MONTE DE LEITURAS: blog do Alfredo Monte

06/03/2018

OS 50 ANOS DE “A OBRA EM NEGRO”, DE MARGUERITE YOURCENAR

(Uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos em 06 de março de 2018)

Há 50 anos Marguerite Yourcenar publicou “A OBRA EM NEGRO”, que se tornou um dos meus livros prediletos: desde os 18 anos leio e releio as aventuras de Zênon, seu herói lunar (em contraste com o protagonista solar de “Memórias de Adriano”).

“A OBRA EM NEGRO” é a história de Zênon, filho bastardo dentro de uma abastada família flamenga, que deixa Bruges, sua terra natal, após matar numa briga o aprendiz de artesão Perrotin, tornando-se com os anos um famoso (e para a Igreja, herético) médico, filósofo e alquimista, na linha de Leonardo, para Celso, Giordano Bruno.

Na primeira parte, “A vida Errante”, após um perfil de Zênon aos 20 anos, a grande escritora belga (de expressão francesa) acaba mostrando-o quase sempre de viés, mais como um objeto da opinião pública, que especula a respeito de suas várias transgressões, em meio a mentiras, boatos e distorções. Conhecemos também, paralelamente, a trajetória de algumas pessoas ligadas a Zênon: sua mãe, Hilzonda, que morre num cerco aos anabatistas, rebeldes religiosos; seu primo, Henri-Maximilien, que abandona a família para engajar-se em qualquer guerra…

É no capítulo “Conversa em Innsbruck” que conhecemos o Zênon já maduro, resultado das viagens e perseguições, enfim, de uma vida precária e ameaçada. E a princípio não se tem certeza de que se pode simpatizar com um tipo tão opiniático, tão lúgubre e amargo, tão consumido pela experiência.

Se a primeira parte já é interessante, com seu painel do século XVI, onde se vive, grosso modo, o conflito entre o Catolicismo e a Reforma Protestante, “A OBRA EM NEGRO” cresce vertiginosamente (e também a figura de Zênon, que passa a ocupar o primeiro plano quase que exclusivamente) nas duas outras partes, “A vida Imóvel” e “A Prisão”. O belo filme de André Delvaux, com um notável Gian-Maria Volonté no papel central, concentra-se mais nesse ponto da história, muito menos movimentado, porém mais denso: Zênon decide voltar clandestinamente a Bruges, estabelecendo-se como o médico Sebastian Theus, de certa forma protegido pelo compassivo prior dos franciscanos, Jean-Louis de Berlaimont (que foi admiravelmente encarnado por Sami Frey na versão cinematográfica). Depois da morte do prior, por causa de confusões sexuais de noviços no mosteiro, acaba nas mãos da Inquisição, sentenciado à fogueira, da qual escapa pelo suicídio.

Da vida imóvel de Zênon emerge o grande tema das maiores obras de Yourcenar, na minha opinião: o tudo-nada que é a experiência. Ela nos descreve a experiência da vida da forma mais detalhista, para depois nos mostrar a sua dissolução e a sua negação. É o que faz Zênon, no “Abismo” (título do capítulo-âmago do romance), experimentando os limites do corpo e da mente, de forma que, em meio aos resíduos do que ele viveu e pensou e sentiu, ele consegue roçar o não-ser.

A ironia é que, engajado nessa experiência de superação dos limites da nossa condição, ele se vê ao mesmo tempo enredado (no sentido mesmo da vítima na teia de aranha), num contexto histórico que não deixa muitas saídas para quem não professe um dogma ou pertença a um partido, a uma determinada associação. Tendo escolhido uma existência sem laços, Zênon sempre será o suspeito, o dissidente, o que traz em si o princípio da negação, embora dele se diga: “por estar mais familiarizado com o procedimento que consiste em negar tudo—para depois ver se em seguida se pode reafirmar alguma coisa—e, em desfazer tudo—para ver depois tudo se refazer em outro plano ou de outra forma…”

Ou como ele mesmo diz, é preciso morrer um pouco menos tolo do que quando se veio ao mundo.

24/01/2017

Crônica de uma ruína anunciada: “Dois Irmãos”, de Milton Hatoum

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(Uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente, em A TRIBUNA de Santos, em 24 de janeiro de 2017)

A certa altura de DOIS IRMÃOS (2000) (a narrativa não é linear), ficamos sabendo da relutância de Halim um dos personagens principais, em ter filhos:

“Não queria três filhos; aliás, se dependesse da vontade dele, não teria nenhum. Repetiu isso várias vezes, irritado, mordendo o bico do narguilé. Podiam viver sem chateação, sem preocupação, porque um casal enamorado, sem filhos, pode resistir à penúria e a todas as adversidades. No entanto, teve de ceder ao silêncio da esposa e ao tom imperativo da frase posterior ao silêncio. Ela sabia insistir, sem estardalhaço: ‘Quer dizer que vamos passar a vida sozinhos neste casarão? Nós dois e essa indiazinha no quintal? Quanto egoísmo, Halim! ’ ”
‘Um filho é um desmancha-prazer’, dizia ele, sério.
‘Três, querido. Três filhos, nem mais nem menos’ ”.

Já pelos capítulos anteriores, o leitor descobria o “acerto” nas palavras de Halim, pois conhecera os resultados da teimosia de sua esposa Zana: a rivalidade quase fratricida entre os gêmeos, Yacobi e Omar, e a existência da sombra da única filha, Rânia. Mas a passagem citada também revela os ingredientes que fomentaram toda a tragédia posterior: a inércia quase letárgica do pai e as fantasias exacerbadas da mãe (as duas posturas equivocadas e egoístas), as quais acarretam a ruína da família.

Eu nunca fui muito fã do trabalho de Luiz Fernando Carvalho, contudo o que ele fez com o romance de Milton Hatoum é imperdoável: movido pelo seu esteticismo incontrolável, que não deixa nenhuma sendo fluir naturalmente, fazendo os intérpretes caírem na caricatura, numa gritaria há muito não vista em produções nacionais (lembram como era irritante a impostação dos atores? No cinema brasileiro, mesmo nos melhores filmes), parece que ele sonha em ser uma mistura de Glauber Rocha e Visconti. Tenho que confessar que dei várias gargalhadas no decorrer desse dramalhão.

Voltando ao sóbrio romance de Milton Hatoum, seu mistério continua sendo a figura de Yacobi: por que ele, que sofre tantas vicissitudes injustas, não conquista a empatia do leitor? O único personagem parecido com ele que me vem à mente é Michael Corleone de “O Poderoso Chefão”, mais no livro de Mario Puzo do que nos filmes; ambos começam a vida com as melhores intenções, e posteriormente se transformam em máquinas calculistas e gélidas, num desperdício de afetos realmente trágico.

 

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02/02/2016

O Shakespeare da hora: MACBETH

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uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 02 de fevereiro de 2016)

Nos últimos meses estrearam dois filmes baseados em Macbeth: uma versão da peça, Ambição e Guerra, do australiano Justin Kurzel, a qual — apesar de estrelada pelos grandes Michael Fassbender e Marion Cottilard — não entusiasmou ninguém; e A floresta que se move (título sugerido por um dos elementos cruciais para o desenlace), transposição brasileira de Vinícius Coimbra do enredo para os dias atuais, na esfera empresarial, com Gabriel Braga Nunes, Ana Paula Arósio e repercussão igualmente pífia.

E olhe, leitor, que entre as obras-primas trágicas de Shakespeare foi a de melhor sorte nas telas, gerando pelo menos três filmes de primeira: o de Orson Welles (1948), o de Kurosawa (Trono manchado de sangue, 1957) e o de Polanski (1971). Talvez por ser a mais dinâmica e sucinta, sem o emaranhamento de Hamlet ou Rei Lear, embora também sem um personagem carismático como o príncipe da Dinamarca ou as proporções cosmogônicas da queda do rei que ficou velho antes de ficar sábio.

