MONTE DE LEITURAS: blog do Alfredo Monte

31/03/2014

A MADONA DE CEDRO: transgressão, pecado e expiação em moldes dostoievskianos e joyceanos

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(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 26 de abril de 1994)

Publicado em 1957, A madona de cedro é um dos primeiros livros de Antônio Callado. Curiosamente, é bem melhor que outros posteriores como, por exemplo, Sempreviva, uma bomba atômica cujos efeitos radiativos de ruindade literária persistem muito tempo depois da malfadada leitura.

O protagonista de A madona de cedro, Delfino, é um mineiro de Congonhas do Campo que, para casar com a carioca Marta (pois o pai dela insiste que ele tenha casa própria para efetivar o enlace), a quem conheceu numa viagem ao Rio que mudará sua vida em vários sentidos, aceita roubar uma imagem sacra. Treze anos depois, casado, com seus filhos, recebe nova proposta de roubo. Tudo se complica porque um grotesco sacristão começa a chantageá-lo…

Tal trama e a ambientação barroca transpõem para o cotidiano moderno temas como trangressão, pecado, expiação, ou seja, forças que envolvem um homem não apenas comum como fraco (no sentido forte do termo, por assim dizer), mas que tem de tomar decisões sobre-humanas. Seria dostoievskiano se a comparação, além de esmagadora, não se revelasse inadequada, uma vez que Delfino, fraco como homem, é pior ainda como personagem: jamais consegue fazer com que nos identifiquemos com seus dilemas ou misérias (e essa identificação seria essencial num livro com essa temática), como conseguem os seres (mesmo os mais exagerados) de Dostoievski. É por essa razão que a cuidadosa construção do livro, tão envolvente e convincente a maior parte do tempo (e que funciona como bom registro de época), vacila na parte final: não se consegue crer na redenção (mesmo que irônica) de Delfino pelas ruas de Congonhas, nem no desenlace da sua história. E é aí que o sagaz e lúcido Callado dos artigos, declarações e posturas revela suas limitações como ficcionista.

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Outra vertente explorada no romance e cujo resultado acaba sendo um tanto quanto modesto como resultado é a técnica consagrada por James Joyce em Ulisses (1922), do stream of consciousness, o discurso-fluxo associativo que procura reproduzir movimentos psíquicos, como no trecho seguinte (no qual o autor entra na mente do padre Estevão, num momento de quase sonolência): “… o pior é a distração que não deixa a gente pensar até o fim num mistério, numa coisa impenetrável e portanto fazer correr a água de novo mas que correr de quem quando tudo impele amai-vos-uns-aos-outros em sentido chocarreiro aí está a distração nem um momento de concentração trá-lá-lá de polcas naquele casamento ora há tanto e tanto tempo e o Delfino subindo a rua…” O recurso “boia” timidamente na corrente do enredo, sempre com associações óbvias e unívocas, sem maior complexidade.

O saldo final, entretanto, dessa leitura motivada pela minissérie que começa a ser exibida esta semana pela Globo (uma adaptação do veterano Walter Negrão, com direção geral de Tizuka Yamasaki), é bem positivo, e o segundo romance de Callado preenche um espaço importante, muito comum na literatura norte-americana, por exemplo, e que faz falta na brasileira (onde todos são gênios): o dos bons romances, da ficção média, não-medíocre, que complementa a obra dos grandes. Isso não é pouco.

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29/03/2014

O romance lunar do mais ensolarado dos seres: “Maíra”, de Darcy Ribeiro

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(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 25 de fevereiro de 1997, em função da morte de Darcy Ribeiro, em 17 de fevereiro)

Mairahú, o deus que se refugiou nas sombras, entre os mortos, por fim venceu e exigiu de Maíra, o deus-sol, a vida de Darcy Ribeiro. E o mundo perdeu um ser ensolarado, ficando menos arejado.

Além do intelectual brilhante e original, além do molecão maravilhoso, mesmo aos setenta e poucos anos[1], perde-se um grande escritor.

Em 1976, ele publicou seu primeiro trabalho de ficção, MAÍRA. Neste romance esplêndido, inesperadamente trágico para um temperamento tão solar quanto o de seu autor, conta-se o declínio da tribo mairum, à qual pertence Isaías (na verdade, Avá), destinado a ser o chefe guerreiro, mas que é levado por um missionário, tornando-se seminarista. Sem conseguir se adaptar ao mundo dos “caraíbas”, Isaías retorna a seu povo, como um indivíduo “diminuído”, pela metade (inclusive fisicamente).

No caminho, encontra Alma, carioca que, após uma existência desregrada, procura redimir-se como missionária. O que acontece com Isaías-Avá e Alma é uma representação do desnorteamento tanto da civilização indígena quanto da nossa. Só que o alcance do impacto de MAÍRA é bem maior.

Em primeiro lugar, porque como estrutura romanesca ele é brilhante: ao mesmo tempo que delineia o esmorecimento do mundo mairum, ao mesmo tempo que mostra como a tribo é ameaçada de várias formas, protegida apenas por uma precária lei que infantiliza os índios como cidadãos, também conta-se o mito da criação do mundo na visão mairum, e por conseguinte, seus rituais de vida e de morte.

Poucas vezes se viu na literatura brasileira momentos mais bonitos e um estilo tão deslumbrante. Até o que seria considerado grosseiro e escatológico, deixa de ser, dentro da lógica narrativa que se prende toda ao universo de valores dos índios. Nunca há visão “de cima” ou uma voz “civilizatória” comentando o universo mairum.

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Em segundo lugar, é o mito da criação do mundo contrastado com os problemas contemporâneos dos mairuns que fornece a dimensão trágica (ao mesmo tempo sua poética) ao romance. Os mairuns têm um universo tão fechado, tão geometricamente disposto, que qualquer alteração indica dissolução, destruição. Ironicamente, seu deus supremo, Maíra (o sol) é o deus da expansão, da criação de novas formas, é o deus que não sossega, dentro da estrutura narrativa do mito (tanto que ele acaba por enfrentar o próprio pai, Mairahú, mandando-o para o mundo dos mortos).

Essa ironia torna-se terrível quando o mundo dos brancos vai se expandindo, no seu desassossego fundamental, até tocar de forma fatal o universo dos mairuns, que então vão sendo empurrados para o mundo dos mortos. Várias vezes afirma-se em MAÍRA: o mundo dos mortos vai aumentando (povoando-se), prevalecendo sobre o dos vivos. Isso porque a civilização dos mairuns está acabando, extinguindo-se.

É o ser-mairum como uma essência que Isaías-Avá procura recuperar na sua volta, contudo ele já apresenta o toque fatal do universo branco (não é à toa que em seu discurso apareçam tantos trechos de mortificação, no mais consumado estilo católico), o qual contaminou definitivamente também seu parente Juca, que tenta de todas as formas explorar os índios no comércio de peles.

E Alma, no meio dos mairuns, acaba por representar o princípio da dissolução inexorável, do mergulho na morte inevitável, tal como decidido pelo chefe Anaçã, que anuncia a sua própria extinção pessoal, e cujos ritos fúnebres acompanhamos ao longo da primeira parte da obra-prima de Darcy Ribeiro.

O leitor vai sabendo tudo aos poucos, com vagar. O ritmo de MAÍRA não é o da pressa. Inicia-se com a misteriosa morte de Alma. A partir daí, monta-se um quebra-cabeças que faz passado, presente e futuro convergirem para um mesmo ponto. Várias vozes reúnem-se como se fossem uma só. O mundo dos vivos e o dos mortos, como já foi dito, se tocam. E nunca mais o leitor poderá ter a mesma visão dos dois mundos, depois disso, ainda mais sabendo que o autor, ser solar, repita-se, foi fundo no mundo lunar, no mundo das sombras, para legar o mais importante romance dos anos 1970.

Hoje em dia, quando algumas tribos do Maranhão estão surpreendentemente tomando atitudes políticas mais radicais (como queimar torres de transmissão da Eletronorte), para garantir seus direitos de demarcação de terras, tentando conter o espoliamento incessante de que são vítimas há séculos, MAÍRA continua atual e contundente. Por outro lado, paradoxalmente, isso é o de menos em se tratando de um livro dessa estatura: ao mostrar a fragilidade da civilização mairum, Darcy Ribeiro fez um retrato definitivo da fragilidade de todas as civilizações e de todas as formas de entender a vida e o universo.

 

[1] Nota de 2014- Ele nasceu em 1922.

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28/03/2014

A trajetória romanesca de Antônio Callado (1917-1997)

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(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 04 de fevereiro de 1997- todas as notas de rodapé, todavia, são de 2014)

Não deixa de ser uma ironia do destino o fato de Antônio Callado, uma das grandes consciências do país e um dos nossos escritores com maior senso de responsabilidade social, ter morrido no mesmo dia (28 de janeiro) em que o Governo conseguia a vitória no episódio da reeleição, após uma abjeta e imoral campanha de pressões e conchavos, uma verdadeira desmoralização.

