MONTE DE LEITURAS: blog do Alfredo Monte

26/01/2016

Destaque do Blog: OS PAPÉIS DE ASPERN, de Henry James

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«Essas coisas me atingiram então quase com a palpitação que haviam causado, os sucessivos estados afetando minha consciência de tal modo que, quando a porta do aposento se fechou atrás de mim, julguei estar realmente face a face com a Juliana de algumas das mais primorosas e célebres poesias de Aspern. Eu fiquei acostumado a ela posteriormente, embora nunca completamente; mas, enquanto ela se manteve lá diante de mim, meu coração bateu tão disparado como se o milagre da ressurreição houvesse acontecido em meu benefício. Sua presença parecia de algum modo conter e expressar a própria presença do poeta e, naquele primeiro momento em que a vi, eu me senti mais próximo a ele do que nunca sentira um dia nem sentiria futuramente».

(uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 26 de janeiro de 2016)

Este ano é marcado pelo centenário da morte de Henry James. De sua grandiosa obra, o mais recente lançamento (pela Penalux), em nosso país. é a versão de Chico Lopes para Os papéis de Aspern (“The Aspern Papers”, 1888)[1], no qual um editor que idolatra um grande poeta já falecido[2] consegue infiltrar-se — em Veneza — no desolado casarão onde vivem obscuramente a idosa Juliana Bordereau (amor da juventude de Jeffrey Aspern) e Miss Tina[3], uma sobrinha solteirona, com o objetivo de se apossar de supostos documentos (correspondência, manuscritos inéditos) que enriqueceriam a fortuna crítica e biográfica do cultuado autor.

   «Perdera, antes de ter saboreado, um afeto que prometia encher toda a sua vida». Esta frase, de O altar dos mortos (1895)[4], revela o cerne do universo jamesiano, povoado por relatos em que uma pessoa morta é que dá a palavra final sobre a vida das personagens principais: a vida que seria possível e não foi e, mais especificamente, a sombra “do que não foi” sobre o que “é”.

Nesse sentido, como romance curto, Os papéis de Aspern é exemplar como introdução, sintetizando vários desdobramentos obsessivos: para começar, todos são americanos — durante toda a sua longa produção, James explorou imbróglios envolvendo conterrâneos seus em terras europeias[5]; depois, o escrutínio ético e moral do ardor estético; não poderia, ainda, faltar uma atmosfera de intriga, tanto no sentido mundano, de boataria, quanto no conspiratório, com o narrador usando ardis (a certa altura, Miss Tina indaga:  «Então era uma trama premeditada, uma espécie de conspiração?»; «So it was a regular plot — a  kind of conspiracy?») e, sorrateiramente, sendo envolvido numa soturna teia: «Estaria eu ainda em tempo de salvar meus bens? Essa questão estava em meu coração, pois o que agora vinha a ocorrer era que, na inconsciente celebração do sono, eu havia retornado a uma passional apreciação do tesouro de Juliana. Os pedaços que o compunham eram agora mais preciosos do que nunca, e uma ferocidade positiva havia se introduzido em minha necessidade de adquiri-los. A condição que Miss Tina havia ajuntado a este ato não mais aparecia como um obstáculo digno de reflexão, e, por uma hora, nesta manhã, minha imaginação arrependida deixou-a de lado. Era absurdo que eu não fosse capaz de inventar nada; absurdo que renunciasse tão facilmente e me afastasse inapelavelmente da ideia de que o único modo de me tornar possuidor dos papéis era me unir a ela pelo resto da vida. Eu poderia não escapar do laço, porém ainda poderia ter o que ela tinha»[6].

Sobretudo, o que se destaca — afora a grandiosa, com toques sinistros (a viseira) e até sórdidos, figura de Juliana (que diálogos geniais os das transações financeiras com o seu inquilino) — é a cegueira do homem, o autoengano de um protagonista, e que talvez tenha chegado ao cume num texto bem mais tardio, A fera na selva (1903). Nesta novela notável, John Marcher arrasta uma mulher, May Bartram, para acompanhá-lo durante anos numa expectativa: a de que algo portentoso vai acontecer com ele, qual uma fera que, na selva, se preparasse para dar o bote. No final, quando Marcher descobre o que era esse “algo”, lemos afirmações que serviriam perfeitamente para o narrador de Os papéis de Aspern, com relação à pobre Miss Tina: «A fera estivera mesmo na emboscada, a fera havia atacado… havia atacado quando não descobrira… O horror de despertar — este era o conhecimento — conhecimento cujo sopro as lágrimas em seus olhos pareciam gelar. Através delas, entretanto, tentou prendê-lo, segurá-lo; manteve-o diante de si para que pudesse sentir a dor. Isto pelo menos, atrasado e amargo, tinha algum gosto de vida»[7].

A incapacidade de separar o vivido do ideal e do simbólico, separar a paixão e o amor do gosto estético, separar o egoísmo do homem absorvido por suas preocupações da compreensão real do mundo feminino[8], incapacidade dramatizada de maneiras diferentes em Os papéis de AspernA fera na selva pode causar uma ressaca de angústia no leitor, mas nos prova que Henry James foi um dos autores mais implacáveis que já existiram. Ter um gosto tão apurado quanto o dele, e ainda assim saber o quanto esse gosto pode ser mesquinho, estéril,  nada intemerato, é prova de uma lucidez intimorata.

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ORIGINAL DA EPÍGRAFE

«They come back to me now almost with the palpitation they caused, the successive feelings that accompanied my consciousness that as the door of the room closed behind me I was really face to face with the Juliana of some of Aspern’s most exquisite and most renowned lyrics. I grew used to her afterward, though never completely; but as she sat there before me my heart beat as fast as if the miracle of resurrection had taken place for my benefit. Her presence seemed somehow to contain his, and I felt nearer to him at that first moment of seeing her than I ever had been before or ever have been since».

