(Eis outro texto que pertence ao material do meu curso AS MARGENS DERRADEIRAS, de 2008, sobre a ficção curta do século XIX)


“As almas não tomam a forma de roupas.”
(Joseph Conrad, Sob os olhos do Ocidente, 1911)
“Eu trazia uma túnica de brocado azul abotoada ao lado, com o peitilho ricamente bordado de dragões e flores de ouro…as calças de cetim cor de avelã descobriam ricas babuchas amarelas pespontadas a pérolas…E, pelas misteriosas correlações com que o vestuário influencia o caráter, eu sentia já em mim idéias, instintos chineses: o amor dos cerimoniais meticulosos, o respeito burocrático das fórmulas, uma ponta de ceticismo letrado, e também um abjeto terror do Imperador, o ódio ao estrangeiro, o culto dos antepassados, o fanatismo da tradição, o gosto das cousas açucaradas… Alma e ventre era já totalmente um mandarim. Não disse bonjour à Generala. Dobrado ao meio, fazendo girar os punhos fechados sobre a fronte abaixada, fiz gravemente o chin-chin…”
(Eça, O mandarim)
Já vimos, com O capote, uma roupa “fazer” um homem (até no Além). Como a ficção do final de século viu esse problema? Aproveitando o gancho da passagem citada do texto de Eça, examinemos rapidamente duas obras-primas do conto, O espelho, de Machado de Assis, & A vida privada, de Henry James.
O espelho foi escrito, publicado na imprensa e depois incorporado à coletânea Papéis avulsos, tudo em 1882. É um dos melhores de Machado e traz uma atmosfera praticamente inédita na nossa literatura até então. Tem um daqueles subtítulos muito peculiares em Machado (e correntes na ficção do século XIX), que sempre brincava com teorias filosóficas e científicas: “Esboço de uma nova teoria da alma humana” .
Nos textos que vimos, não faltaram espelhos, é só lembrar o espelho que foi levado para o laboratório do Dr. Jekyll e acompanhou até o fim suas transformações, ou o clímax de William Wilson num salão de espelhos (e em A morte de Ivan Ilitch, a partir de certa altura, há uma rejeição do espelho). O espelho acompanha nosso sentimento de identidade, de unidade em forma e percepção dessa identidade. O que, como sabemos, é mera aparência.

A moldura narrativa de O espelho já é interessante por si mesma, porque é muito parecida com as que Henry James utiliza em certas histórias, a mais famosa das quais justamente A volta do parafuso (em A máquina do tempo, H.G. Wells também se vale do mesmo recurso): colocar uma reunião mundana como início da narração, com os participantes discutindo um assunto e um narrador tomando a palavra e nos levando ao centro da trama propriamente dita: “Quatro ou cinco cavalheiros debatiam, uma noite, várias questões de alta transcendência, sem que a disparidade dos votos trouxesse a menor alteração aos espíritos. A casa ficava no morro de Santa Teresa, a sala era pequena, alumiada a velas, cuja luz fundia-se misteriosamente com o luar que vinha de fora. Entre a cidade, com as suas agitações e aventuras, e o céu, em que as estrelas pestanejavam… estavam os nossos quatro ou cinco investigadores de coisas metafísicas, resolvendo amigavelmente os mais árduos problemas do universo. Por que quatro ou cinco? Rigorosamente, eram quatro os que falavam…” Ou seja, há um primeiro narrador, ou para utilizar pedantescamente a teoria literária, uma primeira instância narrativa, que logo vai realçar a presença do quinto personagem, homem com a mesma idade dos companheiros, entre 40 e 50 anos, “provinciano, capitalista, inteligente, não sem instrução, e, ao que parece, astuto e cáustico”. Seu nome: Jacobina. Esse “casmurro” só usa da palavra já avançada a noite, “e não dois ou três minutos, mas trinta ou quarenta” a partir do momento em que a discussão recai sobre a “natureza da alma”.
Jacobina, então, se torna o narrador (um narrador “em diálogo”, um efeito muito interessante), ao lançar a teoria (demonstrada claramente por um caso de sua vida, é o que afirma) de que “não há uma só alma, há duas”. Ele não quer ser interrompido, portanto o registro comporta diálogo e conversação e monólogo, em suas poucas páginas.
Para Jacobina, “Cada criatura humana traz duas almas consigo: uma que olha de dentro para fora, outra que olha de fora para dentro…A alma exterior pode ser um espírito, um objeto, uma operação. Há casos, por exemplo, em que um simples botão de camisa é a alma exterior da pessoa”. Metafisicamente, o homem é uma laranja (até aqui tudo tem um aspecto quase paródico, de salão, um tom mundano e refestelado, de atmosfera condescendente que exala uma reunião de pessoas bem-sucedidas).
Jacobina conta então que aos 25 anos era pobre, morava numa pequena vila, e fora nomeado alferes da guarda nacional, um acontecimento em sua casa e entre a parentada, todos orgulhosos dele (embora ele despertasse inveja e despeito de alguns rapazes). Uma de suas tias, D. Marcolina, viúva e morando a muitas léguas num sítio isolado, desejou vê-lo, e pediu que a visitasse e levasse a farda. Quando lá chega, a tia deseja retê-lo por um mês, pelo menos. A descrição do comportamento da tia dá trela à imaginação de um malicioso, o que não é o meu caso, bem entendido: “E abraçava-me! Chamava-me também o seu alferes. Achava-me um rapagão bonito. Como era um tanto patusca, chegou a confessar que tinha inveja da moça que houvesse de ser minha mulher”. Ela não queria chamá-lo senão de “senhor alferes”: “Se lhes disser que o entusiasmo da tia Marcolina chegou ao ponto de mandar pôr no meu quarto um grande espelho, obra rica e magnífica, que destoava do resto da casa, cuja mobília era modesta e simples…Era um espelho que lhe dera a madrinha, e que esta herdara da mãe, que a comprara a uma das fidalgas vindas em 1808 com a Corte de D. João VI. Não o que havia nisso de verdade; era a tradição”. Portanto, temos a conjunção de coisas prestigiadas: o posto de alferes (simbolizado pela farda) e o espelho, ao qual a tradição (não necessariamente verdadeira) aureolara com uma linhagem, um pedigree, apesar dos maltratos do tempo: “estava naturalmente muito velho; mas via-se-lhe ainda o ouro, comido em parte pelo tempo, nos delfins esculpidos nos ângulos superiores da moldura, uns enfeites de madrepérola e outros caprichos do artista. Tudo velho, mas bom… era a melhor peça da casa”.