Callado não chegou a ser um grande romancista, mas sempre me impressionou o fato de ter um projeto ficcional muito ambicioso, almejando fazer a representação do Brasil através das mais variadas experimentações formais. Foi um dos raros escritores brasileiros contemporâneos com tal envergadura e se não vivesse num país com uma literatura tão ruim em geral como a nossa, poderia pertencer a um quadro que nos EUA é bastante comum: o da literatura média, nunca medíocre, de bom nível, sólida[1]. Como inexiste aqui essa literatura média, a tendência é valorizar demais um escritor como Callado, ou subestimá-lo em reação ao exagero. As duas atitudes são um erro.

Seus dois primeiros romances talvez sejam a melhor coisa que ele escreveu na área da ficção: Assunção de Salviano (1954) e A madona de cedro (1957), ambos atualmente no catálogo da Nova Fronteira. Eles mostram como as grandes ideologias (religião, atividade revolucionária) penetram no mundo popular, nas camadas baixas da população. Homens simples, simplórios mesmo, enfrentam questões como pecado, expiação, ativismo político. Neste sentido, Assunção de Salviano é plenamente bem sucedido na sua irônica fábula: na cidade de Juazeiro, um ateu convicto, Salviano, recebe instruções do Partido Comunista para se passar por beato. Ao assumir o papel, descobre a fé e acaba mártir do “ópio do povo”. Não é tão bem caracterizado o protagonista de A madona de cedro, o final do livro é um tanto forçado, mas no todo ele é um bom romance, aplicando técnicas ousadas de narrativa muito pouco usadas no mainstream ficcional brasileiro.

A junção religião-política rendeu a Callado sua mais ambiciosa (e mais falha) tentativa de reflexão sobre o país, já acuada pela ditadura militar: Quarup (1967, também atualmente editado pela Nova Fronteira). O grande senão desse livro importante é que falta ao autor estilo e complexidade de visão do mundo para sustentar essa ambição[2]. Entretanto, meu caro leitor, é bom avisar: essa é apenas a opinião de quem aqui escreve, porque muita gente admira Quarup e até o considera uma obra-prima, o livro mais expressivo dos tempos sombrios pós-1964 (não é, esse lugar provavelmente merece ser ocupado por Maíra, de Darcy Ribeiro)[3].

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O problema da repressão policial, do engajamento do intelectual (e do religioso) na política, a procura de novas formas narrativas, tudo isso foi explorado por Callado em outros três romances que cobrem a década de 1970 e o começo dos anos 1980, como tentativas de retrato alegórico do período: Bar Don Juan (1971), Reflexos do baile (1976) e Sempreviva (1981). Não li Bar Don Juan. Dos outros dois, o melhor é Reflexos do baile (ed. Paz e Terra), por causa da sua estrutura narrativa, feita através de trechos de diários e cartas, e do seu tom de caricatura cruel do mundo diplomático entretido com a ditadura. Mesmo assim, uma releitura do livro mostra que a intenção e o esforço parecem esbarrar num rendimento aquém do esperado. Falta complexidade ao romance, o favorito do autor.

Sempreviva (Nova Fronteira) desperdiça uma boa história com um estilo horroroso. Para se ter uma ideia do estrupício quase ilegível , o seguinte trecho: “Quinho se agarrara—para resistir, enquanto fosse possível, ao furacão autofágico, amoroso, talvez, mas excessivo, e por isso mesmo um tanto suspeito—à cabeceira da cama, e ficara, sabia lá por que, itifálico, inteiramente itifálico, quando Lucinda se achegou a ele…”; quer mais, leitor?: “Se sentia, imodesto, como se fosse nada menos do que uma vitória-régia, a cabeçorra verde boiando à superfície e sugando pelo rizoma os fluidos do lodo do rio. Era exatamente isso: sentia, em sua modorra, o que sentiria a irupê, enquanto aos goles, lhe subia à verde bandeja redonda, pelo canudo de refresco, a papa nutriente de florestas derretidas”.

A impressão, na época, era que Callado tinha perdido completamente o rumo[4]. Essa impressão foi reforçada quando do lançamento de Concerto carioca (Nova Fronteira, 1985), a história de um índio objeto de jogos sexuais no Rio de Janeiro. Há críticos que consideram o estilo desses dois livros intrincado, exigindo enorme concentração do leitor. O estilo deles, porém, não é intrincado. É amorfo, forçado, muito próximo dos artificialismos de Nélida Piñon.

O último romance publicado em vida por Callado, Memórias de Aldenham House (Nova Fronteira, 1989), é curioso pois, ao contar as experiências de um grupo de latino-americanos trabalhando na BBC em Londres (durante a Segunda Guerra, parece ter proporcionado ao autor a oportunidade de “limpar” um pouco a sua linguagem (mas só um pouco) e lembrar Graham Greene, que alguns colocam como sua influência inicial, mas que parece ter sido mais decisivo nesse livro tardio.

É um paradoxo: uma pessoa com tanta lucidez e tanta paixão intelectual e um resultado artístico tão pouco instigante, tão sobrecarregado, travado mesmo.

Em todo caso, como se vê, independentemente da qualidade de cada livro (que o leitor pode, e deve, conferir por si mesmo, não custa relembrar que Antônio Callado tem muitos admiradores como romancista), o autor de Quarup tinha uma obra atrás de si e também toda uma postura política e ética, que podia ser admirada nos seus artigos, estes sim sempre instigantes, coerentes.

É pena que tenhamos de testemunhar seu amigo Fernando Henrique Cardoso dar as costas para todo o ideário de justiça social do seu passado de militância intelectual e política, e abraçar com tanta avidez a causa da vaidade e o desejo de se perpetuar, custe o que custar, no poder.

Nesse sentido, a morte de Antônio Callado é até simbólica. Representa a morte de posturas éticas básicas nas quais o nosso presidente represidenciável, com a facilidade de um ditador de Banana Republic, põe a etiqueta de fracassomania.

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[1] Eu já não afirmaria tão categoricamente que a nossa literatura é “ruim em geral” e muito menos que Callado é um escritor “médio”. Creio que, pelo contrário, ele é tão irregular que chegou aos píncaros da ruindade em páginas e páginas de Quarup, por exemplo, e num nível muito acima da média, em outras páginas mais felizes ou menos preocupadas em fazer “bonito”, um bonito pernóstico.

[2] Mesmo porque o detalhamento da carreira erótica do Padre Nando, o protagonista, é um tédio só.

[3] Mas assim como Pessach: a travessia, de Carlos Heitor Cony, publicado no mesmo ano, o romance de Callado está entranhado no imaginário e no novelo ideológico da época, por isso nunca perderá uma certa importância simbólica, bem mais relevante que a literária.

[4] Tal afirmação não é muito exata: desde os primeiros livros, ele tinha essa defasagem do estilo e do tom adotados com relação às ricas possibilidades da fabulação.

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25/03/2014

O jovem Tolstói na Criméia: CONTOS DE SEBASTOPOL

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“__ Tu já tomaste parte em alguma escaramuça?—perguntou, de repente, ao irmão, completamente esquecido de que não queria falar com ele.

__ Não, nem uma vez—respondeu o mais velho—nós perdemos dois mil homens do nosso regimento, sempre em trabalhos; e eu fui ferido também em trabalho. Guerra não se faz assim como tu pensas, Volódia!”

(uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 25 de março de 2014)

A tensão gerada pela anexação (voluntária) da Criméia à Rússia, após algumas décadas como parte da Ucrânia, intensifica a relevância da recente tradução dos Contos de Sebastopol, de Liev Tolstói (1828-1910)[1]. Não que o maior de todos os prosadores necessite desse apelo extraliterário, no entanto a leitura dos três relatos permite ter uma boa ideia de como a síndrome czarista (no sentido da criação e manutenção de um império russo) percorre a História e é simbolizada pela atribulada região peninsular, a qual dá acesso à Europa Ocidental (interferindo de forma direta, portanto, na geopolítica do continente).

Tolstói participou da Guerra da Criméia e escreveu sobre o cerco das forças aliadas (as potências europeias apoiando a Turquia) a Sebastopol que culminará com a melancólica retirada russa em agosto de 1855, após pesadíssimas baixas. Apesar de mutilados pela censura (os tentáculos do czarismo não descansavam), em especial o segundo deles, os Contos de Sebastopol consagraram o improvisado correspondente de guerra e, segundo sua biógrafa Rosamund Bartlett, constituíram “sua obra mais sofisticada até aquele momento”[2] (paralelamente, entre jogatinas, conquistas amorosas e combates, o desassossegado conde se dedicava ao projeto que se tornaria sua trilogia de formação: Infância, Adolescência, Juventude, também há pouco tempo lançada em tradução—realizada por Maria Aparecida Botelho Pereira Soares—direta do russo, pela L&PM).

