MONTE DE LEITURAS: blog do Alfredo Monte

31/01/2017

MARIA VALÉRIA REZENDE CONQUISTA O VASTO MUNDO

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(Uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 31 de janeiro de 2017)

O lendário prêmio Casa de Las Américas acaba de ser atribuído ao livro OUTROS CANTOS (Alfaguara, 2016) de Maria Valéria Rezende, poucos meses depois de seu romance Quarenta Dias ganha o Jabuti, não apenas como melhor romance de 2015, como também o de livro do ano. Estas premiações prestigiosas tiraram a grande escritora santista (embora radicada na Paraíba), de um limbo em que ela era mais conhecida e premiada por sua obra infanto-juvenil – não que isso fosse demérito (eu, por exemplo, adoro O Arqueólogo do Futuro e O problema do Pato) –, contudo a força do seu universo ficcional está nos romances e contos adultos.

Assim como José Saramago, ela começou a publicar tardiamente, o que se revelou uma dádiva, pois sua obra é uma poética da experiência, marcada pela materialidade do mundo e das relações humanas, desde o seu primeiro livro publicado, Vasto Mundo (Editora Beca, 2001). Ali conhecíamos as histórias do povoado de Farinhada, um ermo sertanejo invadido pelo “vasto mundo” numa incrível sucessão de estórias. Já era maravilhoso nesta primeira versão. Em 2016, ganhou fôlego ainda maior transformado definitivamente em romance.

Mas sua primeira obra no gênero foi o extraordinário O Voo da Guará Vermelha (Objetiva, 2005), o qual contava o amor entre uma prostituta com AIDS e um peão cujas peripécias eram a base de uma relação “pedagógica”. No ano seguinte apareceu Modo de Apanhar Pássaros à Mão, coletânea onde ela (e o leitor também) se comprazia em demonstrar sua versatilidade formidável, na abordagem tanto do meio rural quanto do urbano (com predominância do espaço urbano).

Depois veio interregno de quase uma década, em que ela esteve mais engajada na área infanto-juvenil, a explosão representada por Quarenta Dias, a segunda versão de Vasto Mundo e Outros Cantos. Agora aguardo ansiosamente não só um novo romance, como também a reunião de vários contos maravilhosos, dispersos aqui e ali, numa só coletânea, principalmente “O Muro”, genial texto alegórico, que sintetiza suas escolhas de vida, e muito pertinente num momento histórico nomeado por uma figura grotesca como Donald Trump. O conto narra o descenso social da narradora, que, é uma ascensão na escala solidária e humanitária: “Nem pensei em voltar para a passagem no muro. Deus atirou-me para dentro de seu samburá de estreita boca, já não me debato. Soube logo que subiria, mas não por qual caminho, até que vi, pouco mais adiante, numa parede suja daquele mesmo beco, a marca do menino magro, fresca e brilhante, um fio de vermelho líquido ainda escorrendo. O único sinal que eu, vagamente, podia interpretar, neste mundo estranho onde nunca antes sequer imaginei penetrar. Meti-me pela viela que, alguns metros adiante, ao topar com uma parede de zinco e madeira carcomida, quebrava-se para a esquerda. Ninguém. Tive a impressão de que já não havia mais ninguém nesse labirinto, só eu e o menino pichador, porque pouco antes de que o caminho se bifurcasse, mais acima, vi outra vez a rubra assinatura. Sem outro fio senão aquele para guiar-me, eu o segui. Hesitei na bifurcação, mas ela estava lá outra vez, a marca, dizendo-me que lado escolher, direção que tomei sem mais duvidar, entranhando-me na armadilha das ruelas intrincadas”.