A adulação e as finezas da tia e de seus agregados, os obséquios, o espelho enfim (isto é, todas as operações da vaidade que trazem à tona a onipotência narcisista, porém creio que as operações psíquicas freudianas pouco têm a fazer aqui no seu sentido estrito: Machado trata de forma mais social, perversamente social, a questão da identidade), operam o seguinte fenômeno: “O alferes eliminou o homem”. A farda se torna então sua alma externa: “No fim de três semanas, era outro, totalmente outro. Era exclusivamente alferes.” Um ego social, construído pelo olhar dos outros.
Nesse ínterim, uma das filhas da tia adoece a cinco léguas dali e a mãe extremosa viaja para cuida dela, deixando o senhor alferes sozinho com os poucos escravos da casa, o que causa ele um sentimento de opressão: “Era a alma exterior que se reduzia; estava agora limitada a alguns espíritos boçais. O alferes continuava a dominar em mim, embora a vida fosse menos intensa, e a consciência mais débil”. Continua adulado pelos escravos (“Nhô Alferes”), adulado até demais. Eles estão disfarçando uma fuga coletiva, que afinal se efetiva. E aí Jacobina fica realmente só: “Achei-me só, sem mais ninguém, entre quatro paredes, diante do terreiro deserto e da roça abandonada. Nenhum fôlego humano. Corri a casa toda, a senzala, tudo; ninguém, um molequinho que fosse. Galos e galinhas tão somente, um par de mulas, que filosofavam a vida, sacudindo as moscas, e três bois. Mesmo os cães foram levados pelos escravos. Nenhum ente humano”. Repare-se na corrosiva crueldade machadiana nesse par de mulas que filosofavam a vida sacudindo moscas, uma atividade maquinal caracterizada por um verbo “nobre” e eminentemente “antropológico”.
Desnorteado, sem saber bem o que fazer, ele resolve permanecer ali, “tomando conta da casa”. Durante o resto da semana ninguém aparece ou volta: “Minha solidão tomou proporções enormes. Nunca os dias foram mais compridos, nunca o sol abrasou a terra com uma obstinação mais cansativa. As horas batiam de século a século no velho relógio da sala, cuja pêndula tic-tac, tic-tac, feria-me a alma interior, como um piparote contínuo da eternidade”. Eis um que não nasceu para Robinson Crusoé, para ser náufrago do seu ego social afagado e que o retirara da zé ninguenzice de rapazote de uma vila qualquer: “E então de noite! Não que a noite fosse mais silenciosa. O silêncio era o mesmo que de dia. Mas a noite era a sombra, era a solidão ainda mais estreita, ou mais larga. Tic-tac, tic-tac”. Com ninguém por perto, só lhe resta o tempo, a pura passagem do tempo, a identidade sem o elemento que a forma (o olhar), que a torna possível e viável, e na noite aprofunda-se o cochicho do nada, que é pior que o medo. Só o sono o alivia, por libertar a alma interior. Na vigília: “Tic-tac, tic-tac. Levantava-me, passeava, tamborilava nos vidros das janelas, assobiava.Em certa ocasião lembrei-me de escrever alguma coisa, um artigo político, um romance, uma ode, não escolhi nada definitivamente; sentei-me e tracei no papel algumas palavras e frases soltas, para intercalar no estilo. Mas o estilo, como a tia Marcolina, deixava-se estar… Coisa nenhuma. Quando muito via negrejar a tinta e alvejar o papel… Recitava discursos, trechos latinos, liras de Gonzaga, oitavas de Camões, décimas, uma antologia de trinta volumes.” Como se vê, uma cultura decorada, aprendida num sentido decorativo, incapaz de auxiliar uma vida interior que, como a tia Marcolina, deixava-se estar. Fenomenologistas fariam a festa com trechos em que os objetos gritam sua existência na mais ofuscante evidência: negreja a tinta e alveja o papel!


Ginástica, beliscões nas pernas, dor ou cansaço, tudo esbarra no silêncio vasto, enorme, infinito, sublinhado pelo tic-tac. O silêncio é a passagem do tempo evidenciada. Finalmente, ocorre-lhe o espelho. Não olhara para ele desde que ficara só: “Não era abstenção deliberada, não tinha motivo; era um impulso inconsciente, um receio de achar-me um e dois, ao mesmo tempo, naquela casa solitária”. Enfim ele supera o receio: “Olhei e recuei. O próprio vidro parecia conjurado com o resto do universo; não me estampou a figura nítida e inteira, mas vaga, esfumada, difusa, sombra de sombra…levantei o braço com gesto de mau humor, e ao mesmo tempo de decisão olhando para o vidro; o gesto lá estava, mas disperso, esgarçado, mutilado…De quando em quando, olhava furtivamente para o espelho: a imagem era a mesma difusão de linhas, a mesma decomposição de contornos”. É claro, pois ele está vendo o Joãozinho, o rapazote da vila insignificante, sem o menor galardão social: um zero à esquerda, disperso, esgarçado, difuso, esfumado, “feições derramadas e inacabadas”
Vem a inspiração: vestir a farda de “senhor alferes”, vestir a personagem (releiam a epígrafe de Joyce, concernente à parte que escrevi sobre O capote), deixar o Joãozinho de lado: “levantei os olhos e… não lhes digo nada; o vidro reproduziu então a figura integral; nenhuma linha de menos, nenhum contorno diverso; era eu mesmo, o alferes, que achava, enfim, a alma exterior. Essa alma ausente com a dona do sítio, dispersa e fugida com os escravos [olhem que analogia maravilhosa; em Machado, o psicológico é sempre social], ei-la recolhida no espelho.Imaginai um homem que, pouco a pouco, emerge de um letargo, abre os olhos sem ver, depois começa a ver… Tudo volta ao que era antes do sono. Assim foi comigo. Olhava para o espelho, ia de um lado para outro, recuava, gesticulava, sorria, e o vidro exprimia tudo. Não era mais um autômato, era um ente animado”. Ele ritualiza o evento: a cada dia, a uma certa hora, veste-se de alferes e fica diante do espelho, lendo, olhando, meditando, por duas ou três horas: “Com este regime pude atravessar mais seis dias de solidão sem os sentir” . Reinstalado na identidade social, deixou de sentir o puro tempo (e a narrativa termina abruptamente, num golpe teatral, com a instância primeira da narrativa retomando a palavra: “Quando os outros voltaram a si, o narrador tinha descido as escadas”).
