eleger o melhor livro da minha vida, por não gostar dessa expressão: “melhor”[….] Talvez tenha a ver com tudo o que escrevi sobre o lance de ser um garoto solitário na infância e de carregar esse sentimento comigo ainda hoje, do processo de inclusão, etc. Uma coisa sempre tem a ver com a outra, por mais que a gente tente evitar. Eu já nem tento mais». 

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NOTAS

[1] Como tudo é relativo, outras referências nos aproximam, e muito, por exemplo:

«Tava conversando com um amigo que me perguntava ironicamente como é que eu consegui ser tão “looser” assim. Expliquei pra ele que aos 16 anos li “O apanhador no campo de centeio” do Salinger e “O lobo da estepe” do Hermann Hesse. Quem lê esses livros nessa idade e se deixa socar por eles, está fadado a ter uma vida errada e sem possibilidade de negociação. Terminei dizendo pra ele que todos os dias agradeço a Deus por ter lido esses livros nessa idade».

   E, sim, também acho que «não há quase nada mais sexy do que a Linda Fiorentino  em qualquer filme que ela tenha feito».

[2] Mas com algumas anedotas impagáveis, como esta aqui:

«___Você não acha que o Pereio está pegando pesado demais? Você que é amigo dele, devia falar com ele. Se você é mesmo amigo dele, então tem que se preocupar pra que ele não morra precocemente.
__Como assim precocemente? Ele tem 78 anos.
__73. Ele tem 73»
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14/07/2015

LEONARDO PADURA E O STALINISMO NARRATIVO: “O HOMEM QUE AMAVA OS CACHORROS”

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«__ Gostaria de ser o Ramón que era há três anos, antes de começarem as mentiras. Gostaria de poder entrar amanhã naquela casa e dar cabo da vida de um traidor renegado, tendo a certeza de que o faria pela causa. Agora não sei onde começam a causa nem as mentiras.

__ A verdade e a mentira são muito relativas e, nesse trabalho que você e eu fazemos, não há fronteiras entre uma e outra[…] Que importam meia dúzia de mentiras se isso servir para salvar nossa grande verdade? »

(uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 14 de julho de 2015)

O homem que amava os cachorros, de Leonardo Padura, publicado originalmente em 2009[1], é um dos romances mais amados e aclamados dos últimos anos.

Trata-se mesmo de uma obra ímpar? A princípio, parece que sim. O escritor cubano, conhecido pelas suas tramas policiais (como A névoa do passado, de 2004) surpreende com aquele “apetite pela totalidade” que Vargas Llosa crê ser a vocação suprema do romance — e ele mesmo praticou, no auge de sua carreira, basta lembrar de Conversa no Catedral e A guerra do fim do mundo.

Articulam-se três fios narrativos de longo e significativo alcance temporal: o narrador ensaia ser escritor numa Cuba eriçada ideologicamente (por conta da pressão internacional), na década de 1970, e acaba por desistir, derrotado por uma sociedade monolítica; só retoma o sonho da escrita durante a miséria terrível que se seguiu à dissolução da União Soviética, e por causa do cíclico reaparecimento de rastros e mensagens de um estrangeiro com quem, por acaso, travara um fugaz conhecimento na juventude, e que também partilhava de seu amor pelos cachorros; esse homem é Ramón Mercader, e conheceremos sua trajetória desde a época da Guerra Civil Espanhola, mobilizadora da esquerda mundial, e no meio  da qual é escolhido — através de um árduo processo de despersonalização—para ser o assassino do Trotski, um dos mentores e líderes da Revolução Russa, e depois o principal dissidente da perversão stalinista dessa tentativa de concretizar uma utopia; também acompanharemos o teórico da “revolução permanente” (Trotski também adorava cães e não conseguia se imaginar sem a companhia de um), desde a sua expulsão do território soviético, e ao longo dos seus conturbados 12 anos de expatriamento, passando pela Turquia, pela França, pela Noruega, até o estabelecimento no México, onde—ao mesmo tempo que a Europa mergulha na Segunda Guerra—o golpe de uma picareta transformará sua vida em destino.