«  Por vezes, para nos perdermos, contam-nos os agentes das trevas alguns fatos verídicos, seduzem-nos com coisas inocentes, porém de pouca monta, para nos arrastar a consequências incalculáveis», adverte Banquo, companheiro do até então valoroso Macbeth, quando este é saudado, num ermo, após uma batalha, como futuro rei, por três bruxas. Não adianta. De forma traiçoeira, ele e a esposa assassinarão o soberano, Duncan, seu hóspede. Nunca mais o sangue sairá de suas mentes e de sua visão («A tal ponto atolado estou no sangue que, esteja onde estiver, tão imprudente será recuar como seguir à frente»). E a Escócia será assolada pela guerra.

   A princípio titubeante, assombrado por sua imaginação[1] o protagonista age espicaçado pela esposa, a feroz Lady Macbeth, mais audaz: «Então, marido, por que ficardes só, tendo por companhia as fantasias mais desconsoladoras e ocupando-vos com pensamentos que já deveriam ter morrido com quem se relacionam? O que não tem remédio, não deveria ser pensado sequer. O que está feito, não está por fazer».

   Após consolidar-se no poder, o espaço à sua volta rarefaz-se, e aí percebemos a dimensão da tragédia, e como ela permanece atual. Se encaramos a corrupção maciça e endêmica como um horror, o aspecto mais sombrio do poder, no entanto, é o totalitarismo, a sede de dominação permanente (a qual encampa também uma avassaladora corrupção), a necessidade de eliminar os mais próximos (lembram de Banquo, além de tudo uma testemunha?:  «Oh! tenho o espírito cheio de escorpiões, querida esposa! Sabeis que vivem Banquo e seu Fleance[2]»), até os colaboradores, porque todos são suspeitos ou inimigos, na lógica paranoica do Terror: «Quase esqueci que gosto tem o medo/ Outrora meus sentidos gelariam/ Com um guincho à noite; e a minha cabeleira / Com um relato de horror ficava em pé/ Como se viva; estou farto de horrores/O pavor, íntimo do meu pensar/ Já nem me assusta».

 Não por acaso, uma das cenas inesquecíveis do teatro é o banquete “amigável” onde alguns dos convivas são fantasmas de vítimas do projeto de poder do hospitaleiro casal Macbeth.

Em tempo: em 2016, a morte de Shakespeare completa 400 anos.

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TRECHO SELECIONADO

«A CAMAREIRA – Ouvi coisas, senhor, que não me atrevo a repetir.
O MÉDICO – A mim podereis dizer o que ouvistes, sendo mesmo de vantagem que o façais.
A CAMAREIRA – Nem a vós nem a ninguém, uma vez que não tenha testemunha para confirmar o que disser. (Entra Lady Macbeth, com uma vela.) Vede! Aí vem ela! É assim mesmo que sempre faz, e, por minha vida, a dormir profundamente. Observai-a; aproximai-vos dela um pouco.
O MÉDICO – Como conseguiu essa luz?
A CAMAREIRA – Ora, estava perto dela. Tem sempre luz ao pé de si; são ordens expressas.
O MÉDICO – Como vedes, está com os olhos bem abertos.
A CAMAREIRA – É certo; mas os sentidos estão fechados.
O MÉDICO – Que faz ela agora? Vede como esfrega as mãos.
A CAMAREIRA – É um gesto habitual nela, fazer como quem lava as mãos. Já a vi continuar desse jeito durante um quarto de hora.
LADY MACBETH – Aqui ainda há uma mancha.
O MEDICO – Atenção! Está falando. Vou tomar nota do que ela disser, para reforçar a memória.
LADY MACBETH – Sai, mancha amaldiçoada! Sai! Estou mandando. Um dois… Sim, já é tempo de fazê-lo. O inferno é sombrio… Ora, marido! Ora! Um soldado ter modo? Por que termos medo de que alguém o venha a saber, se ninguém poderá pedir contas a nosso poder? Mas quem poderia imaginar que o velho tivesse tanto sangue no corpo?
O MÉDICO – Ouvistes o que ela disse?
LADY MACBETH – O thane de Fife tinha uma mulher. Onde se encontra ela agora? Como! Estas mãos nunca ficarão limpas? Basta, senhor; não falemos mais nisso. Estragais tudo com essa vacilação.
O MÉDICO – Ide, ide! Ficastes sabendo mais do que seria conveniente.
A CAMAREIRA – Ela falou o que não devia, tenho certeza. Só Deus sabe o que ela sabe.
LADY MACBETH – Aqui ainda há odor de sangue. Todo o perfume da Arábia não conseguiria deixar cheirosa esta mãozinha. Oh! Oh! Oh!
O MÉDICO – Que suspiro! Tem o coração por demais opresso.
A CAMAREIRA – Eu não quisera ter no peito um coração assim, nem pelas dignidades de todo o corpo.
O MÉDICO – Bem, bem, bem.
A CAMAREIRA – Rogai a Deus, senhor, para que seja assim.
O MÉDICO – Esta doença ultrapassa minha arte. No entanto, conheci sonâmbulos que morreram santamente em suas camas.
LADY MACBETH – Ide lavar as mãos; vesti vosso roupão de dormir. Não fiqueis assim tão pálido. Torno a dizer-vos que Banquo está enterrado; não poderá sair da sepultura.
O MÉDICO – Também isso?
LADY MACBETH – Para o leito! Para o leito! Estão batendo no por tão. Vinde, vinde! Dai-me a mão. O que está feito não está por fazer. Para o leito, para o leito, para o leito! (Sai.)
OMÉDICO – E agora, ela vai para o leito?
A CAMAREIRA – Diretamente.
O MÉDICO – Circulam por aí terríveis boatos. feitos contra a natura sempre engendram conseqüências doentias. As consciências manchadas descarregam seus segredos nos surdos travesseiros. Mais de padre tem ela precisão do que de médico. Deus, Deus que nos perdoe! Acompanhai-a. Deixai bem longe dela quanto possa causar-lhe qualquer dano. E ora, boa noite. Ela deixou-me o espírito confuso e a vista absorta com tamanho abuso. Penso, mas não me atrevo a dizer nada.
A CAMAREIRA – Boa noite, bom doutor».

NOTAS

[1]  «Essa solicitação tão sobrenatural pode ser boa, como pode ser má… Se não for boa, por que me deu as arras de bom êxito, relatando a verdade? Sou o thane de Cawdor. Sendo boa, por que causa ceder à sugestão, cuja figura pavorosa os cabelos me arrepia, fazendo que me bata nas costelas o coração tão firme, contra as normas da natureza? O medo que sentimos é menos de temer que as mais terríveis mas fictícias criações. Meu pensamento no qual o crime por enquanto é apenas um fantasma, a tal ponto o pobre reino de minha alma sacode, que esmagada se torna a vida pela fantasia, sem que haja nada além do que não é».

[2] Fleance é filho de Banquo. Lembremos de que as bruxas vaticinam que Macbeth será rei, mas que Banquo gerará reis, mesmo não o sendo

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25/10/2015

Fruto proibido no paraíso dos livros: “O nome da rosa”

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(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 01 de julho de 2006)

«Percebia agora que não raro os livros falam de livros, ou seja, é como se falassem entre si. À luz dessa reflexão, a biblioteca pareceu-me ainda mais inquietante. Era então o lugar de um longo e secular sussurro, de um diálogo imperceptível entre pergaminho e pergaminho, uma coisa viva, um receptáculo de forças não domáveis por uma mente humana… »

Comemorando 40 anos, a Nova Fronteira decidiu lançar edições especiais de 40 dos seus títulos mais marcantes, entre eles O Nome da Rosa[1]. Editora e romance foram muito importantes na minha história pessoal, e achei auspiciosa a ideia de relê-lo numa nova roupagem, com um formato quase de bolso (se for possível existir um livro de bolso de quase 600 páginas) e paginação atraente.

