MONTE DE LEITURAS: blog do Alfredo Monte

13/01/2016

TRADUÇÕES INÉDITAS QUE SE DESTACARAM EM 2015

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(uma versão do texto abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 12 de janeiro de 2016)

Como sempre digo, não dá para ler tudo, nem gostar de tudo. Por isso, faço uma lista de destaques entre traduções de Iivros ainda inéditos (apesar das várias versões diretas de obras anteriormente traduzidas do francês ou do inglês, não as levei em conta) por aqui, dentro do meu recorte pessoal, limitado, de leituras:

Livro do Ano: submissão (Alfaguara- trad. Rosa Freire d’ Aguiar), de Michel Houellebecq: os impasses do Ocidente diante do islamismo assombram o romance moderno desde sua fundação, com Dom Quixote. Não é surpreendente, então, que embasem a mais perturbadora obra do gênero (inclusive devido aos acontecimentos na França) desta década.

Destacaram-se também (por ordem alfabética dos autores), e de antemão pedindo desculpas pelos comentários genéricos:

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O ROSTO DE UM OUTRO (CosacNaify- trad. Leiko Gotoda), de Kobo Abe – o rosto associado à noção de identidade dando ensejo a mais uma fábula-pesadelo do originalíssimo autor japonês (do clássico Mulher das Dunas) —indicado apenas para leitores fortes, rsrsrs;

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TRÊS VEZES AO AMANHECER (Alfaguara- trad. Joana Angélica d’Avila Melo), de Alessandro Baricco- desdobramento extraordinário do livro anterior (Mr.Gwyn) do grande escritor italiano, concretizando o conceito de “quadros escritos”;

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MAL-ENTENDIDO EM MOSCOU (Record- trad. Stella Maria da Silva Bertaux), de Simone de Beauvoir- o furor reacionário desencadeado pela inclusão da pensadora francesa no ENEM aumentou o interesse por esse texto “deixado na gaveta” e no qual se imiscuem as tensões e dissensões com Jean-Paul Sartre, companheiro de toda a vida;

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TEXTOS PARA NADA (CosacNaify- trad. Eloisa Araújo Ribeiro), de Samuel Beckett- na 13º. e última dessas experiências de derrisão com a prosa narrativa, lemos: «Enfraquece ainda, a velha e fraca voz, que não soube me fazer, sumindo para dizer que vai embora… »;

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A DIFICULDADE DE SER (Autêntica- trad. Wellington Júnio Costa), de Jean Cocteau- textos de cunho biográfico de uma força descomunal, produzidos durante uma grave enfermidade, por um dos maiores personagens da cultura do século 20;

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O VÉU ERGUIDO (Grua- trad. Lilian Jenkino), de George Eliot – a autora genial de romances imensos (Middlemarch), exercitando-se, em 1859, na arte da novela, roçando o sobrenatural numa alegoria sobre o medo do futuro e o autoengano;

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REMISSÃO DE PENA/ FLORES DA RUÍNA/PRIMAVERA DE CÃO (Record- trad. Maria de Fátima Oliva do Couto), de Patrick Modiano- a leitura conjunta desses romances do Nobel 2014 lança luz sobre o seu projeto obsessivo e reiterativo: narradores que tentam evocar algo de permanente, que remanesça (“flores da ruína”), em meio a uma memória fuliginosa e dissolvente;

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ROSA CANDIDA (Alfaguara- trad. André Telles), de Audur Ava Ólafsdóttir – romance sobre a imprevisibilidade que abre ao leitor brasileiro uma fresta para a ficção praticada na Islândia;

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QUANDO O IMPERADOR ERA DIVINO (Grua -trad. Lilian Jenkino), de Julie Otsuka-  já em seu primeiro romance, a autora de O Buda no sótão expunha cirurgicamente o apartheid vivido por famílias japonesas nos EUA;

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OS LARGADOS (Alfaguara- trad. Joana Angélica d’Avila Melo), de Michele Serra- brilhante reflexão ficcional sobre a arte de ser pai na pós-modernidade, diante dos nossos adolescentes hiperconscientes de si mesmos e seus aplicativos;

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SONHOS EM TEMPO DE GUERRA (Biblioteca Azul- trad. Fabio Bonillo), de Ngũgĩ Wa Thiong’o- belíssimo e ao mesmo tempo desolador volume de memórias do escritor queniano, sempre cotado como um dos favoritos para o Nobel, e cujo romance Um grão de trigo foi também traduzido este ano (pela Alfaguara, por Roberto Grey);

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ABSOLUTAMENTE NADA E OUTRAS HISTÓRIAS (34- trad. Sergio Tellaroli), de Robert Walser- excepcional seleção  (lançada no final de 2014)de inclassificáveis 41 textos curtos do admirável prosador suíço: «Ir à cidade, eu fui, e queria, sim, comprar algo de belo e de bom para mim e para você; boa vontade não me faltou, estudei, estudei, mas a escolha era difícil e a cabeça estava em outro lugar, por isso não consegui, por isso não comprei absolutamente nada.  Hoje, vamos ter de nos contentar com absolutamente nada, não é mesmo? Absolutamente nada é o que há de mais rápido para preparar e, de todo modo, não causa indigestão… »;

