

“Era um homem maravilhoso. Ele não tinha o mínimo respeito pela condição humana. Para ele, nenhum homem tinha direitos. Só deveres. Não existiam coisas tolas, era tudo no pau da goiaba. Ferro em todo mundo. Era um homem, meu amigo. Era um macho que desprezou as convenções. Era maravilhoso viver sob o seu regime, pois não havia liberdade, nem licenciosidade, nem amoralidade. Dizem, eu não sei, eu não posso dizer nada, não conheço o mundo lá de fora, conheço os que vêm de fora me visitar. Dizem que há um novo regime, bom, duro, cruel. Se não for cruel, não fazer sofrer, não arrebentar com o que o homem tenha de bom por dentro, não é um regime que se deva levar em consideração.” (de Zero)
(uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 18 de março de 2014)
I
Em março de 1974, o golpe que instituiu a ditadura militar estava prestes a completar sua primeira década. A essa altura apareceu inesperadamente na Itália a tradução de um livro —sequer publicado em seu país de origem— a um só tempo bastante arrojado, no plano formal, e uma representação avassaladora desse período sombrio.
A primeira edição brasileira de ZERO foi lançada em julho do ano seguinte, para logo em seguida, por decreto de Armando Falcão, nada saudoso ministro da Justiça de então, ter sua circulação proibida, acarretando nos meios artísticos e intelectuais reação contra o regime equiparável à comoção causada pelo assassinato (travestido toscamente de suicídio) de Vladimir Herzog após sua prisão. Liberado em 1979, o segundo romance de Ignácio de Loyola Brandão adquiriu o status de obra emblemática da década, ou talvez mesmo de toda essa época pós-1964.
Portanto, ZERO nunca escapará de ter a ele agregado um “peso histórico”, uma importância simbólica (extraliterária). Por sorte, a energia criativa que possuiu seu autor nos muitos anos em que o arquitetou e amargou a impossibilidade de vê-lo editado protegeu o texto de ficar “datado” no mau sentido, provavelmente devido à liberdade com que sua estrutura foi levada a cabo: trata-se de um livro-mosaico, misturando inquietamente formas gráficas, com uma pontuação inortodoxa, utilizando esquemas, desenhos, inscrições, colunas paralelas, notas de rodapé, tudo para dar conta de um clima caótico e alucinatório, misto de 1984 com Terra em Transe, ou de um John dos Passos que tivesse um companheiro de percurso um Plínio Marcos. Afinal, tratava-se de uma realidade agônica, não somente brasileira, mas latíndia-americana, horizontes fechados por regimes de exceção e seus crimes contra os direitos humanos, sem contar a desigualdade social atávica e a pauperização da maior parte da população[1].

[como se pode ver na reprodução acima de páginas do romance, Ignácio de Loyola Brandão poderia ter reivindicado a autoria da ideia-base do filme InceptionA origem]
II
A espinha dorsal é o encontro de um “indivíduo levemente manco”, um “infra-herói”, José Gonçalves, que começa o romance trabalhando como mata-ratos num cinema-pulgueiro, com sua futura esposa, Rosa (ele a vê pela primeira vez na cozinha do Giratório, restaurante que faz jus ao nome). Ambos oriundos do interior, transferiram-se para a metrópole e serão despedaçados (às vezes, literalmente[2]) e pela ditadura vigente, cada vez mais repressiva e excludente (e cujas decisões, conforme as comunicações feitas à sociedade civil, adquirirem um cunho sinistramente cômico: “De hoje em diante, eles vão transmitir os ditos do seu governo. E todos ouvirão. Não será possível desligar, José, como todo mundo fazia, das sete às oito. Agora, esses alto-falantes, em alta potência, falarão e o povo ouvirá, nem que ponha algodão, cera, tapa-ouvidos. Saiba, José, que eles estão instalados em todas as cidades, até nas vilas de duas e três casas. Serão instalados nas tabas dos índios, onde houver índios, nesta terra”).
Na verdade, o aspecto que mais me fascinou numa revisão “século XXI” de ZERO (aproveitando para ler, afinal, a caleidoscópica e bonita edição comemorativa de 35 anos lançada pela Global em 2010[3] —cuja integridade é comprometida de forma lamentável pelos diversos erros de revisão no texto de Ignácio de Loyola Brandão, um descuido imperdoável[4]) é a sua brilhante e precisa apreensão do percurso da classe média brasileira (especialmente naquela faixa de “remediados”), sempre aos trancos e barrancos para não despencar nas camadas D e E, num momento de arranco “desenvolvimentista” em que seus valores sofriam um intenso bombardeio, maravilhoso mimetizado pelo aspecto formal babélico do livro tal como impresso[5] (onde praticamente temos a impressão de ouvir os ruídos e a cacofonia da metrópole): o catolicismo do tipo mais tacanho (por isso, parodia-se a liturgia e os textos de missa—e vale lembrar que ele foi censurado por “atentar contra a moral e os bons costumes”), o recalque social (Rosa e o marido quase que se combatem na cama, ela cheia de interditos), o comportamento ditado pelo tripé “tradição, família e propriedade”[6], terçando armas com a cultura do espetáculo, com o consumo (já então) desenfreado, com os modismos tecnológicos, e permeando tudo, a dilaceração interior brutal entre apelos inconciliáveis (entre eles, na época, a luta armada contra a truculência do governo). Ou seja, o imaginário do brasileiro urbano tal como se configurou, meio cultura popular, meio cultura de massas.