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TRECHO SELECIONADO

«Sei apenas que, pela tarde, quando o ar estava brilhando especialmente com o pôr do sol, encontrei-me diante da igreja dos Santos João e Paulo, erguendo os olhos para o pequeno rosto de queixo quadrado de Bartolommeo Colleoni, o terrível condottiere24 que monta firmemente seu enorme cavalo de bronze no alto pedestal no qual a gratidão veneziana o mantém. A estátua é incomparável, a mais bela de todas as figuras a cavalo, a menos que a de Marcus Aurelius, que cavalga benignamente diante do Capitólio Romano, a supere; mas eu não estava pensando nisso; apenas me descobri olhando fixamente para o capitão triunfante como se ele trouxesse um oráculo em seus lábios. A luz ocidental brilha em toda a sua intensidade feroz nessa hora e a torna maravilhosamente pessoal. Mas ele continuou a olhar para muito longe de minha cabeça, na imersão vermelha de outro dia, – ele vira tantos se acabarem na laguna ao longo dos séculos! – e, se estava pensando em batalhas e estratagemas, eram de uma qualidade diferente de qualquer uma que eu tivesse a lhe contar. Ele não podia me orientar quanto ao que fazer, tanto quanto eu poderia erguer meu olhar para ele […]Sem ruas e veículos, o rugido de rodas, a brutalidade dos cavalos, e com seus pequenos caminhos tortuosos onde as pessoas se aglomeram, onde as vozes soam pelos corredores de uma casa, onde o passo humano circula como se contornasse os ângulos da mobília, e os sapatos nunca se gastam, o lugar tem a característica de um imenso apartamento coletivo, no qual a Piazza San Marco, no seu ângulo mais ornamentado, e palácios e igrejas, de resto, fazem o papel de grandes divãs de repouso, mesas de entretenimento, extensões da decoração. E de algum modo, o esplêndido domicílio comum, familiar, doméstico e ressonante também evoca um teatro com seus atores batendo os calcanhares sobre pontes e, em procissões esparsas, tropeçando em fundações. Quando se está sentado numa gôndola, as calçadas que, em certos trechos, margeiam os canais, assumem ao olhar a importância de um palco, igualando-se a ele num ângulo semelhante, e as figuras venezianas, movendo-se de cá para lá contra o cenário desgastado de suas pequenas casas de comédia, nos parecem membros de uma companhia teatral sem fim».

«I only know that in the afternoon, when the air was aglow with the sunset, I was standing before the church of Saints John and Paul and looking up at the small square-jawed face of Bartolommeo Colleoni, the terrible condottiere who sits so sturdily astride of his huge bronze horse, on the high pedestal on which Venetian gratitude maintains him. The statue is incomparable, the finest of all mounted figures, unless that of Marcus Aurelius, who rides benignant before the Roman Capitol, be finer: but I was not thinking of that; I only found myself staring at the triumphant captain as if he had an oracle on his lips. The western light shines into all his grimness at that hour and makes it wonderfully personal. But he continued to look far over my head, at the red immersion of another day– he had seen so many go down into the lagoon through the centuries– and if he were thinking of battles and stratagems they were of a different quality from any I had to tell him of. He could not direct me what to do, gaze up at him as I might […] Without streets and vehicles, the uproar of wheels, the brutality of horses, and with its little winding ways where people crowd together, where voices sound as in the corridors of a house, where the human step circulates as if it skirted the angles of furniture and shoes never wear out, the place has the character of an immense collective apartment, in which Piazza San Marco is the most ornamented corner and palaces and churches, for the rest, play the part of great divans of repose, tables of entertainment, expanses of decoration. And somehow the splendid common domicile, familiar, domestic, and resonant, also resembles a theater, with actors clicking over bridges and, in straggling processions, tripping along fondamentas. As you sit in your gondola the footways that in certain parts edge the canals assume to the eye the importance of a stage, meeting it at the same angle, and the Venetian figures, moving to and fro against the battered scenery of their little houses of comedy, strike you as members of an endless dramatic troupe».

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NOTAS

 [1] É a terceira, em 1984 foram publicadas as de Maria Luiza Penna (Global) e Álvaro A. Antunes (Interior edições); só li a primeira, desconhecendo a existência da segunda até há poucos dias.

[2] «Eu o havia invocado e ele viera; pairava diante de mim metade do tempo; era como se seu fantasma luminoso houvesse retornado à terra para me assegurar que considerava a questão como sua não menos que minha e que tínhamos que conduzi-la fraternal e afetuosamente até uma conclusão. Era como se ele houvesse dito: “Pobre querido, tenha calma com ela; ela tem alguns preconceitos naturais; é só uma questão de lhe dar tempo. Por mais estranho que lhe possa parecer, ela foi muito atraente em 1820. Enquanto isso, não estamos juntos em Veneza, e que melhor lugar existe para o encontro de amigos queridos? Veja como a cidade reluz com o verão avançado; como o céu e o mar e o ar róseo e o mármore dos palácios todos tremeluzem e se fundem”. Minha excêntrica missão particular tornava-se parte do romantismo e da glória geral – eu sentia até uma camaradagem mística, uma fraternidade moral com todos aqueles que, no passado, haviam estado no serviço à arte»; «I had invoked him and he had come; he hovered before me half the time; it was as if his bright ghost had returned to earth to tell me that he regarded the affair as his own no less than mine and that we should see it fraternally, cheerfully to a conclusion. It was as if he had said, “Poor dear, be easy with her; she has some natural prejudices; only give her time. Strange as it may appear to you she was very attractive in 1820. Meanwhile are we not in Venice together, and what better place is there for the meeting of dear friends? See how it glows with the advancing summer; how the sky and the sea and the rosy air and the marble of the palaces all shimmer and melt together.” My eccentric private errand became a part of the general romance and the general glory– I felt even a mystic companionship, a moral fraternity with all those who in the past had been in the service of art».

[3] No original. Miss Tira:

«…foi assim que a altamente trêmula solteirona provou chamar-se, de um modo um tanto incongruente»; «…(for such the name of this high tremulous spinster proved somewhat incongruously to be)».

[4] VER AQUI NO BLOG: https://armonte.wordpress.com/2012/04/21/the-heart-of-the-matter-jamesiano-a-sombra-do-que-nao-foi-sobre-o-que-e/

[5] «Seu país de origem abrigara a maior parte de sua vida, e sua musa, como se dizia na época, era essencialmente americana. Era por isso que eu o prezara a princípio; porque, numa época em que nossa terra natal era crua e provinciana, quando a sua famosa falta de “atmosfera” não era sequer lastimada, quando a literatura ali estava perdida, e a arte e a forma, quase impossíveis, ele havia encontrado meios para viver e escrever como um dos grandes; para ser livre e universal e totalmente destemido, para sentir, entender e expressar tudo»;  «His own country after all had had most of his life, and his muse, as they said at that time, was essentially American. That was originally what I had loved him for: that at a period when our native land was nude and crude and provincial, when the famous “atmosphere” it is supposed to lack was not even missed, when literature was lonely there and art and form almost impossible, he had found means to live and write like one of the first; to be free and general and not at all afraid; to feel, understand, and express everything».