Só que o livro parece ter sido revisado pelo seu grande vilão cego, inspirado em Jorge Luis Borges, acometido por uma mortífera seriedade, inimigo do riso e que deve ter planejado destruir o prazer da leitura com a incrível quantidade de erros, palavras trocadas, esdrúxula separação silábica (ol-ho, por exemplo), troca de tempos verbais, frases afirmativas que se tornam negativas ou vice-versa, e até a supressão de várias linhas em duas páginas,  a 98 e a 367, deformando a obra-prima de Umberto Eco num palimpsesto tão bizarro quanto alguns volumes adormecidos na biblioteca da abadia onde a história transcorre durante sete dias, em novembro de 1327. E no final do volume surgem uma preparadora de originais e cinco revisores! O Venerável e perverso Jorge de Burgos devia ter dado cabo de todos! Dificilmente aparecerá uma edição mais imprestável, um desserviço mais flagrante a um livro desse quilate. A Nova Fronteira sequer teve o cuidado de revisar a tradução.

Casando erudição e fabulação, numa alquimia nunca antes ou depois alcançada com tal felicidade, Eco nos apresenta uma dupla inesquecível, o narrador beneditino (já velho, relembrando quando ainda era noviço e lolito),  Adso de Melk, e seu mestre franciscano, Guilherme de  Baskerville, o qual é encarregado pelo Abade de investigar as mortes que começam a ocorrer na semana da sua chegada, todas ligadas à biblioteca, que é inacessível, encerrada num labirinto. Baskerville, admiravelmente encarnado por Sean Connery na (a)versão cinematográfica (ele só não salvava o filme porque era muito discutível mesmo) e que só pode ser considerado mero decalque de Sherlock Holmes por leitores incautos, por ser um “inglês louco e arrogante”, segundo seu amigo, o exaltado místico Ubertino, define bem seu modo de pensar na seguinte passagem: «encontro o deleite mais jubiloso em desenredar uma bela e intrincada intriga. E será ainda porque no momento em que, como filósofo, duvido que o muno tenha uma ordem, consola-me descobrir, se não uma ordem, pelo menos uma série de conexões em pequenas porções dos negócios do mundo».

Além da “bela e intrincada intriga” ligada à biblioteca, que por si só faria de O Nome da Rosa um dos melhores romances policiais já escritos, há ainda o encontro entre emissários papais e os líderes da ordem franciscana ligados ao imperador Ludovico, em guerra com o papa João XXII, motivo da visita de Baskerville e Adso à Abadia, e cujo objetivo é discutir a pobreza de Cristo e seus apóstolos (na verdade, como observa o mestre de Adso a seu discípulo, a questão mesmo é decidir se a igreja deve ser pobre e, mais ainda, se deve abdicar de sua intervenção no mundo secular, no qual as cidades e o capitalismo moderno começam  a despontar—ideia perigosa de ser defendida num momento em que a Inquisição dá o tom). Assim como o labirinto (não o espacial) tecido em torno da biblioteca nos proporciona grandes personagens, como o cego Jorge, o impenetrável bibliotecário Malaquias, o curioso e ambicioso Bêncio e o herborista Severino, o enredo paralelo do debate teológico (com as idéias preconceituosas e intolerantes em relação ao movimentos populares –os quais, por sua vez, abusam da violência e do vandalismo—pque são sempre retomadas sem reflexão ou senso histórico, veja-se como a imprensa retrata o MST,  por exemplo) colabora com outro tanto: o sinistro inquisidor Bernardo Gui, Ubertino, o despenseiro que na juventude participou de um movimento herético e que é tomado como o assassino, o babélico (no modo de expressar) e quasímodesco (na aparência) Salvatore.

Borges dizia que o paraíso devia ser algo parecido com uma biblioteca. O Nome da Rosa nos mostra que em todos os paraísos existe o fruto proibido.

VER também no blog:

https://armonte.wordpress.com/2011/04/17/guglielmo-guilherme-william-os-trinta-anos-de-o-nome-da-rosa/

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NOTAS

[1] Il nome della Rosa (Itália-1980). Tradução de Aurora Fornoni Bernardini & Homero Freitas de Andrade.

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04/08/2015

O idílio entre a ficção e história: “Ragtime” e a obra de E.L. Doctorow

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« Três coisas. A primeira, ler. Não precisa ser muito, umas sessenta páginas por dia já resolvem; a segunda, escrever sobre as próprias obsessões porque delas nunca se escapa; e, terceira: nunca, mas nunca mesmo, fale a respeito do que está escrevendo—além de ser uma chatice, falar, fazer pesquisa, pensar a respeito, não é escrever. Escrever é escrever…» (E.L. Doctorow)

[uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 04 de agosto de 2015]

« Os dois amigos saíam todas as manhãs para os trechos desertos da praia, onde as dunas e o capim bloqueavam o hotel. Cavavam túneis e canais para a água do mar, muralhas, bastiões e moradias com degraus. Construíam cidades, rios e canais […] À tarde brincavam à vista dos guarda-sóis de praia, recolhiam gravetos e conchinhas, caminhando devagar com o bebê negro espalhando água atrás deles, na orla das ondas»[1].

A passagem acima, de Ragtime (1975), reúne a ambígua inocência possível do cadinho étnico levantado pelo recém-falecido E.L. Doctorow em seu livro mais famoso: temos um bebê negro, uma menina judia e um rapazote anglo-saxão (os “dois amigos”).

Para se chegar a essa cena idílica (e tão precária), os rumos de três famílias cavaram túneis em meio ao racismo desenfreado, à violência policial à miséria dos imigrantes, à exploração do trabalho, aos avanços tecnológicos do início do século passado (Henry Ford, personagem da narrativa, cria a linha de montagem), ao capitalismo financeiro que sobrepujará a chamada modernidade “pesada” representada pela indústria e pelo estado-nação, tornando-a “líquida”, até mesmo volátil (o americano mais poderoso, J.P. Morgan «atravessava todas as fronteiras e estava à vontade em qualquer parte do mundo,  um monarca do invisível, transnacional reino do capital, dominando recursos que tornavam insignificantes fortunas reais»), à sociedade do espetáculo.

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O bebê negro é enterrado vivo no quintal da casa dos brancos, uma família conhecida por designações genéricas (Papai, Mamãe, Vovô, Irmão Mais Novo de Mamãe, Menino), e salvo por Mamãe[2], que acolherá também Sarah, que tentou matar o próprio filho. O pai aparece: Coalhouse Walker Jr., tocador de ragtime e proprietário de um carro, despertando a truculência invejosa de um grupo de bombeiros voluntários (de origem irlandesa). Vandalizado seu veículo, Coalhouse precipitará seu destino e o de Sarah na tragédia, ao tentar uma reparação, primeiro judicialmente; depois, através do terrorismo (é bom lembrar que a prosperidade de Papai vem da fabricação de artefatos patrióticos, incluindo fogos de artifício).

Nesse ínterim, o pai da menina, Tateh (judeu socialista, contudo arraigado a um férreo chauvinismo machista), após renegar a esposa (que, para ajudar o difícil sustento da família, se entregou a um cliente) e as tentações oferecidas por Evelyn Nesbit, causadora do crime mais escandaloso dessa época pré-1914[3] (seu marido assassina o renomado arquiteto Stanford White por ciúme), atravessa os EUA tentando proteger, em vão, a filha da corrupção do Novo Mundo, e nesse périplo metamorfoseia-se em empreendedor bem-sucedido na nascente indústria cinematográfica.