A sensação, quando lemos Sebastopol no mês de dezembro, é de que estamos “ao vivo”. Esse texto de abertura é o que mais se assemelha a uma reportagem, percorrendo as ruas da cidade sitiada e as instalações militares em seu entorno, de uma forma que antecipa o olhar cinematográfico. Apesar da energia e do otimismo (“Por muito tempo essa epopeia de Sebastopol deixará na Rússia marcas grandiosas, em que o herói é o povo russo”), sem glamurizar em nada a guerra, já é possível detectar indícios da futura derrocada, no amálgama que o narrador (que assume um avatar de “guia”) executa entre os ritmos da natureza e a paisagem humana em polvorosa.

Em Sebastopol em maio a paisagem humana se enriquece, se colore, se individualiza, o conteúdo ficcional se adensando para mostrar as pequenas vaidades, as aspirações pessoais que levam à competição, aos enfatuamentos, e também à profunda solidão, entre os oficiais que tentam se destacar em ação (pois também é uma forma de viver a juventude). É de cair o queixo a equanimidade épica adotada: o inimigo recebe tratamento igualitário, gregos e troianos são vistos da mesma forma honrosa (aliás, ele não se preocupa em expor os motivos do conflito, os interesses políticos ali representados)[3]. Em todo caso, para além dessas palavras “grandiosas”, honra, pátria, glória, na apreensão do íntimo dos indivíduos, já aos 26 anos (o seu aniversário de 27 anos ocorreu justamente durante a retirada) o genial autor de Guerra e Paz & Anna Karênina executa uma alquimia de ambivalências, de processos mentais contraditórios e tantas vezes irracionais, no termo dos quais o fugidio momento presente adquire valor espetacular, sendo ao mesmo tempo ínfimo e total.

A morte, no sentido da extinção pessoal, grande tema tolstoiano, ganha páginas memoráveis. O oficial Mikháilov tomba numa escaramuça e lemos: “…cinco, seis, sete soldados passam à sua frente. E de repente teve medo que o esmagassem; quis gritar que estava contundido, mas sua boca estava seca, sua língua colada no palato, uma terrível sede o atormentava. Percebeu que havia algo molhado em seu peito… e começou a se sentir cada vez mais invadido pelo terror de que os soldados, que continuavam a passar à sua frente, o esmagassem; reuniu todas as suas forças e quis gritar Levem-me mas em vez disso lançou um gemido tão terrível que se horrorizou ao escutá-lo…alguns fogos vermelhos puseram-se a dançar diante de seus olhos—e lhe pareceu que os soldados amontoavam pedras sobre ele; aos poucos os fogos iam se tornando raros, raros, e as pedras o soterravam mais e mais. Fez força para afastar as pedras, distendeu-se e já não via mais nada, não escutava, não pensava e não sentia.

E, por fim, em Sebastopol em agosto de 1855, ao narrar o reencontro dos irmãos Kozieltsov, o mais velho voltando ao combate após curar-se de um ferimento (“Eram as mesmas ruas, as mesmas, ainda que fossem mais frequentes os fogos, os ruídos, os gemidos, os encontros com feridos; a mesma bateria, as mesmas barreiras e trincheiras que havia na primavera, quando ele estava em Sebastopol; mas, por alguma razão, tudo aquilo agora estava mais triste e ao mesmo tempo mais veemente: mais rachaduras nas casas, não havia mais luzes às janelas, com exceção da casa Kuschina, não se via mais uma só mulher; não havia mais nas pessoas o antigo ar despreocupado ao perigo, e sim sinais de uma espera ansiosa, de cansaço e tensão”); o mais jovem prestes a ter seu batismo de fogo bélico (“Volódia de repente foi tomado por um medo terrível: parecia-lhe sempre que as balas e os estilhaços das bombas voavam em sua direção e cairiam sobre a sua cabeça. Essa obscuridade úmida, esses ruídos, sobretudo o rumor impertinente das ondas—parecia que tudo lhe dizia para não prosseguir, que nada de bom o aguardava aqui, que seus pés nunca mais pisariam a terra russa se atravessasse a baía, que retornasse agora e corresse para algum lugar, o mais longe possível desse terrível local de morte. Mas talvez já seja tarde, já esteja tudo decidido, pensou…”)[4], às vésperas da ofensiva final esmagadora do inimigo, entendemos porque Tolstói pôde escrever os romances mais completos da literatura, se é que se pode falar assim (eu sigo Doris Lessing, para quem eles pareciam “conter  a vida inteira”), pois mesmo numa narrativa de 70 páginas, consegue alcançar um efeito plural, sinfônico, como se atravessasse de alto a baixo, por dentro e por fora, na costura e no avesso, toda a realidade humana, justificando a afirmação citada de Rosamund Bartlett (ele recuperará esse feitio —texto curto e caleidoscópico— na sua fase final, já no início do século 20).

Candidato a czar o mundo já tem. Será que haverá algum correspondente ou ficcionista que fará a mágica de Tolstói com os dias que Sebastopol vivencia nas últimas semanas?

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TRECHO SELECIONADO

“É fato que se esse oficial se mostrava agora um covarde medroso, seis meses antes estava bem longe de o ser. O que se produziu nele foi uma revolução como muitos experimentaram, antes e depois dele. Até então, vivia em uma das nossas províncias que possuem corpos de cadetes e tinha uma posição excelente e tranquila; mas, lendo nos jornais e em cartas pessoais narrativas sobre os atos dos heróis de Sebastopol, entre os quais contavam antigos camaradas seus, incendiou-o subitamente a ambição e mais ainda —o patriotismo.

   Sacrificou a esse sentimento muitas coisas: uma situação estabelecida, um apartamento com móveis confortáveis que lhe custara oito anos de esforços, os amigos, e a esperança em realizar um rico casamento —jogou tudo para o alto e ainda em fevereiro solicitou sua entrada no exército de campanha, sonhando com os louros imortais da glória e as dragonas de general. Dois meses após enviar seu pedido, recebeu uma interpelação através do comando, para que dissesse se solicitaria alguma ajuda do governo. Respondeu negativamente e continuou pacientemente a aguardar seu engajamento, embora o calor patriótico viesse arrefecendo sensivelmente nesses dois meses. Passados mais dois meses, recebeu nova interpelação para que respondesse se pertencia ou não a alguma loja maçônica e outras formalidades do gênero; após sua resposta negativa, obteve, por fim, passado o quinto mês, seu engajamento. Durante todo esse tempo, os seus amigos e, sobretudo um sentimento posterior de descontentamento com o novo que surge a cada mudança de situação, conseguiram convencê-lo de que havia feito uma tremenda besteira ao decidir ingressar no exército de campanha. Assim, ao se encontrar só, com azia e o rosto poeirento, na quinta estação, onde um correio que vinha de Sebastopol contou-lhe os horrores da guerra, e depois de esperar doze horas por cavalos —ele lamentou amargamente sua leviandade; pensou com  um terror angustiado naquilo que o aguardava e prosseguiu inconsciente seu percurso, como se caminhasse para o sacrifício. Esse sentimento, ao longo dos três meses em que vagou de estação em estação, onde quase sempre teve de esperar e ouvir relatos horríveis de oficiais que voltavam de Sebastopol, não fez outra coisa senão crescer e, por fim, levou o pobre oficial a tal ponto de exasperação que, ao invés do herói pronto às ações mais temerárias, como havia se imaginado em P, eis que surgia em Duvánka como um lamentável covarde. Viajando desde o mês anterior com os jovens recém-saídos da escola de cadetes, tentava prosseguir o mais lentamente possível, considerando esses dias como os últimos da sua vida; a cada estação, instalava seu leito, sua adega, organizava partidas de preference, olhava os registros de reclamações para passar o tempo e se alegrava quando lhe recusavam cavalos.”

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[1] Até hoje não se normatizou no Brasil a grafia do prenome de Tolstói: há edições, como a que comento acima, onde temos “Liev”; em outras, aparece “Lev”, que se juntam aos tradicionais “Leão” e “Leon”.

[2] Cf. a tradução de Renato Marques para Tolstoy: a russian life, publicada pela ed. Globo em 2013, com o título Tolstói- A biografia.

Na 4ª. capa da edição da Hedra da versão de Sonia Branco para os  Contos de Sebastopol há um curto, mas bastante bonito, texto de Eduardo F. Coutinho, o qual contém um erro de informação, cuja retificação poderia ter sido feita pelo pessoal da editora: afirma-se que os contos eram inéditos em português. Há pelo menos uma versão, a que aparece no terceiro volume das Obras Completas do autor russo publicada pela Aguilar.

Tenho esses três volumes há 20 anos (comprei a edição de 1993) e apesar dos aspectos questionáveis (que não são poucos), considero-os um material de apoio precioso e inestimável, que pelo menos para mim forneceu uma ideia mais precisa da imensa produção toltoiana (ainda mais quando me dispus a ler com mais afinco o autor de A morte de Ivan Ilitch), cuja “carreira”, por assim dizer, no Brasil, é marcada pelo privilegiamento de alguns títulos, e uma carência absoluta de versões mais abalizadas da maioria dos títulos. Podemos seguir esse percurso graças ao meticuloso levantamento efetuado por Denise Bottmann, Bibliografia de Tolstói no Brasil, publicado como apêndice na referida edição da Globo da biografia de Rosamund Bartlett.