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De modo lastimável, porém, todas essas trajetórias e linhas cruzadas, esse mundo meio John le Carré (com uma mirada histórica digna de um Eric Hobsbawm[2]), se diluem e o livro perde fôlego, tornando-se chato e pomposo, porque ao invés de uma narrativa prismática (como acontecia nos melhores romances de Llosa e do próprio Le Carré, como O espião que sabia demais ou Sempre um colegial)[3], mostrando pontos-de-vista divergentes e ambivalentes, jamais unívocos (o de Trotski; o de Mercader; o de Ivan, o narrador), O homem que amava os cachorros, em todas as suas instâncias, bate na mesma tecla e insiste numa nota só:  aqueles que se deixaram arrastar pelo sonho revolucionário, por vontade própria, ou movidos pelas contingências históricas (quando não oprimidos por sociedades totalitárias), foram ludibriados, viveram uma fantasmagoria, uma manipulação monstruosa[4].

Ainda que discutível e polêmica, se essa fosse uma conclusão tirada a partir da leitura, daria para defender O homem que amava os cachorros enquanto prosa de ficção[5]. O que torna isso impossível é que Padura troca o apetite pela totalidade que presumivelmente insuflava seu projeto por uma atitude totalitarista de fazer inveja a Stálin, não dando a menor margem de liberdade para a imaginação e inteligência de quem lê seu romance: tudo já é explicado pelos próprios personagens, eles mesmos já didatizam as lições da História, a moral da fábula, e embora haja compensações nas quase 600 rebarbativas e demasiadas páginas  (certos episódios do desterro de Trotski, a relação edipiana entre Ramón e sua mãe, Caridad), a sensação final é de um imenso desperdício de material, de um relato tão morno e quadradinho quantos os últimos  dos já citados Llosa e Le Carré, epitáfios lúgubres e viscosos de utopias e ideais (por exemplo, O sonho do celta e Amigos absolutos)[6]. E pensar que antigamente a desilusão rendia grande literatura.

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NOTAS

[1] O título original é El hombre que amaba a los perros. Minhas citações são da tradução de Helena Pitta.

[2] Não que isso seja decisivo, em se tratando de uma obra ficcional, mas há anacronismos e detalhes falsos: por exemplo, Ramón jamais poderia ter visto os “jovens existencialistas” nos cafés parisienses antes da guerra, e muito menos, entre eles, Albert Camus (que vivia, então, na sua Argélia natal).

[3] VER AQUI NO BLOG:

https://armonte.wordpress.com/2013/10/25/varios-romances-num-so-conversa-na-catedral-vargas-llosa-apetite-pela-totalidade-i/

https://armonte.wordpress.com/2012/02/19/john-le-carre-em-meados-dos-anos-70-e-sua-obra-prima/

[4] Pelo menos, a certa altura, afirma-se no romance: «… lembre-se de que reescrever a história e colocá-la de onde convenha o poder não foi uma invenção de Stálin, embora ele a tenha utilizado, à sua maneira tosca e depreciativa, até se saciar».

[5] Embora, nas mãos de um leitor muito jovem e inexperiente, o livro possa funcionar como um desserviço, torço que pelo menos aguce a curiosidade para levá-lo a leituras mais ricas e proveitosas, entre elas o magnífico A segunda morte de Ramón Mercader, de Jorge Semprún.