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O SOL E O PEIXE (Autêntica- trad. Tomaz Tadeu), de Virginia Woolf- a autora de algumas das maiores obras-primas da literatura, também era uma arguta ensaísta e cronista, como atestam as nove preciosas amostras aqui reunidas;

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AS RÃS (Companhia das Letras- trad. Amilton Reis), de Mo Yan –um pouco prolixo, mas importante romance do Nobel 2012 sobre a interferência da esfera pública numa ilusória “vida pessoal” (no caso, a política governamental chinesa do f ilho único).

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TRECHO DE UM GRÃO DE TRIGO

«Quanto mais fraca ficava, mais ela o detestava. Fosse o que fosse que ele fizesse ou arranjasse, lá vinha ela diminuir o seu esforço. Assim, Mugo vivia assombrado pela imagem da própria inadequação. Ela possuía um modo de acabar com ele, numa pergunta, talvez, sobre suas roupas, sua cara ou suas mãos, que fazia todo seu orgulho despencar. Ele fingia ignorar as opiniões dela, mas como podia fechar os olhos a suas expressões e sorrisos enviesados?

Seu único desejo era matar a tia.

Uma noite esse pensamento demente o possuiu. Ele fervia por dentro. Naquela noite Waitherero estava sóbria. Ele não usaria um machado ou panga. Iria pegá-la pelo pescoço e estrangulá-la com as próprias mãos. Dê-me forças; dê-me forças, meu Deus. Olhava-a se debater, como uma mosca entre as patas de uma aranha; seus gemidos e gritos abafados pedindo piedade chegavam a seus ouvidos. Ele apertava com mais força, obrigava-a a sentir a força de suas mãos de homem. O sangue acorria para a ponta de seus dedos. Ofegante, estava profundamente fascinado pela audácia e a coragem do próprio gesto.

“Por que você está me olhando assim?”, Waitherero perguntou, rindo guturalmente. “Eu sempre disse que você era esquisito, do tipo capaz de matar a própria mãe, hein?”

Ele se encolheu. A forma como ela o via por dentro era dolorosa.

 Waitherero morreu de repente de velhice e de tanto beber. Pela primeira vez desde o casamento, suas filhas vieram até a cabana, fingiram não ver Mugo, e a enterraram sem fazer perguntas nem derramar lágrimas. Voltaram para casa. E então, estranhamente, Mugo sentiu falta da tia. Quem mais poderia agora chamar de parente? Queria alguém, qualquer um, que representasse uma família para ele, não importava se fosse bom ou mau. Tanto fazia, desde que ele não ficasse abandonado, excluído».

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17/04/2014

A DANÇA DOS CONTRÁRIOS: a trilogia “Os nossos antepassados”, de Italo Calvino

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(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 25 de abril de 1993)

– notas e anexos são todos de 2014

Numa batalha, o Visconde de Terralba é dividido ao meio por uma bala de canhão. Uma metade volta à terra natal e comete as maiores atrocidades. Anos depois aparece a outra metade e aí…

Aos 12 anos, para contrariar o pai, o Barão de Rondó sobe nas árvores e resolve não mais descer. Passam-se anos, ele cumpre sua decisão à risca, mas não deixa de se envolver nos acontecimentos de sua época, até que surge um balão e aí…

Um cavaleiro se apresenta ao exército de Carlos Magno, porém não há nada sob a armadura, somente uma poderosa vontade de lutar, vontade inconveniente que se intromete na vida de todos e gera muita confusão, principalmente quando insiste na virgindade de uma donzela cujo filho, entretanto, entra em cena e aí…

Essas são as insólitas situações da trilogia Os nossos antepassados, de Italo Calvino (1923-1985), que, com o lançamento (pela Companhia das Letras) este mês do último volume, O cavaleiro inexistente, reaparece completa nas nossas livrarias, vinte anos depois de uma outra tradução circular no Brasil[1]. Escrita nos anos 1950, é uma obra-prima da ficção, pois trata praticamente de todos os assuntos que sempre interessaram ao ser humano.

Calvino orquestra uma dança das ideias contrárias que formaram o homem como ele é ainda hoje (pelo menos, o ocidental). Embora a trilogia pare no limiar da Revolução Industrial e aborde basicamente o mundo feudal e rural, o próprio título indica que nós somos herdeiros de tudo o que está ali contado. E muito bem contado. O grande escritor italiano tem um estilo luminoso e maleável, cheio de vivacidade, humor, misturando fábula e realismo-chão, discussões filosóficas profundas e o desbocamento popular que faz o sabor da literatura e do cinema italiano.