[6] «Was I still in time to save my goods? That question was in my heart; for what had now come to pass was that in the unconscious cerebration of sleep I had swung back to a passionate appreciation of Miss Bordereau’s papers. They were now more precious than ever, and a kind of ferocity had come into my desire to possess them. The condition Miss Tita had attached to the possession of them no longer appeared an obstacle worth thinking of, and for an hour, that morning, my repentant imagination brushed it aside. It was absurd that I should be able to invent nothing; absurd to renounce so easily and turn away helpless from the idea that the only way to get hold of the papers was to unite myself to her for life. I would not unite myself and yet I would have them».

[7] VER AQUI NO BLOG: https://armonte.wordpress.com/2013/05/05/atrasado-e-amargo-algum-gosto-de-vida-a-madona-do-futuro-e-a-fera-na-selva/

[8] Curiosamente, como típico herói jamesiano, o narrador é acusado por Juliana de se interessar por atividades “pouco viris”, como se preocupar com as flores do jardim.

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19/01/2016

“Rebentar”, de Rafael Gallo, e a fênix da narrativa em terceira pessoa

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«Ângela põe os joelhos ao chão e se inclina sobre o vaso, pronta a vomitar algo que a nauseia mas não existe. Não há nada para rebentar agora, a não ser a sombra de Felipe dentro de si».

«Testa as velhas chaves que tem nas mãos, em uma iniciativa inútil cujos resultados já poderia ter previsto. A maioria gira em falso dentro do buraco da fechadura. Ângela deixa a porta apenas encostada e assim ela permanecerá. Não há muito mais que possa fazer. Nunca teve a chave para fechar o quarto do filho».

«Refletindo sobre todos esses lados da história, Ângela vê o quanto a perda de seu filho não se tratara somente da perda de um filho, mas de tantas outras coisas».

«O envelhecimento digital servira, no caso, como o impulso definitivo que colocara em movimento o processo de sua renúncia. As luzes de suas esperanças já estavam bastante desbotadas, bem como as sombras de seu luto, mas o retrato de Felipe crescido e amargurado era o elemento que faltava para dar corpo aos sentimentos confusos que se erguiam dentro dela. Não precisava mais buscar por aquele cuja face era a de um homem alheio; seu filho estava perdido de qualquer maneira, ainda que pudesse ser encontrado».

(uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 19 de janeiro de 2016)

Rebentar é um romance de 370 páginas que flui e reflui sobre a decisão de uma mãe cujo filho fora raptado quando criança, trinta anos antes:  encerrar o assunto, isto é, desistir de quaisquer buscas e expectativas, dentro de si mesma e perante os outros[1]. No fim, diz ela, «fiquei apenas preservando a integridade da ausência dele».

Mas não é a própria Ângela quem conta a história. Na contracorrente da tendência cada vez mais predominante de vozes narrativas em primeira pessoa, e apesar da adesão solidária ao foco de sua protagonista, Rafael Gallo fez a arriscada, temerária, aposta na terceira pessoa, numa época em que ela sofre descrédito por parte dos jovens escritores (e não apenas eles).  Isso não representaria problema algum na ficção dos EUA, onde se mantém uma vigorosa tradição de realismo psicológico e mineração dos inesgotáveis veios de dramas familiares, onde se aventuram mesmo autores do nível de Anne Tyler, Russell Banks ou Joyce Carol Oates, mas a qual, sabe-se lá por que, praticamente inexiste na nossa, com raras exceções, como foi o caso de Estranhos no Aquário (2012), de Adriana Armony[2].

É mais fácil encontrar um romance brasileiro atual com escritores e seus dilemas como personagens do que a tragédia de uma mãe que perde o filho interminavelmente, sem se sentir no direito de prosseguir com a sua existência:

«É a mesma escuridão antiga, abatendo‑se sobre ela como uma noite que sempre volta a cair. O que a impediria de acabar com tudo nesse momento, sozinha em casa? Se antes o único motivo para que não se suicidasse era a possibilidade de o filho voltar? De ele contornar todas as improbabilidades e reaparecer, batendo suavemente à porta da casa como se intocado por todos os perigos do tempo? Felipe regressaria e a vida estaria resolvida por completo, a promessa de um mundo reordenado se cumpriria.

    Mas agora não havia mais essa esperança. Não mesmo? O que restara então, o que se desenhava exatamente nessa sombra cujos contornos se alteravam no coração de Ângela? Já não sabe mais de si, perdeu‑se no caminho»[3].

E é uma história que a minha geração, impactada com o caso Carlinhos (cujo sumiço, em 1973, em plena ditadura militar, causou comoção, entrou para o imaginário nacional — e pessoal —, nunca foi solucionado), esperava há muito: «Escolher um lugar onde procurá‑lo era sempre escolher que em todos os outros ele poderia estar se perdendo naquele mesmo instante, longe de seus olhos. De dentro da ferida aberta o tempo jorrava. Nada sanava a iminência da morte, nada estancava essa hemorragia das horas entornadas à ausência do filho. Três décadas da família seriam ceifadas em um único golpe, ainda incompreendido a tal altura. Ângela não sabia o que fazer naquele dia, não soube mais dali em diante, perdida em um labirinto sem direção. A vida passava rapidamente a ser essa constante vigília falida, essa crença no vazio, como uma entidade a abrigar o filho até que a mãe o reencontrasse»[4].

O perigo da opção do romancista estreante pela 3ª. pessoa (afora o sentimentalismo, o edificante ou o clichê da “superação”) era resvalar num tom explicativo, didatizando o processo de Ângela para o leitor: «Passara a postar‑se ali todos os dias, restabelecendo a vocação do porto, que já não guardava mais nenhuma embarcação; apenas a mulher ancorava‑se ali com sua solitude, tentando não ser levada pelas correntes do tempo». Trechos como este mostram quão perto ele esteve de afundar sua prosa em água rasa.