[3] Lendo os textos, às vezes tinha a sensação de que Tolstói era um elo perdido entre Homero e Camus.

[4] O jovem Volódia tem logo a seguir um pensamento tipicamente tolstoiano: “Será que serei morto, justamente eu?”

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18/03/2014

ZERO no século XXI: a atualidade de um romance emblemático do período da ditadura pós-64

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“Era um homem maravilhoso. Ele não tinha o mínimo respeito pela condição humana. Para ele, nenhum homem tinha direitos. Só deveres. Não existiam coisas tolas, era tudo no pau da goiaba. Ferro em todo mundo. Era um homem, meu amigo. Era um macho que desprezou as convenções. Era maravilhoso viver sob o seu regime, pois não havia liberdade, nem licenciosidade, nem amoralidade. Dizem, eu não sei, eu não posso dizer nada, não conheço o mundo lá de fora, conheço os que vêm de fora me visitar. Dizem que há um novo regime, bom, duro, cruel. Se não for cruel, não fazer sofrer, não arrebentar com o que o homem tenha de bom por dentro, não é um regime que se deva levar em consideração.” (de Zero)

(uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 18 de março de 2014)

I

Em março de 1974, o golpe que instituiu a ditadura militar estava prestes a completar sua primeira década. A essa altura apareceu inesperadamente na Itália a tradução de um livro —sequer publicado em seu país de origem— a um só tempo bastante arrojado, no plano formal, e uma representação avassaladora desse período sombrio.

A primeira edição brasileira de ZERO foi lançada em julho do ano seguinte, para logo em seguida, por decreto de Armando Falcão, nada saudoso ministro da Justiça de então, ter sua circulação proibida, acarretando nos meios artísticos e intelectuais reação contra o regime equiparável à comoção causada pelo assassinato (travestido toscamente de suicídio) de Vladimir Herzog após sua prisão. Liberado em 1979, o segundo romance de Ignácio de Loyola Brandão adquiriu o status de obra emblemática da década, ou talvez mesmo de toda essa época pós-1964.

Portanto, ZERO nunca escapará de ter a ele agregado um “peso histórico”, uma importância simbólica (extraliterária). Por sorte, a energia criativa que possuiu seu autor nos muitos anos em que o arquitetou e amargou a impossibilidade de vê-lo editado protegeu o texto de ficar “datado” no mau sentido, provavelmente devido à liberdade com que sua estrutura foi levada a cabo: trata-se de um livro-mosaico, misturando inquietamente formas gráficas, com uma pontuação inortodoxa, utilizando esquemas, desenhos, inscrições, colunas paralelas, notas de rodapé, tudo para dar conta de um clima caótico e alucinatório, misto de 1984 com Terra em Transe, ou de um John dos Passos que tivesse um companheiro de percurso um Plínio Marcos. Afinal, tratava-se de uma realidade agônica, não somente brasileira, mas latíndia-americana, horizontes fechados por regimes de exceção e seus crimes contra os direitos humanos, sem contar a desigualdade social atávica e a pauperização da maior parte da população[1].

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[como se pode ver na reprodução acima de páginas do romance, Ignácio de Loyola Brandão poderia ter reivindicado a autoria da ideia-base do filme InceptionA origem]

II

A espinha dorsal é o encontro de um “indivíduo levemente manco”, um “infra-herói”, José Gonçalves, que começa o romance trabalhando como mata-ratos num cinema-pulgueiro, com sua futura esposa, Rosa (ele a vê pela primeira vez na cozinha do Giratório, restaurante que faz jus ao nome). Ambos oriundos do interior, transferiram-se para a metrópole e serão despedaçados (às vezes, literalmente[2]) e pela ditadura vigente, cada vez mais repressiva e excludente (e cujas decisões,  conforme as comunicações feitas à sociedade civil, adquirirem um cunho sinistramente cômico: “De hoje em diante, eles vão transmitir os ditos do seu governo. E todos ouvirão. Não será possível desligar, José, como todo mundo fazia, das sete às oito. Agora, esses alto-falantes, em alta potência, falarão e o povo ouvirá, nem que ponha algodão, cera, tapa-ouvidos. Saiba, José, que eles estão instalados em todas as cidades, até nas vilas de duas e três casas. Serão instalados nas tabas dos índios, onde houver índios, nesta terra”).

Na verdade, o aspecto que mais me fascinou numa revisão “século XXI” de ZERO (aproveitando para ler, afinal, a caleidoscópica e bonita edição comemorativa de 35 anos lançada pela Global em 2010[3] —cuja integridade é comprometida de forma lamentável pelos diversos erros de revisão no texto de Ignácio de Loyola Brandão, um descuido imperdoável[4]) é a sua brilhante e precisa apreensão do percurso da classe média brasileira (especialmente naquela faixa de “remediados”), sempre aos trancos e barrancos para não despencar nas camadas D e E, num momento de arranco “desenvolvimentista” em que seus valores sofriam um intenso bombardeio, maravilhoso mimetizado pelo aspecto formal babélico do livro tal como impresso[5] (onde praticamente temos a impressão de ouvir os ruídos e a cacofonia da metrópole): o catolicismo do tipo mais tacanho (por isso, parodia-se a liturgia e os textos de missa—e vale lembrar que ele foi censurado por “atentar contra a moral e os bons costumes”), o recalque social (Rosa e o marido quase que se combatem na cama, ela cheia de interditos), o comportamento ditado pelo tripé “tradição, família e propriedade”[6], terçando armas com a cultura do espetáculo, com o consumo (já então) desenfreado, com os modismos tecnológicos, e permeando tudo, a dilaceração interior brutal entre apelos inconciliáveis (entre eles, na época, a luta armada contra a truculência do governo). Ou seja, o imaginário do brasileiro urbano tal como se configurou, meio cultura popular, meio cultura de massas.

Esse é um apelo tão poderoso na “leitura século XXI” de ZERO, mesmo num “livro-palimpsesto” tão rico, que obliterou até as cenas todavia tão fortes de tortura, de “limpeza” de áreas menos nobres (boca do lixo, favelas), de crendice[7] e superstição (a cultura popular ainda aderente e resistente, malgrado a forçosa “modernização”, o “espetáculo do desenvolvimento”). Creio que a explicação para isso se deve ao momento em que vivemos, em pleno exercício democrático: a classe média outra vez em impasse, encurralada nas armadilhas desenvolvimentistas e consumistas da “prosperidade”, sempre ameaçada, o esgarçamento de “valores” (tidos como componentes “eternos” da natureza humana), as subculturas urbanas, a recrudescência de certas posturas tacanhas e repressivas, que se apresentam como a “moral e os bons costumes”[8], a antipatia pela defesa dos direitos humanos, e last but not least, os insanáveis excessos policiais. Todo o quadro social que se delineou pós-manifestações e desaceleramento da economia.

Na época em que ZERO era escrito, construíam-se finalmente linhas de metrô e, nos meandros das suas obras, que auguravam a tão sonhada modernidade do espaço urbano brasileiro, Ignácio de Loyola Brandão criava um registro definitivo da precariedade da realidade humana[9]. Quarenta anos depois da edição italiana que permitiu o aparecimento do livro, vemos o metrô em sua precariedade e insuficiência frente ao fluxo urbano, a infraestrutura brasileira sempre aquém das dívidas sociais, o caos instituído. Mais ainda, temos a clareza de que as veias da América Latina (ou Latíndia) permanecem abertas. E o homem comum brasileiro (não tão cordial), tal como fixado na obra-prima do escritor de Araraquara, ainda poderia ser interpelado pelo poeta: E agora, José?