O primeiro volume, O visconde partido ao meio, narrado pelo sobrinho do herói-vilão, instaura o compasso dessa dança e conta como é mais difícil viver (dentro das nossas rotinas e padrões) sob a inspiração do “Bem” absoluto do que sob o jugo do “Mal” absoluto, já que a parte quixotesca do Visconde atrapalha os lucros o que é mais imperdoável para o senso comum do que a tirania.

   O barão nas árvores (título chocho, quando “O barão empoleirado” seria mais engraçado e fiel ao espírito do autor[2]) é narrado pelo irmão do protagonista, homem comum, quase medíocre, e o contraste dos destinos de ambos é que dá um tom comovente, o mais “humano” entre os três, e o único que apresenta uma situação estranha, mas não fantástica. Nele aparece Voltaire como personagem; ao saber que o barão é uma pessoa civilizada que prefere viver nas árvores, ele afirma: “Outrora somente a Natureza criava os fenômenos vivos, agora é a Razão”.

O cavaleiro inexistente é, possivelmente, o mais genial e arrojado estilisticamente. Narrado por uma freira em clausura que depois se revela uma das personagens principais, tem um final surpreendente, que ao mesmo tempo se contrapõe à desilusão do primeiro volume e à resignação do segundo, e as antecipa, uma vez que transcorre num tempo anterior ao deles. Só não se diz aqui porque é feio contar o fim dos livros, e esse vale a pena descobrir sozinho. E aí…

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TRECHO SELECIONADO

– de O visconde partido ao meio:

“Mas de todas as partes começavam a chegar notícias de uma dupla natureza de Medardo. Crianças perdidas no bosque eram trazidas, cheias de medo, pela metade do homem, com sua muleta, que as levava pela mão de volta às suas casas e as regalava com flores e guloseimas; pobres viúvas eram por ele ajudadas a carregar lenha; cães mordidos pelas vespas eram curados, donativos misteriosos eram encontrados pelos pobres no peitoril de suas janelas e nas soleiras de suas casas, árvores frutíferas atingidas pelo vento eram reparadas e fincadas novamente no chão antes mesmo que seus proprietários tivessem posto o nariz fora da porta (…) de repente começaram a aparecer no céu andorinhas com as patilhas atadas por fibras de árvores, ou com as asas grudadas e coladas; e em todo um bando de andorinhas assim ligadas entre si que voavam juntas e com prudência, como se fossem convalescentes de um hospital de pássaros, e, inverossimilmente, se dizia que o próprio Medardo era o médico que assim as tratava…” (na versão de Joel Silveira, 1970).

“Contudo, começavam a chegar notícias de vários lugares sobre a dupla natureza de Medardo. Crianças perdidas no bosque eram alcançadas pelo meio-homem de muleta e, apavoradas, eram levadas por sua mão até em casa e dele recebiam figos e filhós; pobres viúvas eram ajudadas por ele ao transportarem molhos de lenha; cães mordidos por víboras eram tratados, presentes misteriosos eram encontrados pelos pobres nos peitoris das janelas e nas soleiras das portas, árvores frutíferas arrancadas pelo vento eram endireitadas e escoradas antes que os proprietários saíssem de suas casas (…) Contudo, agora começavam a aparecer no céu andorinhas com as patinhas enfaixadas e presas a talas, ou com as asas coladas ou emplastadas; havia todo um bando de andorinhas cuidadas desse modo que voavam juntas e com prudência, como se fossem convalescentes de um hospital de passarinhos, e, coisa inacreditável, comentava-se que o próprio Medardo era o médico delas…” (na versão de Wilma Freitas Ronald de Carvalho, 1988)

“Mas começaram a chegar notícias de várias fontes sobre uma natureza dupla de Medardo. Crianças perdidas no bosque, cheias de medo, eram abordadas pelo homem de muleta, que as conduzia para casa pela mão e lhes oferecia figos e bolinhos fritos; viúvas pobres eram ajudadas por ele a carregar lenha; cães picados por cobras eram tratados, presentes misteriosos eram encontrados pelos pobres nos parapeitos e nos portais, árvores frutíferas arrancadas pelo vento eram replantadas e fixadas em seus canteiros antes que os proprietários pusessem o nariz fora da porta (…) Contudo, agora podiam ser vistas no céu andorinhas com as patas enfaixadas e amarradas com gravetos de apoio ou com as asas coladas e com curativos; havia um bando de andorinhas assim ataviadas que voavam com prudência todas juntas, feito convalescentes de um hospital de passarinhos, e inverossimilmente dizia-se que o próprio Medardo era o médico…” (na versão de Nilson Moulin, 1996)

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– de O barão rompante/O barão nas árvores:

“Naqueles dias Cosimo costumava desafiar frequentemente as pessoas que estavam lá embaixo, no chão. Desafio de pontaria, de destreza, talvez para mostrar suas possibilidades e tudo o que podia fazer lá em cima. Desafiou os pequenos ladrões para atirar pedras. Estavam naqueles lugares próximos à Porta Capperi, no meio dos barracos dos pobres e dos vagabundos. Cosimo praticava com as pedras, quando viu aproximar-se um homem a cavalo, alto, um tanto curvo, envolto num manto negro. Reconheceu logo nosso pai. A garotada fugiu e as mulheres olhavam da porta dos seus casebres (…)

__ Que belo espetáculo estais dando! —começou o pai, em tom amargo— Muito digno de um gentil-homem! (Havia-lhe dado o tratamento de vós, como costumava fazer nas repreensões mais graves, mas agora tal tratamento tinha um sentido de distância, de afastamento.)

__ Um gentil-homem, senhor meu pai, continua sendo um gentil-homem quer esteja no chão, quer esteja em cima das árvores—respondeu Cosimo; e acrescentou imediatamente: —Se ele, é claro, comporta-se bem.

__ Uma boa sentença—admitiu, gravemente, o Barão—mas o fato é que, não faz muito, roubaste cerejas de um dos nossos inquilinos…” (na versão de Joel Silveira, 1971)

“Naqueles dias, Cosme muitas vezes desafiava quem estava no chão, desafios de pontaria, de destreza, inclusive para testar suas possibilidades, até onde conseguia chegar estando lá em cima. Desafiou os moleques para o jogo de malha. Encontravam-se naqueles lugares próximos da Porta das Alcaparras, entre os barracões dos pobres e dos vagabundos. De uma azinheira seca e despojada, Cosme estava jogando malha, quando viu aproximar-se um homem a cavalo, um tanto curvado, envolto num manto negro. Reconheceu seu pai. O bando se dispersou; das entradas das barracas as mulheres ficaram observando (…)

__ Que belo espetáculo ofereceis!—começou o pai, amargamente—É de fato digno de um gentil-homem! (Tratara-o por vós, como fazia nas críticas mais graves, mas então aquele uso teve um sentido de distância, de afastamento)

__ Um gentil-homem, senhor pai, merece esta condição tanto na terra como em cima das árvores—respondeu Cosme. E logo acrescentou: —Se se comporta corretamente.

__Uma sentença justa—admitiu gravemente o barão—, contudo, agora mesmo, estáveis a roubar ameixas a um arrendatário…” (na versão de Nilson Moulin, 1993)

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-de O cavaleiro inexistente:

“Para contar como desejaria, seria preciso esta página branca se iriçasse de rochedos vermelhos, se reduzisse a uma areia fina e espessa, cheia de pedras, e nela crescesse uma vegetação de zimbros. No meio, onde serpenteia um caminho mal traçado, farei passar Agilulfo, ereto em sua sela, a lança em riste. Mas não é tudo este campo, pois esta página deveria ser, ao mesmo tempo, a cúpula do céu estendida sobre papel, tão baixa que no espaço entre folha e céu haja apenas espaço para um voo de corvos grasnantes. Com a pena, deverei conseguir riscar a folha, mas cm leveza, porque no prado deve figurar o percurso do rastejar de uma cobra invisível, e o barco atravessado por uma lebre que agora se faz visível, para, fareja em redor com os seus pequenos bigodes, e logo desaparece.

   Cada coisa se move na página lisa sem que se veja nada, sem que nada mude em sua superfície, da mesma maneira como, no fundo, tudo se move e nada muda na rugosa crosta do mundo, porque há só camada dessa mesmíssima matéria, exatamente como a folha na qual escrevo, uma camada que se contrai e se aglomera em formas e consistências diversas em várias tonalidades de cores, mas que, no entanto, pode representar-se espalmada sobre uma superfície plana, mesmo nos seus aglomerados pilosos ou emplumados ou nodosos como uma carapuça de tartaruga, e uma tal pilosidade ou plumagem ou nodosidade às vezes parecem se mover, ou melhor, são cambiantes de relações entre as várias espécies dispostas em volta da camada de matéria uniforme, sem que substancialmente nada deixe o seu lugar. Podemos dizer que o único que certamente cumpre uma finalidade em meio a tudo isso é Agilulfo, e não falo do seu cavalo, não falo da sua armadura, mas de qualquer coisa de solitário, de preocupado consigo mesmo, de impaciente, que está viajando a cavalo dentro da armadura…” (na versão de Joel Silveira, 1970)

“Para escrever como gostaria, seria preciso que esta página branca se tornasse dura de rochas avermelhadas, se desfizesse numa areiazinha espessa e pedregosa, e aí crescesse uma densa vegetação de zimbros. No meio, onde serpenteia um caminho irregular, faria passar Agilulfo, ereto na sela, de lança em riste. Mas além de paisagem rupestre essa página deveria ser ao mesmo tempo cúpula de céu achatada aqui em cima, tão baixa que no meio só haveria lugar para um voo grasnante de corvos. Com a pena eu teria de chegar a incidir sobre a folha, mas com leveza, pois o prado deveria surgir sendo percorrido pelo deslizar de uma serpente invisível na grama, e o bosque atravessado por uma lebre que agora desemboca na clareira, se detém, fareja ao redor com os bigodes curtos, já desapareceu.

