MONTE DE LEITURAS: blog do Alfredo Monte

28/08/2018

Destaque do Blog: “Alarido”, de Bruno Molinero

(Uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos em 28 de agosto de 2018)

 “meu deus é um inseto/de corpo besourento/perninhas articuladas/olhos tão miúdos que somem em exoesqueleto crocante//casquinha que daria clact/de barata amassada/à menor pressão dos meus pés/–o que eu jamais ousaria/afinal”. Este trecho de “andré, 4, deus” representa uma das vozes que tentam sobressair-se da balbúrdia geral no ótimo “ALARIDO, de Bruno Molinero, que já começa inspirado com um caminhoneiro turbinado com o famigerado “rebite”: “o segredo/é o cochilo depois do rebite//você toma/de preferência com a janta/e vai dormir logo em seguida/depois de duas horas o corpo acelera/o ponteiro bate lá na direita/e aí,/meu amigo,/é só estrada”. 

Mas o tour de force é “mateus, 27, vagão A392”, onde o eu lírico-narrativo deseja uma moça lendo Shakespeare num vagão de metrô e multiplica seu nome em inúmeras situações que sempre se esboroam diante do impossível contato. A versão século 21 do paradigmático poema “Uma Passante” de Baudelaire, porém com fôlego prolixo e enumerativo de Walt Whitman.  

Há textos curtos e brilhantes, como “marcela, 43, casada”: “matei, sim senhor/porque quis/não, até que era bonzinho/na gaveta da cozinha. Uma daquelas grandes, sabe?/isso, ele estava no sofá/de costas/não, não me viu/dei dois passos e a lâmina escorregou para a cabeça dele/não tirei porque mancharia ainda mais o tapete/ora, se sabe, por que pergunta?/desculpe. Sim, o corpo ficou lá/depois saí/mansão. Era muito rico/não. Deixou tudo para as meninas/eu sabia, sim senhor/porque quis, já disse/ cansei de subir em pau de sebo. Deslizar fácil não tem graça/sim. Mas vou ficar muito tempo?/é que deixei a panela no fogo”.  

Em tempo: gosto muito das edições da Patuá, contudo me incomodam as apresentações e orelhas laudatórias, como se os textos precisassem de tutela e muletas. Felizmente isso não acontece com “ALARIDO, já entramos de supetão num dos melhores livros de poesias dos últimos anos. 

21/08/2018

TIRANDO LEITE DE PEDRA

(Uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos em 21 de agosto de 2018)

“Nina fechou os olhos, os cílios compridos, colocou a mão no rosto, as unhas esmaltadas, os dedos longos que me deixavam eriçado quando me acariciavam e se dedicavam a desvendar os meus desejos, aqueles escondidos lá na última camada da epiderme e que ela sabia trazer à superfície com competência, ah, aquela mulher era o diabo. O barulho das ondas lá fora, o vento que balançava as casuarinas, o pio de um pássaro, os cliques da Leica e a nossa respiração. O universo perfeito, completamente alinhado, dentro daquele quarto da pousada de Búzios. Eu precisava eternizar esse instante além das fotos, se fosse possível recolheria o som desse quarto numa garrafa, igual àquelas que os náufragos atiram ao mar, para ouvir quando estivesse em agonia”.

         “Granulações” trata do tema mais banal, a separação de um casal, Pedro e Nina. Pedro tem um sentimento trágico da vida, é instável, contrai dívidas e é hostil com a família de Nina, além de beber demais; ela, por sua vez, é disciplinada, gosta de prevenir-se para o futuro, extremamente sociável, tanto que é sempre promovida.

         Anna Monteiro escolheu o esquema mais fácil e batido, capítulos alternando as vozes do casal. Qual o interesse do romance, então? Por que ele é incomum? Porque a autora segue o exemplo da grande Anne Tyler, especialista em tirar leite de pedra.

         O próprio título já traz o elogio do texto. O trecho citado acima mostra que a intimidade e não as personalidades é a última palavra sobre um relacionamento. Procure no Google, leitor, o significado de “granulação” (“Formação de pequenas massas, essencialmente de capilares neoformados, na superfície das feridas em cicatrização”). As diferenças entre os dois eram compensadas por rituais íntimos que cicatrizavam o conflito. Até perderem a força, como na bela música cantada por Nana Caymmi, “e a verdade mais doída é que o rasgo da ferida nunca mais doeu”. Mas é um processo longo, do qual as granulações das fotos em preto e branco de Pedro são a melhor metáfora.