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[como se pode ver na imagem acima, o título da resenha saiu errado, imputando 50 anos ao livro]

TRECHOS SELECIONADOS

(nota- nas transcrições abaixo não reproduzi o peculiar uso dos sinais de pontuação de ZERO)

“Pra onde ir? Procurar emprego. Vou pra zona. Entrou no cinema, gongo, tela se abrindo. Na minha terra, tocava suíte quebra-nozes antes do filme começar. O complemento, o treiler, a atualidade francesa, o jornal colorido, o filme. Luzes acesas, o complemento, o treiler, a atualidade francesa, o jornal colorido mostrando por que o país se desenvolvia, o filme com Raquel Welch. Luzes acesas, o complemente cheio de inaugurações, o treiler, a atualidade francesa mostrando a visita de Rockefeller à América Latíndia, o jornal colorido contando como o governo resolvia os problemas de educação, e o clima de produção em todos os setores, e como os cientistas que tinham emigrado iam voltar com grandes salários e possibilidades de pesquisa, o filme com Raquel Welch abrindo a blusa e o começo dos seios duros aparecendo. Luzes acesas, complemento fora de foco, o treiler, a atualidade francesa mostrando cartazes contra Rockefeller, polícia massacrando, e Rockefeller noutro país e a polícia massacrando, e Rockefeller no terceiro país, Go Home, América, excelente ajuda dos Estados Unidos à América Latíndia e eleogiando o sucesso da missão Rockefeller em nosso país foi recebido com ordem e tranquilidade, evidenciando o alto grau de civilização do nosso povo, e Rockefeller entrando num carro fechado, atravessando filas de guardas—filas de guardas—cordões de exército, helicópteros sobrevoando ruas, tanques escondidos—Polícia militar—tropas de choque da Força pública e o filme com Raquel Welch com os seios de fora…”

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“Rosa ficou parada no largo amarelo. A vista escureceu, ela começou a cair para a frente. Um homem viu, segurou-a pelo braço. Rosa queria voltar para casa. Seria no segundo ou terceiro quarteirão? Talvez se lembrasse da esquina. Não, eram todas iguais. Nenhum ponto de referência, as casas brancas se sucediam. Deve ser na quadra de baixo. Não era. Dez quadras, vazias. Caía sempre dentro de quarteirões brancos. Estava em pleno miolo da vila, o sol batia nas casas, fazia mal aos olhos. Perguntava, outras mulheres abriam os olhos surpresas.

     Uma dessas casas é minha. Subiu, desceu, contornou, voltou, virou, cruzou, atravessou, desceu, subiu. Calçadas em cimento cinza, lajotas de cimento, espaços de um metro para o jardim, janelas azuis, muros de um metro: como espelho infinito em que a vila se reproduzia mil vezes.

    Então, ela viu duas mulheres: onde estará minha casa, perguntaram. E as duas eram dez, um grupo de vinte, cem, mulheres/ cacarejantes/ gritando-rindo-assustadas-ex ci:  bzzzzzzzzzzz: murmuravam: e a minha casinha? e quanto põe de manteiga? e a minha rua? e gelatina, vai muito? onde anda a minha rua? e os meus vasos? vai leite condensado?  Andavam, depois corriam, subiam, desciam, bata bem no liquidificador, dois ovos inteiros, duas gemas, giravam, se encontravam, indagavam, gritavam, 1 colher de sopa de conhaque, 1 xícara de farinha de trigo peneirada, coloque no copo do liquidificador todos os ingredientes para a massa, coloquei um capacho na porta de casa, todo verde, combinando com o azul e agora onde está? a minha casinha? Cebola descascada, pimentão verde, 1 pepino cortado, as que ficam nas portas e janelas não querem sair, elas correm, sobem nos telhados, enxergam um deserto de telhados, telhados vermelhos—o vermelho peneirando ao sol, los, slo, MODOS DE FAZER corte as folhas de gelatina, e as mulheres que estavam nas janelas entravam correndo com medo de serem levadas pela multidão-dédalo-labirinto-sem-fim, e as mulheres cacarejantes-rindo-gritando-ando-excitadas-assus, e coloque a massa na água fria casas brancas ao sol, ruas, cruzando-uma, casa-mil, casas-iguais-um fio de linha para Dédalo-tontas-tontas: as mulheres, formigas doidas em dia de saída de içás-cegas, na tarde em busca de suas casas-lares-doces lares. Dá seis porções.”


[1] É interessante notar que outros empreendimentos “agônicos” eram levados a cabo na mesma época: com experiências gráficas no Libro de Manuel (1973), de Cortázar, e na mistura de registros (ora realista, ora alucinatório, quase apocalíptico) em Abaddón, el exterminador (1974), de Sabato.

[2] É o que acontece, a certa altura, num ritual, com Rosa, mas há despedaçamentos velados ou simbólicos ao longo de todo o romance, configurando o sparagmós, no sentido a ele atribuído por Northrop Frye, em Anatomia da Crítica, quando nos diz que a “procura” é o fio da forma romanesca, e que ironia e na sátira, constata-se a falta de eficácia do heroísmo e do sentido do mundo: “ O sparagmós, ou senso de que o heroísmo e a ação eficaz estão ausentes, desorganizados ou predestinados à derrota, e de que a confusão e a anarquia reinam sobre o mundo, é o tema arquetípico da ironia e da sátira”. (utilizo aqui a tradução de Péricles Eugênio da Silva Ramos, ed. Cultrix).

[3] Na edição constam diversas capas do livro, incluindo a italiana de 1974 (ed. Feltrinelli), a primeira brasileira (pela ed. Brasília) e a clássica de 1979 (ed. Codecri). Há um prefácio de Walnice Nogueira Galvão, um depoimento sobre a concepção e concretização do livro (além das suas agruras de publicação)  do próprio Brandão, partes cortadas do livro, um dicionário para orientar tradutores, a história do Manifesto de artistas e intelectuais contra a censura, enfim, um farto material de apoio.

[4] Tive de consultar diversas vezes a edição da Codecri.

[5] O meu leitor habitual sabe como implico com firulas tipográficas. No caso de ZERO elas não são firulas e fazem todo o sentido do mundo.

[6] É por isso que a viagem de José à cidade natal de Rosa é um dos pontos altos do livro: ali, ele recebe uma série de telefonemas anônimos sobre o duvidoso passado sexual da noiva, e é escorraçado e espancado pela “bela” juventude local, todas de “famílias de bem” (há até um momento em que esses truculentos boçais: “Turma, ele não acreditou em nós. Eu, o filho do juiz, aquele ali, o sobrinho do prefeito. E o outro, o filho do promotor. O baixinho ali, o pai dele é delegado. O primo do calça Lee é o padre. A mãe daquele lá, é a presidente das Domadoras. E esse aí, o tortinho, é não si o que do fundador desta bosta inteira. Turma, ele não sabe que a gente manda aqui (Porra, ainda tem disso. Parece filme americano, romance).” 35 anos depois, relembram com nostalgia o episódio).

[7] Há um momento delicioso em que se reclama da “carestia do ebó”.

[8] Mal tinha acabado essa leitura de ZERO e fiquei sabendo de uma Marcha pela família a acontecer nos próximos dias, para comemorar aquela de infausta memória, de 1964, que foi um dos prelúdios do golpe militar.

[9] E esse ponto é importante: não se trata tão-somente de um registro político, e sim também profundamente existencial: “minha vida com ela não foi céu, nem inferno, minha vida com ela não foi, por que as pessoas se encontram, se juntam, não tem sentido”, pensa José.

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15/03/2014

SERGIPANA SOFREDORA NÃO É PÁREO PARA MEXICANAS

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(resenha originalmente publicada em A TRIBUNA de Santos, em 18 de fevereiro de 1997; as notas de rodapé são todas de março de 2014)

Às vezes, um leitor assíduo acaba sentindo-se uma caçamba de Disque-Entulho tal a quantidade de escombros criativos e ruínas estilísticas nele arremessados.  Dessa vez foi o veterano romancista Herberto Sales, autor do ótimo Os pareceres do tempo (1984), que, alô entulho, resolveu soterrar o incauto leitor com o cascalho das suas gavetas e da sua mente.

Seu último romance[1] tem o mesmo título que ganhou aqui no Brasil um filme chatíssimo de Ken Russell: A prostituta [2], onde tínhamos de aguentar o papo-cabeça de uma puta existencialista (Theresa Russell), que mostrava mais o incansável poder das suas cordas vocais do que seus favores sexuais. No livro de Sales, a prostituta[3] está mais para Marimar Perez, a heroína da deliciosa telenovela mexicana que está tornando-se referência obrigatória para quem curte o kitsch.

No entanto, Maria Corumba também tem seus momentos de elucubrações (infelizmente, muito longe das hamletianas): “Mas, meu Deus, será que eu, depois de tanta coisa má que me aconteceu, e que tão cruelmente me machucou a alma, num momento em que cheia de sonhos eu despertava para a vida, será possível que eu, depois de tudo isso, conserve ainda no coração alguma sobra de amor? Não, meu coração secou de todo, como de todo seca no sertão, sem a chuva, a terra do Nordeste, minha terra. Fui esvaziada de todo o amor que tinha no coração, pronta para dar um dia a alguém (como o anel lúdico da infância), que em troca me desse também o seu amor: como uma generosa chuva sobre a mente do meu amor, amor chovendo em outro amor.”!!!!!?????? Nossa, é uma prostituta com retórica da ABL.

Como Miramar, Maria Corumba quer vingança: “…seco de amor, ficou no meu coração somente o ódio. E a vingança, que é o fruto que nasce do ódio nas plantações do ser humano”!!!!??? Por que essa fúria vingativa? Porque ele era uma pacata moça sergipana, protestante e tecelã, até ser desvirginada e engravidada por um sargento (diga-se de passagem, é a única parte suportável do romance). Depois, é expulsa de casa pelo pai e vai morar na Paraíba com a madrinha. Através de um caixeiro-viajante, admirador platônico, Maria Corumba resolve “cair na vida” em Salvador, tornando-se, ao longo do tempo, o “michê mais caro da Bahia”. E ela ainda reclama? Pois reclama, meu bom leitor. Mesmo amealhando um considerável pé-de-meia, com homens apaixonados por ela a vida toda, e com a proteção de um magnata, ela reclama.