     Cada coisa se move na página lisa sem que se veja nada, sem que nada mude em sua superfície, como no fundo tudo se move e nada muda na crosta rugosa do mundo, pois só existe uma extensão da mesma matéria, exatamente como a página em que escrevo, uma extensão que se contrai e se decanta em formas e consistências diversas e em vários matizes mas que ainda pode se representar espalmada numa superfície plana, inclusive em seus aglomerados pilosos, cheios de penugens ou nodosos como um casco de tartaruga, e tal pilosidade, penudez ou nodosidade às vezes parece que se mexe, ou seja, há mudanças das relações entre as várias qualidades distribuídas na dimensão da matéria uniforme ao redor, sem que nada se desloque substancialmente. Podemos dizer que o único que de fato efetua uma deslocação aqui é Agilulfo, não digo o seu cavalo, não digo a sua armadura, mas aquele algo sozinho, preocupado consigo mesmo, impaciente, que está viajando a cavalo dentro da armadura…” (na versão de Nilson Moulin, 1993).

 

 

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[1] A verdade é que há uma certa imprecisão informativa na resenha acima. A Companhia das Letras lançou em 1993 O barão nas árvores & O cavaleiro inexistente. Só em 1996, apareceu pela editora O visconde partido ao meio (como os outros, traduzido por Nilson Moulin). Eles foram reunidos numa volume único, Os nossos antepassados, em 1997.

Mas à época em que eu escrevia, ainda podia se encontrar nas livrarias uma versão de Wilma Freitas Ronald de Carvalho para O visconde partido ao meio, publicada pela Nova Fronteira (1988). É nesse sentido que me refiro à trilogia reaparecer completa.

Tive a sorte pessoal de, após ler um texto alentado sobre Italo Calvino no Suplemento Cultural (publicado aos domingos) do Estadão, descobrir numa papelaria Se um viajante em uma noite de inverno, e logo a seguir, num sebo, os três volumes da trilogia na edição da Expressão e Cultura, todos em versão de Joel Silveira: O visconde partido ao meio e O cavaleiro inexistente (1970), O barão rompante (1971). As bases de uma paixão pelo autor italiano, e ainda talvez por isso, meus títulos favoritos.

VER AQUI NO BLOG:

https://armonte.wordpress.com/2010/11/28/o-leitor-aventureiro-de-italo-calvino/

e também:

https://armonte.wordpress.com/2010/11/28/sintonia-e-focalizacao-em-marcovaldo-e-palomar/

Quanto ao original italiano, Il visconte dimezzato apareceu em 1952; Il barone rampante, em 1957; Il cavalieri inesistente, em 1959. Como trilogia, I nostri antenati, em 1960.

[2] O fato é que não dá para comparar nenhuma solução brasileira à expressividade dos títulos originais de Il visconte dimezzato nem Il barone rampante (a solução para este, em Portugal, é uma pândega para ouvidos brasileiros: “O barão trepador”), que me perdoe O barão rompante, melhor no entanto que O barão nas árvores.

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Italo Calvino

29/07/2013

FIDALGO E CAVALEIRO, E SEMPRE ENGENHOSO

Vladimir Nabokov, o autor de Lolita, considerava DOM QUIXOTE  “antiquado, sórdido e grosseiro”. Trata-se de uma exceção porque o livro de Cervantes (cujo primeiro volume chega, em 2005, aos 400 anos), é particularmente amado por todos os que gostam de ler e que vêem em seu protagonista um símbolo da curiosa atividade que é a leitura.

O genial escritor do século XVIII Laurence Sterne faz várias referências brincalhonas e carinhosas a Cervantes em seu extraordinário (e quixotesco) Tristram Shandy: “Gentil Espírito do mais brando  humor, que outrora pousaste na pena desembaraçada do meu amado Cervantes”, lemos, por exemplo, no capítulo 24 do volume IX.