Doctorow já escrevera belos romances antes (O Livro de Daniel, 1971[4]) e ainda produziria outros depois dessa obra-prima, caso de A Grande Feira (World´s Fair, 1985), A Marcha (2005) e seu outro livro muito querido e premiado, Billy Bathgate (1989)[5]. Em todos, demonstrou ser um poeta-arqueólogo das mentalidades de períodos históricos bem recortados, embaçando as fronteiras entre o visionarismo literário e a exatidão factual com um virtuosismo que faz dele um dos maiores prosadores pós-Segunda Guerra.

No entanto, é preciso admitir que alguma bruxaria genial em ação, em meados dos anos 1970, para que ele encontrasse a fórmula mágica que dá tanta vida a Ragtime: a interpenetração da densidade e mistério de vidas anônimas a um mundo de manchetes e noticiários sobre celebridades (Houdini, o mágico[6], Freud e Jung, a anarquista Emma Goldman, a própria Evelyn Nesbit, primeira “deusa do sexo” da indústria cultural, cujo rastro foi seguido por Rita Hayworth, Marilyn Monroe, entre tantas outras), o panorâmico e o minimalista encontrando-se em estado de idílio ficcional, tanto quanto as crianças do trecho de abertura (e, nesse sentido, nada precário: quarenta anos depois, ainda é um feito. E inimitável.

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NOTAS

[1] Em todas as citações de Ragtime utilizo a tradução de Áurea Weissenberg, editada pela Record, pela Abril Cultural, pelo Círculo do Livro e, mais recentemente, pela Bestbolso.

[2] Na soporífera versão cinematográfica de Milos Forman (a qual, pelo menos, utiliza a esplêndida música evocada pelo livro), muito frustrante, Mamãe e Papai roubam a cena, a meu ver, em maravilhosas interpretações de Mary Steenburgen e James Olson, embora os maiores elogios tenham sido para Mandy  Patinkin (Tateh).

[3] O que sempre me fez pensar no romance de Doctorow como o equivalente americano de A montanha mágica, de Thomas Mann.

[4] Mas sua estreia, Welcome to Hard Times(1960), traduzido—também por Áurea Weissenberg—como Tempos Difíceis, é digna de nota. Aliás, ganhou uma competente versão cinematográfica, estrelada pelo grande Henry Fonda e dirigida por Burt Kennedy, em 1967 (no Brasil, O homem com a morte nos olhos). Diga-se de passagem, Sidney Lumet realizou uma brilhante versão do Livro de Daniel em 1983, com atuações fantásticas, especialmente a de Lindsay Crouse.

[5] E tão mal filmado (em 1991, por Robert Benton, que desperdiçou um maravilhoso roteiro) quanto Ragtime.

Sou obrigado a confessar que, embora goste do romance, achei exagerados os arrulhos em torno dele. Mesmo assim, sempre há o que gostar nos textos de Doctorow, até em suas realizações menos felizes, caso de Loon Lake- O lago da solidão (1980) e City of God- Deus: um fracasso amoroso (2000) —a respeito deste último, VER AQUI NO BLOG: https://armonte.wordpress.com/2013/03/25/a-cidade-de-deus-de-doctorow-um-fracasso-amoroso-de-leitura/

[6] O qual se angustia pela apropriação midiática do conceito de espetáculo (a vida como reality show) e consequente apagamento do triunfo artístico:

«Havia um espetáculo que utilizava o mundo real como palco e a este ele não conseguia alcançar. Apesar de todas as suas realizações, era um vigarista, um ilusionista, um simples mágico. Que sentido teria a sua vida se as pessoas ao saírem do teatro o esquecessem? As manchetes dos jornais diziam que Peary chegara ao Polo. Eram os feitos da vida real que ingressavam nos livros de História… »

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18/04/2015

OS HOMENS QUE NÃO AMAVAM AS MULHERES: Agatha Christie para nerds

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(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 31 de janeiro de 2012)

Apesar da deplorável e escandalosa decisão editorial de traduzir o livro da versão francesa e não do original sueco[1], me envolvi muito com o mistério criado por Stieg Larsson  (1954-2004) no primeiro volume da série Millennium (nome da revista dirigida pelo protagonista, Mikael Blomkvist), Os homens que não amavam as mulheres: a investigação, décadas depois, do desaparecimento e possível assassinato de Harriet Vanger, em 1966, aos 16 anos, numa pequena ilha onde os moradores são  membros da sua família, que se odeiam e hostilizam entre si (e alguns deles têm um passado de engajamento nazista).

Mikael (condenado num processo de difamação jornalística, e que por esse motivo aceita o trabalho, afastando-se da Millennium) se reúne a uma parceira improvável: a hacker que preparou o dossiê a respeito dele para o empresário Henrik Vanger, o qual todos os anos recebe uma flor emoldurada como presente de aniversário, gesto que credita ao assassino da sobrinha.

Lisbeth Salander é uma figura disfuncional, com aparência anoréxica, toda tatuada, parecendo uma menina ainda, e um comportamento antissocial acentuado. Ela nunca baixa a guarda (e, pelo desenvolvimento da trama, não deve mesmo, pois sofre severos abusos sexuais de um tutor legalmente constituído, já que ela apresenta histórico psiquiátrico; aliás, diga-se de passagem, o diagnóstico de Stieg Larsson sobre a liberdade na Suécia, a violência contra a mulher e o estado de corrupção nas finanças do país parecerá desalentador a quem tenha ilusões com os países ultra desenvolvidos e civilizados).

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Conforme vai descobrindo novas pistas a partir da manipulação modernizada de fotos antigas, e também de uma associação entre passagens do Levítico bíblico anotadas pela desaparecida Harriet e brutais crimes contra várias mulheres, a dupla se sente cada vez mais ameaçada no microcosmo familiar da ilha onde os Vanger habitam.

Esse núcleo de mistério clássico foi muito bem adaptado na versão cinematográfica, que eliminou alguns elementos importantes do romance (como a ligação amorosa de Mikael com uma Vanger) sem grande prejuízo e alterou a solução do desaparecimento da Harriet de uma forma que considero muito mais eficaz e bem sucedida que a de Larsson.

Infelizmente, o competentíssimo e estiloso (embora nada pessoal) filme de David Fincher manteve o calcanhar de aquiles que compromete o resultado final de Os homens que não amavam as mulheres . Solucionado o  caso da família Vanger, Mikael volta à Millennium para ajustar contas com o corrupto empresário Wennerström, que o liquidara nos tribunais. Até aí tudo bem. Acontece que ele faz Lisbeth Salander virar uma heroína de romance de Robert Lundlum ou do seriado Alias (aquele do J.J.Abrams, onde Sidney Bristow-Jennifer Garner se disfarçava a torto e direito pelo mundo afora, acessando qualquer sistema ou área restrita): dando uma de loira fatal, turbinada e poderosa, limpará as contas do vilão pela Europa afora e fará dele um fugitivo arruinado e com a cabeça à prêmio. Ora, ora. Até Rooney Mara, indicada ao Oscar, e cuja caracterização é absolutamente perfeita, vacila nessa hora, tropeça e vira uma caricatura. Não dá para  para um leitor ou espectador verdadeiramente adulto não achar lamentável essa transformação de Agatha Christie em fantasia nerd.