O que aconteceu foi uma experiência similar à que tive com a minha primeira leitura[5] de um romance de José Saramago (guardadas as imensas diferenças, para não dizer proporções, entre os dois): um longo e denso fluxo narrativo que espraia até o limite um núcleo básico, num  movimento concêntrico ou irradiante a agregar imagens e formulações, incessantemente retomadas e enriquecidas, de forma que até afirmações óbvias, banais, ou expressões do mero senso comum [6]ganham peso e lastro (há um excesso de “adentrares” e “perpassares”, mas são somente pequenas afetações—e estamos diante de um gênero literário no qual não existe a impecabilidade): «Tem vontade de escapar dali, sair rua afora, talvez em direção ao antigo cais. Não pode fazer isso. Precisa ser mais forte do que esse impulso e evitar recaídas em seus antigos hábitos. O rebentar das ondas que presenciava no cais abandonado sempre lhe servira como modelo de constância, mas agora ela teria de reverter as marés e mirar‑se nesse exemplo de força como se através de um espelho: a resistência mantida no sentido oposto, o de não mais voltar a abrigar‑se na sombra do mar ou de qualquer lugar abandonado»; ou, ainda: «Ela pensa em Felipe, fazendo dele uma bússola a indicar o caminho de seus sentimentos. A passagem do ano não faz com que a memória do filho seja mais triste ou mais alegre: ele não “deveria estar aqui”, tampouco poderia ser iluminada qualquer esperança de renovação em sua história somente por conta dessa virada de página no calendário. Felipe é apenas o que foi; nenhum réveillon, ano ou qualquer outra pontuação do tempo mudaria algo disso. O novo ciclo a se celebrar não pertencia a ele, mas apenas àqueles que ainda estavam ali para dar o nome de “novo tempo” aos dias que tinham diante de si. Sim, poderia ser uma alegria para Ângela ter essa perspectiva nas mãos, essa vontade de encontrar‑se de novo com um tempo em branco. Era isso o réveillon»[7].

Não sei se Gallo criará uma obra como a de Saramago. Todavia, alguém que realiza a façanha de concretizar um texto como Rebentar, nos mínimos detalhes e em grandes cenas inesquecíveis (como, por exemplo, a tremenda narração da destruição do quarto de Felipe, o filho, mantido intocado, o que é fulcral na relação de Ângela com o tempo[8]), é um talento considerável.

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TRECHOS SELECIONADOS

Quatro passagens maravilhosas (creio não ser um exagero, dadas a extensão e a envergadura de REBENTAR):

1

«As luzes dos carros piscando: as luzes dos vagalumes piscando. Felipe corria atrás deles, as mãos no ar, tentando reter aqueles brilhos incapturáveis dentro da escuridão da noite. Ângela perde o fôlego por um segundo; até o instante imediatamente anterior, essa lembrança estava completamente perdida em sua memória. Conforme a cena é remontada em sua cabeça, a mulher chega a se perguntar se não perdeu a sanidade, se não está criando uma história apenas em sua imaginação e convencendo‑se de já tê‑la vivido. Porém fica cada vez mais claro: esse dia de fato existiu, ela havia tido aquela experiência com o filho e se esquecido completamente. Como pôde?

Aconteceu em um fim de semana no sítio de Sérgio, amigo de Otávio atualmente falecido. Felipe devia estar com uns quatro anos e, visitando o campo pela primeira vez, deslumbrava‑se a cada instante com as descobertas do lugar. Sérgio e sua esposa, vendo a alegria do garoto com aquelas maravilhas, levaram‑no de noite, junto com Ângela, a um recanto do sítio onde diziam ter algo especial para o menino ver. Ele ficou tomado de espanto ao ver os vagalumes, todas aquelas pequenas lamparinas aladas brilhando no ar do recanto de mato onde não havia nenhuma outra luz. Felipe nunca imaginara que poderia existir um bichinho que se acendesse; corria atrás deles, absolutamente encantado. O som de seu riso constante era o perfeito espelhamento daquelas pequenas cintilações riscando o ar. Na volta, durante o jantar, o menino não parava de falar naquilo, especialmente para o pai, que não fora ao passeio por ter preferido descansar na casa. “Os vagalumes furam o escuro com a luz deles”, dizia com sua voz graciosa.

Como você pôde se esquecer disso, Ângela? Ao invés da culpa ou da gravidade que poderiam — e costumavam — acometê‑la em tudo que se relacionava com Felipe, um sorriso brota em seu rosto, complacente e tocado pela alegria dessa recordação. Incrível uma lembrança reaparecer assim, intacta, depois de tantos anos apagada. A mulher chega a rir sozinha, pensando que agora os vagalumes haviam furado o escuro de seu esquecimento com as luzes deles. Tudo o que Ângela tem vontade nesse momento é de ser capaz de conseguir preservar o alumbramento dessa memória, a primeira surgida nova em meio a todas as outras, sempre tão impregnadas das sombras do pesar pela perda do filho que se sucederia. Incrível algo assim acontecer».

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«A movimentação no piso de cima chama a sua atenção, não consegue evitar. Ela tenta decifrar os gestos por trás dos sons abafados pela alvenaria, como se ouvisse as sombras dos movimentos. São passos que parecem se ajuntar no ponto acima de si. Um ou outro estalo indica o manuseio de alguma ferramenta, bem como a colocação de objetos sobre o piso, que ela não consegue discernir por exato. De repente, um golpe desferido com muita força irrompe um estrondo assustador contra sua vigília. Ela se curva e fecha os olhos em um reflexo. É brutal o choque contra a superfície que é ao mesmo tempo o teto que a protege e o chão a ser destruído do lado avesso. Ângela tem a sensação de que a cobertura vai se abrir em um rasgo e desmoronar inteira sobre sua cabeça. Perde o fôlego com o susto. Outra pancada e mais outra, e logo uma série de colisões contra o teto, feito uma chuva férrea. Ângela sente seu corpo ficar trêmulo, o formigamento vibrando sob a pele em um agito de temor. Ela ainda tenta manter‑se sob controle, tomando um copo nas mãos para lavá‑lo. Abre a torneira e, sob a água e o sabão que esguicha freneticamente, o copo lhe escapa e se parte em cacos no fundo da bacia. Ângela vê as espirais vermelhas que escapam fugazes adentro da água a descer pelo ralo e, só então, sente o corte arder em sua mão. Estanca‑o com um pano. As marretas e clavas continuam a arrancar o chão sobre sua cabeça. Ela não aguenta mais.