Antes de comentar A vida privada, gostaria de abrir um parêntese e comentar outro conto de Machado, o engenhoso Identidade (1887), que entra na linha doppelgänger, do duplo, embora de forma quase brejeira e um tanto faceta.
No primeiro parágrafo, o narrador introduz o tema que dá título ao texto: “Convenhamos que o fenômeno da semelhança completa entre dois indivíduos não parentes é coisa mui rara, talvez ainda mais rara que um mau poeta calado. Pela minha parte não achei nenhum. Tenho visto parecenças curiosas, mas nunca ao ponto de estabelecer identidade entre duas pessoas estranhas.” Daí então ele utiliza o gancho do “manuscrito achado”; no caso, um papiro: “que entre dous indivíduos de família e casta diferentes a igualdade das feições, da estatura, da fala, de tudo, seja tal que não se possam distinguir um do outro, é caso para ser posto em letra de forma, depois de ter vivido três mil anos em um papiro, achado em Tebas. Vá por conta do papiro.” E o terceiro parágrafo apela para o “Era uma vez um faraó cujo nome se perdeu na noite das velhas dinastias, mas suponhamos que se chamava Pha-Nohr” (Machado e o seu habitual recurso de lançar no alhures e no remoto os temas que quer abordar).

Pha-Nohr ficara sabendo que havia um sósia dele e ordenara que o trouxessem à sua presença: um escriba, Bachtan. “Eram mais do que dois homens parecidos, eram dois exemplares de uma só pessoa; eles mesmos não se distinguiam mais que pela consciência da personalidade” (e, é claro, pela posição social). Pha-Nohr instrui o escriba na administração do império, e declara que irá colocá-lo no trono por um tempo indeterminado. “O escriba agora sou eu. Tu és faraó.” É a idéia de viver na pele de outro que seduz Pha-Nohr, sair do engessamento do palácio, tendo virado um herói decadentista (“Imagine-se que Pha-Nohr começara a governar com 22 anos, tão alegre, expansivo e resoluto, que encantou a toda gente; tinha idéias grandes, úteis e profundas. No fim, porém, de dous anos, mudou completamente de gênio. Tédio, desconfiança, aversão às pessoas, sarcasmos amiudados e, finalmente, umas crises melancólicas, que lhe levavam dias e dias. Durou isto dezoito anos”). A princípio, Bachtan não se sente à vontade e Machado me sai com essa frase genial: “O escriba rolou a noite inteira, sem achar cômodo, no leito da vindoura Cleópatra”.
No vasto mundo, um tecelão casado acolhe o falso escriba, que sente remorso por desejar a mulher do anfitrião, tão bondoso e solícito. Mas ele ouve uma conversa do casal e descobre que o tecelão quer é roubar a caixa de pedras preciosas com a qual saiu do palácio para ganhar o mundo. A esposa não consente. Pha-Nohr resolve ir embora, entretanto presenteia Charmion com algumas jóias.
O relato prossegue com as aventuras de Pha-Nohr pelo mundo nem sempre vasto, com muitas decepções e algumas multas, até que ele acaba nos braços da bela Charmion (cujos olhos não são de ressaca, todavia “encerravam, mais que nunca, todos os mistérios do Egito. Além dos mistérios, tinha ela um plano”; essas mulheres calculistas de Machado!), a qual abandonou o marido. Os dois vivem juntos, ele é apaixonado por ela, ela jura que morre por ele, eles recebem como hóspede um moço viajante; no entanto a liberdade de não ser faraó é mais aborrecimento que prazer e ele sente saudades de Mênfis, “do poder que emprestara ao escriba… Trocara tudo por nada. Aqui emendou-se: Charmion valia por tudo.” Toma uma decisão: irão embora daquela cidade. Chegando em casa da rua nesse dia, “não achou nada, nem a moça, nem as pedras preciosas, nem as jóias, túnicas, espelhos, muitas outras cousas de valia. Não achou sequer o moço viajante que provavelmente, à força de falar de Babilônia, despertou na dama o desejo de irem visitá-la juntos”.
O desiludido Pha-Nohr torna-se aprendiz de embalsamador. Nova decepção: “tinha ido ali buscar uma oficina de melancolia e deu com um bazar de chufas e anedotas… Operavam os corpos gracejando, falando cada um dos seus negócios, planos, idéias, puxando daqui e dali, como se cortam sapatos. Pha-Nohr compreendeu que o uso encruara naquela gente a piedade e a sensibilidade” (como ele está vivendo em outra pele, o que é automático e maquinal no quotidiano não existe para ele, que está reaprendendo tudo e todos os códigos sociais). Sente medo de acabar assim. Torna-se barbeiro, bateleiro, caçador. Até que resolve retornar a Mênfis (note-se a idéia de um império tão vasto e um poder tão longínquo que parece ficar em outro planeta, tanto que o sósia do faraó, que na verdade é o faraó, nem é reconhecido nos diversos lugares das suas aventuras, pois o faraó paira muito acima do povo).
Nesse ínterim, o verdadeiro escriba e falso faraó engordou muito: “Entrou; a corte esperava-o, em redor do faraó, e reconheceu logo que era impossível agora confundi-los, à vista da diferença na grossura dos corpos (portanto, semelhança e identidade são algo muito voláteis, como vimos experimentar diante do espelho o nosso amigo alferes ); mas a cara, a fala, o gesto eram ainda os mesmos. Bachtan perguntou-lhe placidamente o que é que queria; Pha-Nohr sentiu-se rei e declarou-lhe que o trono: Sai daí, escriba, concluiu; o teu papel está acabado.” Bachtan e todo o paço gargalham. Pha-Nohr faz um gesto de ameaças e o falso Pha-Nohr declara-o como sedicioso, perigoso para o Estado, mandando prendê-lo. Julgado, é condenado à morte: “Na manhã seguinte, cumpriu-se a sentença diante do faraó e grande multidão. Pha-Nohr morreu tranqüilo, rindo do escriba e de toda a gente, menos talvez de Charmion… A multidão, logo que ele expirou, soltou uma formidável aclamação: Viva Pha-Nohr! E Bachtan, sorrindo, agradeceu”. Veja-se que enquanto Pha-Nohr esgueirava-se entre avatares diversos (como amante, profissional em várias áreas), numa vida cambiante e precária, sem fixar-se a um molde, Bachtan enrijeceu-se (tanto quanto seu corpo “engrossou”) num molde único, o de faraó, o papel mais fixado e inerte do universo. No final, ele é realmente o faraó e assumiu mais a identidade do duplo do que este a sua, socialmente muito mais precária e volátil.