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24/01/2017

Crônica de uma ruína anunciada: “Dois Irmãos”, de Milton Hatoum

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(Uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente, em A TRIBUNA de Santos, em 24 de janeiro de 2017)

A certa altura de DOIS IRMÃOS (2000) (a narrativa não é linear), ficamos sabendo da relutância de Halim um dos personagens principais, em ter filhos:

“Não queria três filhos; aliás, se dependesse da vontade dele, não teria nenhum. Repetiu isso várias vezes, irritado, mordendo o bico do narguilé. Podiam viver sem chateação, sem preocupação, porque um casal enamorado, sem filhos, pode resistir à penúria e a todas as adversidades. No entanto, teve de ceder ao silêncio da esposa e ao tom imperativo da frase posterior ao silêncio. Ela sabia insistir, sem estardalhaço: ‘Quer dizer que vamos passar a vida sozinhos neste casarão? Nós dois e essa indiazinha no quintal? Quanto egoísmo, Halim! ’ ”
‘Um filho é um desmancha-prazer’, dizia ele, sério.
‘Três, querido. Três filhos, nem mais nem menos’ ”.

Já pelos capítulos anteriores, o leitor descobria o “acerto” nas palavras de Halim, pois conhecera os resultados da teimosia de sua esposa Zana: a rivalidade quase fratricida entre os gêmeos, Yacobi e Omar, e a existência da sombra da única filha, Rânia. Mas a passagem citada também revela os ingredientes que fomentaram toda a tragédia posterior: a inércia quase letárgica do pai e as fantasias exacerbadas da mãe (as duas posturas equivocadas e egoístas), as quais acarretam a ruína da família.

Eu nunca fui muito fã do trabalho de Luiz Fernando Carvalho, contudo o que ele fez com o romance de Milton Hatoum é imperdoável: movido pelo seu esteticismo incontrolável, que não deixa nenhuma sendo fluir naturalmente, fazendo os intérpretes caírem na caricatura, numa gritaria há muito não vista em produções nacionais (lembram como era irritante a impostação dos atores? No cinema brasileiro, mesmo nos melhores filmes), parece que ele sonha em ser uma mistura de Glauber Rocha e Visconti. Tenho que confessar que dei várias gargalhadas no decorrer desse dramalhão.

Voltando ao sóbrio romance de Milton Hatoum, seu mistério continua sendo a figura de Yacobi: por que ele, que sofre tantas vicissitudes injustas, não conquista a empatia do leitor? O único personagem parecido com ele que me vem à mente é Michael Corleone de “O Poderoso Chefão”, mais no livro de Mario Puzo do que nos filmes; ambos começam a vida com as melhores intenções, e posteriormente se transformam em máquinas calculistas e gélidas, num desperdício de afetos realmente trágico.

 

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17/01/2017

ZYGMUNT BAUMAN E A “EMANCIPAÇÃO” INDIVIDUAL

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(Uma versão da resenha abaixo, foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 17 de janeiro de 2017)

E foi-se, na semana passada, o polonês Zygmunt Bauman (1925 – 2017). Apesar de se repetir em sua prolifica (alguns dirão, excessiva) obra, subestimado por muitos, eu o considero um pensador fundamental, principalmente por sua “Magnum opus” MODERNIDADE LÍQUIDA (ZAHAR) (2000), transcendendo em muito sua área de especialização, a sociologia, chegou à confusão do fracasso de organizar o mundo simetricamente ao conhecimento. Isso acontecia porque na modernidade a ética estava “no inverno”. Devido à sua preocupação com a eficácia, a administração da vida, a modernidade deixou recuar cada vez mais a consciência moral.

O momento em que foi publicado (na virada do milênio) também não podia ser mais oportuno. No prefácio ele afirma que “fluidez” e “liquidez” são as metáforas apropriadas para captar a natureza da presente fase da modernidade. Estamos na fase do depois do “tudo que é sólido se desmancha no ar”. A partir dessa constatação, ele analisa cinco grandes categorias afetadas por essa “liquidez”: emancipação, individualidade, tempo-espaço, trabalho comunidade.