O problema é o ódio no seu coração. Ela precisará aplacá-lo para conseguir ser feliz. E ela consegue. Aplaca o ódio, levanta, sacode a poeira, enxuga as lágrimas e torce as mágoas da vida, casa-se, vivendo feliz para sempre com o admirador platônico. No final, o amor mostra-se mais forte do que a desdita e o rancor.

E haja Disque-Entulho!

No início do relato, Sales parecia ter adotado uma postura neo-naturalista, mostrando de maneira praticamente fatalística a facilidade. Ao mesmo tempo, havia trechos e parênteses de conversa com o leitor, num tom quase machadiano (guardadas as devidíssimas proporções com o autor de Quincas Borba), o que suavizava o pesado tributo naturalista da sua fábula.

O leitor chegava a pensar: se A prostituta tivesse sido escrito com esse estilo irônico nos anos 1930 ou 1940 seria um grande livro. Parecia que o estilo tinha chegado tarde demais para a história contada. Ainda mais que hoje a prostituição atingiu patamares mais perversos, com a exploração da pedofilia e do turismo sexual[4].

Se a desgraça de Maria Corumba já não tem muito impacto, apesar do bom começo (para o livro, não para ela), o desenrolar da narrativa parece recuar do estilo naturalista para um romantismo que lembra José de Alencar e seu Lucíola. Se ficasse por aí, tudo bem, A prostituta seria um livro decerto antiquado, anacrônico, contudo ainda dentro de um patamar respeitável (sobretudo se pensarmos que o autor baiano publica romances desde 1944).

Aí começa a verdadeira desgraça. A partir do momento em que Maria Corumba cai na vida, aprende tango e apresenta-se num cassino, A prostituta avizinha-se aos mais reles best sellers que circulam por aí, de Sidney Sheldon a Judith Krantz. Nema analogia proposta pelo autor da situação de Maria e de seu protetor com a da cortesã Actea e do imperador Claudius, na Roma Antiga, salvam o livro de ser uma versão made in Brazil de coisas como A ira dos anjos ou Se houver amanhã.

Olhe só, leitor, o estilo: “Era na igreja que Maria encontrava refúgio para a sua malferida alma”; “Oh, o poder das palavras, ditas na ocasião certa, dirigidas ao alvo certo, em circunstâncias de submissa e confiante súplica, do coração de uma filha para o coração de uma mãe” (essa última citação poderia estar na boca de Lana Turner, num de seus inúmeros papéis como mãe sofredora); “O futuro ela carregava ciosamente consigo, com o filho que ia nascer, amorável fardo de sonhos e esperanças”; “esse incendiado olhar é próprio da maternidade, uma particularidade comum às mulheres, na floração de período sublime”; “O leite de minha filha não podia se misturar com os gozos da cama” (esta é forte, não?); “alma magoada e ressentida, que fizera do exercício da solidão uma defesa intolerante contra a reincidência do amor no seu coração”  (esta última, Marimar assinaria embaixo); “Maria, aflorando à meia luz, refulgia por um momento no seu vestido amarelo-ouro, como uma labareda em flor”; “Quando a conheci, você era um diamante em estado natural. Agora, você já é um brilhante lapidado” (talvez um tributo de Sales às suas origens na Chapada Diamantífera); “Não, não devia ter levado Maria para a cama reservada às suas núpcias com Luciana, a noiva morta”; “Maria logo se aninhou como uma pomba que arrulhando se entrega”: “ainda havia nele uns restos de pudor. Pudor que como uma saudade não abandona de todo a prostituta. Enfim, em toda a prostituta há no fundo uma mulher pudica” (como psicólogo de almas, Sales morreria à míngua);  “o champanhe não os embriagava. Estavam embriagados de si mesmos”!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!??????????????????

Chega, né leitor? Fiquemos por aqui, recolhamos a caçamba com o entulho e vamos aguardar Maria do Bairro. Kitsch por kitsch, fiquemos com as mexicanas.

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[1] Em edição da Civilização Brasileira. São 361 páginas!!!???

[2] No original, Whore (1991)

[3] Cuja família é personagem do livro de Amado Fontes, Os corumbas, que só li alguns anos depois de ter escrito a resenha acima, quando foi relançado em 2003 pela José Olympio.

[4] Essa afirmação merece um esclarecimento: antes, era terrível, mas os costumes e a desigualdade social (e sexual) tinham a sua parte. Hoje, com as leis que temos, e ainda assim essa realidade predatória do mercado sexual, tudo fica mais chocante.

11/03/2014

Os “sinais particulares” de Herberto Sales: CASCALHO, 70 anos

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“Tudo que fará de ti um escritor estará no teu livro de estreia. Pelo resto da vida não farás outra coisa senão repetir o que disseste em teu livro de estreia, embora o dizendo de forma aprimorada.” (Jules Renard)

“__ Falando sério, a verdade é que a vida está é dura mesmo—ponderou Juvenal Bosta-Voa.

   Sinhá do Ouro abanou a cabeça ironicamente:

__ Vocês ainda não viram nada. Vida dura foi em 99. Vocês não são capazes de avaliar. Vi muito pai de família ganhando 400 réis por dia. Nesse tempo garimpeiro e cachorro eram a mesma coisa. Diamante foi vendido até a 2 tostões o grão. Basta eu dizer isto: vi muita menina virgem, de dezesseis anos, trocada por um quarto de rapadura. Era uma miséria horrível.

    Filó não pôde fugir a este raciocínio: Veja como são as coisas! Em 99, o camarada que tivesse um quarto de rapadura estava com uma virgem no papo. Hoje, eu com os meus 3 mil-réis, com os meus três centenários, ando atrás da negra Vitalina parecendo que estou pedindo esmola.

   Mas comentou em outros termos:

__ Andaraí é assim mesmo. Nunca passou disso. É uma terra rica de gente pobre.”

(Herberto Sales, Cascalho)

(uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 11 de março de 2014)

Na linha de obras reformuladas pelo autor de uma edição a outra, um caso digno de nota é o de Cascalho. Ao lançá-lo em 1944, Herberto Sales (nascido em 1917) nem chegara aos 30 anos. Não obstante seu livro de estreia ter sido bem recebido, o jovem escritor concentrou-se mais nas falhas apontadas por resenhistas de peso da época, entre eles Sérgio Milliet[1]. Como nos conta em Subsidiário I[2], só permitiu a 2ª.edição, após longo intervalo, quando conseguiu retrabalhá-lo radicalmente. E só lançou outro romance em 1961: o admirado Além dos Marimbus.

O autor baiano não parou por aí nas revisões. E mesmo com o tempo decorrido desde sua morte (em 1999), nem por isso a mais recente edição deixa de incorporar alterações —as quais deixara indicadas no seu referido volume de “confissões & memórias” (“Os textos que eu pessoalmente limpei serão os meus textos—com perdão da palavra—oficiais. Os das outras edições não me interessam), publicado em 1988[3].

Cascalho é fruto tardio da ficção nordestina levada a cabo pela chamada geração de 30, vinculando o enredo romanesco a uma atividade econômica regional. Se em Jorge Amado havia o universo do cacau, e em José Lins do Rego, o da cana-de-açúcar, em Sales temos a extração de pedras preciosas na Chapada Diamantífera (as Lavras), em especial em Andaraí e arredores.

O romance se inicia com uma enchente que destrói paióis de cascalho, causando a morte de um garimpeiro e atrapalhando os negócios do todo-poderoso coronel Germano (senhor da região), que além disso é afrontado por um de seus jagunços, o terrível (mete medo em todos, até nos “patrões”) Zé de Peixoto, num momento de embriaguez. Aparentemente perdoando-o, o coronel ordena, à socapa, sua execução. No entanto, o Dr. Marcolino[4], que junto com o irmão de Germano (este gosta mais de viver na sua fazenda), Quelezinho, defende os seus interesses na cidade, tem secreta participação numa empreitada garimpeira de Zé de Peixoto, e em razão desse acordo comercial procura mantê-lo vivo até que ele extraia algum diamante ou carbonatos.

A participação de dois forasteiros na trama ajuda o leitor a entender essa peculiar geografia física e humana: o retirante Silvério (cujo maior temor é cair no visgo do garimpo, espécie de vício, como todos à sua volta, e nunca sair dali) trabalhará para Zé de Peixoto, e, acusado de roubo, sofrerá uma pavorosa humilhação; o promotor Oscar de Soure terá de sair fugido da cidade[5].