VER AQUI NO BLOG:

https://armonte.wordpress.com/2011/06/21/saudacoes-a-federico-sanchez

https://armonte.wordpress.com/2011/06/20/variante-semprun-do-eterno-retorno/

[6] VER AQUI NO BLOG:

https://armonte.wordpress.com/2013/10/09/sonho-do-celta-pesadelo-do-leitor/

https://armonte.wordpress.com/2012/02/19/john-le-carre-em-meados-da-primeira-decada-do-nosso-seculo/

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07/07/2015

Manhãs de névoa, névoa de palavras, teatro de sombras: o inventário de ausências de Krishna Monteiro

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«Peço a vocês que deixem de lado, ao menos durante este curto espaço de tempo em que conversamos, qualquer traço de ceticismo. Proponho, em lugar disso, que se lembrem dessas vozes inesperadas que de quando em quando nos chamam pelo nome…» (Krishna Monteiro)

(uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 07 de julho de 2015)

Uma entidade (o Demo?[1]), expulsa por «um mundo povoado por criaturas racionais», é convocada para palmilhar encruzilhadas no coração arcaico do país, junto a um tal doutor Rosa, estabelecendo um pacto, após o qual, tendo junto a si as laudas de Grande Sertão: Veredas (cujo protagonista, como se sabe, procurava decretar cabalmente a inexistência do Tinhoso), dá-se conta de que «já não mais morava em meus aposentos, e sim no interior, nas entrelinhas do texto que ele, o médico, me confiara no topo da montanha. Percebi que, revestido, aninhado, envolto pelo cobertor daquelas páginas, eu habitava o ser, o cerne delas, as palavras».

Eis uma das linhas de força de O Que Não Existe Mais, reunião de sete relatos (entre eles, As Encruzilhadas do Doutor Rosa). Os personagens do paranaense Krishna Monteiro padecem de um quebranto, um encantamento (no sentido mesmo dos contos de fada): a certa altura, o curso da vida estanca, enrodilha-se, e eles são habitados por coágulos do tempo, instantes, seres e vozes obsedantes: «…ainda não poderei terminar este relato, dizendo: Encerrado, ponto final, tu não existes mais. Não… tu e eu estamos  encerrados aqui, nesta história, e o curso destas linhas deve prosseguir»[2], lemos no conto-título, confronto de um filho com a presença fantasmática do  pai morto (o livro até poderia se chamar “inventário de ausências”) na casa ancestral; em Quando Dormires, Cantarei, um galo de briga, em plena rinha, rememora vislumbres de sua existência doméstica; em Monte Castelo, a experiência na Segunda Guerra do avô do narrador—com o qual ele tinha forte ligação—imbrica-se e confunde com uma disputa que cindirá a família; em Alma em corpo atravessada, vem à tona uma infância pontuada pelo ritmo de certas histórias.

Figuras tutelares representam a descoberta enciclopédica do mundo (aliás, um evento literal em Monte Castelo), um alargamento da imaginação e da sensibilidade[3]; em contrapartida, essas mesmas figuras encontram-se no olho do furacão de mudanças abruptas, e metamorfoseiam-se em nêmeses de estagnação, ou “âmbitos cerrados como um sonho” (há um conto narrado pelo gato de uma suicida que tem esse título—extraído de um verso de Borges), manhãs de névoa, névoas de palavras, teatro de sombras, um universo primordial marcado por atavismos, que vão do galo cantando ao amanhecer («puxava para fora dele algo que sempre existira: um querer, uma força ancestral, um estremecimento adormecido») à rinha de mulheres em rixa («A violência que desde sempre engolfou a ambas parecia ser mais poderosa do que seu desejo de tranquilidade e paz. Parecia derivar de correntes profundas, leis imutáveis, arcanos mais fortes do que a vontade»). A existência como narrador, num presente embaciado, cercado pelo silêncio ou pelo alarido, sempre começará numa ruptura da linguagem até então compartilhada: «E foi a partir daí que outro léxico, que uma língua desconhecida se revelou».

Nesse agônico continuum entre viver e narrar[4], esgueira-se uma solução de continuidade: a necessidade de purificação, de limpeza (um exemplo, entre muitos:  «Livrando-me de tudo de impuro que resta em mim»[5]). Talvez por isso, apesar do esmero da sua prosa, muito acima da média (e daí a abundância de citações[6]), Krishna Monteiro em alguns momentos, e nos contos mais fracos (a meu ver, Um âmbito cerrado como um sonho e O Sudário) passa ao leitor a sensação de um virtuosismo um tanto gélido, um texto “bonito” em excesso, para o qual um quê de “impureza” não faria mal.