Depois de se apressar e pegar as chaves do carro na sala, Ângela sobe as escadas chamando por seu Antônio. Logo as ferramentas param de golpear, como em um cessar‑fogo. Ela consegue avisar ao homem que precisa sair para resolver umas pendências na rua. O mestre de obras assente. Ela deixa a casa depressa, pensando, somente quando já está em seu carro, que talvez não fosse recomendável abandoná‑la assim, sem nenhuma supervisão. Os sons das marretas a alcançam na garagem e a fazem sentir que deve mesmo partir, sem pudor de deixar para trás aquilo que agora parecia só ruína».

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«Ela se detém um pouco antes de chegarem ao limiar de entrada, observando os cartazes feitos pelos alunos, que estavam fixados à parede do corredor. Nas cartolinas coloridas, fotos de revistas e jornais dividem espaço com lantejoulas e frases escritas com canetinhas. Todas trazem mensagens sobre cuidados com o meio ambiente e com o uso da água, em caligrafias e discursos carregados de inocência, como se salvar o mundo fosse algo muito simples.

— Esses trabalhos são da turma do ano passado. Preciso pedir pra tirarem daí depois.

— Eles ainda fazem trabalhos desse tipo, com cartolina, cola e tudo mais?

— Foi o que eu disse: algumas coisas nunca mudam.

Algumas coisas nunca mudam. A turma de Felipe havia feito cartazes iguais a esses, com a ajuda das outras professoras, para homenagear o coleguinha perdido e dar sua pequena contribuição às buscas. Ângela apreciou o gesto a princípio, já que era um chamado a mais por seu filho, outra forma de suas fotos e sua busca se espalharem. Porém depois se desgostou ao ver que os mesmos cartazes continuavam na escola, quando tentou voltar a dar aulas. Mais de seis meses depois, com o menino ainda desaparecido e sua turma já em outro ano, aquelas cartolinas fixadas à parede pareciam apenas um memorial precário, simbolizando a invalidez de uma procura que já deveria ter se resolvido, ou ao menos ainda estar ativa, urgente, não paralisada no mesmo ponto. Naqueles cartazes, esquecidos como esses de agora, Ângela vira a busca por seu filho se assemelhar a esses votos ingênuos para que o mundo parasse de desmatar ou que ninguém nunca mais jogasse lixo em nenhum rio. O fim do desaparecimento de seu filho era um sonho vão como esses? Os cartazes dos alunos daquela época já demarcavam que, infelizmente, algumas coisas nunca mudam».

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«A aceitação da perda irreversível de Felipe e a esperança por revê‑lo eram incompatíveis, nunca poderiam existir juntas. Ou ele estava apto a ser reencontrado ou a sua recuperação era impossível, não caberia um meio‑termo para Ângela. Ela se preparara o quanto pudera, caminhara uma longa distância adentro de seu desapego e da reorganização de sua vida, sentia‑se uma nova pessoa agora e parecia pronta para levar sua renúncia adiante, baseada na ideia de que o menino estava perdido de forma irrevogável. Já desfizera grande parte dos traços de sua própria casa e de sua resistência ao tempo e à ausência; estava prestes a encontrar um novo endereço para si, aonde o filho não saberia chegar; pedira a remoção dele dos registros de busca e anunciara a todos os conhecidos que não mais esperaria pelo seu retorno. Mais do que isso, empenhara‑se por resolver no interior de suas emoções a ausência de Felipe. Não poderia ter feito a mínima parte dessas coisas, desatado qualquer um desses laços, se ainda estivesse sujeita a acreditar que o filho poderia ser recuperado, surgido de volta em uma terça‑feira comum feito essa […]O fato de aquele homem não ser Felipe já não significava que um outro poderia sê-lo, somente confirmava que nenhum homem podia receber o nome pertencente a seu filho. Incomodava-lhe demais essa constatação, sem perceber o quanto o aparente desperdício de algumas horas fora importante para levar embora de si muitas das últimas nódoas do tempo. A mulher lastimava‑se pelo fracasso em relação a seu próprio encerramento pessoal, mas não deixava de ser um avanço a constatação dessa mudança em seu olhar: ela já não media o acerto ou erro em sua vida pela volta do filho ou não. Sua perda parecia um fato consumado agora, e Ângela sentia ter se desviado dessa aceitação em nome de uma quimera fugaz. Ir até o abrigo atrás de um morador de rua fora como tentar recolher uma sombra com as mãos. De novo sua vida se encaminhara para uma espécie de naufrágio: o desapego não tinha se mantido de pé até o fim. E dessa vez tudo dependera de uma escolha que ela própria havia feito. Não podia mais se permitir ter uma recaída na esperança de regresso do filho impossível, como alguém que se entrega a um vício antigo, sem perspectiva. Precisava encontrar novas maneiras de seguir adiante com sua vida, em um mundo no qual, como ela agora percebe claramente, as coisas nunca poderiam ser tão remansadas quanto ela sonhara».

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NOTAS

[1] Por exemplo:

«Como fazer isso? Como ser a mãe que comunica ao pai da mesma criança perdida a decisão de deixar de tentar tê‑la de volta? […]Ele é a pessoa que será mais afetada por sua decisão; na verdade, é o único que compartilha o mesmo laço que ela intenta romper, por isso o único que participa dessa renúncia e poderia fazê-la voltar atrás, caso não aceitasse esse encerramento da história que também é dele. Ela vislumbra desmoronarem todas as frases e gestos planejados, todos os caminhos que teria construído ao redor do centro de sua conversa. Os ponteiros do relógio na parede talham o tempo opaco de silêncio ».

Ou então:

«Ângela protelou bastante a conversa com Isa sobre sua renúncia; qualquer pequeno contratempo ou ocupação servia como desculpa para adiar um pouco mais o convite a um encontro. A tamanha perplexidade de Suzana diante do anúncio de sua decisão, semanas antes, e sua recusa inicial em aceitar a ideia tiraram de Ângela o pouco de segurança que poderia ter em abrir‑se para outras pessoas a respeito desse assunto».

[2] VER AQUI NO BLOG: https://armonte.wordpress.com/2013/01/02/o-agora-e-muitas-vezes-estranhos-no-aquario-e-o-percurso-ficcional-de-adriana-armony/

[3] «No fim de tudo, o tempo passaria e se esgotaria para ele e o filho, ela e Otávio. Para todos. O dia em que a existência teria seu termo chegaria de um jeito ou de outro; agora restava a Ângela apenas escolher entre chegar ao término de sua própria vida ainda ancorada à sua tragédia, ou ao menos tendo rumado para outros caminhos. A morte é o espelho derradeiro, e Ângela queria que seu reflexo nele pudesse ser visto não com resignação, mas com algum sentimento de realização maior. Ainda havia tempo para si».

