MONTE DE LEITURAS: blog do Alfredo Monte

16/06/2016

Destaque do Blog: SOMBRAS DA ROMÃZEIRA, de Tariq Ali

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(Uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos em 14 de junho de 2016)

“Muita gente — geralmente, pessoas que têm medo de multidão — diz que qualquer ajuntamento com mais de uma dúzia de pessoas é presa fácil para demagogos capazes de atear fogo na plateia e insuflar qualquer ação insensata. Essa afirmação ignora as causas subliminares que fizeram tantas pessoas se reunirem, por razões diferentes. Todas as rivalidades, políticas e comerciais, foram esquecidas; todas as vinganças tinham sido anuladas; houve uma trégua entre as facções religiosas em luta dentro do islamismo em Al-Andaluz; a congregação estava unida contra os invasores cristãos. O que tinha começado como um gesto de solidariedade ao direito de uma viúva proteger os filhos tinha se transformado em uma pequena insurreição.”

O trecho acima (que cito na tradução de Beatriz Horta) pode ser encontrado no capítulo onze de Sombras da romãzeira (“Shadows of pomegranate tree”, 1992), o primeiro volume publicado do Quinteto Islâmico de Tariq Ali, e marca um momento “positivo” (embora efêmero) no terrível quadro histórico evocado pelo autor paquistanês: em 1500, os muçulmanos da Espanha sofreram uma perseguição muito próxima do genocídio.

A ação se concentra em Granada (ou Garnata, na terminologia árabe) e na propriedade senhorial (e as aldeias em torno) de al-Hudail, do clã de protagonistas do romance, os Banu-Hudail. Até a altura do capítulo onze, o jovem Zuair bin Omar está indeciso quanto ao rumo a tomar em sua vida, malgrado tenha deixado a casa paterna para lutar contra a opressão cristã e a exigência de conversão em massa, a abdicação de todos os costumes islâmicos (em desacordo com o tratado firmado quando da Reconquista pelos espanhóis de Granada).

Movido por uma firme porém anacrônica ética de cavalaria (que alimentou sua educação), é nesse momento de crise que ele desponta como um líder, ao discursar impulsivamente para a multidão que se revoltara contra a arbitrária prisão dos dois filhos de uma viúva, erguendo barricadas e preparando-se para um confronto aberto. Líder de uma causa perdida, parece líquido e certo. A retaliação espanhola é atroz e radical.

Mas já não são um destino e um caráter indefinidos: Zuair cresce aos olhos do leitor. Também o fato de que a sublevação não tenha resultado em nada bom para os “mouros” de Granada (e as trágicas consequências para os Banu-Hudail, justamente pela definição do destino e do caráter de Zuair, constituem a dolorosa parte final da narrativa) não inclina ao pessimismo quanto às manifestações populares (e provavelmente é uma bagagem de entusiasmo não-perdido que o escritor trouxe dos eventos dos anos 1960, entre eles o mítico maio de 1968[1]), cuja dinâmica ele sutilmente destrincha em poucas páginas, os longos anos de inércia, e então um evento aparentemente banal catalisa e faz eclodir a insatisfação generalizada, com surtos de truculência.

Contudo, como disse, a causa está perdida. A cultura islâmica será reprimida e esmagada na Espanha que se faz cada vez mais palco da Inquisição (e essa propensão das autoridades católicas é representada em Sombras da romãzeira pelo sinistro Ximenes de Cisneros, com o aval de Isabel e Francisco; de fato, o relato se inicia com o arcebispo ordenando um auto-de-fé com livros escritos em árabe), e os próprios muçulmanos têm sua culpa no processo, presos a um passado glorioso, ao conformismo ou a posturas tão anacrônicas quanto a ética de cavalaria que embasou a educação de Zuair (e de que pouca valia terá para a sobrevivência dos seus familiares, a não ser uma morte “honrada”).

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A estratégia narrativa de Tariq Ali faz com que o leitor evoque eventos como a Shoah da Segunda Guerra (o progressivo espoliamento de direitos civis, as restrições, e enfim uma “solução final”, genocida), e a Igreja Católica espanhola se define como estrategista de um pogrom monstruoso e deliberado, mancomunada com um casal real ganancioso e inescrupuloso. Carregando as tintas nesse sentido, ele inverte os termos da equação geralmente apresentada a leitores ou espectadores ocidentais: a barbárie pertence à nossa banda e não ocorre em terras longínquas, em guerras distantes, é no próprio território da “civilização”.

Complementando essa perspectiva do avesso (inclusive por propor uma vitimização paralela do povo muçulmano assimilado ao território europeu, tanto quanto a sofrida — e muito mais “badalada”, cantada em prosa e verso — pelos judeus), o mais surpreendente em Sombras da Romãzeira é que, para pessoas como os membros do clã Banu-Hudail, a Europa é o seu lar, e para os seus antepassados funcionou como o “Novo Mundo”. Um aspecto pouquíssimo explorado pela ficção, e que a meu ver é que representa o diferencial do romance de Ali, já que não seria o uso de uma história familiar, em cujas intrigas particulares, vão se imiscuindo os dramáticos e apocalípticos eventos gerais (afinal, já a minissérie Holocausto usava o mesmo mote: uma família-exemplo).