Ainda assim, com pelo menos três narrativas dignas de nota (As Encruzilhadas do Doutor Rosa, Quando Dormires, Cantarei e Monte Castelo[7]), sem falar na qualidade geral da coletânea, O Que Não Existe Mais representa a estreia de um escritor em quem devemos ficar de olho.

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NOTAS

[1] Embora possamos tomá-la também pelo Leitor—se pensarmos neste último como figura simbólica, igualmente pactária com a narrativa.

[2] «… se eu fosse, hoje, tecer o fio do relato do período que passamos juntos…[…] as histórias  narradas não pela boca, pelo corpo, pelas mãos e pelo rosto dela, mas sim por sua herança e por seus artefatos, tudo o que compunha sua casa… pois objetos narram…a narrativa vedada, inconclusa; o verbo que à mulher faltou, o fluxo que tanto perseguiu…», lemos em Alma em corpo atravessada.

[3] «…E Conceição mostrando, falando e ensinando nomes, descerrando e catalogando o mundo…»

[4] Fiz um “apanhado” de trechos de Monte Castelo que enfatizam esse aspecto:

«…hoje lembro claramente[…] Hoje recordo, hoje sei[…]à medida que preencho com palavras esta folha em branco, fazendo de alguma forma as pazes com aquela velha seca e dura, concluo que ela, por vias tortuosas, estaca certa: pois algumas coisas que seu marido e eu presenciamos tocaram a fímbria do sagrado[…] Entro na casa com meu avô e as encontro na lembrança[…] Sua visão — penso hoje — me lembra talvez a de uma única mulher cindida[…] E hoje, ao relembrar uma das últimas épocas da minha vida em que vi meu avô, sinto-me a escavar meu passado como um arqueólogo que remove camadas e camadas de cinza vulcânica,  e descobre, fascinado, a cada metro que se aprofunda, ruas, palácios, mercados e praças de uma imponente cidade romana; mas que, no interior de suas construções, também tropeça em corpos rígidos, retorcidos, duros como pedra[…] Há limites para a coragem. A minha não é tão grande a ponto de eu reproduzir, aqui, o teor de tudo o que foi dito, quando finalmente se falo[…]Começara. As armas, os instrumentos, os mecanismos de execução daquela guerra foram elas, as palavras.  Até hoje, por vezes, algumas daquele tempo ainda emergem em mim: ocupam espaços que descuido em deixar desabitados[…] nada é muito claro para mim mesmo hoje[…] Um dia destes, velho, escrevi como tu fizeste uma pausa em teu relato neste ponto, tomando fôlego[…] este mesmo nome que escrevo—ou relembro—agora[…] Hoje, à beira de meus quarenta anos, lidando com meus próprios medos[…] E agora, velho, quando tudo terminou, e eu trabalho até tarde, lutando  contra as frases, recordando que naquele dia, após o enterro de minha mãe e à sombra das árvores que velavam as alamedas, eu lhe perguntei detalhes sobre o desfecho do ataque[…] E hoje, quando  transformei a escrita numa fuga, ou num esboço de ofício[…] pois recordar não é lembrar o que, tantas vezes, nunca existiu?[…] Hoje, quando escrevo, e penso, e recrio…»

[5]  Talvez a formulação mais explícita seja o clímax do seguinte trecho, de Alma em corpo atravessada:

«Porém, na cena  que a tudo poria termo, percebemos algo errado: outra fala parecia insinuar-se na fala dela, impedindo-a de concluir a história em que tanto se empenhara, conduzindo-a por outras trilhas, desvios, rumos, fazendo com que aquela dicção tão forte e clara que admirávamos se tornasse quase nula; e, logo depois,  que crescesse em volume e amplitude, a ponto de se assemelhar a gritos; ela falava de outro jeito; era outra a que falava; ela falava, declamava como um leito desviado de seu curso e cuja água se encorpa e revolve e rebela e torna turva, falava alheia a nós, às paredes, às panelas,  às prateleiras e à luz, aos fachos desviados por suas mãos que folheavam o ar à semelhança de quem manuseia um livro, mãos que pareciam tentar tocar a superfície de uma língua estranha que mais uma vez se ouvia; eram claros seus esforços, era nítido seu empenho; e a tal ponto com eles nos comovíamos que junto e aos pés dela nos embrenhamos confins da noite adentro, testemunhando sua insistência, suas negativas em calar-se, até que o cansaço pareceu falar mais alto, e ela despertou como de uma queda brusca e tomou um lápis, escreveu duas ou três linhas, preparou um bule de café, sorvendo-o em longos goles. Exaustos, dormimos sobre a mesa, sem poder vê-la olhar-sorrir para nós.

    Era outra história. Com o tempo nos demos conta. Estava entesourada nos limites daquela linguagem nova. Com esmero, como quem garimpa, a mulher buscava livrá-la de areia e impurezas… Era uma história aos poucos revelada para nós…»

[6] Contribuem para isso as belas formulações, como a das hóstias em As Encruzilhadas do Doutor Rosa, «um a um os discos de trigo deslizam do cálice para a mão, da mão para as mãos, e delas para a saliva e a memória, nas quais se dissolvem», ou a do momento em que o galo de Quando Dormires, Cantarei alça voo pela primeira vez, «Um dia, para sua surpresa, viu-se erguido ao ar: era seu próprio bater de asas».

[7] Gosto menos do conto-título sobretudo porque, apesar do vezo estilístico apurado do uso da segunda pessoa, são raros os casos (como nos textos de Marguerite Duras), tirante a prosa mais clássica, em que ele não me incomode; considero-o cafona, mas trata-se de uma idiossincrasia minha, a qual pouco tem a ver com o estatuto de qualidade retórica (e ela é tal, no conto de Monteiro, que nem desisti da leitura, como normalmente faria—felizmente); com relação ao último, Alma em corpo atravessada, acho que fica evidenciado o problema do relato compenetrado em ser “bonito”, uma faca de dois gumes, que às vezes pode gerar um Raduan Nassar, contudo sói gerar mais comumente as Nélidas Piñons, os Evandros  Affonsos Ferreiras, o Bartolomeu Campos de Queirós de Vermelho Amargo.

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02/07/2015

O BODE EXPIATÓRIO: a luz e a escuridão do Cristo de Kazantzákis

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«…e olha que se encontrássemos o Diabo e ele deixasse que o abríssemos, talvez tivéssemos a surpresa de ver saltar Deus lá de dentro (…) imagine-se o escândalo se Pastor lembrava de abrir Deus para ver se o Diabo lá estava dentro…»  (José Saramago, O Evangelho Segundo Jesus Cristo)

«O velho rabino O conhecia, conhecia bem o Deus de Israel. Ele era impiedoso, tinha Suas próprias leis, Seu próprio decálogo, é verdade que Ele dava Sua palavra e a mantinha, mas não tinha pressa. Tinha Sua própria medida e mensurava o tempo, gerações e gerações sucediam-se e Sua palavra permanecia ociosa no ar, sem descer à terra. E quando finalmente descia, pobre, três vezes pobre do homem que Ele escolhia para lhe confiar Sua palavra! Quantas vezes, de uma extremidade a outra da Sagrada Escritura, os escolhidos de Deus foram mortos e Ele não fez nem um gesto para salvá-los?! Por quê? Por quê? Eles não fizeram a Sua vontade? Ou seria vontade Dele que todos os escolhidos fossem mortos? O rabino interrogava-se, mas não ousava levar seu pensamento mais longe. Deus é um abismo, refletia ele, um abismo, melhor não se aproximar! » (Nikos Kazantzákis, A Última Tentação)

Há questão de semanas, a imagem de uma transexual “crucificada” como destaque da Parada Gay 2015 em São Paulo foi mais uma onda dentro do tsunami retrógrado que estamos testemunhando na esteira das eleições passadas.