Precárias e voláteis são as personas que habitam A vida privada. Henry James o publicou em 1892. Assim como O espelho, começa de forma mundana (é uma narrativa em 1ª. pessoa): “Conversávamos sobre Londres em frente a uma imensa, ameaçadora e primeva geleira” [1]. Estamos na Suíça onde natureza e vida civilizada convivem aparentemente sem atritos. É uma estação de férias, a trama transcorre num hotel, o narrador comenta a “resignação gregária” que toma conta de todos que não compartilham ou não querem compartilhar (“reconhecemos nossa sorte permanecendo juntos”) da vulgaridade e da promiscuidade: Lord e Lady Mellifont, Clare Vawdrey (“a maior, na opinião de muitos, de nossas glórias literárias”), Blanche Adney (“a maior, na opinião de todos, de nossas glórias teatrais”). Todos se conhecem de Londres e formam visivelmente um grupo fechado (“nosso inocente prazer era sermos diferentes”).
O clima de fofoca intra-grupo começa a partir do momento em que se tecem comentários sobre as prolongadas ausências de Lord Mellifont e Blanche Adney (a qual, também é casada, com o “pequeno Mr. Adney, o querido compositor”). O catalisador das conversas é Vawdrey, o qual “diferenciava-se das outras pessoas, mas nunca dele mesmo (exceto no sentido extraordinário sobre o qual prestarei algum esclarecimento [2]) e me parecia ser uma pessoa sem humores, sem suscetibilidades, sem preferências… dirigia-se às mulheres exatamente da mesma maneira como se dirigia aos homens, e conversava com todos os homens de igual maneira, sem se expressar melhor com as pessoas inteligentes do que com as obtusas. Eu costumava afligir-me com seu modo de gostar de um assunto, segundo me parecia, exatamente da mesma maneira quanto de outro… Suas opiniões eram prudentes e medíocres e refletir sobre suas faculdades mentais era desconcertante demais! Eu lhe invejava a saúde magnífica.”
Como dá para perceber, ele começa com um retrato simpático e cativante, e vai gradualmente revelando a má vontade que nutre em relação a Vawdrey. E assim temos de ter cuidado: provavelmente estamos diante de mais um daqueles narradores não-confiáveis. Por que eles aparecem tanto em Henry James(aliás, era o caso de perguntar por que também são tão importantes para Machado)? Há todo um lado bisbilhoteiro, fuxiqueiro, nesses personagens envolvidos em enigmas intrincados, e além disso, geralmente há uma situação de competição para os heróis (o que significa que James nunca se afastou muito, apenas as aprofundou vertiginosamente, das suas preocupações, uma vez que já num conto de juventude, Pobre Richard, tratava do assunto). Eles são de antemão derrotados (a derrota pode ser sentimental ou artística, ou envolver as duas coisas), obrigados a renunciar e a encarar sua impotência em impor-se ou pelo menos obter a solução dos segredos com os quais se envolvem. Não deixa de ser engraçado que alguns dos maiores mistérios da literatura sejam misturados com bisbilhotices e rivalidades mesquinhas.
Voltemos ao nosso amigo narrador, um tantinho invejoso de Vawdrey, o qual se sente absolutamente à vontade no “tedioso campo da anedota, no qual as histórias são visíveis ao longe, como moinhos de vento e postes de sinalização”. Um tantinho invejoso, mas cônscio de que o outro é tedioso e repetitivo. Ele percebe que Lady Mellifont parece desatenta, percorrendo com um olhar meio ansioso “os declives nas partes inferiores das montanhas”.

Se Vawdrey é enfadonho, apesar do seu sucesso mundano, Lord Mellifont é “the one”: “Não digo o maior, o mais sábio, mais célebre, mas essencialmente o que ocuparia o primeiro lugar de uma lista e a cabeceira da mesa. Essa é, por si só, uma posição, e sua mulher estava naturalmente acostumada a vê-lo ocupando-a.” Espero que vocês percebam, apesar dos métodos indiretos e que retardam muito a ação narrativa, e portanto freqüentemente exasperantes, de Henry James, que o que está se estabelecendo aqui é um conjunto de aparências, como cada membro do grupo é notável por algo aparente, que lhe confere identidade social e coesão ao grupo. Quanto à Lady Mellifont, o narrador a princípio achara-a um pouco atemorizante e até mesmo “saturnina”: “Estava eternamente de luto e usava inúmeros adornos de azeviche e ônix… Eu tinha ouvido Blanche Adney chamá-la de Rainha da Noite, e o epíteto era bem descritivo se considerarmos a noite como algo sombrio.Ela tinha um segredo… Parecia alguém com uma doença indolor.” Ela confidencia ao narrador que fica nervosa quando o marido se mantém longe dela por algum tempo, embora não saiba o que possa temer: trata-se de uma sensação indefinível “de que ele jamais voltará” (nós saberemos depois o porquê).
Blanche Adney reaparece e Lord Mellifont não está em sua companhia. Perguntada a respeito do paradeiro dele, ela diz que ele entrou no hotel e aí ocorre uma troca de olhares entre a atriz e o narrador: “O interesse nessa ocasião foi estimulado por alguma coisa especial que os olhos pretendiam dizer. O que eles geralmente diziam era: Ah, sim, sei bem que sou maravilhosa, mas não se precisa fazer estardalhaço disso. O que eu quero é apenas um novo papel, quero, e quero muito. Nessa ocasião específica eles acrescentaram vagamente, sub-repticiamente e, é claro, docemente, pois essa era a maneira como faziam tudo: Está tudo bem, mas alguma coisa aconteceu realmente. Talvez eu lhe conte mais tarde”, o que nos sugere duas coisas: uma cumplicidade entre ambos, e que ele é apaixonado por ela (dá para ver no “é claro, docemente”; mais adiante leremos: “É difícil ser breve ao falar dessa encantadora mulher que era bela sem beleza e perfeita com dúzias de defeitos”). Como se vê, tudo é narrado “vagamente, sub-repticiamente”, tudo acontece em surdina e nos bastidores.