A personagem, que era o grande trunfo de Stieg Larsson, transforma-se num elemento risível. E Os homens que não amavam as mulheres perde todo o seu encanto sombrio. Mas talvez já se devesse pressentir tal triste fim diante de passagens como a seguinte, ao longo do texto: “A mochila continha seu iBook Apple 600, branco, com o disco rígido de 25 gigas e memória RAM de 420 megas, fabricado em janeiro de 2002 e com tela de 14 polegadas. Quando o adquiriu, era o que havia de melhor na Apple (…) Fizera cópias de todos os documentos e ainda possuía um velho computador de mesa Mac G3 e outro Toshiba portátil que poderia usar (…) Optou, como era de se esperar, pela melhor escolha possível: o novo Apple Powerbook G4 de 1Ghz, com tampa de alumínio e dotado de um processador Power PC 7451, AltiVec Velocity Engine, memória RAM de 960 megas e disco rígido de 60 gigas. Tinha Bluetooth e um gravador de CD e DVD integrado. Mais que isso, era o primeiro notebook do mundo com tela de 17 polegadas, uma placa Nvidia e resolução de 1440 por 900 pixels…” A Apple agradece o merchandising.

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[1] Tradução de Paulo Neves (de Les hommes qui n´aimaient pas les femmes). Millennium-I (Män som hatar kvinnor, Suécia, 2005)

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17/03/2015

ALICE NÃO MORA MAIS AQUI: Lisa Genova e o Alzheimer

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(uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 17 de março de 2015)

Embora a nova capa de Para Sempre Alice[1] se valha do medonho costume de copiar o cartaz da versão cinematográfica, pelo menos nos livramos do constrangedor subtítulo que poluía a edição anterior do romance de Lisa Genova pela Nova Fronteira, «Quando não há certezas possíveis, só o amor sabe o que é verdade» !!!???

Como se sabe, por sua interpretação a admirável Julianne Moore, uma das grandes atrizes do nosso tempo, ganhou um esperado (e tardio) Oscar. Sua personagem, Alice Howland, tem a mente deteriorada precocemente—aos 50 anos—pelo Alzheimer. Intelectual e professora (em Harvard) reputadíssima, na área da psicologia que pesquisa a linguagem e suas ligações com os mecanismos do cérebro—o que permitiu que ela escrevesse um livro em parceria com o marido, John, da área da biologia—, os 24 capítulos do romance percorrem um arco, de setembro de 2003 a setembro de 2005 ( com o acréscimo de um epílogo ‘fora do tempo’, por assim dizer, pois é assim que estará Alice no País do Alzheimer[2]), através do qual acompanhamos a rapidez com que a doença vai causando seus estragos cognitivos e físicos: «Ainda conseguia ler e compreender textos curtos, mas o teclado do computador se tornara uma mixórdia indecifrável de letras. Na verdade, ela havia perdido a capacidade de compor palavras com as letras do alfabeto no teclado. Sua capacidade de usar a linguagem, aquela coisa que mais distinguia os seres humanos dos animais, a estava abandonando, e Alice sentia-se cada vez menos humana à medida que ela partia». Ou então: «o cheiro desagradável de seu corpo lhe informou que fazia dias que ela não tomava banho, mas não conseguia reunir a coragem nem o conhecimento necessário para entrar na banheira».

Contudo, nem uma doença trágica consegue fazer de Para Sempre Alice um grande livro, basicamente porque Lisa Genova usa um filtro cor-de-rosa em demasia para relatar esse caso individual que poderia dizer respeito a todos, como acontece em A Morte de Ivan Ilitch, por exemplo (sei, claro, que é injusto comparar qualquer escritor com Tolstói). Para começar, a existência de Alice é ajustadíssima ao status quo[3]. Para ela, ter uma carreira como a sua, do marido e dos filhos, é o ideal (e a autora parece concordar com sua heroína). Por isso, o único ponto discordante, até os sintomas começarem a se manifestar, é a rebeldia da caçula, Lydia, que desistiu da formação universitária e deseja ser atriz (os detalhes da sua vida em Los Angeles são estereotipadíssimos). Mesmo com a evolução da sua doença, os conflitos do romance não saem do clichê: tendo a esposa encerrado abruptamente a carreira, John se debate (e entra em confronto com os filhos) entre a lealdade ao casamento e novas perspectivas profissionais. E assim, Lydia, que era a filha que não se entendia com a mãe, de repente começa a ser a mais dedicada a ela.

É por isso que o desfecho me chocou tanto, apesar de ‘tocante’, com sua apologia da afetividade (em detrimento do intelecto). Em termos de reflexão sobre a condição humana, me parece totalmente falso, até apelativo. No fim das contas, o único mal solto no mundo parece ser o Alzheimer, e mesmo ele pode ser confinado dentro das paredes da harmonia familiar. E assim, a romancista estreante, que escreve bem, e nos proporciona alguns momentos de voo menos curto (como o das instruções de suicídio que uma ainda lúcida Alice escreveu para seu futuro ‘eu’ já comprometido cognitivamente—este até chega a tentar colocá-las em prática, entretanto as esquece no tempo de subir uns lances de escada), desperdiça bagagem profissional (era neurocientista) e munição ficcional numa historinha que renderia no máximo um telefilme, um daqueles nos quais, para variar, só o amor saberia o que é verdade quando não há mais certezas possíveis.

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NOTAS

[1] A ótima tradução brasileira para STILL ALICE, publicado em 2007 de forma independente nos EUA, e em 2009, em edição tradicional.

[2] Era o título que eu tinha planejado para a resenha, mas José Geraldo Couto antecipou-se em sua incisiva crítica à mediania do filme (mesmo com uma atriz muito acima da média), VER http://www.blogdoims.com.br/ims/alice-no-pais-do-alzheimer; então apelei para outra forte referência, desta vez o filme de Martin Scorsese.

[3] O personagem-título da novela de Tolstói também é ajustadíssimo, em sua obsessão a fazer tudo comme il faut, mas essa alienação e conformismo nunca são seguidos pela visão autoral. Devo dizer que evidentemente Alice é mais simpática ao leitor que Ivan Ilitch, mas se ele analisar um pouco mais fundo, vai achar seu modo de viver complacente e no fundo, no fundo mesmo, desagradável e egoísta.

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03/03/2015

UM CINTILANTE MOSAICO DE DÚVIDA: Thomas Pynchon e seu “Vício Inerente”

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«__ Falando sozinho de novo—disse Clancy.—Você precisa encontrar o verdadeiro amor, Doc.

   A bem da verdade, ele pensou, eu me contento em só achar o meu caminho nessa história. Os seus dedos, dotados de opinião própria, começaram a rastejar na direção da sebe plástica. Talvez se ele a revistasse por tempo suficiente, noite suficientemente avançada, encontrasse alguma coisa que pudesse ajudar—algum minúsculo fiapo perdido da sua vida que ele nem sabia que tinha desaparecido, algo que faria toda a diferença» 

«…de repente as leis do acaso, decidindo-se por um clássico foda-se, instruíram  a máquina de centavos de Puck a acertar também... »

«…quando diversos tipos de caos estouraram…»

(uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 03 de março de 2015)

      Na semana passada, comentei Uma Breve História do Tempo e a proposição do autor, Stephen Hawking, de uma Teoria de Tudo, título do filme que deu o Oscar a Eddie Redmayne. Já Paul Thomas Anderson teve sua quarta indicação[1] ao prêmio como roteirista pela adaptação (dirigida por ele, e que estreia este mês no Brasil) de Vício Inerente [“Inherent Vice”, 2009], romance em que Thomas Pynchon, um dos mais cultuados autores contemporâneos (candidato recorrente ao Nobel), useiro e vezeiro da Teoria do Caos — que trata das instabilidades no cerne de sistemas complexos e deterministas —, faz uma sombria paródia do romance noir à Raymond Chandler & Dashiell Hammet[2].