Por isso, é bem oportuno o lançamento, pela Grua Livros, de uma nova tradução (dessa vez, diretamente do grego) de A Última Tentação, de Nikos Kazantzákis (1883-1957)[1]. Desde a sua publicação original, dois anos antes da morte do grande escritor de Creta[2], essa transposição literária da vida de Cristo (no meu entender, a mais poderosa já feita—aliás, a única outra a chegar perto do seu impacto é a de José Saramago, em 1991[3]) vem sendo execrada, combatida, banida, colocada no Index de livros condenados pelo Vaticano, fenômeno que se repetiu quando, nos anos 1980, Martin Scorsese ousou realizar uma versão cinematográfica. O que me leva a concluir que certas pessoas “de bem” não se revoltam contra a crucificação, real ou metafórica, de outros indivíduos, todavia não conseguem engolir que se faça do sofrimento de Cristo uma referência a preconceitos e atrasos os quais vão de encontro aos mais básicos ensinamentos do mestre de Nazaré. Como diz, a certa altura, o Judas kazantzakiano: «E você…perverso, fanático e teimoso que contemplando a própria face molda um Deus perverso, fanático e teimoso, atira-se ao chão reverenciando-O porque Ele se assemelha a você».

No capítulo 17 (são 33 ao todo)[4], depois de ter sido batizado por João, Jesus vai para o deserto (onde sofrerá as famosas tentações, após as quais um derrotado Lúcifer diz: «Até logo, então, até logo, até um dia, em breve!», o que acontecerá na crucificação, quando surge o ensejo para a “última tentação”: uma vida como a de qualquer outro homem).  Lá, encontra a carcaça de um bode, não qualquer bode, e sim o proverbial (e aqui, bem literal) bode expiatório” que a população das aldeias enche com amuletos e que é escorraçado e apedrejado até morrer no deserto: «Meu irmão, você era inocente e puro, como todos os animais. Os homens, os covardes, descarregaram sobre você seus pecados e o mataram. Decomponha-se em paz, não guarde rancor, são homens, criaturas pobres e fracas, não têm valentia para pagar os próprios pecados e põem essa carga sobre um inocente…. Pague por eles, meu irmão, adeus! ».

Como se vê, aí já temos uma prefiguração do destino: boa parte de A Última Tentação é composta pelo duro aprendizado de Jesus como bode expiatório (pharmakos). É o pressentimento disso que faz com que ele se furte à sua “missão” durante 30 anos, chegando ao ponto de degradar-se fazendo cruzes para os romanos executarem seus compatriotas rebeldes.

Kazantzákis escreveu uma história de Cristo sob o signo de Dostoievski e Nietzsche. De Dostoievski temos a ideia perturbadora de Deus como um tormento na vida do homem, espicaçando-o, testando seus limites e arrastando os demais nesse dilema (é o que acontece no livro com os discípulos, Madalena, as irmãs de Lázaro: Marta e Maria)[5]; de Nietzsche temos a superação do homem para um “além do homem”, como acesso a uma nova forma de existência, através de ensinamentos-relâmpagos que desestabilizam quem os recebe. É o Jesus-Zaratustra incendiário, varrendo os princípios da nossa vida, e que pouco tem a ver com o Jesus fraquinho de Frei Betto (no romance Entre Todos os Homens, 1995), tão politicamente correto[6].