Queremos a liberdade de fato? As pessoas podem estar satisfeitas com o que lhes cabe, mesmo que o que lhes cabe esteja longe de ser “objetivamente” satisfatório e o fracasso do socialismo não ajuda muito a aspirar um “objetivamente” satisfatório que seja alternativa válida para a sociedade de consumo. Fato: As pessoas gostam de padrões e rotinas. Eles nos poupam da agonia, do vácuo da escolha, no sentido mais radical da palavra: graças à monotonia e à regularidade de modos de conduta recomendados, para os quais fomos treinadas, sabemos como proceder na maior parte do tempo e raramente somos encontrados em (e por) situações sem sinalização. A ausência, ou a mera falta de clareza, das normas, é o pior que pode acontecer às pessoas em sua luta para dar conta dos afazeres da vida. Não seria esse o fardo, o fundo de angústia da nossa atual condição, “líquida”?

A vida líquida ainda não atingiu os extremos que a fariam sem sentido, mas a corrosão das crenças, instituições e valores já causou muito dano, e todas as futuras ferramentas da certeza, inclusive as novíssimas rotinas (que provavelmente não durarão o suficiente para se tornarem hábitos) não poderão ser mais que muletas.

Tudo agora é encontrado “dentro do indivíduo”, já que não há instituições críveis ou instâncias seguras. A liberdade concebível e possível de alcançar já foi alcançada: é o indivíduo que segue seu próprio norte (dentro do raio de ação do capitalismo global e da sociedade de consumo, bem entendido). Homens e mulheres dos países desenvolvidos são inteira e verdadeiramente livres, e assim, a agenda da libertação está praticamente esgotada. As instituições sociais estão mais que dispostas a deixar à iniciativa individual, o cuidado com as definições e identidades, e os princípios universais contra os quais se rebelar estão em falta. Aliás, vivemos um tipo de sociedade que não mais reconhece qualquer alternativa para si mesma.

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10/01/2017

OS “TIOZÕES” DE LUIZ ROBERTO GUEDES

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(Uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente em 10 de janeiro de 2017 em A TRIBUNA de Santos)

Luiz Roberto Guedes (que acostuma utilizar o pseudônimo de Paulo Flexa, pois é um artista multimídia) reuniu em MISS TATTO – UMA QUASE NOVELA (Jovens escribas), quinze textos, nos quais faz uma “poética do tiozão”, uma taxonomia que abrange desde tipos “descolados” (que circulam pela noite e modismo) até tipos introspectivos, todos eles voltados nostalgicamente para os anos 1980; inclusive muitos trechos de canções da época são citados.

“Ele soltou um suspiro, inconformado. Toda sua vida tinha sido pressionado por mulheres fortes, imperiosas, autoritárias. A mãe, as professoras, as diretoras de escola, a xerife Latorre. Será que Luísa teria se tornado assim tão rígida, se tivesse vivido o bastante?
O acordo tácito permanecia em vigência. Késia continuou frequentando sua cama e voltando para seu próprio quarto, logo que ele dormia. O marmanjo retardado não tinha batido mais em sua porta, sua mãe estava se recuperando bem, e ele desfrutava de um sossego entorpecente, mas que sabia temporário”. Essa passagem (de “Késia com K”, um dos meus favoritos do livro) faz parte da história de um professor sessentão que oferece carona e moradia para uma ninfeta, enfrentando a família, a empregada e a sindica; sua carência infelizmente não tem reciprocidade: a garota foge com um skatista (noutro registro, temos uma situação similar em “Primeiro esboço de Heloísa”, um conto simplesmente brilhante).

Não falta sequer um Mr. Kurtz chanchadesco e reichiano, em “Cibele, si belle”.

No conto-título, o narrador é chamado pelo pai milionário de uma patricinha, a qual deseja tornar-se uma nova Xuxa ou Angélica. O produtor musical veterano e a menina se envolve, mas surgem em cena Miss tatto, seduzindo o produtor, que depois terá uma surpresa com relação a suas estrelas.