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Mesmo que esses personagens ganhem relevo na narrativa, Cascalho é um romance de coletividade, um estudo do meio. Percorrendo vários dramas e cenas individuais, é a comunidade de Andaraí, principalmente a banda dos garimpeiros menos favorecidos, e todos aqueles que se agregam às suas trajetórias, o dínamo do romance, bem como a sua forte evocação do preço pago pela natureza em função da contínua ação predatória e gananciosa do homem[6]. Pois, como aconteceu em quase todos os nomes da época desse veio nordestino, Herberto Sales surpreende um ciclo econômico já em seu declínio.

Com sua mirada na ambiência física e social mais do que nos lances individuais (um garimpeiro, Filó, cuja vida acompanhávamos desde sua associação com Zé de Peixoto, morre numa gruna que se inunda e lemos: “Talvez que, no fim de contas, ele nada mais fosse que um estorvo à passagem da água), prossegue com honra o tipo de romance à Zola (como Germinal), aqui em nosso país pouco e mal praticado (apesar do paradigma representado por Aluísio Azevedo, aliás autor da admiração de Sales, e seu O cortiço), talvez por ser tão desprezado pelo mainstream da crítica, e não porque haja algum problema com esse modelo de ficção.

E até por conta da soda cáustica estilística a que submeteu seu texto para privá-lo de juvenilidades e rebarbas, realçou-se em Cascalho um aspecto  raro no naturalismo: assim como Rachel de Queiroz em seus melhores momentos, Sales tem uma visão muito pragmática dos eventos e das relações sociais, e não se permite (pelo menos nessa sua versão “oficial”) os proselitismos que enfraqueciam os romances de seu conterrâneo Jorge Amado, até mesmo nas suas melhores realizações (e esse defeito também se estende ao próprio Zola e ao seu discípulo Azevedo).

Ainda assim, mesmo considerando essas qualidades, a fixação de um léxico regional ímpar, e mesmo considerando todo o investimento de reescritura, não creio que Cascalho, todas as contas feitas, impressione como pedra preciosa de primeira grandeza em estilo e linguagem. Trata-se de um bom romance, e não mais que isso.

O obsessivo Sales faria extrações de melhor quilate em Dados biográficos do finado Marcelino e Os pareceres do tempo[7], por exemplo. Curiosamente, no final da vida, regrediria ao acabamento precário que imputava à versão original de Cascalho, em romances lamentáveis como A prostituta, de 1996.

Mas, 70 anos após o lançamento original, ainda é para o leitor do século XXI uma  vívida experiência de leitura (o que talvez explique por que alguém nascido em Andaraí se tornou um escritor tão maníaco) essa recriação naturalista de um pedaço do mundo, ou tranche de vie, como se queira, onde a expectativa do diamante perpassa toda uma sociedade, de forma que até os já aquinhoados de posses e riquezas são literalmente possuídos pela ideia de descoberta de alguma pedra de valor[8]. Uma forma de igualdade entre os homens patética e dolorosa. O naturalismo indo ao encontro do teatro do absurdo.

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TRECHO SELECIONADO

“__ Se alguém quer defender as Lavras, o que me parece uma bobagem, tem de começar forçosamente por atacar os trustistas de Londres e os lapidários de Amsterdam. Eles é que são os responsáveis diretos pela instabilidade econômica das Lavras. São os forjadores das baixas, os donos do mercado, os estipuladores dos preços. Lá é que é o centro de toda a bandalheira—na Europa.

   Dr. Oscar, para quem a discussão não tinha legitimamente maior interesse, acabou convindo:

__ Você em princípio tem razão… Mas… isso é tarefa que compete exclusivamente ao governo.

__ O governo não vale nada—interrompeu-o Nascimento.—O governo sabe mais do que ninguém que os diamantes das Lavras são os melhores que existem, como também não ignora que esta região é a única que produz carbonatos no mundo. Entretanto, cruza os braços e deixa os gringos agirem à vontade, abrirem seus escritores e açambarcarem tudo. De lá da Europa eles manobram com o mercado inteiro aqui dentro (…)

__ Você está hoje um nacionalista feroz… Lembre-se destes pobres homens que são explorados pelos capangueiros e donos de serras…

   O telegrafista respondeu distraidamente:

__ Que homens?

__ Os garimpeiros…

__ Ora, não confunda alhos com bugalhos!—e Nascimento deu de ombros.—Não vá atrás de conversa de jornal. Quando alguém escreve contra qualquer coisa, como é o caso deste sujeito, é porque tem alguma cavação em vista ou está despeitado.  A verdade é que se não existissem os ricos, tachados de ´nababos privilegiados´ aí  neste artigo, simplesmente porque eles e suas mulheres se enfeitam de diamantes dos pés à cabeça, a situação dos garimpeiros era muito pior, posso lhe garantir. O menos que acontecia era não haver garimpos… Ou você acha que eles iam comer os diamantes que pegassem?

   E esboçando um sorriso, enquanto apertava com a mão esquerda a do promotor, concluiu:

__ Arranje uns vinte quilates de diamantes para a lapidação deste cabra, que você vai ver ele parar com estes artigos bestas. Garanto que nunca mais ele chama os garimpeiros de ´operários da vaidade alheia´.”

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[1] Também foi determinante o parecer crítico de Adonias Filho.

[2] Ambos ganharam reedições recentes pela É Realizações, numa “Coleção Herberto Sales” que não sei se terá prosseguimento. Esperemos que sim. É a 8ª. de Cascalho e a 2ª. de Subsidiário I.

[3] Essa “luta” com Cascalho ocupa considerável parte de Subsidiário I. Eu poderia esnobar, deixando no ar que fui eu mesmo quem garimpou a citação em epígrafe de Jules Renard do seu Journal, todavia o eventual leitor do volume confessional de Sales descobriria meu logro na pág. 439, mesmo porque ali ele nos diz que cita de memória (portanto, talvez imprecisamente) o trecho, e de uma versão em espanhol.

Creio não ser ocioso transcrever parte dessa “entrada”: “… esse pensamento [de Renard] me parece muito profundo. No livro de estreia já estão mesmo, de uma ou de outra forma, os nossos sinais particulares. Esses sinais equivalem aos da carteira de identidade que tiramos aos 18 anos, e que aos 80 continuam a ser os mesmos (…) Os meus romances, conquanto muito diferentes entre si, guardam entre si os meus sinais particulares, que já estavam em Cascalho. E eu, em verdade, e ao contrário do que se possa pensar, não procurei tornar diferentes entre si os meus romances só para ilusoriamente não me repetir. Eles se distanciaram aparentemente uns dos outros por mera imposição dos assuntos que lhes deram origem (…) Mas em todos eles estão os sinais particulares da minha identidade literária.”

   Quanto às alterações e correções efetuadas na edição da É Realizações de Cascalho, elas aparecem nas páginas 643 a 645. Na página 642 lemos: “Enfim, chega o exemplar tão aguardado de Cascalho, na edição da Civilização Brasileira [na época da escrita de Subsidiário I, Sales era adido cultural da embaixada brasileira em Paris, no governo Sarney]. Abro o exemplar e lá está a dedicatória que em 1975 fiz para a minha filha Heloísa e para Sérgio, marido dela. Sérgio Waichenberg. Naquele tempo eu queria que eles fossem felizes. E hoje quero mais ainda, embora Sérgio tenha abandonado aos berros Heloísa com a filha. Felicidade a gente tem de escovar pelo menos uma vez e botar no sol. Compreendi que Heitor, não tendo encontrado  Cascalho em nenhuma livraria do Rio de Janeiro e adjacências, resolveu pegar na casa da irmã o exemplar dela. Está bem. Depois eu o substituirei por outro, também da Civilização, embora com o Sérgio de fora. De toda maneira fiquei com de coração tocado com aquele exemplar que dei à minha filha e que depois de  tantos anos voltou de novo para mim sem eu em nenhum momento ter esperado isso . Peguei e risquei a dedicatória. Tive de começar por ela a preparação do volume em sua limpeza revisora. A dedicatória perdera a sua razão de ser. E vamos em frente!”

[4] “…era a ´segunda pessoa do chefe`  e exercia sobre este a maior influência.”

[5] Bem antes da desmoralizante fuga, ele já é uma “autoridade” nula na cidade, como no diálogo abaixo entre o dr. Marcolino e Quelezinho:

“__Mas como é que vocês permitem um moleque da marca de Zé de Peixoto desrespeitar Germano, seu Marcolino? (…) Aquele negro devia ter tomado bala na mesma hora!

   O outro homem ajeitou lentamente os óculos, passou a mão pelos cabelos ralos, tossiu e respondeu:

__ A ocasião não era oportuna. (…)

__ Não me diga isso, seu Marcolino! Aquele negro é um cabra lambaceiro, que já devia ter tomado bala há muito tempo.

__ Mas compreenda, Quelezinho. A cidade estava indo em paz… Além disso, com uma autoridade nova, que a gente, de certo modo, precisa impressionar bem…

__Qual é a autoridade?

__O promotor…

    Quelezinho deu um berro tão alto que fez o médico precipitar-se para a porta e fechá-la, a fim de que ninguém o ouvisse na sala de visitas. Brandia o dedo no ar:

__ Qual promotor, qual cachorro de promotor coisa nenhuma! Afinal de contas, seu Marcolino, quem é que manda nesta joça?”