Numa conjunção aziaga, a Califórnia dos anos 1970, onde a ação ocorre (há um intermezzo em Las Vegas[3]), é governada por Ronald Reagan, e o presidente é Richard Nixon. A guerra do Vietnã, que desmoralizou o país, está em seus estertores, enquanto a cultura hippie ainda floresce. O detetive particular Doc Sportello, maconheiro em tempo integral (não dispensa um ácido, se pintar), investiga o sumiço de Shasta Fay Hepworth (os personagens têm nomes rebarbativos, como costuma acontecer no gênero[4]), antigo e conturbado caso, agora amante do poderoso empresário Michael Wolfmann, igualmente desaparecido (talvez sequestrado ou assassinado). Esses eventos estão ligados ao sinistro navio Canino Dourado, uma das fachadas de um insidioso cartel de drogas, atuante em todas as esferas da sociedade, inclusive clínicas de reabilitação: «se o Canino Dourado conseguia deixar os seus fregueses chapados, por que não ir para o outro lado e vender também a eles um programa que os ajudasse a largar? Deixá-los indo e vindo, o dobro do lucro e sem precisar se preocupar com fregueses novos—enquanto a Vida Americana fosse algo de que as pessoas tivessem de fugir…»[5].

Coy Harlingen, sax tenor de uma banda de surf music, supostamente morrera de overdose, entretanto aparece o tempo todo nos caminhos da investigação (e ligado a uma milícia direitista violenta, os Vigilantes da Califórnia, ou mais singelamente, viggies), e Doc começa a suspeitar (a paranoia é a seara do autor de O Arco-íris da Gravidade, uma das obras-primas do século passado[6]) de que tudo e todos estão interligados numa indescortinável, porque caótica, teia de crime e poder: «O mundo acabava de ser desmontado, qualquer um aqui podia estar metido em qualquer golpe que você pudesse imaginar, e já estava mais do que na hora, como dizia  o Salsicha, de dar o fora daqui, Scooby, meu filho».

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As referências às identidades assumidas por Coy e à dupla Salsicha-Scooby Doo ajudam a delinear, ainda que ligeiramente, aspectos tipicamente pynchonianos de Vício Inerente: as inúmeras analogias de ambientes e situações com contatos extraterrestres, ou descidas em planetas desconhecidos e inóspitos[7]; pessoas que surgem e somem como truques de mágica[8]; a realidade postiça de Hollywood e Las Vegas; a associação do uso de drogas com estados alterados, alucinações, trips diversas (ou hippiefanias); tudo isso proporciona um clima de insubstancialidade, a sensação de que somos seres fractais, jamais euclidianos[9] («Agora, duas ou três linhas ocorriam a Doc ao mesmo tempo, exibindo-se em uma espécie de padrão hiperdimensional no pedaço de parede vazia do escritório que ele frequentemente usava para esses exercícios»), numa . realidade (?) “borrada” («e do lado de fora das janelas o neon da cidade começou a se alongar em compridos borrões espectrais»).Ou seja, regidos pelo caos e acaso, e se houver uma ordem subjacente, ela é nossa antagonista[10]. Em termos literários, como se o universo de corrupção e desmoralização da sociedade de um James Ellroy fosse invadido pela fantasia distópica de um Philip K. Dick ou um William Gibson. O romance, aliás, aponta para a futura hegemonia do mundo virtual  e da “informação”, com Doc roçando os primórdios da computação e seus usuários e programadores, descritos em termos que lembram os “chapados” por outros meios: «e eu juro que parece ácido, um outro mundo estranho—tempo, espaço, essa porcariada toda»

Por outro lado, os delirantes detalhes das mais diversas subculturas que impregnam a narrativa comprovam que Pynchon jamais permite que seu belo romance da maturidade (um tanto subestimado, ao que me parece) esmoreça num fácil pastiche de um gênero, embora ele até se valha de frases típicas da pulp fiction mais deslavada: «Doc estava com uma ereção e seu nariz escorria». Autor que sofre de horror vacui (horror ao vazio), ao mesmo tempo em que o insinua, ele satura suas obras de tal forma que elas se tornam sistemas próprios e autônomos (muitos, infelizmente, acham difícil adentrá-los; já outros, como eu, tornam-se viciados), porém incisivos como poucos, com relação aos impasses políticos do que chamamos de realidade[11].

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TRECHO SELECIONADO

Que explica o título do romance de Pynchon e o título do meu post:

«Doc pegou a sua lente e examinou cada imagem até que uma a uma elas começaram a sair flutuando em manchinhas coloridas. Era como se o que quer que tivesse acontecido tivesse chegado a algum tipo de limite. Era como achar o portal do passado sem vigilância, desproibido porque não precisava ser. Embutido no ato de retorno havia por fim um cintilante mosaico de dúvida. Algo como o que os colegas de Sauncho que trabalham com seguros marítimos gostam de chamar de vício inerente.

__Isso é igual ao pecado original?—Doc especulou.

__ É o que você não pode evitar—Sauncho disse…»

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NOTAS

[1] As anteriores foram por Boogie Nights, Magnólia & Sangue Negro (por este último ele concorreu ainda como diretor e como co-produtor). Escusado dizer que ele não ganhou por nenhuma. Não sou entusiasta dos filmes de Anderson, mas que ele tem ambição e ousadia, isso não dá para negar (e isso dá margem para seus intérpretes ousarem e brilharem, também).

[2] E também a apropriação do noir por Hollywood. O herói do livro sempre evoca a figura de John Garfield, intérprete de vários filmes no gênero, inclusive da clássica versão do livro mais famoso de James M. Cain, O destino bate à sua porta.

[3] «Olha só tudo isso. Como é que isso pode ser de verdade? como é que alguém pode levar isso a sério? »

  A respeito dos lugares de jogatina menos vistosos, por assim dizer, em Las Vegas:

«Os jogadores aqui tendiam a jogar por dinheiro, cuidando de suas vidas esperançosas ou desesperadas, chapados ou caretas, cientificamente ou calcados em superstições tão exóticas que não podiam ser prontamente explicadas, e em algum lugar nas sombras o senhorio, a financeira, a comunidade dos agiotas, estavam sentados invisíveis e calados, batendo os pés dentro de sapatos caros, ponderando opções de castigo, leniência—e até, raramente, misericórdia»

[4] Outros exemplos:  Sauncho Smilas, Rudy Blatnoyd, Puck Beaverton, Rhus Frothingham, Trillium Fortnight…

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[5] Todas as citações são da maravilhosa tradução de Caetano W. Galindo (há um genial “pau-pites” na pág. 389). Também inspirada é a capa de Elisa V. Randow.

[6] O substantivo “paranoia” e seus adjetivos correlatos são utilizados à farta em Vício Inerente («ou será que tenho que começar a ficar paranoico de verdade?»), mas gostaria de chamar a atenção de que ele muitas vezes brinca com isso (Pynchon= paranoia+ironia+caos):

«__Eu posso dizer uma coisa em voz alta? Será que tem alguém ouvindo?

__ Todo mundo. Ninguém. Faz diferença?»

[7] Dois exemplos tomados ao acaso: «Como viajantes do espaço em uma nave espacial»; «e foi como pousar em outro planeta».

[8] «…e—será que Doc tinha piscado ou alguma coisa assim?—sem mais nem menos desapareceu»

[9] Um dos indicadores é o uso contínuo do ponto de interrogação para frases e declarações supostamente afirmativas.