É incrível a leveza da prosa de Luiz Roberto Guedes. Ele escreve como um autor policial norte-americano. Entretanto, é uma falsa leveza, ainda que o leitor ache tudo fluente, jocoso e mordaz. Deve-se prestar atenção ao uso variado do foco narrativo: além da primeira e terceira pessoa, há contos que usam a segunda: caso “A garota do Café Barão”: “Garota esperta. Trata por doutor a todo engravatado que circula neste quadrilátero do fórum. Caminhando para o escritório, você aprecia as mulheres da manhã ensolarada. Ó Deus, lá vem uma negra alta, atlética, numa calça-bailarina justíssima, azul-elétrico: o púbis glorioso ressalta das coxas exuberantes. Nigra et formosa. Rainha de Sabá coroada de trancinhas. Você volta rapidamente a cabeça para admirar a bunda suntuosa”.

É amargura no fundo do riso, é o ácido no suco da laranjeira.

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05/01/2017

Destaques Literários de 2016

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(Uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 03 de janeiro de 2017)

Como sempre, alerto, não dá para ler tudo e gostar de tudo. Na minha opinião, esses foram os melhores de 2016. A ordem, após o livro do ano, não é de hierarquia, e sim por sobrenomes dos autores, e peço desculpas pelos comentários genéricos:

Livro do Ano: A DEFINIÇÃO DO AMOR, Jorge Reis-Sá (Tordsilhas): surpreendente romance português, no qual um fato real que parece ficção (uma mulher mantida viva por aparelhos por causa da gravidez) ganha uma dimensão literária, sem resvalar para o dramalhão ou para sensacionalismo. É um exemplo maravilhoso de “romance com temática”, que muitos desdenham, mas eu, da minha parte, adoro, como é o caso dos romances de Lional Shriver, e de REBENTAR, de Rafael Gallo.

Também se destacaram:

AS HORAS, Alex Andrade, Penalux: Personagem tentando enfrentar a solidão e o abandono, numa coletânea de contos que mostra a evolução do autor carioca;

LITURGIA DO FIM, Marilia Arnaud, Tordsilhas: Um confronto com o passado resulta num dos romances mais lindos dos últimos tempos, em linguagem e densidade;

PASSOS AO REDOR DO TEU CANTO, Maria Carolina de Bonis, Patuá: A poesia atual em pleno vigor, como, de resto todos os gêneros;

O INSTANTE-QUASE, Juliana Diniz, 7Letras: O melhor livro de contos de 2016, simplesmente brilhante;

ESTAÇÃO DAS CLÍNICAS, Iacyr Anderson Freitas, Escrituras: O leitor ri e chora com as mazelas do corpo em relação ao “espírito”;

ROTEIROS PARA UMA VIDA CURTA, Cristina Judar, Reformatório: Uma Alice pós-moderna nos levando para uma assustadora hiper-realidade;

O TRIBUNAL DA QUINTA-FEIRA, Michel Laub, Companhia das Letras: Excelente romance onde um dos melhores autores brasileiros da atualidade mostra o impacto de certos eventos na sua geração. A ele se aplicam as palavras de Joan Didion: “ninguém está isento do movimento geral”;

A VISTA PARTICULAR, Ricardo Lísias, Alfaguara: A exuberância criativa do autor, transforma um artista “distraído” num arauto da sociedade do espetáculo. Genial;

GALVEIAS, José Luís Peixoto, Companhia das Letras: O grande escritor português e seu romance mais intrigante, sempre mostrando o “atraso” na vida rural de seu país;

AMORA, Natalia Borges Polesso, Não Editora: Premiada coletânea de contos que giram em torno do lesbianismo, porém vão muito além da temática;

OUTROS CANTOS, Maria Valéria Rezende, Alfaguara: Talvez a obra-prima da autora sobrepondo vários estágios da sua vida e do sertão;

O SOL VINHA DESCALÇO, Eduardo Rosal, Reformatório: O melhor livro de poemas de 2016;

COMO SE ESTIVÉSSEMOS EM PALIMPSESTO DE PUTAS, Elvira Vigna, Companhia das Letras: Mais um acachapante livro dá mais genial autora da atualidade;

FALSO TRAJETO, Fabio Weintraub, Patuá: Uma poesia que parece opaca exigindo várias releituras, que a tornam fascinante;

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