Ou pela perspectiva do resignado Juiz Canuto: “Um homem vale o que tem no bolso. Como nós não temos nada, não valemos nada. Vale aqui quem compra diamante, quem tem dinheiro, quem tem força na política”.

 [6] “À medida que iam avançando por cima da serra alta, que, a distância, tinha a aparência majestática de um mundo inexplorado, encontravam a cada passo os rastros da conquista centenária, lenta e difícil da terra rica—sinais da presença obstinada do homem, do seu trabalho, do seu tenaz esforço e da sua luta pela posse das minas, desde as primitivas explorações até as mais recentes. Ao longo dos emburrados, onde as escoras de âmago de quina-de-vara, os esbirros de gameleira, sapucaia e pau-terra, eram atravancamentos de velhos serviços engrunados, erguiam-se, como ossuários da serra trabalhada, as montoeiras pardas de antigos mocororôs encartuchados—detritos acumulados do solo revolvido e golpeado nos canalões, nos talhados, nas grunas, nos rebaixos, em toda espécie de serviço a seco ou com água, desde as grupiaras às grandes bocas descidas com pontaletes de cocão.

__ Isto aqui está muito trabalhado, Peba—observou Silvério.

   À passagem deles, fugiam precipitadamente grandes batixós, sobre os lajedos ou por entre as moitas de grão-de-galo.

__ É o que você pensa—respondeu o outro.—Parece que está mas não está. Ainda tem muito serviço…

__ Pode ser. Mas eu estou vendo tudo é esbagaçado. Em todo lugar eu vejo sinal de broca.

__ Você é um curau mesmo—disse Peba.—Não entende nada de garimpo. Então você acha que se tudo isso estivesse trabalhado eu vinha meter minha enxada aqui? Você me acha com cara de besta?

   E passou a explicar:

__ Na verdade, existe muito serviço trabalhado, mas é como se não existisse. Os antigos não sabiam garimpar. Metiam o cascalho bruto nas bateias, não ralavam nem rebaixavam ele, de maneira que perdiam muito diamante. Não está vendo estas montoeiras? Chegue o ralo nelas pra você ver! É diamante na certa.

__ Será que os antigos eram tão bestas?

__ Ninguém é besta porque quer.”

[7] O primeiro livro que li dele ainda em meados dos anos 1980  (quando saiu pela Nova Fronteira) e que me parece até hoje, se a distância temporal não me engana, uma grande realização. Na verdade,  essa leitura (e a de Dados biográficos do finado Marcelino)  me fizeram considerar Sales um dos nossos melhores escritores, por aquela época. Entretanto, acabei não me enfronhando em outros títulos dele, e quando o fiz, resenhando para “A Tribuna” A Prostituta, considerei o romance tão ruim que só agora, com atraso, e com pé atrás, devido ao perfil conservador  (digamos com todas as letras: reacionário) do autor, com suas loas à Academia Brasileira de Letras e com suas relações com gente como José Sarney e Josué Montello, retomo a leitura de seus livros.

[8] O que quer dizer, trocando em miúdos, que valorizo Cascalho muito mais por ser um bom representante do romance naturalista (Flora Süssekind que me perdoe, não obstante seu Tal Brasil, qual romance? ter sido muito importante e esclarecedor, para mim, em determinado passo da vida) do que por ser o fruto de um esforço estilístico flaubertiano.

capas de herberto

05/03/2014

A poesia exilada e o centenário de Octavio Paz: O ARCO E A LIRA

968.03 OCTAVIO PAZ (1914-1998).  Mexican poet.

arco lira

(versões da resenha abaixo foram publicadas originalmente na revista METÁFORA 16, em 2013, e em A TRIBUNA de Santos, em 04 de março de 2014)

A poesia é conhecimento, salvação, poder, abandono. A primeira atitude do homem diante da linguagem foi de confiança.  O ritmo não apenas é o elemento mais antigo e permanente da linguagem como é bem possível que seja anterior à própria fala. O homem se derrama no ritmo, marca da sua temporalidade; o ritmo, por sua vez, se declara na imagem; e a imagem volta para o homem sempre que alguns lábios repetem o poema. Religião e poesia pretendem realizar de uma vez por todas essa possibilidade de Ser que somos. A revelação da nossa condição é, também, criação de nós mesmos. As palavras do poeta, justamente por serem palavras, são suas e são de outros. Por um lado, são históricas: pertencem a um povo e a um momento da fala desse povo: são datadas. Por outro, são anteriores a qualquer data: são um começo absoluto. A história da poesia moderna é a história de uma desmesura.

Pincei, no parágrafo anterior, afirmações definitivas, de sabor quase hipnótico, das aberturas dos capítulos que compõem o clássico O arco e a lira [El arco y la lira], recentemente relançado em nova tradução[1] (e assim como o livro que lhe é complementar, Os filhos do barro, ganhou uma bela coedição da CosacNaify com o Fondo de Cultura Económica), o que não poderia ser mais apropriado, uma vez que agora em março celebra-se o centenário de Octavio Paz[2], um dos maiores nomes da literatura latino-americana, apesar de controversas posturas políticas as quais cristalizaram para muitos a imagem de um homem de direita, ultraconservador. É célebre a farpa a ele dirigida por outro escritor mexicano exponencial, Juan Rulfo (autor de Pedro Páramo): Paz dizia que os intelectuais do continente dividiam-se entre “indignados” e “resignados”; Rulfo replicou: não, eles dividem-se entre “indignados” e “indignos”.

Divisões ideológicas à parte, tenho a convicção de que as declarações acima fornecem o espírito e a letra da Grande Narrativa (desconstrucionistas do pós-modernismo, atenção!) que o prêmio Nobel de 1990 nos conta: o dizer poético originalmente reproduzia a unidade do Real, ritmo e imagem permitindo a harmonização com a fala do mundo e a analogia entre coisas distintas e até contrárias, comungando de uma visão cíclica e não-linear do Tempo. Quem pensar em mito e sagrado, estará muito próximo do pensamento de Paz, apesar de ele enfatizar a diferença substancial do poético com relação à esfera religiosa.

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O homem ocidental alienou-se no processo histórico, perdido no tempo-sucessão, e cindiu-se em contrários (valorizando sobretudo a razão e a consciência). Não por acaso, a poesia começou a ceder espaço para a prosa, prática discursiva (e limitante, desse ponto de vista) da linguagem: “O mundo moderno perdeu sentido e o testemunho mais cru dessa falta de direção é o automatismo da associação de ideias, que não é governado por nenhum ritmo cósmico ou espiritual, mas pelo acaso”.

Por isso, a alta poesia moderna (que abrange o Romantismo, reflexão que ele desenvolverá de forma maravilhosa e esclarecedora em Os filhos do barro—diga-se de passagem que uma das seções mais brilhantes de O arco e a lira,  acrescentada posteriormente,  Signos em rotação é constantemente publicada em separado[3]) representa uma rebelião constante. Os maiores poemas são negação da própria época, degredo autodeclarado, nostalgia da linguagem “originária”: “O dilaceramento foi indizível e constante. As consequências desse exílio da poesia ficam a cada dia mais evidentes: o homem é um desterrado do fluir cósmico e de si mesmo” ; mesmo porque se encontram encalacrados nas malhas tipográficas, a forma-livro, forma passiva (e individualista), mutilando a poesia da sua vocação de fala e convocação comunitária, a exigir ouvintes atentos e troca de experiências.

Como outros memoráveis recortes abstratos (contudo poderosos) na história humana, O arco e a lira identifica e caracteriza muito bem a crise, proporcionando ao leitor um diagnóstico impecável, sem apontar claramente rumos. Paz oferece como contrapeso ao “exílio” ocidental a visão oriental, que permaneceu próxima das fontes da linguagem, e arrisca-se a alguns prognósticos. No entanto, talvez sua maior resposta às próprias questões foi o magnífico poema Blanco, escrito em 1966: “Sem dizer palavra/Escurece-me a fronte/Um pressentir de linguagem”.

Mas já no exercício do ensaio, como diz muito bem numa carta (escrita no ano da publicação original, 1956) outro grandíssimo autor centenário em 2014, Julio Cortázar, aparece a “tendência belíssima que você tem de sair disparando de repente e arrematar um parágrafo ou um capítulo com uma chuva de imagens imperiosamente necessárias.”

filhos do barronova fronteira barro


[1] Em tradução de Ari Roitman e Paulina Wacht. A versão anterior, de Olga Savary, foi publicada pela Nova Fronteira.

[2] Que morreu em 1998.

[3] Inclusive aqui no Brasil, pela Perspectiva. Foi o primeiro texto de Paz que li em livro. Antes, como era leitor do Estado de S.Paulo, apesar do pé atrás ideológico que sempre mantive com esse jornal, li muita coisa de (e sobre) Paz ali.

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