Esse é um apelo tão poderoso na “leitura século XXI” de ZERO, mesmo num “livro-palimpsesto” tão rico, que obliterou até as cenas todavia tão fortes de tortura, de “limpeza” de áreas menos nobres (boca do lixo, favelas), de crendice[7] e superstição (a cultura popular ainda aderente e resistente, malgrado a forçosa “modernização”, o “espetáculo do desenvolvimento”). Creio que a explicação para isso se deve ao momento em que vivemos, em pleno exercício democrático: a classe média outra vez em impasse, encurralada nas armadilhas desenvolvimentistas e consumistas da “prosperidade”, sempre ameaçada, o esgarçamento de “valores” (tidos como componentes “eternos” da natureza humana), as subculturas urbanas, a recrudescência de certas posturas tacanhas e repressivas, que se apresentam como a “moral e os bons costumes”[8], a antipatia pela defesa dos direitos humanos, e last but not least, os insanáveis excessos policiais. Todo o quadro social que se delineou pós-manifestações e desaceleramento da economia.
Na época em que ZERO era escrito, construíam-se finalmente linhas de metrô e, nos meandros das suas obras, que auguravam a tão sonhada modernidade do espaço urbano brasileiro, Ignácio de Loyola Brandão criava um registro definitivo da precariedade da realidade humana[9]. Quarenta anos depois da edição italiana que permitiu o aparecimento do livro, vemos o metrô em sua precariedade e insuficiência frente ao fluxo urbano, a infraestrutura brasileira sempre aquém das dívidas sociais, o caos instituído. Mais ainda, temos a clareza de que as veias da América Latina (ou Latíndia) permanecem abertas. E o homem comum brasileiro (não tão cordial), tal como fixado na obra-prima do escritor de Araraquara, ainda poderia ser interpelado pelo poeta: E agora, José?

[como se pode ver na imagem acima, o título da resenha saiu errado, imputando 50 anos ao livro]
TRECHOS SELECIONADOS
(nota- nas transcrições abaixo não reproduzi o peculiar uso dos sinais de pontuação de ZERO)
“Pra onde ir? Procurar emprego. Vou pra zona. Entrou no cinema, gongo, tela se abrindo. Na minha terra, tocava suíte quebra-nozes antes do filme começar. O complemento, o treiler, a atualidade francesa, o jornal colorido, o filme. Luzes acesas, o complemento, o treiler, a atualidade francesa, o jornal colorido mostrando por que o país se desenvolvia, o filme com Raquel Welch. Luzes acesas, o complemente cheio de inaugurações, o treiler, a atualidade francesa mostrando a visita de Rockefeller à América Latíndia, o jornal colorido contando como o governo resolvia os problemas de educação, e o clima de produção em todos os setores, e como os cientistas que tinham emigrado iam voltar com grandes salários e possibilidades de pesquisa, o filme com Raquel Welch abrindo a blusa e o começo dos seios duros aparecendo. Luzes acesas, complemento fora de foco, o treiler, a atualidade francesa mostrando cartazes contra Rockefeller, polícia massacrando, e Rockefeller noutro país e a polícia massacrando, e Rockefeller no terceiro país, Go Home, América, excelente ajuda dos Estados Unidos à América Latíndia e eleogiando o sucesso da missão Rockefeller em nosso país foi recebido com ordem e tranquilidade, evidenciando o alto grau de civilização do nosso povo, e Rockefeller entrando num carro fechado, atravessando filas de guardas—filas de guardas—cordões de exército, helicópteros sobrevoando ruas, tanques escondidos—Polícia militar—tropas de choque da Força pública e o filme com Raquel Welch com os seios de fora…”

“Rosa ficou parada no largo amarelo. A vista escureceu, ela começou a cair para a frente. Um homem viu, segurou-a pelo braço. Rosa queria voltar para casa. Seria no segundo ou terceiro quarteirão? Talvez se lembrasse da esquina. Não, eram todas iguais. Nenhum ponto de referência, as casas brancas se sucediam. Deve ser na quadra de baixo. Não era. Dez quadras, vazias. Caía sempre dentro de quarteirões brancos. Estava em pleno miolo da vila, o sol batia nas casas, fazia mal aos olhos. Perguntava, outras mulheres abriam os olhos surpresas.
Uma dessas casas é minha. Subiu, desceu, contornou, voltou, virou, cruzou, atravessou, desceu, subiu. Calçadas em cimento cinza, lajotas de cimento, espaços de um metro para o jardim, janelas azuis, muros de um metro: como espelho infinito em que a vila se reproduzia mil vezes.