Mesmo dentro do refinado grupo, os Mellifont se destacam por sua cerimoniosa existência. O marido “tinha um traje para cada função e um motivo para cada traje; e suas funções, trajes e motivos sempre constituíram uma parte das alegrias da vida, uma parte, pelo menos, da beleza e do romance da vida, para um imenso círculo de espectadores”. A mera presença de Lord Mellifont dá prestígio às coisas: “ele apresentava a vista como se ela fosse candidata a algum cargo e dava seu ´apoio´ aos próprios Alpes”. Ele e Clare Vawdrey se conhecem desde pequenos. O narrador diz a respeito do hábito de se falar do Lord: “Quanto a mim, quando falávamos dele, sempre tivera a impressão de estarmos falando dos mortos; havia indícios daquele peculiar acúmulo de relíquias. Sua reputação era uma espécie de obelisco dourado, um monumento funerário sob o qual ele poderia ter sido enterrado”. Ele é uma lenda viva: “Ele era, em si, um estilo… nunca em sua vida fora um convidado; ele era o anfitrião, o patrono, o poder moderador em qualquer assembléia… Confrontada com seu elevado padrão, a conversa de Clare Vawdrey sugeria mais a do repórter em contraste com a do poeta”. Quer dizer, o grande escritor é menos interessante do que o homem elegante.
Vawdrey está escrevendo uma peça para Blanche Adney, que aos 40 anos deseja O papel, O supremo desafio: “Os anos haviam passado e elas os desperdiçara; em nenhuma das coisas que fizera realizara seu sonho, de modo que agora não tinha mais tempo a perder”. Nem é preciso ressaltar que ser atriz também é um viver de aparência, de ter que fazer a manutenção de uma imagem, de um ego social criado por olhares alheios. Estão todos os três, ela, o Lord e o escritor sob a luz de holofotes invisíveis. O narrador prevê que ela nunca conseguiria tal peça de Vawdrey (“estava de fato escrevendo uma peça; mas se a iniciara porque gostava da atriz, acredito que a deixava arrastar-se pela mesma razão… Se ele a enganava era apenas porque em seu desespero ela estava determinada a ser enganada”). Blanche pergunta ao autor sobre o terceiro ato e ele responde que antes do jantar escrevera uma magnífica passagem. O narrador replica que ele antes do jantar manteve todo o grupo “fascinado” no terraço. É uma tirada, apenas, só que embaraça Vawdrey, que dá uma desculpa. Todos o colocam na berlinda: quando teve tempo de escrever a tal passagem magnífica?
Blanche então diz que não acredita que ele tenha escrito uma só linha. E ele promete falar a cena para todos. Quando Blanche utiliza o verbo “ler”, ele a corrige: “ler, não; apenas falar”, e que não precisaria de um manuscrito. Na hora H, “nosso leão doméstico começou a rugir fora do tom: esquecera completamente o texto. Ele sentia muito,as palavras não lhe ocorriam de forma alguma…dera um branco em sua memória. Ele não parecia nem um pouco envergonhado, Vawdrey nunca parecera envergonhado na vida… Afirmou que nunca esperara fazer um papel tão ridículo, mas percebíamos que isso não impediria que o incidente tomasse seu lugar entre suas mais risonhas Memórias. Nós é que estávamos humilhados como se ele nos tivesse pregado uma peça”. Quem salva a pátria, com seu tato e talento mundano, é Lord Mellifont. O narrador insiste no entanto: se Vawdrey quisesse, ele poderia pegar o manuscrito da suposta peça. O autor diz uma coisa estranha: “Se houver realmente alguma coisa você encontrará sobre minha escrivaninha”, quase como se não soubesse se tinha ou não produzido algum manuscrito. O narrador diz a Blanche que obteve permissão para pôr as mãos no manuscrito: “Ela me fez jurar, por tudo que era sagrado, que eu o traria imediatamente e o entregaria a ela; e sua insistência era uma prova contra minha idéia de que seria tarde demais para Vawdrey começar a ler; além do que o encanto havia-se quebrado; os outros não se interessariam. Não era, ela me assegurou, tarde demais para ela própria começar a ler; eu deveria apossar-me, sem mais delongas, das preciosas páginas”. Em troca, o narrador quer saber o que acontecera entre ela e Mellifont (ela lhe joga na cara e poderia ser uma acusação a todo o universo jamesiano: “Você é um perscrutador de corações, essa coisa frívola: um observador”; é um universo todo voyeurístico [3]). Ele quer saber se Mellifont a cortejou. Ela ri e brinca a respeito da conveniência de ser cortejada numa geleira. O narrador pergunta então se ele “caiu nalgum precipício”. Ela diz que não sabe se ele caiu ou se subiu e acrescenta: “É realmente estranho…preciso tentar entender”.
Aí ele mostra suas cartas: acha que Vawdrey não tem sequer uma linha escrita, embora negue que deseje desmascará-lo. Blanche, conspiradora (e o tom conspiratório é uma das constantes nas histórias de James, é o lado mais complexo da base fuxiqueira que já mencionei): “Por que não, se eu desmascarar Lord Mellifont?” O narrador então diz significativamente (assumindo o papel de rival): “Ah, eu daria qualquer coisa por isso”. Nesse projeto (frívolo) de desmascaramento temos os dois alvos do relato: o autor que parece não escrever (Vawdrey) e só representar o papel de autor; e o homem (Mellifont) que leva uma vida cerimonial, uma existência totalmente social.
Blanche ordena que ele vá olhar no quarto. No de Mellifont, ele pergunta. Resposta: “Essa seria uma boa maneira! De descobrir…de descobrir!” Descobrir o quê? O que ela tenta insinuar sobre Mellifont?

O grupo deles se dispersa. O narrador se vê sozinho. A certa altura, surpreende Blanche num colóquio com o “dramaturgo” que não se sabe se produziu alguma peça. Então ele se resolve a apanhar o manuscrito, ver se ele existe de fato, e se juntar aos dois: “Um minuto depois minha mão estava na maçaneta da porta que, naturalmente, abri sem bater… Um olhar prolongado por três segundos mostrou-me uma figura sentada a uma mesa perto de uma das janelas, uma figura que eu inicialmente tomara por uma manta de viagem jogada sobre uma cadeira. Recuei sentindo-me um intruso, porém ao fazer isso compreendi, mais rapidamente do que o tempo que me leva expressá-lo, primeiramente que esse era o quarto de Vawdrey e segundo que, surpreendentemente, seu próprio ocupante estava sentado à minha frente… antes que eu me desse conta, gritara: Alô, ei você, Vawdrey! Ele não se mexeu nem respondeu, mas minha pergunta recebeu uma resposta ao abrir-se uma porta no outro lado do corredor. Uma criada com uma vela saiu de um quarto em frente, e com essa conveniente iluminação reconheci claramente o homem que um momento antes deixara lá em baixo, com toda certeza, conversando com Blanche Adney… como a pessoa diante de mim não desse sinal de ter ouvido, acrescentei: Se está ocupado, não vou perturbá-lo. Saí do quarto, fechando a porta…Fiquei lá, com a mão na maçaneta da porta, tomado pela mais estranha impressão da minha vida. Vawdrey estava sentado à sua escrivaninha, e isso era um lugar muito natural para um escritor, mas por que estava escrevendo no escuro e por que não me respondera?”