Habitantes da Europa há séculos, mas nunca “europeus” (e orgulhosos disso, com sua civilização poderosa—mas só superficialmente coesa), eles não se dão conta da voragem que os vitimará, e ao longo do romance ouvimos frases que são variações de uma bela frase dita pelo sábio e já idoso Al-Zindiq (cuja existência está atrelada por vários incidentes aos Banu-Hudail, entre eles seu romance proibido com uma das mulheres do clã, Zara): “Nosso futuro foi nosso passado” (por isso Zuair não sabe como agir e que rumo seguir, a princípio, ofuscado quixotescamente pelos princípios de cavalaria).

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[1] Cf. Street Fighting Years: an Autobiography of the Sixties (2005), aqui traduzido como O poder das barricadas (2008) por Beatriz Medina.

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09/06/2016

ENTRE SHAKESPEARE E O NOTICÍARIO POLICIAL

 

Nikolai

Lady Macbeth do Distrito de Mtzensk

(A resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos em sete de junho de 2016)

Desde a sua morte, há 400 anos, Shakespeare e suas personagens geraram inumeráveis versões e releituras. Uma das mais interessantes completou um século e meio: em 1865, o ainda jovem Nikolai Leskov com Lady Macbeth do Distrito de Mtzensk.

No primeiro parágrafo o narrador explicita sua “aclimatação”: “De quando em quando aparecem em nossas paragens uns tipos que nos fazem sentir um tremor na alma sempre que nos lembramos deles, por mais que o tempo tenha passado desde o nosso último encontro. E um desses tipos é Catierina Lvovna Izmáiolova, mulher de um comerciante, outrora protagonista de um terrível drama, após o qual nossa nobreza, usando uma expressão bem apropriada, passou a chamá-la “Lady Macbeth do distrito de Mtzensk”.

A analogia com Lady Macbeth não é estritamente exata: como todos sabem, a personagem da peça instiga, espicaça o marido a fim de que ele cometa os crimes necessários para chegar ao poder. Veja-se um exemplo, a seguinte fala da personagem de Shakespeare num colóquio exasperado entre o casal Macbeth: “(…). Desde já me ponho/A duvidar de teu amor. Tens medo/De ser na ação e no valor o mesmo/Que és no desejo? Queres ter aquilo/Que estimas como o ornato da existência/E te mostras em tua mesma estima/Um covarde, dizendo “Não me atrevo”/Depois de “Quero”, como o pobre gato/Do provérbio, que quer comer o peixe/Mas sem sujar as patas? ”

Moça pobre, de temperamento impetuoso, Catierina Lvovna conformou-se em casar com um comerciante bem mais velho, e vive por cinco anos na grande propriedade do sogro um cotidiano de isolamento e tédio, até que numa ausência prolongada do marido, ela se envolve com um dos empregados, o mulherengo sedutor Serguiêi, e o torna seu amante. A paixão por Serguiêi desperta Catierina em todos os sentidos: “… deu plena expansão a seu gênio. Agora se mostrava uma mulher de pulso… enchia-se de altivez, determinando tudo pela casa afora, e sem deixar Serguiêi arredar pé de perto de si”. Para isso, ela tem de primeiramente liquidar o sogro, e o faz, envenenando-o. Mais tarde, eliminará o marido (uma cena impressionante e brutal), que volta de inopino.

Em tudo e por tudo, parece ser ela a ditar as regras, a derrubar os limites. Não é bem assim: do mesmo modo como se larga à modorra do clima e à languidez, ao bochorno do seu idílio adúltero, ela deixa que o aparentemente bonachão (embora cúmplice dos seus crimes) Serguiêi a induza, é um processo totalmente inverso ao que observamos no casal Macbeth e muito mais afim aos processos psicológicos observáveis em “Madame Bovary”, em que a fantasia pessoal tem sua parte nas transgressões de Emma, mas pesa muito mais o cálculo dos seus amantes e “cúmplices”, que se valem dessa mesma fantasia para manipulá-la e usufruir do que tem a oferecer. Serguiêi é que se revela o calculista-mor do enredo (sua amante sendo movida pela passionalidade). Isso fica claro quando, após o assassinato do marido (e o sumiço de seu corpo), aparece outro postulante à herança.

Por tais vias insidiosas, ele a instiga, espicaça a eliminar o pequeno Fiódor (numa outra cena extraordinária). Vai ser a desgraça do casal criminoso. Serão pegos em flagrante, julgados e condenados à Sibéria, aos trabalhos forçados, o que levará Lady Macbeth do distrito de Mtzensk a outro patamar, narrativo e psicológico. Poucas páginas finais são tão intensas e cruéis (e tão econômicas em seus efeitos): inverte-se a dinâmica do casal (ou melhor, ela se explicita tal como é, de fato) e vemos toda a impetuosidade de Catierina Lvovna (o Ilvovna que lhe dirige Serguiêi é marca do inculto, como nos esclarece o tradutor) degradar-se (em paralelo à sua degradação social) numa sofrida paixão de sujeição e humilhação. Haverá ainda um último ato em que ela reencontrará o seu “gênio” e tomará mais uma atitude extrema e irresignada: um lado Medeia bem mais forte do que o lado Lady Macbeth inscrito nesse temperamento. Assim, a tragédia elizabetana, a vida em ramerrão e a dimensão em que suas monstruosidades podem ser filtradas — como “exemplo”— no mundo pós-Revolução Industrial e da página policial, que galvaniza as atenções da sociedade, capitaneando a deterioração da narrativa no mundo da informação triunfante.

Lady Macbeth - Jornal

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