[4] «O desaparecimento na galeria era o centro vertiginoso da espiral que apenas se abriria mais e mais, infindável. Em que momento exato o menino se perdera? De que forma? Nunca saberia nem mesmo isso. É aterrador pensar que seu filho pode sumir sem você nunca descobrir sequer como aconteceu. Enquanto perpassava os corredores da galeria, Ângela pensava em sair à rua; quando saía, pensava em voltar aos corredores. Felipe teria que atravessar alguma daquelas portas. Ou já teria partido? Por qual das mil portas a bater em vão atrás de si ele saíra? O menino se fora e a sombra em seu rastro se estendera invisível, ao longo dos anos. O labirinto se erguia em torno de Ângela, impossível de ser trespassado por ser feito apenas de saídas. Como reencontrar o filho no avesso de um caminho? A ampulheta do tempo rebentara e os grãos passaram a vibrar sob sua pele, carregados nas correntes do sangue».

[5] E depois ratificada pelas leituras posteriores.

[6] Duas amostras:

«Iria ao centro de sua ferida e tentaria curá‑la de dentro para fora»;

«“Feliz Ano‑Novo!”: o mar de vozes rebenta em gritos sobre a praia. Ondas de aplausos e comemorações se erguem por todos os lados. É um novo ano, um calendário com todas as páginas a serem preenchidas».

[7] Mais um exemplo:

«Diante de seus olhos, o mar: a imensidão que parecia não ter fim, cuja margem oposta não se vê, bem como o fundo inalcançável e escuro. Mas o mar também era isso que chegava até ela e a cercava: essas águas cujo vapor ela podia respirar, nas quais poderia molhar suas mãos e adentrar com poucos passos. O mar também era o que estava a seu alcance».

[8] «Ela abriu a porta com urgência, não mais se importando com aquela proteção leviana dos panos sob o vão da entrada. O quarto continuava exatamente igual. Isso, de forma inesperada, fez daquele espaço um estranhamento. Em meio à reforma, o cômodo permitia a sensação de um recanto familiar para onde a mãe regressara, mas algo já não estava mais no mesmo lugar. Ângela ainda não conseguia perceber com exatidão, mas o fato de o mundo ter se transformado até o limiar daquela porta, de as renovações do tempo alcançarem uma proximidade tão grande, demarcava mais claramente o quão defasado estava aquele quarto infantil sem ninguém: o dormitório vazio, um sonho em si mesmo […]Tentara proteger o quarto do filho de todas as maneiras possíveis — apartara‑o da reforma, vedara‑o com panos, removera o pó a invadi‑lo — para quê? Tudo o que fora realizado ao redor, tudo o que as reformas e o tempo estavam ainda por fazer, acabara por quebrar algo dentro daquele abrigo, talvez um de seus alicerces invisíveis».

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13/01/2016

TRADUÇÕES INÉDITAS QUE SE DESTACARAM EM 2015

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(uma versão do texto abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 12 de janeiro de 2016)

Como sempre digo, não dá para ler tudo, nem gostar de tudo. Por isso, faço uma lista de destaques entre traduções de Iivros ainda inéditos (apesar das várias versões diretas de obras anteriormente traduzidas do francês ou do inglês, não as levei em conta) por aqui, dentro do meu recorte pessoal, limitado, de leituras:

Livro do Ano: submissão (Alfaguara- trad. Rosa Freire d’ Aguiar), de Michel Houellebecq: os impasses do Ocidente diante do islamismo assombram o romance moderno desde sua fundação, com Dom Quixote. Não é surpreendente, então, que embasem a mais perturbadora obra do gênero (inclusive devido aos acontecimentos na França) desta década.

Destacaram-se também (por ordem alfabética dos autores), e de antemão pedindo desculpas pelos comentários genéricos:

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O ROSTO DE UM OUTRO (CosacNaify- trad. Leiko Gotoda), de Kobo Abe – o rosto associado à noção de identidade dando ensejo a mais uma fábula-pesadelo do originalíssimo autor japonês (do clássico Mulher das Dunas) —indicado apenas para leitores fortes, rsrsrs;

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TRÊS VEZES AO AMANHECER (Alfaguara- trad. Joana Angélica d’Avila Melo), de Alessandro Baricco- desdobramento extraordinário do livro anterior (Mr.Gwyn) do grande escritor italiano, concretizando o conceito de “quadros escritos”;

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MAL-ENTENDIDO EM MOSCOU (Record- trad. Stella Maria da Silva Bertaux), de Simone de Beauvoir- o furor reacionário desencadeado pela inclusão da pensadora francesa no ENEM aumentou o interesse por esse texto “deixado na gaveta” e no qual se imiscuem as tensões e dissensões com Jean-Paul Sartre, companheiro de toda a vida;

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TEXTOS PARA NADA (CosacNaify- trad. Eloisa Araújo Ribeiro), de Samuel Beckett- na 13º. e última dessas experiências de derrisão com a prosa narrativa, lemos: «Enfraquece ainda, a velha e fraca voz, que não soube me fazer, sumindo para dizer que vai embora… »;

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A DIFICULDADE DE SER (Autêntica- trad. Wellington Júnio Costa), de Jean Cocteau- textos de cunho biográfico de uma força descomunal, produzidos durante uma grave enfermidade, por um dos maiores personagens da cultura do século 20;

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O VÉU ERGUIDO (Grua- trad. Lilian Jenkino), de George Eliot – a autora genial de romances imensos (Middlemarch), exercitando-se, em 1859, na arte da novela, roçando o sobrenatural numa alegoria sobre o medo do futuro e o autoengano;

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REMISSÃO DE PENA/ FLORES DA RUÍNA/PRIMAVERA DE CÃO (Record- trad. Maria de Fátima Oliva do Couto), de Patrick Modiano- a leitura conjunta desses romances do Nobel 2014 lança luz sobre o seu projeto obsessivo e reiterativo: narradores que tentam evocar algo de permanente, que remanesça (“flores da ruína”), em meio a uma memória fuliginosa e dissolvente;

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ROSA CANDIDA (Alfaguara- trad. André Telles), de Audur Ava Ólafsdóttir – romance sobre a imprevisibilidade que abre ao leitor brasileiro uma fresta para a ficção praticada na Islândia;