14/08/2018

UM ROMANCE PARA TODAS AS PREMIAÇÕES: “DESAMPARO”

 

(Uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos em 14 de agosto de 2018)

“DESAMPARO relata o povoamento do sertão de São Paulo. Admiravelmente, Fred di Giacomo foge do clichê de focar o tema numa única família e dá vida a diversos clãs que, a princípio, espalham-se de forma errática, com alguns conflitos com indígenas. Acompanhamos gerações e a história avança nos bastidores das estórias (há um quê de “Cem anos de Solidão”, mas Fred di Giacomo não faz feio ao lado de García Márquez). O romance tem uma narradora, Ritinha, descendente dos pioneiros: “Minha mãe chorou muito quando decidiu deixar aquelas terras. Seis filhos a acompanharam, mas eu não quis ir. Então, ela me contou que eu não era filha de Alexandre Ferreira, como todos pensavam, mas, sim, de Modesto. Naquele instante, descobri que era metade angola e chorei. Não de vergonha, nem de raiva, chorei porque percebi que muitas vezes eu também menosprezara o homem que não sabia ser meu pai. Meu cabelo era como o dele. Assim como eram meu nariz, minha boca e meus olhos. Tive raiva dos Capa Negra que diziam que Modesto era violador. Tive raiva dos Pinto Caldeira, que trouxeram aquela desgraça toda pro nosso povoado. Tive mais raiva por saber que no final das contas a história que sobreviveria seria a história contada por eles. Eu percebi isso ao ver como as paisagens daquele sertão mudavam”.

Eis que surge Manuel dos Santos comum projeto “civilizatório” (bem identificado com a lúgubre divisa da nossa república: ordem e progresso): exterminar os índios e espoliar os pioneiros de suas terras. Ele lembra o Snopes de Faulkner (na trilogia “O Povoado”, a cidade, a mansão) sonso e predatório, que construirá a primeira cidade da região, a qual por um tempo, e para o agrado de Ritinha, terá o nome de Nossa Senhora do Desamparo.

O que me agrada em “DESAMPARO é o fato de Fred di Giacomo não arremedar a linguagem de época, mas tudo soar verossímil e convincente, além de ser grandioso “Desamparo” é um dos melhores romances dos últimos tempos e deveria figurar em todas as premiações.

07/08/2018

UM LIVRO DE CONTOS SENSACIONAL

(Uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos em 07 de agosto de 2018)
Robert Altman, cineasta genial, em algumas obras-primas (“Nashville”, “Cerimônia de Casamento”, “Short Cuts”) contava dezenas de histórias ao mesmo tempo. O espantoso em “BRICABRAQUE” (“Coisas pequenas, badulaques, conjunto objetos de estimação, coleção de peças variadas, peças que aparentemente não servem para nada, miudezas”) é que André Mellagi faz o mesmo em uma página e meia ou duas. Ele semeia diversos elementos dispares e somente no final, com um parágrafo ou uma frase, ressignifica tudo que lemos de maneira estupenda, de cair o queixo. Não é por acaso que seus contos tenham títulos como “Entrelinhas”, “Bastidores”, “Interstícios”.

         Um dos meus favoritos, “Acontecer”, pode dar uma ideia da qualidade dos textos de André Mellagi: “O senhor se despediu da velha que continuava a separar os feijões. Em seguida vem a garota depressa batendo chinelo pela calçada. – Bom dia, florzinha, hoje mal posso respirar. Ele me ligou e disse que vai chegar. Somente daqui a quatro dias, eu sei, mas atravesso as semanas, os meses e os anos com ele. As canções que me acompanham e ecoam na sua fala melodiam a promessa de um beijo que se renova nas seguidas bodas que o tempo irá enobrecer. Já me deleito com os frutos de uma semente que ainda está por germinar e uma alegria dissipa qualquer ceio de que voltarei ao exílio, à solidão no deserto da multidão (…)” e no final: “(…) Mas para mim é todo um encanto escondido nesse apanhar de separar feijões, que peço para você traduzir. Faço como você faz e imito seus feijões em pedras que conto na peneira de giz riscado no chão. Entretenho em ouvir quando faz de sua peneira um xequerê plano e põe seus feijões a cantar. Observo a destreza com que esses grãos são separados por entre seus dedos nodosos e esse é o espetáculo que me encanta. Vivo sob esse eterno tirocínio que me faz abrir a tudo o que você cria ou destrói, como você varre, fabrica, corta e costura o tempo. Procuro entender o que te faz ora rir e ora chorar quando olha a este amontoado de papéis rabiscados; o espanto quando me revela que deixa de ser velha ao me mostrar uma fotografia amarelecida de uma menina. Tudo é mágica. Não pare de contar seus feijões. Transponho nos meus brinquedos sua cozinha, suas máquinas, suas engenharias. Reconstituo nas faces enrijecidas de bonecas tanto eu quanto você e todos que nos cercam, que uma vez se querem e outra vez se repelem como costumamos fazer, e às vezes fingimos nos esquecer. Enceno suas festas e suas guerras. Derramo seus feijões com imperícia, queimarei um dia o meu guisado. Mas não de contar.
Logo em seguida outras crianças da sua chama aquela que estava com a velha, que parte sem se despedir deixando pedrinhas no chão. A velha descarta no pé da moringa os feijões que não prestam e volta para dentro de casa”.

         A contadora de feijões adquire ares mitológicos. Aliás, alguns relatos aludem à mitologia. E temos a obra-prima “O Itinerário de Hermes”, que concentra todas as qualidades de “BRICABRAQUE”. Nada como o Deus mensageiro para costurar várias histórias.

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