Pois bem, nos 400 anos do Cavaleiro da Triste Figura, o leitor brasileiro tem nas livrarias muitas versões resumidas, adaptações e, felizmente, algumas traduções completas. A mais prestigiada atualmente (mas que só contém o primeiro livro, O engenhoso fidalgo D. Quixote de La Mancha, pois há 2 Quixotes) é a de Sérgio Molina, numa edição bilíngüe da 34. A Nova Aguilar relançou ano passado a tradução clássica dos Viscondes de Castilho e Azevedo, e há uma edição sempre encontrável, de Eugênio Amado, pela Itatiaia. Só que a tradução de que eu mais gosto (e nisso não preciso ser necessariamente seguido por ninguém, dada a qualidade das outras) é a de Almir de Andrade e Milton Amado, que a Ediouro também reeditou há pouco. O que enche a paciência é encontrar, EM TODAS (e em outras edições), devido a uma incrível falta de imaginação e iniciativa, as indefectíveis gravuras de Gustavo Doré. Parece que ninguém pensa em ilustrar a obra-prima de Cervantes de outra forma. E na edição da Nova Aguilar, embora caríssima, as gravuras são reproduzidas  de forma tão péssima que o leitor precisa fazer um jogo de adivinhação o traço marcante do mais famoso ilustrador de todos os tempos, parece um teste de rorschach.

Cervantes (1547-1616) passou muitos anos como prisioneiro em Argel, até que conseguissem pagar seu resgate (era época de corsários e guerra com os árabes,  e tudo isso permeia seu grande romance). Publicou O engenhoso fidalgo em 1605, quando se encontrava empobrecido e esquecido, e o sucesso foi tamanho e o livro se difundiu de tal forma que alguém (certamente um inimigo literário, que utilizou o nome de Alonso Fernando de Avellaneda), em 1614,  publicou a continuação apócrifa das aventuras da dupla Quixote-Sancho Pança (na verdade, esse falso Quixote não é destituído de graça), ainda que no final do original aparecesse até o epitáfio do herói (junto com os epitáfios de Sancho, de Dulcinéia e até do cavalo Rocinante).

No ano seguinte, apareceu então o segundo livro, O engenhoso cavaleiro D. Quixote de La Mancha (já que num dos episódios mais divertidos e irreverentes do primeiro o dono de uma estalagem sagra como cavaleiro o fidalgo enlouquecido pela leitura de romances de cavalaria), poucos meses antes da morte do autor. Ele queria que, através das aventuras farsescas (e aí entram os famosíssimos episódios da luta contra moinhos de vento ou contra odres de vinho, que se afiguram gigantes a D. Quixote, rebanhos que viram exércitos inumeráveis, estalagens que se tornam castelos, etc) dos seus dois heróis, jogados no mundo que nada tem de idealizado, e através de um humor nem sempre brando e sim às vezes bastante escrachado, os leitores sentissem a insuficiência da literatura ligada aos feitos heróicos, tema amplamente discutido, em vários momentos; o principal deles, quando D. Quixote é conduzido, enjaulado,  a sua casa –acreditando-se enfeitiçado– pelo cura e pelo barbeiro da sua aldeia, e o primeiro deles conversa com um cônego, e é aí que Cervantes expõe de forma clara seus pontos-de-vista e faz profissão de fé do tipo de relato ficcional e de teatro que ele gostaria que fossem  praticados, além de colocar a teoria em prática nos diversos relatos intercalados à história principal.

O que ele acabou realizando foi o paradigma da ficção ocidental, praticada a partir dele, o livro-referência de todos os romancistas (Nabokov que resmungue à vontade). Ou alguém pensa que a matriz da jornada de Frodo e Sam Gamgi (sem contar a própria relação entre eles), em O senhor dos anéis, é outra?

(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA, de Santos, em 30 de abril de 2005)

 

28/07/2013

Diálogo em torno de uma tradução

 

No meu post sobre Súplicas Atendidas, de Truman Capote,  (VER  https://armonte.wordpress.com/2013/07/28/destaque-do-blog-suplicas-atendidas/)

eu afirmava que a tradução de Guilherme da Silva Braga  era “cheia de escorregões e soluções ruins” (estendendo o reproche a uma parte dos tradutores da L&PM). Com toda a razão, o referido tradutor se referiu ao tom genérico e vago do meu comentário. pedindo que eu apontasse exemplos:

“Olá, Alfredo!

Não nos conhecemos, mas achei no seu blog uma referência à minha tradução “cheia de escorregões e soluções ruins” do livro Súplicas atendidas, do Truman Capote.

Como a crítica foi feita nos termos mais genéricos possíveis (sem um único exemplo) e é dirigida não só a mim mas todos os tradutores da editora, gostaria se possível que você me apontasse alguns desses deslizes para que eu possa analisá-los e comunicar à L&PM qualquer mudança pertinente. “(26.01.10)

Não me fiz de rogado, é claro, e logo enviei uma lista de trechos, expressões e soluções que me desagradaram ou me pareciam estranhos:

… em alguns casos, talvez a revisão tenha falhado também, acredito que você também não é responsável pelo título: “Preces atendidas” seria mais exato, por causa da esfera religiosa da citação e porque todo o mundanismo  do livro se contrapõe a ela, num sentido muito moralista;

 
na pág. 25 aparece “Hadrian”, quando o correto já que é o costume seria “Adriano”.
    Aliás, a questão de títulos e nomes de  logradouros também é muito espinhosa, poderia ter sido unificada, e unas notas de rodapé, ou esclarecendo o título ou o significado que teriam em português, ou traduzindo, e em notas, colocando o original.  Por que deixar, na mesma pág. 25, em inglês os títulos dos contos de P.B.Jones? (“Suntan” e “Massage”; e na pág. 28, “Many Thoughts of Morton”)?, por que manter “upper Eighties” (p. 28) ?
na pág.30- Nuriêv não seria Nureyev ?;
 
há sempre uma preguiça em não traduzir trocadilhos e jogos de linguagem- na pág. 32, por exemplo, o jogo com Billy, o nome do reverendo sedutor e o “billy” para o pênis, foi muito mal resolvido.
 