Então, ela viu duas mulheres: onde estará minha casa, perguntaram. E as duas eram dez, um grupo de vinte, cem, mulheres/ cacarejantes/ gritando-rindo-assustadas-ex ci: bzzzzzzzzzzz: murmuravam: e a minha casinha? e quanto põe de manteiga? e a minha rua? e gelatina, vai muito? onde anda a minha rua? e os meus vasos? vai leite condensado? Andavam, depois corriam, subiam, desciam, bata bem no liquidificador, dois ovos inteiros, duas gemas, giravam, se encontravam, indagavam, gritavam, 1 colher de sopa de conhaque, 1 xícara de farinha de trigo peneirada, coloque no copo do liquidificador todos os ingredientes para a massa, coloquei um capacho na porta de casa, todo verde, combinando com o azul e agora onde está? a minha casinha? Cebola descascada, pimentão verde, 1 pepino cortado, as que ficam nas portas e janelas não querem sair, elas correm, sobem nos telhados, enxergam um deserto de telhados, telhados vermelhos—o vermelho peneirando ao sol, los, slo, MODOS DE FAZER corte as folhas de gelatina, e as mulheres que estavam nas janelas entravam correndo com medo de serem levadas pela multidão-dédalo-labirinto-sem-fim, e as mulheres cacarejantes-rindo-gritando-ando-excitadas-assus, e coloque a massa na água fria casas brancas ao sol, ruas, cruzando-uma, casa-mil, casas-iguais-um fio de linha para Dédalo-tontas-tontas: as mulheres, formigas doidas em dia de saída de içás-cegas, na tarde em busca de suas casas-lares-doces lares. Dá seis porções.”
[1] É interessante notar que outros empreendimentos “agônicos” eram levados a cabo na mesma época: com experiências gráficas no Libro de Manuel (1973), de Cortázar, e na mistura de registros (ora realista, ora alucinatório, quase apocalíptico) em Abaddón, el exterminador (1974), de Sabato.
[2] É o que acontece, a certa altura, num ritual, com Rosa, mas há despedaçamentos velados ou simbólicos ao longo de todo o romance, configurando o sparagmós, no sentido a ele atribuído por Northrop Frye, em Anatomia da Crítica, quando nos diz que a “procura” é o fio da forma romanesca, e que ironia e na sátira, constata-se a falta de eficácia do heroísmo e do sentido do mundo: “ O sparagmós, ou senso de que o heroísmo e a ação eficaz estão ausentes, desorganizados ou predestinados à derrota, e de que a confusão e a anarquia reinam sobre o mundo, é o tema arquetípico da ironia e da sátira”. (utilizo aqui a tradução de Péricles Eugênio da Silva Ramos, ed. Cultrix).
[3] Na edição constam diversas capas do livro, incluindo a italiana de 1974 (ed. Feltrinelli), a primeira brasileira (pela ed. Brasília) e a clássica de 1979 (ed. Codecri). Há um prefácio de Walnice Nogueira Galvão, um depoimento sobre a concepção e concretização do livro (além das suas agruras de publicação) do próprio Brandão, partes cortadas do livro, um dicionário para orientar tradutores, a história do Manifesto de artistas e intelectuais contra a censura, enfim, um farto material de apoio.
[4] Tive de consultar diversas vezes a edição da Codecri.
[5] O meu leitor habitual sabe como implico com firulas tipográficas. No caso de ZERO elas não são firulas e fazem todo o sentido do mundo.
[6] É por isso que a viagem de José à cidade natal de Rosa é um dos pontos altos do livro: ali, ele recebe uma série de telefonemas anônimos sobre o duvidoso passado sexual da noiva, e é escorraçado e espancado pela “bela” juventude local, todas de “famílias de bem” (há até um momento em que esses truculentos boçais: “Turma, ele não acreditou em nós. Eu, o filho do juiz, aquele ali, o sobrinho do prefeito. E o outro, o filho do promotor. O baixinho ali, o pai dele é delegado. O primo do calça Lee é o padre. A mãe daquele lá, é a presidente das Domadoras. E esse aí, o tortinho, é não si o que do fundador desta bosta inteira. Turma, ele não sabe que a gente manda aqui (Porra, ainda tem disso. Parece filme americano, romance).” 35 anos depois, relembram com nostalgia o episódio).
[7] Há um momento delicioso em que se reclama da “carestia do ebó”.
[8] Mal tinha acabado essa leitura de ZERO e fiquei sabendo de uma Marcha pela família a acontecer nos próximos dias, para comemorar aquela de infausta memória, de 1964, que foi um dos prelúdios do golpe militar.
[9] E esse ponto é importante: não se trata tão-somente de um registro político, e sim também profundamente existencial: “minha vida com ela não foi céu, nem inferno, minha vida com ela não foi, por que as pessoas se encontram, se juntam, não tem sentido”, pensa José.