De certa forma, temos uma arqueologia narrativa das raízes dos evangelhos, contrariando o princípio moderno de deixar de lado os estratos mais incômodos, para realçar seus aspectos mais “tolerantes”. O mesmo (guardadas as devidas proporções, é claro) aconteceu com A Paixão de Cristo (2004), praticamente o único filme até hoje a dar uma ideia do que foi realmente o sacrifício de Cristo pela humanidade, sem concessões e sem desvios[7]. Só que enquanto Mel Gibson nos torna espectadores aterrados, porém ainda assim meramente espectadores, passivos, de um evento portentoso e incognoscível, que nos supera e nos causa uma sensação de insignificância, o objetivo de Kazantzákis é fazer cada leitor assumir como sua a trajetória de Cristo, o seu processo de autoesclarecimento em meio a tantas ambiguidades e contradições: «Para fornecer um modelo supremo ao homem que combate, para mostrar que não é preciso temer o sofrimento, a tentação e a morte, pois tudo isso pode ser vencido e já foi vencido, é que esse livro foi escrito». Kazantzákis, é preciso dizer, como seus ilustres predecessores russos (além de Dostoievski, Tolstoi), não se furta a amalgamar fabulação, pregação, até mesmo doutrinação; ainda assim, faz-se o milagre e a literatura, no sentido mais forte da palavra, prevalece[8].

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Daí sua imensa profundidade filosófica, existencial e até teológica, sem falar na autoridade estética (de que temos tantas outras provas, como os magníficos romances O Cristo Recrucificado e Capitão Mihális, o autobiográfico Relatório ao Greco, o inclassificável Ascese, as amostras traduzidas da sua Odisseia). É por isso que a versão de Scorsese, de que eu gosto muito, e cujas maiores qualidades derivam do virtuosismo único do diretor, é relativamente insatisfatória e diluidora[9] porque deixou tanta coisa de lado, entre elas a inimitável atmosfera das aldeias nas quais Jesus viveu, perambulou e pregou, descritas por Kazantzákis com tal poder de evocação que não é à toa que a suprema tentação de Cristo acabe sendo seu apego telúrico: «Ele abaixou-se, pegou um punhado de terra e cheirou-a. O aroma penetrou até o fundo do seu ser… esfregou aquela terra no rosto, no pescoço, nos lábios. Segurava aquele solo na palma da mão e não queria se separar dele nunca».

   De fato, quando pensamos no quadro geopolítico que forma o contexto do aparecimento do Messias (a Judéia ocupada pelos romanos), mais do que a peregrinação do autor de O Pobre de Deus (belo romance sobre a vida de São Francisco) por essas mesmas plagas ressignificadas (como Terra Santa), evocada em Relatório ao Greco(publicado postumamente, em 1961, VER https://armonte.wordpress.com/2015/06/16/kazantzakis-o-olhar-cretense-e-o-abismo-de-deus-relatorio-ao-greco/),o que está em jogo aí é a alegoria do ambiente em que ele cresceu e se formou, a da opressão de Creta pelos turcos:

«Essa foi a semente.  A partir dela, brotou, encheu-se de botões, floriu e deu frutos toda a árvore da minha vida. Não foi o medo ou a dor, nem tampouco a alegria ou as brincadeiras que despertaram meu coração; e sim o profundo desejo de liberdade. Libertar-me de quê? De quem? Lentamente, com o passar do tempo, fui subindo a pedregosa ladeira da liberdade; liberte-se, em primeiríssimo lugar, do turco, este é o primeiro degrau; depois, mais tarde, começou esta nova luta, liberte-se do seu turco interno—da ignorância, da maldade, da inveja, do medo, da preguiça, das fantásticas e mentirosas ideias; e, por fim, dos ídolos, de todos os ídolos, até dos mais amados e respeitados.