As palavras garoto e menino, em várias passagens (p.34 ou p.37, por exemplo)´ficam muito aquém do significado sexual que lhes é conferido. No Brasil, temos o termo “bofe”, que cairia muito melhor. Aliás, esse termo, “bofe” é utilizado de maneira singularmente inadequada para um cliente de Jonesy na pág. 101 (um cliente de michês jamais seria um “bofe” na nossa cultura gay);
 
há os trechos que ficaram esquisitos ou meio sem sentido (ou eu fui muito burro e não consegui captar o sentido).: É estranho o “venho existindo” da pág. 19 (“na ACM de Manhattan onde venho existindo há um mês”);  na página seguinte: “Meu nome é P.B. Jones e estou com dois corações” (?).
   A caracterização do escritório de Boatwright (p. 24):  “O escritório tinha uma atmosfera  meio de negócios (!?).; parecia um salão vitoriano”. “Meio de negócios”?
 
 na pág. 29, “Faulkner, aficcionado em Lolitas”, a preposição está muito esquisita, não? e mesmo o termo “aficcionado”
 
na pág. 34- “depois de exagerar no vinho tinto e no amarelo”- não consegui entender esse “amarelo”.
na pág. 39 e em várias outras o termo “cafetão” não é muito exato, já que se trata do “bancador” do michê.
 
na pág. 40, um trecho estranhíssimo, que me parece truncado: “Denny prestava-se a um único papel, o de Amado, pois era tudo o que ele jamais tiinha sido [ já essa formulação de saída é muito estranha; a gente entende, mas é estranha]. Assim, exceto pelos  eventuais flertes com o comércio marítimo, o Amado tinha sido Watson” (!?).
 
na pág. 41, o que seria exatamente “o jeito bondoso e BIOLÓGICO”  de Jean Connoly?
    E na mesma página, que raios é um “cenografista”, função de Christopher Isherwood em Hollywood?
 
na pág. 47, mais um jogo de palavras perdido, que ficou forçado, porque “bastardo” não é um xingamento comum em português, mas sim em inglês:  “sabia que eu era um bastardo mas e me perdoava porque afinal de contas eu tinha nascido bastardo”. O primeiro bastardo tem, na verdade, acepção de canalha, filho-da-puta, como você bem sabe, e o trecho empastelou isso.
 
na pág. 52 eu não consegui entender o que significa “mas eu senti que ela tinha se juntado  à maioria”.
 
tudo bem que Capote cite em inglês um título de Colette, mas o tradutor brasileiro poderia procurar o título em francês de “My Mother´s house” ou indicá-lo em nota. (pág. 55)
 
na pág.61, há o seguinte trecho descuidado: “ele me deu um MURRO na cara, um GOLPE DE CARATÊ que deu a impressão…” etc etc. Não entende de caratê, mas creio que “murro” não seria o termo exato.
 
Não consigo imaginar ninguém falando (pág. 65): “Eu não levo. Posso meter. Mas não levo”. O cara diria “Eu não dou” ou algo similar, mas “não levo”, parece legenda de filme pornô, nas quais em vez de “me chupe” colocam “sugue meu pau”, coisa que ninguém fala na vida real.
 
Na pág. 76- Outra preposição e regência estranhas: “Por muitos anos fui parcial a Veneza” (e na página seguinte outro título de Jonesy que foi mantido em inglês).
 
         Em conversas com amigos que leram sua tradução, alguns estranharam outras coisas, que eu não tinha sacado, por exemplo  o termo “lambedora de carpetes” (pág. 79), que soa estranho em português.
      Espero, assim, ter escapado dos ´termos mais genéricos possíveis`, e sempre sublinhando que se trata apenas de opiniões”. (28.01.10)
       Fiquei impressionado com a presteza, a conscienciosidade e o brio profissional com que Guilherme me respondeu, quase ponto a ponto, e me envergonhei de não ter sido mais preciso no meu comentário sobre a tradução. Sua resposta também mostra como se pode discordar civilizada, porém incisivamente, de outrem:

“Agradeço muito os comentários mais detalhados enviados por email. Acho que tem um pouco de tudo: críticas em que você tem razão, críticas em que se trata de simples gosto pessoal (onde “gosto pessoal” é equiparado a “bom” e “gosto alheio” a “ruim”) e críticas relativas a trechos não há erro algum ou impropriedade alguma.