[10] Frequentando seus lugares usuais, Doc não reconhece ninguém e nem sequer os ambientes e aí lemos: «Ninguém que ele reconhecesse. Ele pensou brevemente em ir para o seu apartamento, mas começou a recear que não fosse reconhecê-lo também, ou pior, que o apartamento não o reconhecesse—não estivesse lá, a chave não coubesse ou alguma coisa assim»

[11] Um ponto que não pude desenvolver na resenha acima e a respeito do qual gostaria, entretanto, de chamar a atenção, é para a renitente e ao mesmo tempo insustentável inocência do herói do livro, Doc Sportello, que toca num ponto nevrálgico do imaginário norte-americano. Se ele tem intuições do caos como meio de administrar totalitariamente o sistema em plena “democracia” («e quando no fim os patriotas e os tiranos são as mesmas pessoas?»), ao longo da narrativa, também tem a atitude criticada na passagem seguinte:

«__ E você—ela diz a Doc—um dia vai ter que se conformar.

__ Como assim?

__ Ser como todo mundo».

 

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01/02/2015

“Pássaros feridos” ou A que clube pertencia Colleen McCullough?

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(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 28 de março de 2000, com o título “Verve aguçada de Colleen vem de longe”)

Desde o início dos anos 1990, Colleen McCullough vem publicando romances sobre a Roma Antiga: Primeiro Homem de Roma, A coroa de Ervas, Os favoritos de Fortuna. Neles, a autora australiana aparentemente alcançou novo patamar em sua carreira, com um ambicioso olhar sobre a vida privada dos romanos, os debates públicos, as apaixonantes questões políticas, o mundo da guerra. No entanto, o que mais impressiona nesses livros é a verve aguçada e exuberante na revelação de aspectos da natureza humana, os quais já existiam em Roma e que provavelmente nunca deixarão de existir.

Agora que o SBT reprisa a minissérie PÁSSAROS FERIDOS (aliás, uma pièce de résistance na sua programação), baseada no romance que tornou McCullough internacionalmente conhecida (foi publicado em 1977[1]), nada mais conveniente do que fazer uma releitura de uma obra da qual tinha uma lembrança muito boa (e Uma obsessão indecente, o livro seguinte, é melhor ainda), injustamente caracterizada como best seller. A minissérie ajudou a consolidar essa ideia falsa. Ali, a história virou um dramalhão inepto, destruído por um casal central inacreditável. Quem leu Pássaros feridos jamais poderá se conformar com a insossa Rachel Ward vivendo Meggie e o deplorável Richard Chamberlain na pele do extraordinário personagem que é o padre Ralph de Bricassart, precursor do memorável Sila, da série romana). E quem o relê agora constata que o tal “novo patamar” na carreira de McCullough também é uma ideia falsa: já estava tudo nele, o olhar ambicioso sobre a intimidade das pessoas e a vida pública e, o que é mais importante, a verve aguçada.

Um ou outro detalhe, um apelativo título extraído de uma lenda meio cafona (que estraga o parágrafo final), uma certa insistência exagerada nas reclamações femininas contra os homens, nada disso consegue enfraquecer o vigor das 650 páginas da história dos membros da família Cleary e de Drogheda, a propriedade que eles, oriundos da Nova Zelândia, administram na Austrália.

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O fio condutor é o amor entre o padre (chega a cardeal) Ralph e a única menina dos Cleary, Meggie. Eles se conhecem quando a família chega a Drogheda. Ele tem 28 anos, ela 10. Nunca deixam de pensar um no outro, apesar de ficarem separados durante longos períodos, várias vezes (uma delas, por 13 anos!). Meggie chega a ter um filho dele, Dane, mas manobra as coisas de modo que todos pensem ser filho do marido, Luke. Ralph só chega a saber da verdade aos 71 anos, quando ajuda Meggie a recuperar o corpo de Dane, que se afoga em Creta, após ordenar-se padre (e ele tem mais vocação do que o pai). Após os serviços fúnebres em Drogheda, o próprio Ralph morre diante de Meggie, já cinquentona.

Acontecem várias outros episódios trágicos na vida dos Cleary, sem contar uma seca que dura uma década inteira, e ad duas guerras mundiais: Paddy, o patriarca, morre incinerado durante uma tempestade terrível; Stu, um de seus filhos, morre esmagado por um javali, ao encontrar o cadáver do pai. É pouco? Ainda há Frank, o irmão mais velho de Meggie (que não é filho de Paddy), o qual tem uma inclinação incestuosa pela mãe, Fee (provavelmente a maior personagem de Pássaros feridos), e que, após comete um homicídio, é condenado à prisão perpétua.

O genial dramaturgo norte-americano Eugene O´Neill (1888-1953) procurou, em algumas de suas peças (por exemplo, na magnífica e difícil Electra enlutada, 1931), transportar a atmosfera das tragédias gregas para o cotidiano da era burguesa, com as maldições dos deuses caindo como um raio no seio de famílias que transgrediram leis. Tais clãs tinham uma espécie de “demônio familiar” (dáimon), provocador dessas transgressões e comportamentos desmesurados, passíveis de serem punidos pelos deuses (hybris).

O fato é que McCullough consegue fazer essa transposição da influência do dáimon e das consequências da hybris com muito mais naturalidade e sem a grandiloquência de O´Neill, em Pássaros feridos[2]. Tanto que, ao contrário do dramalhão convencional, que rege os caminhos dos best sellers, não há conciliação no final da história, não há um final feliz ou arrumadinho que redima o sofrimento. Temos uma visão final de resignação com a velhice e a brutalidade, de desolação, de fim de uma época.

Além disso, embora os diálogos do romance sejam irregulares, com altos e baixos, alguns estão entre os mais soberbos da ficção recente (penso especialmente nos diálogos entre Meggie e Fee na 5ª. Parte do livro). A narração dos sórdidos detalhes sexuais do casamento entre Meggie e Luke também é notável e certamente desconcertará quem procurar o livro para um entretenimento “romântico”. Portanto, desistam, leitores de Danielle Steel ou Rosamunde Pilcher. Colleen McCullough pertence a outro clube, que não é o da felicidade e da sorte.

VER TAMBÉM

https://armonte.wordpress.com/2015/02/02/colleen-mccullough-no-pendulo-entre-a-inspiracao-e-a-mornidao-passaros-feridos-e-a-cancao-de-troia/

 

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NOTAS

[1] THE THORN BIRDS, que comento na tradução de Octavio Mendes Cajado.

[2] Nota de 2015– Relendo hoje a resenha acima, penso que o paralelo entre O´Neill e McCullough é um pouco forçado e, sobretudo, vago, sem fazer contextualização de toda uma linhagem de autores que, no século XX, trilhou esse caminho. Mas meu objetivo naquele momento era valorizar a autora de Pássaros feridos.

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13/01/2015

“As duas faces de janeiro” e as obsessões de Patricia Highsmith

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“__ Escute, Rydal, se é dinheiro o que está procurando, talvez possamos chegar a um acordo.

__ Ah-h—Rydal sorriu e sacudiu o fósforo para apagá-lo—Não me oponho a um pouco de dinheiro, mas duvido que você e eu possamos um dia chegar a um acordo.

      Chester riu com desprezo.

__ Não dou dinheiro a pessoas om quem não chego a um acordo.

__ Não? Pense de novo.

__ Pena que não deixou claro desde o início que era um chantagista. Poderia ter-me dito que era um chantagista. Poderia ter-me dito antes de irmos para Creta.

__ Não era claro para mim antes de Creta. Acho que foi o fato de ter-me associado a você que me tornou obcecado por dinheiro…”

(uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 13 de janeiro de 2015)

No ano em que completou meio século, As Duas Faces de Janeiro (cuja tradução — de Marcelo Pen — acaba de ser relançada pela Benvirá[1]) transformou-se no filme de estreia como diretor do roteirista iraniano Hossein Amini (de Branca de Neve e o caçador), ora em exibição em Santos.