Então nosso amigo Vawdrey se desdobra, tem um duplo, uma “identidade alternativa”, espécie de “sombra”, ego escritor que não precisa de luz para escrever, debruçado ininterruptamente na sua escrivaninha, e cuja existência é o ato da escrita, enquanto seu outro cumpre as obrigações mundanas, cumpre o papel de ego social[4]. Um ator. Com esse desmascaramento, termina a primeira parte de A vida privada e ainda resta o segredo escondido na aparência de Lord Mellifont.
A segunda parte começa com o narrador refletindo sobre a estranha experiência da véspera: “as grandes anomalias nunca são tão grandes no começo quanto depois que reflitamos sobre elas”. Ele deseja esclarecer o mais depressa possível com Blanche “quem tinha estado com ela no terraço”, “menos desejo de satisfazer minha curiosidade” do que “apagar a sombra da minha estupefação”. Como o dia está esplêndido, resolve dar uma caminhada solitária pelas montanhas, “e antes que o dia terminasse, esquecera que alguma vez me sentira perplexo”. Mas no jantar, em companhia do grupo, “meu pequeno problema voltou novamente”. E convida Blanche Adney para uma volta (como se vê, os problemas se agitam à roda dos rituais mundanos, o mundo da politesse, da civilidade). Ele diz a ela que deseja um esclarecimento, ela pergunta se é a respeito de Lord Mellifont, o que o surpreende: “…minhas novas conjecturas tinham-me feito perder o fio da meada. Que aconteceu com sua memória, seu bobo? Falávamos sobre isso ontem à noite. Ah, claro, exclamei, lembrando-me, temos um monte de coisas para conversar. Quem estava com você aqui ontem à noite?… Ela olhou-me espantada e então deu uma risada: Está com ciúme do querido Vawdrey? Então era ele? Claro que era ele.” Mais adiante: “Em outras palavras, você e Vawdrey, distintamente, permaneceram aqui desde cerca de dez e cinco até a hora que mencionou?; Não sei se estávamos muito distintos, mas estávamos muito alegres. Onde você quer chegar, perguntou Blanche Adney; Simplesmente a isto, minha querida senhora: no horário em que seu companheiro se ocupava da maneira como descreveu ele também se concentrava em um trabalho literário em seu próprio quarto.” O corolário da revelação parece quase à Oscar Wilde. Blanche exclama: “Ah, as excentricidades do gênio!” E ele: “É verdade! Parecem maiores ainda do que eu imaginava”. O narrador diz a Blanche que a “sombra” no quarto parecia-se muito mais com Vawdrey do que ele próprio (já que ele parece, socialmente, uma “sombra” do que realiza artisticamente): “Um é o gênio, o outro o burguês, e só conhecemos pessoalmente o burguês” (aqui, parece que ele quer desacreditar Vawdrey mais por uma questão de rivalidade sentimental do que tirar deduções de uma descoberta fantástica). Ele propõe à Blanche que ela vá ao quarto do escritor: “Mas suponha que eu encontre o errado; O errado? Qual deles você chamaria de o certo?; O errado para uma dama visitar…”

Eles avistam Lord Mellifont e ela diz que tem algo a contar a respeito dele, uma “idéia tão cômica quanto a do narrador”: “se Clare Vawdrey é duplicado, Sua Senhoria aí tem o distúrbio oposto: ele não é nem inteiro… tenho a impressão de que se há dois Vawdreys, não há nem mesmo um Lord Mellifont inteiro” (“ela fitou-me como se fora uma adorável conspiradora”). Eles começam a tentar lembrar se já encontraram alguma vez Lord Mellifont sozinho. A suposição é de que, sem alguém presente, ele desaparece (como se vê, estamos no mundo do espelho de Jacobina agora). Blanche diz: “Deve-se pegá-lo desprevenido. Precisa ir ao seu quarto, é o que tem de fazer” (uma missão heróica encomendada pela dama amada). O narrador: “Quando eu souber que ele não está lá?” Blanche: “Quando souber que ele está lá!” O narrador: “E o que vou ver então?” Blanche: “Não vai ver nada!” Resumo da ópera, segundo o próprio narrador: “Lord Mellifont era inteiramente público e não tinha uma vida privada correspondente, ao passo que Clare Vawdrey era exclusivamente privado, não tendo vida pública”, isto é, pelo menos o “verdadeiro” Clare Vawdrey, se o artista é sua obra. O narrador sente a satisfação de ter obtido o desmascaramento desejado e se sente num “entreato”, após alguns acontecimentos capitais; sobra tempo para refletir sobre a “existência representativa do Lord: “Seria indubitavelmente exagerado dizer que sempre suspeitara haver, no contexto da existência de Sua Senhoria, alguma admirável possibilidade desse tipo; mas o fato é que, pelo menos, por mais indulgentes que essas palavras possam soar, eu tivera consciência de uma certa reserva de boa vontade para com ele. Secretamente eu me apiedara dele pela excelência de sua representação, me perguntara que rosto inexpressivo tal máscara precisaria esconder, o que lhe restaria nas horas implacáveis em que um homem fica sozinho consigo mesmo… Havia algo em Lady Mellifont, que dava sentido a essas indagações, algo que mostrava como, mesmo para ela, ele ainda deveria ser o personagem público e ela, acossada por perguntas semelhantes. Ela nunca as esclarecera: esse era seu eterno problema. Nós, Blanche e eu, portanto, sabíamos mais do que ela, mas não iríamos contar-lhe por nada desse mundo, nem ela provavelmente nos agradeceria se o fizéssemos. Preferia a dignidade relativa da incerteza.”