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QUANDO O IMPERADOR ERA DIVINO (Grua -trad. Lilian Jenkino), de Julie Otsuka-  já em seu primeiro romance, a autora de O Buda no sótão expunha cirurgicamente o apartheid vivido por famílias japonesas nos EUA;

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OS LARGADOS (Alfaguara- trad. Joana Angélica d’Avila Melo), de Michele Serra- brilhante reflexão ficcional sobre a arte de ser pai na pós-modernidade, diante dos nossos adolescentes hiperconscientes de si mesmos e seus aplicativos;

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SONHOS EM TEMPO DE GUERRA (Biblioteca Azul- trad. Fabio Bonillo), de Ngũgĩ Wa Thiong’o- belíssimo e ao mesmo tempo desolador volume de memórias do escritor queniano, sempre cotado como um dos favoritos para o Nobel, e cujo romance Um grão de trigo foi também traduzido este ano (pela Alfaguara, por Roberto Grey);

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ABSOLUTAMENTE NADA E OUTRAS HISTÓRIAS (34- trad. Sergio Tellaroli), de Robert Walser- excepcional seleção  (lançada no final de 2014)de inclassificáveis 41 textos curtos do admirável prosador suíço: «Ir à cidade, eu fui, e queria, sim, comprar algo de belo e de bom para mim e para você; boa vontade não me faltou, estudei, estudei, mas a escolha era difícil e a cabeça estava em outro lugar, por isso não consegui, por isso não comprei absolutamente nada.  Hoje, vamos ter de nos contentar com absolutamente nada, não é mesmo? Absolutamente nada é o que há de mais rápido para preparar e, de todo modo, não causa indigestão… »;

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O SOL E O PEIXE (Autêntica- trad. Tomaz Tadeu), de Virginia Woolf- a autora de algumas das maiores obras-primas da literatura, também era uma arguta ensaísta e cronista, como atestam as nove preciosas amostras aqui reunidas;

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AS RÃS (Companhia das Letras- trad. Amilton Reis), de Mo Yan –um pouco prolixo, mas importante romance do Nobel 2012 sobre a interferência da esfera pública numa ilusória “vida pessoal” (no caso, a política governamental chinesa do f ilho único).

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TRECHO DE UM GRÃO DE TRIGO

«Quanto mais fraca ficava, mais ela o detestava. Fosse o que fosse que ele fizesse ou arranjasse, lá vinha ela diminuir o seu esforço. Assim, Mugo vivia assombrado pela imagem da própria inadequação. Ela possuía um modo de acabar com ele, numa pergunta, talvez, sobre suas roupas, sua cara ou suas mãos, que fazia todo seu orgulho despencar. Ele fingia ignorar as opiniões dela, mas como podia fechar os olhos a suas expressões e sorrisos enviesados?

Seu único desejo era matar a tia.

Uma noite esse pensamento demente o possuiu. Ele fervia por dentro. Naquela noite Waitherero estava sóbria. Ele não usaria um machado ou panga. Iria pegá-la pelo pescoço e estrangulá-la com as próprias mãos. Dê-me forças; dê-me forças, meu Deus. Olhava-a se debater, como uma mosca entre as patas de uma aranha; seus gemidos e gritos abafados pedindo piedade chegavam a seus ouvidos. Ele apertava com mais força, obrigava-a a sentir a força de suas mãos de homem. O sangue acorria para a ponta de seus dedos. Ofegante, estava profundamente fascinado pela audácia e a coragem do próprio gesto.

“Por que você está me olhando assim?”, Waitherero perguntou, rindo guturalmente. “Eu sempre disse que você era esquisito, do tipo capaz de matar a própria mãe, hein?”

Ele se encolheu. A forma como ela o via por dentro era dolorosa.

 Waitherero morreu de repente de velhice e de tanto beber. Pela primeira vez desde o casamento, suas filhas vieram até a cabana, fingiram não ver Mugo, e a enterraram sem fazer perguntas nem derramar lágrimas. Voltaram para casa. E então, estranhamente, Mugo sentiu falta da tia. Quem mais poderia agora chamar de parente? Queria alguém, qualquer um, que representasse uma família para ele, não importava se fosse bom ou mau. Tanto fazia, desde que ele não ficasse abandonado, excluído».

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05/01/2016

DESTAQUES NACIONAIS – LISTA DE 2015

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(uma versão do texto abaixo foi publicada originalmente em A TRUBUNA de Santos, em 05 de janeiro de 2016)

Como sempre digo, não dá para ler tudo, nem gostar de tudo. Por isso, faço uma lista de destaques dentro do meu recorte pessoal, limitado, de leituras, ressaltando apenas que editoras ‘pequenas’ como a Patuá, a Reformatório ou a Confraria do Vento, por exemplo, obtiveram larga vantagem, em quantidade e qualidade, em lançamentos de autores nacionais de valor. Incluí alguns (seis entre dezenove) títulos lançados em 2014 também orientado por essa conclusão; afinal, muitas vezes é lentamente um livro vai abrindo seu caminho, demorando para cair em nossas mãos, e isso deveria ser levado mais em conta. Felizmente, Homero que o diga, não há prazo de validade para textos

Livro do Ano: Como conversar com um fascista (Record), de Marcia Tiburi. Além da precisa reflexão sobre a intolerância política, esses ensaios representam um verdadeiro manual de sobrevivência para a selva de ranços ideológicos destes dias que correm:

«Fechado em si mesmo, o fascista não pode perceber o ‘comum’ que há entre ele e o outro, entre ‘eu e tu’. Ele não forma mental e emocionalmente a noção do comum, por que, para que esta noção se estabeleça, dependemos de algo que se estabelece com uma abertura ao outro. Fascista é aquela pessoa que luta contra laços sociais reais enquanto sustenta relações autoritárias, relações de dominação. Às vezes por trás de uma aparência esteticamente correta de justiça e bondade. Mesmo em circunstâncias esteticamente as mais corretas, e politicamente as mais decentes, o ódio é uma força que tende a falar bem alto. O fascista usa o afeto destrutivo do ódio para cortar laços potenciais, ao mesmo tempo que sustenta, pelo ódio, a submissão do outro. Como personalidade autoritária, ele luta contra o amor e as formas de prazer em geral. Um fascista não abraça. Ele não recebe. É um sacerdote que pratica o autoritarismo como religião e usa falas prontas e apressadas que sempre convergem para o extermínio do outro, seja o outro quem for».