Fugindo da investigação de seus negócios escusos nos EUA, o quarentão Chester MacFarland leva a esposa, Colette (25 anos), para uma viagem pela Europa. Em Atenas, chamam a atenção de outro americano, Rydal Keener: Chester se parece muito com seu pai, recém-falecido, com quem tinha uma relação problemática; Colette, com a garota que fora sua paixão adolescente, com resultados desastrosos, como uma acusação de estupro. Ao segui-los, testemunha o assassinato de um policial; ajudando Chester a ocultar o cadáver, envolve-se com o casal de uma forma tortuosa e escusa (e sobretudo gratuita[2]: “As palavras pareceram sair de dentro dele vindas de lugar nenhum. Estava se oferecendo para cometer perjúrio. E por que motivo? Por quem? Um homem cujo ar cavalheiresco era só aparente, Rydal podia perceber agora; um homem cujas roupas tinham bom corte, tendo sido feitas por encomenda, mas cujas abotoaduras eram vistosas; um homem cuja disposição parecia desonesta, pois ele era desonesto”) que os levará a Creta, onde se cristaliza a mescla de fascinação  e ódio entre os dois homens; e depois à França, quando ambos, foragidos da justiça, usando identidades falsas, já são inimigos declarados[3], Chester procurando despistar Rydal, sempre em seus calcanhares…

De todos os 21 romances de Patricia Highsmith (1921-1995) publicados em vida[4], As Duas Faces de Janeiro talvez tenha sido o mais trabalhado e revisto, com várias versões rejeitadas por sua editora (que não o achava “à altura de uma escritora como ela”): “Um clima muito pouco saudável cerca o texto [que] transmite forte sensação de repulsa; ou então: “o livro só faz sentido se houver um relacionamento homossexual entre Rydal e Chester…Não conseguimos gostar de nenhum personagem, e mais difícil ainda é acreditar em algum deles[5].

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De fato, vindo na sequência da sua maior obra fora da série Ripley, O Grito da Coruja (1962), esse livro, cujo título evoca a dualidade de Jano (tocando fundo nos movimentos interiores dos personagens: Chester a princípio sempre se reinventando para o futuro, vezo essencial para sua vigarice; Rydal, fixado no passado; depois, a inversão entre eles), desconcerta o leitor e, no seu terço final, resvala para o exasperante[6], com uma narrativa estática e atitudes que soam singularmente inverossímeis, em especial num homem maduro que sempre viveu de golpes e da esperteza (“Quebrado, jurou a si mesmo que ficaria rico, e depressa.Assim, passou a operar de modo cada vez mais escuso, podia perceber agora, embora ao começar não tivesse a intenção de ficar milionário tornando-se um vigarista. Fora uma coisa gradual. Uma coisa gradual e ruim, Chester sabia. Mas agora estava preso a isso, realmente afundado nisso, entregue a isso como um viciado à droga”).

Entretanto, sem deixar de reconhecer alguns desequilíbrios sérios do romance enquanto tal, essa mirada apenas ratifica os equívocos das avaliações acima citadas sobre o manuscrito, o principal deles centrado na questão crucial de acreditar nos personagens (e gostar deles), sem contar a latente homossexualidade da trama. Pois bem, qual a novidade? Boa parte do universo de Patricia Highsmith é a exploração da atração-desejo de tomar o lugar entre dois homens. Pode-se até chegar ao ponto de afirmar que todos os cenários, por mais interessantes e bem-descritos que sejam, na Grécia ou na França, e mesmo o labirinto de Creta (onde acontece um episódio crucial)  só servem, em As Duas Faces de Janeiro,  para que a autora coloque tal obsessão em movimento[7], num labirinto psíquico que faz de tudo o mais mero acessório (inclusive Colette, o suposto pomo da discórdia). Portanto, não tem muito sentido cobrar verossimilhança nas atitudes e eventos (e assim dá para entender melhor a falta de jogo de cintura por parte de Chester, na reta final da narrativa), embora, a meu ver, os aficcionados e experimentados nos dédalos highsmithianos sentirão menor desconforto (nesse sentido, pelo menos) com esse livro tão peculiar e estranho. O aventureiro de primeira viagem talvez não aprecie muito a iniciação, pois os mapas da grande escritora texana geralmente levam a territórios proibidos ao conforto turístico[8].

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TRECHO SELECIONADO

“Chester pôs a mão no radiador, que ainda não dava sinais de estar perdendo a frieza. Teve um pressentimento de que à noite continuaria frio e que Colette ficaria acordada até o dia raiar dançando em algum lugar com Rydal, em vez de tentar dormir. A energia de Colette era supreendente—patinar no gelo a tarde inteira em Radio City ou andar a cavalo no Central Park, e então dançar numa festa até de madrugada, por exemplo. A energia da juventude, claro. Simplesmente não conseguia estar à altura. Suas pernas não aguentavam. Bem, as coisas ainda não tinham chegado a esse ponto e, se o cômodo  não aquecesse em duas horas, mudaria de quarto ou de hotel…”

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NOTAS

[1] Anteriormente publicada pela Editora A Girafa (2004). O título original é The Two Faces of January.

[2] Como sói acontecer no universo da autora de que me ocupo. Mas como a minha linha de argumentação mostrará, estamos longe do gratuito, que é apenas a superfície, a proverbial ponta do iceberg.

[3] Rydal: “Eu o detesto. Creio que isso me fascina. Não desejo matá-lo, nunca desejei matar ninguém. Mas devo confessar que gostaria de vê-lo desabar.” A questão, como sempre, é quem se revela o mais fraco. Em O Talentoso Ripley, o protagonista precisa matar o “amigo” a quem ama, Dickie, porque se descobre o mais fraco dos dois, e não há outro jeito.

[4] Small G foi publicado postumamente, em 2004. O último publicado em viva foi Ripley debaixo d´água (1992), quinto da série Ripley.

[5] Utilizo informações colhidas na biografia A talentosa Highsmith, de Joan Schenkar, na sua versão brasileira (feita por Ricardo Lísias, Globo, 2012).

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[6] O mesmo problema acontecia com  This sweet sickness (1960), mesmo assim um romance superior (há duas edições brasileiras, uma com o título Essa doce obsessão; outra, como Esse doce mal), a meu ver.

[7] Além do seu fascínio pela vigarice, pelas identidades falsas, e pelo dinheiro, no sentido mais literal possível: a obra de Highsmith em geral, e As duas faces de janeiro é muito ilustrativo, é pródiga em quantias, em notas que aparecem em cena, em detalhes financeiros exaustivos. Por exemplo, há a cena em que Andreou (aliado de Rydal, mas contratado por um iludido Chester para eliminar o antagonista) exibe o dinheiro que recebeu do americano: “…ele o havia trazido consigo também para exibi-lo, Rydal pensou. Ele fitou as notas novas de quinhentos dólares na mesa de madeira ao lado dos pratos sujos de guisado. Por alguns segundos todos miraram o dinheiro…”; anteriormente: “Notou a falta de jeito de Chester, sua falta de coragem em mencionar o dinheiro, possivelmente sua sovinice e, a despeito de todas as suas roupas gastas, Rydal achou-se bastante superior a Chester MacFarland”.

Num dos momentos da narrativa, em que se faz uma caracterização do “caráter” de Chester, lemos: “Rydal tentou explicar que Chester era o tipo de homem que se sentia mais à vontade depois de constranger as pessoas, ou procurar constrangê-las, a aceitar dinheiro”.

[8]Era uma  cidade desinteressante, Canéia, mas ele apreciava cidades desinteressantes, porque elas obrigavam as pessoas a examinar coisas—por falta do que fazer—que de outra forma passariam despercebidas…”

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