Mesmo com todas essas descobertas sobrenaturais, o mundanismo continua girando sua roda, através das regras da civilidade (em que cada um cuida da sua própria vida e bisbilhota as alheias). Ao discutirem a duplicação de Vawdrey num passeio pelas montanhas, o narrador explica a Blanche a economia psíquica do escritor e da sua “sombra” em termos que agradariam o Freud que criou os conceitos de ego, id e superego: “…eles são sócios de uma firma e um deles nunca seria capaz de continuar o negócio sem o outro… um sobreviver ao outro seria terrível para ambos.” Surpreendentemente, Blanche afirma que gostaria que um deles conseguisse sobreviver. O narrador pergunta qual deles. Ela diz que se ele não consegue adivinhar, não vai contar. Ele: “conheço o coração das mulheres, vocês sempre preferem o outro”. Ela confessa então que está apaixonada.”Pobre mulher, ele não tem paixões”; “É exatamente por isso que o adoro”. Esse “desejo insano de encontrar o Autor” é uma perversa reformulação do arquétipo narrativo da prostituta e do santo (ainda mais se pensarmos nesses escritores monásticos como Flaubert, e James certamente foi um deles, e o mais enigmático, pois quase não se sabe nada das suas preferências sexuais ou afetivas, que “vivem para a sua arte”, no que o próprio Flaubert, decadentista avant la lettre chamava de misticismo estético). O narrador interrompe a confidência e diz que espera uma evidência da parte dela que comprove “sua descrição, intensivamente sugestiva e plausível, da vida privada de Lord Mellifont” e pede-lhe pormenores. Eles então encontram Lady Mellifont procurando o marido, ansiosamente. O narrador diz a ela para não se preocupar, “que ele vai aparecer”. E Blanche,maliciosamente, acrescenta: “Tenho certeza que sim, se souber que estamos aqui!” Os dois prometem “achá-lo” e comentam entre si que ela “deve saber” e que não quer “que o marido desconfie”. O narrador acha que os desaparecimentos de Sua Senhoria implicam que “ele preferiria não voltar” (olha aí o Bartleby…), mas que sempre há algum público que força a sua volta. E Blanche afinal conta o que aconteceu 48 horas antes: “Isso foi tudo o que houve… eu estava na mesma situação de Lady Mellifont: não conseguia encontrá-lo”; “Você o perdeu de vista?”; “Ele perdeu a mim… parece que esse é o processo. Ele supôs que eu me fora. E então…!, ela fez uma pausa com um olhar, isto é, com um sorriso expressivo”; “Você o encontrou, no entanto, já que voltou para o hotel com ele”; “Foi ele quem me encontrou. É também isso o que deve acontecer. Ele aparece a partir do momento em que sabe que alguma outra pessoa está ali” ( tudo é “suposição”, o elemento fantástico nos é dado indiretamente, como uma sugestão inquietante).
O narrador diz que não consegue “captar bem “ as leis que governam as reaparições. Blanche: “É uma diferença sutil, que captei naquele instante. Eu estava pensando em voltar para o hotel, estava cansada, e insistira para que ele não voltasse comigo. Havíamos colhido flores raras, as que trouxe comigo, e fora ele quem encontrara a maioria delas. Isso o divertia bastante e percebi que desejava colher mais; porém eu estava fatigada e despedi-me dele. Ele não insistiu, que mais poder-se-ia esperar de seu tato, e eu estava muito desatenta na ocasião para adivinhar que a partir do momento em que eu não estivesse ali nenhuma outra flor seria, ou melhor, poderia ser, colhida. Estava já a caminho do hotel quando, após uns três minutos, percebi que trouxera comigo seu canivete, e eu sabia que ele iria precisar dele. Voltei alguns passos para chamá-lo, mas antes de dizer algo em voz alta, olhei em volta procurando por ele… Era um lugar que não oferecia nenhum tipo de esconderijo, uma grande e uniforme encosta sem obstruções ou cavidades, arbustos ou árvores… Ele tinha desaparecido, tinha sumido completamente, como uma vela apagada, por alguma razão que só ele conhecia. Foi provavelmente um momento de cansaço, ele está envelhecendo, de modo que com a sensação da volta do isolamento, a reação fora proporcionalmente grande, a extinção proporcionalmente completa. De qualquer forma, o palco estava vazio…Ele havia desaparecido, tinha deixado de existir. Mas assim que minha voz soou, gritei seu nome, ele surgiu na minha frente, como o sol nascente… exatamente onde deveria nascer, exatamente onde deveria ter estado e onde eu deveria tê-lo visto se ele fosse igual a outras pessoas.”
E aí aparece Lord Mellifont à frente deles: “ele simplesmente estava lá, como sempre estivera em todos os lugares, representando a figura principal da cena… Blanche Adney comunicou-se comigo silenciosamente, mas pude ler a linguagem dos seus olhos: Ah, pudéssemos nós atuar tão bem quanto ele. Ele ocupa o palco de uma maneira que nos deixa perplexos”.

Depois desse episódio, Blanche pede ao narrador que procure Vawdrey que saiu para um passeio também, para mantê-lo à distância, pelo tempo que puder, para que ela possa encontrar o outro: “Se eu conseguir chegar até ao que realmente escreve, se eu conseguir me entender com ele, vou ter o meu papel.”
Antes de procurar Vawdrey, o narrador resolve ir ao quarto de Lord Mellifont solicitar-lhe uma assinatura na aquarela que recebeu dele de presente (os dois conspiradores, portanto, não conseguem furtar-se cada um às suas curiosidades e tentações): “Ao examinar essa obra de arte eu notara que havia alo que certamente lhe faltava: o que mis senão o nobilíssimo autógrafo? Era meu dever, sem perda de tempo, sanar essa deficiência e, com essa perspectiva, entrei novamente no hotel… deparei-me com uma dificuldade com a qual minha extravagância não contara. Se batesse na porta, estragaria tudo: entretanto estaria preparado para dispensar tal cerimônia?”