Destacaram-se também (por ordem alfabética dos autores), e de antemão pedindo desculpas pelos comentários genéricos:

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O livro dos cachorros (Patuá), de Luís Roberto Amabile- São poucos os cachorros, porém muitas as surpresas e perplexidades para o leitor dessa brilhante coletânea de contos , ao mesmo tempo divertida e inquietante;

Amores, truques e outras versões (Confraria do Vento), de Alex Andrade- a imersão da eterna insatisfação de Don Juan (num contexto homoerótico) na modernidade líquida de redes sociais e aplicativos;

Retornaremos das cinzas para sonhar com o silêncio (Patuá), de Marcelo Ariel- Um atordoante repertório de referências como invólucro para um lirismo incomum: «Nesse fogo/Que queima somente/aqueles que/com a intensidade/ do mundo formam/uma só tessitura»;

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Esse tal de amor e outros sentimentos cruéis (Reformatório), de Mário Bortolotto- Textos confessionais e crônicas sobre a condição de outsider de uma personalidade marcante da cena cultural e boêmia de São Paulo;

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Um dia toparei comigo (Foz), de Paula Fábrio- Uma narradora autocentrada torna-se o símbolo literário mais representativo de uma geração «que aprendeu tudo na sessão da tarde», num dos melhores romances dos últimos anos;

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Rebentar (Record), de Rafael Gallo- Para quem já não acreditava mais na possibilidade de se explorar a densidade psicológica de personagens em 3ª. pessoa, o impacto que o jovem e fantástico romancista imprime à história da mãe que “desiste do filho”, há 30 anos desaparecido, é imenso;

Ofícios do Tempo (Positivo), de Donizete Galvão- Antologia que permite a introdução ao universo de um grande poeta falecido repentinamente: «No curral da insônia, /rumino palavras pastadas/na ribanceira dos dias»;

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O contrário de B. (Confraria do Vento), de Bruno Liberal- Multifacetada reunião de 13 relatos, explorando relações atávicas e opressivas, a manter um edifício social patriarcal, patrimonialista e preconceituoso;

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Concentração e Outros contos (Alfaguara), de Ricardo Lísias – mosaico excepcional da produção de um autor que, aos 40 anos, já é uma referência fundamental da ficção, desde textos iniciais até suas recentes e geniais ‘Fisiologias’;

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A imensidão íntima dos carneiros (Reformatório), de Marcelo Maluf- O medo inoculado através do destino familiar, dando azo a uma notável fabulação, sem contar a qualidade da prosa, em torno da imigração libanesa e da ressonância da mansidão bíblica;

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A bela Helena (7Letras), de Miriam Mambrini- Através da criação de um alter ego, a protagonista delineia uma faixa social de um lugar e época (o Rio, anos dourados) muito mitificados, e mostra a tarefa árdua que é dar forma à experiência realmente vivida;

Fôlego (Confraria do Vento), de Rafael Mendes -o universo familiar nos oprime e, mesmo assim, nunca é uma história unívoca; o que é deixado à sombra é o eixo  dessa bela novela de estreia;

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Julho é um bom mês para morrer (Patuá), de Roberto Menezes- uma legítima obra-prima do romance, na qual o relato feminino e o destino das mulheres de uma família compõem uma poderosa alegoria do país;

29 (Modelo de Nuvem), de Marcos Messerschmidt- O haicai contemplativo da tradição modula-se a uma dicção moderna e urbana: «a flor ensaia o absurdo/ descola do galho /espalhando multidões»;

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Esculturas fluidas (CEPE), de João Paulo Parisio-  travessia solerte e apaixonante pela corda bamba entre o banal e um moto contínuo de lirismos lapidares («Nunca concluí um pensamento/Minha contribuição definitiva/serão meus pressentimentos»);

Arranhando paredes (Bartlebee), de Bruno Ribeiro- textos cujo exuberante hiper-realismo parece até documentário perante a ressurreição de ameaças de golpe, da onda reacionária e do sensacionalismo autoritário de certos programas jornalísticos;

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A casa das marionetes (Reformatório), de José Santana Filho- uma revisitação do passado familiar em tom operístico e prosa de alto refinamento, captando tanto a «uniformidade do sangue» coletivo quanto o sopro forte dos «ventos internos» individuais;

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O princípio de ver histórias em todo lugar (Oito e Meio), de Leonardo Villa-Forte- Excelente romance de estreia, equacionando a incapacidade de recomeçar a vida com a dificuldade de não dá para aprender com manuais e oficinas, e nem sob o domínio da incerteza e da suspeita.

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TRECHO SELECIONADO ( de REBENTAR)

«No fundo, entendia como algo terrível a possibilidade de que lhe entregassem um homem qualquer e dissessem: “este é o seu filho”. Todos esperariam, então, que ela levasse o estranho para dentro de sua casa, compartilhasse das horas e do alimento com ele e, finalmente, o colocasse para dormir naquele quarto que reservara para Felipe, em cuja cama o homem jamais caberia. Ainda mais perturbador do que essas pequenas questões práticas seria conviver com esse indivíduo sob a obrigação de tecer nele, ponto a ponto, o amor maternal que o abrigaria. Ângela percebia que nunca seria capaz disso, não poderia ser essa mãe. Essa forma de amor estava por demais ligada a Felipe, pertencia completa e unicamente ao menino que criara junto a si por cinco anos, quase seis. Ainda que impressões digitais, testes sanguíneos e outros recursos atestassem a identidade daquele homem, a formação íntima que faria dele seu filho de verdade não podia ser recuperada. Era esse contato, essa longa fiação do amor, que poderia realmente fazer de um homem alguém digno de receber o nome de Felipe.

A única alternativa ao vazio da ausência de Felipe, então, passara a ser o vazio da estranheza de um adulto desvinculado dela. Ângela finalmente soube e sentiu que não podia mais possuir o que tanto sonhara para si. Restava, na prática, pouco mais do que aceitar que sua história como mãe daquele menino buscado estava terminada. O envelhecimento digital servira, no caso, como o impulso definitivo que colocara em movimento o processo de sua renúncia. As luzes de suas esperanças já estavam bastante desbotadas, bem como as sombras de seu luto, mas o retrato de Felipe crescido e amargurado era o elemento que faltava para dar corpo aos sentimentos confusos que se erguiam dentro dela. Não precisava mais buscar por aquele cuja face era a de um homem alheio; seu filho estava perdido de qualquer maneira, ainda que pudesse ser encontrado».

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