     Com o passar do tempo, à medida que eu crescia e minha mente se expandia, também a batalha se expandiu, desembocou de Creta e da Grécia explodiu em todos os tempos e lugares, apossou-se da história do homem; não eram mais Creta e Turquia que lutavam, eram o Bem e o Mal, a Luz e a Escuridão, Deus e o Diabo. Sempre a mesma eterna batalha, e sempre atrás do Bem, da Luz e de Deus, Creta; e sempre atrás do Mal, da Escuridão, do Diabo, a Turquia. E assim, simplesmente porque aconteceu de eu nascer cretense e em um momento tão crítico quando Creta lutava para se libertar, desde muito pequeno, senti que existe no mundo um bem mais precioso do que a própria vida, mais doce que a felicidade: a liberdade»[10]. Luz e escuridão que, no entanto, deixam o protagonista de A Última Tentação em eterno transe: «…Deus ou o Demônio? Quem pode distinguir? Eles trocam de fisionomia, ora Deus torna-se a escuridão total, ora o Demônio torna-se cheio de luz, e o espírito humano confunde-se».

Ao fim e ao cabo, para Cristo, o cordeiro que nasceu para ser abatido, o ciclo das estações e da vida, que regulam a tão-amada raiz telúrica da existência contingente precisa ceder ao rito sobrenatural da Páscoa, no seu significado mais agudo: «A Páscoa, meus fiéis companheiros, significa uma passagem, passagem das trevas para a luz, do cativeiro para a liberdade. Mas a Páscoa que celebramos nesta noite ainda vai adiante. Hoje a Páscoa representa a passagem da morte para a vida eterna».

O desalentador é que o bode expiatório ainda continua uma muleta para a humanidade: ela nunca executa a passagem, ela nunca muda.

[uma versão do texto acima foi publicada no LETRAS IN.VERSO E RE.VERSO em 01 de julho de 2015, VER: http://letrasinversoreverso.blogspot.com.br/2015/07/a-luz-e-escuridao-do-cristo-de.html]

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NOTAS

[1] Já houve uma tradução indireta, realizada por Waldéa Barcellos & Rose Nânie Pizzinga, e publicada pela Rocco (e, depois, pelo Círculo do Livro), com o título A Última Tentação de Cristo, possivelmente em função da versão cinematográfica de Martin Scorsese, lançada em 1988. No original, O Teleftéos Pirasmós.

É o terceiro livro de Kazantzákis lançado pela Grua, depois de Vida e Proezas de Aléxis Zorbás (antes, conhecido como Zorba, o grego) e Capitão Mihális- Liberdade ou Morte, este até então inédito. Vida e proezas de Al

[2]  A tradutora, Marisa Ribeiro Donatiello, em seu Posfácio, conta que o livro primeiramente foi lançado em Oslo, em 1951, já em tradução norueguesa.

[3] VER: https://armonte.wordpress.com/2012/04/07/uma-humanidade-gritante-o-evangelho-segundo-jesus-cristo/

[4] Além de ser esse o tempo de vida de Jesus, lembremos que Kazantzákis escreveu uma versão moderna da Odisseia, com 33.333 versos.

[5] Tome-se como exemplo esta cena entre Jesus e Judas:

«__ O que está acontecendo com você? Por que se abateu? Quem o atormenta?

    O jovem esboçou um sorriso, fez menção de responder “Deus”, mas conteve-se.  Esse era o grande brado em seu íntimo e não queria deixá-lo escapar pela boca.

__ Estou lutando—respondeu.

__ Com quem?

__ Não sei, estou lutando…»

[6] VER: https://armonte.wordpress.com/2012/04/06/que-falta-fazem-os-camelos-voadores/

[7] Já desenvolvi esse paralelo em outra resenha. VER: https://armonte.wordpress.com/2012/04/07/o-bode-expiatorio/

[8] Bom lembrar, também, que desde a mais tenra infância, ele foi fascinado pela santidade (era um ávido leitor de vida de santos) e pelo heroísmo. Santo e herói, o ideal humano kazantzakiano.

[9] Mesmo assim, muito melhor do que a de Gibson, decerto. Mas o Cristo cinematográfico mais expressivo continua sendo o de Pasolini, O Evangelho Segundo São Mateus (1964).

[10] Utilizo a tradução direta do grego de Lucilia Soares Brandão, lançada há poucos meses pela ed. Cassará.

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