Enquanto ele hesita com a mão na maçaneta (nesse vaudeville metafísico), uma porta se abre,como na vez anterior, mas não é uma criada, e sim Lady Mellifont que o pega no flagra: “Por algum tempo, enquanto permanecíamos ali, trocamos duas ou três idéias, tanto mais singulares pelo fato de não serem expressas. Tínhamo-nos surpreendido mutuamente espionando e até esse ponto nos entendíamos… Pude ver em seus olhos conscientes… a confissão de sua própria curiosidade e do medo das conseqüências da minha. ´Não faça isso´… A partir do momento em que minha tentativa pudesse parecer-lhe um ato de violência, eu já estava pronto para renunciar a ela; no entanto, julguei detectar em seu rosto assustado uma revelação, ainda mais profunda: a possibilidade de decepção se eu desistisse. É como se estivesse dizendo: ´Permito, se assumir a responsabilidade… não seria adequado ele pensar que fui eu´” Nosso amigo opta pela civilidade hipócrita, mostrando a aquarela, “eu senti todas as suas delicadezas e dignidades, toda sua antiga timidez e devoção obstruindo sua grande oportunidade”. Ela pega a aquarela e a leva para seu quarto. Quando retorna, “pude perceber que vencera a tentação”. E ela pede que ele deixe a aquarela com ela, que providenciará para que o pedido seja atendido. Na falta do que dizer, o narrador observa que o clima sofrerá uma mudança. Ela diz que ela e o marido então partirão… partirão imediatamente: “Achei engraçada a veemência com que fez essa declaração: parecia representar uma almejada fuga para um abrigo seguro, uma retirada com seu segredo intacto.” Ele daí tem a certeza de que ela sabe, mas que não vai nunca pôr à prova, apesar das tentações.
E é aí que ele vai cumprir a incumbência de entreter o Vawdrey ego social. Presos por uma tempestade, o narrador se aborrece e se desgosta com o vazio emanado pela conversação “inteligente”, “de salão” do interlocutor: “Os relâmpagos projetaram uma forte claridade sobre a verdade, que eu conhecia há anos e à qual os dois últimos dias haviam acrescentado extraordinária confirmação: a irritante certeza de que com referência a relações pessoais esse admirável homem de gênio considerava pessoas de segunda categoria como perfeitamente aceitáveis. E na verdade eram, conforme a sociedade se forma, mas havia algo de detestável no contraste que não podia deixar de ser mortificante para um admirador. O mundo era vulgar e estúpido e o artista seria um tolo em expor-se publicamente quando poderia tagarelar e jantar fora enviando um substituto. Mesmo assim, meu coração ficou pequeno ao vê-lo agir com tal imprudência. Não sei exatamente o que queria; talvez gostasse que ele fizesse uma exceção para mim, com toda sua generosidade e carinho, na vasta horda dos idiotas… mas a aplicação da sua norma de conduta era implacável.” E sente inveja de Blanche por estar naquele momento na fruição dos verdadeiros lampejos do gênio.
Amainada a tempestade, voltam ao hotel e descobrem que foram motivo de preocupação (e desapontamento, por aparecerem tão somente “ensopados”). Blanche está entre os que os aguardavam. Ela não cumprimenta Vawdrey, voltando-lhe as costas e entrando no salão. O narrador vai atrás dela: “A primeira coisa que notei é que ela nunca me parecera tão bonita.Havia nela um brilho revelador e ela irrompeu num sussurro apressado, que era ao mesmo tempo o grito mais alto que jamais ouvira: Consegui o meu papel!… Foi o grande momento da minha vida… Nos nós entendemos.” Depois desse momento de exaltação da atriz, ele vai para o seu quarto e percebe que finalmente a violência da tempestade passara. Desce para o jantar e constata que a mudança do clima já dispersara o grupo, a começar pela súbita partida dos Mellifont. Outros veículos já estavam sendo pedidos, inclusive por Blanche Adney.
Clare Vawdrey pergunta ao narrador se a desagradara de algum modo, pois ela mudara sua atitude com ele: “Não me lembro como lhe respondi, mas fiz tudo para consolá-lo viajando com ele no dia seguinte… eles fizeram as pazes em Londres, pois ele terminou a peça e ela a produziu. Devo acrescentar, contudo, que ela ainda esta à espera de seu grande papel. Tenho um muito bom na cabeça, mas ela não vem me visitar para me incentivar a escrevê-lo. Lady Mellifont sempre me dirige algumas palavras amáveis quando nos encontramos, mas isso não me consola”.
Creio que tudo está aí:: o decadentismo e sua obsessão por atmosferas refinadas e ultracivilizadas, os narradores não confiáveis, o doppelgänger, a fragilidade da identidade.. E mais ainda: pois afinal esse escritor que se duplica mostra bem a dubiedade da posição do artista, do produtor cultural, na sociedade capitalista; e ainda temos esse membro da nobreza que, no fundo, não existe, que é quase um fantasma de si mesmo: alegoria de uma classe social ociosa e parasitária?

[1] Utilizo a tradução de Onédia Célia Pereira de Queiroz (Nova Alexandria).
[2] Primeira indicação de que há algo “fantástico” na narração.
[3] E o narrador diz a ela: “Vejo peças à minha volta. O ar está cheio delas esta noite”. O narrador é escritor também e essa é uma das formas de rivalidade com Vawdrey. E ele tem certa importância porque as pessoas vêm solicitar seu autógrafo.
[4] Autran Dourado : “não há artista que não sinta que à medida que se realiza como artista perde como homem. A arte e a técnica que ele adquire são à custa da vida; a vida que ele vive é apesar da arte… Diferentemente do que podem fazer crer os romances biográficos e o cinema, a vida do artista não é nenhuma aventura, pelo menos no sentido tradicional do termo… Condenado à solidão, observador lúcido e racional da vida, o artista é um ser que caminha mais rápida e claramente do que os outros mortais para a morte; com a Parca convive o artista penosa e amargamente… O que se ganha em arte, perde-se em vida, o que se escreve, deixa-se de viver… Quando tomei consciência mais funda e mais lúcida do instrumento que tinha nas mãos, da minha arte, senti que me perdia para a vida e que tinha de abrir mão de todas as alegrias.” (Uma poética de romance: matéria de carpintaria, 1976, Rocco)
Truman Capote: “Então, um dia comecei a escrever, sem saber que estava me escravizando a um senhor nobre, mas impiedoso. Quando Deus nos dá um dom, também dá um chicote, e esse chicote se destina exclusivamente à nossa autoflagelação…. Numa história de Henry James, o personagem, um escritor já em plena maturidade, exclama. Vivemos nas trevas e fazemos o possível; o resto é a loucura da arte.
Por enquanto cá estou eu, isolado nas trevas da minha loucura, completamente sozinho com meu baralho; e, naturalmente, com o chicote que Deus me deu.” (Música para camaleões, 1980, Companhia das Letras)
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