Alguns esclarecimentos gerais sobre opções tradutórias: não traduzo nomes de logradouros e não ponho notas de rodapé. Há quem goste e há quem não goste, mas são opções tão válidas e defensáveis quanto traduzir logradouros ou pôr as famigeradas (e na minha modesta opinião execrandas) notas de rodapé.

Quanto a “Hadrian”, você tem toda a razão — foi um deslize e vou avisar a editora.

“Nureyev” e “Nuriêv” estão ambos corretos e dependem apenas da norma usada para se transliterar do russo, mas as formas com Y em geral são meras cópias da transliteração inglesa, enquanto as versões com I seguem uma grafia mais de acordo com a nossa língua.Compare “Dostoevsky” com “Dostoiévski” ou “Tolstoy” com “Tolstói”, por exemplo.

A suposta preguiça na resolução do trocadilho Billy/billy explica-se simplesmente porque não há trocadilho: “billy” não é gíria para “pênis” em inglês. O personagem simplesmente chama o pênis do cliente pelo nome deste, da mesma forma que se poderia chamar o pênis de um sujeito chamado João de “joãozinho” ou algo assim.

Observação de Alfredo Monte (também em função dos comentários gerados pelo post)- Na verdade, nunca pensei que “billy” fosse gíria para pênis, só achava que poderia haver uma adaptação para o português da brincadeira.

Os termos especificamente gays parecem realmente não estar de acordo. Também vou ver se resolvo isso melhor e comunico a editora.

“Estar com dois corações” é uma expressão bastante comum — ao menos por aqui (Porto Alegre) eu ouço com certa freqüência. O Google também registra mais de onze mil usos dessa mesma construção só na primeira pessoa do presente do indicativo, com o que se pode afirmar com razoável margem de segurança que se trata de expressão conhecida. Significa mais ou menos “não conseguir escolher entre duas opções por querer a ambas” (como em “Estou com dois corações — não sei se vou para a praia ou para a serra”, dando a entender que ambas opções são tão boas que é difícil escolher).

“Meio de negócios” quer dizer “mais ou menos como de negócios”, como se costuma dizer em linguagem corriqueira. Aqui já aproveito para ressaltar que esse livro destoa completamente, em termos estilísticos, de quase tudo o que o Capote escreveu — é muito mais coloquial e talvez (não sei) isso tenha afetado sua impressão a respeito da tradução como um todo. Mesmo em inglês, a linguagem do Capote deste livro pouco lembra o Capote de Bonequinha de luxo ou dos contos, por exemplo.

“Vinha amarelo” é simplesmente um tipo específico de vinho. Se chama assim mesmo em português (o Google registra cerca de 6.000 ocorrências).

O trocadilho com “bastardo”, é verdade, fica mais fraco em português. Mas simplesmente não há como resolver de maneira muito mais satisfatória — se você conhecer algum termo que queira dizer tanto “filho ilegítimo” como “filho-da-puta” na nossa língua, por favor queira me comunicar e prontamente pedirei a alteração. Esse é um exemplo bastante característico de crítica fácil a um problema tradutório para o qual uma solução ideal é absolutamente difícil de encontrar.

Sobre o livro da Collette: não há tradução para o português. Daí a opção por não traduzir (geralmente eu só traduzo os títulos de obras para as quais existe tradução, para evitar dar ao leitor a impressão — nesse caso, falsa — de que o livro existe em português).

Quanto a “não levo”, concordo que pode não ser muito comum, mas daí a dizer que não existe ou que é tradução malfeita vai um longo caminho. Uma busca por “não levo no cu” no Google, por exemplo, dá quase cem resultados.

“Lambedora de carpete” é um termo baseado na expressão bastante comum “lamber carpete” (fazer sexo oral em uma mulher, quase sempre com a implicatura de que quem faz sexo oral é também uma mulher).

Em relação às regências apontadas, você também tem razão, embora meia dúzia de erros desse tipo em um livro de 200 páginas não me pareçam justificar o emprego do termo “desleixo” em relação ao trabalho realizado. Na verdade foi o que me incomodou na sua crítica: não o fato de estar sendo criticado — o que faz parte, embora nunca seja agradável –, mas por simplesmente ver chamado de “desleixado” um trabalho que pode ter sido feito com qualquer coisa, menos desleixo.

Como você pode ler acima, pelo menos algumas das soluções criticadas com termos tão contundentes no blog são perfeitamente defensáveis e redigidas em português cursivo. Claro que daí a agradar vai um longo caminho — a meu ver, tão longo quanto o que separa a opinião perfeitamente legítima de “não gostei da tradução” ou “eu teria traduzido diferente” da opinião questionável (em vista dos argumentos acima) segundo a qual a tradução foi feita com desleixo.

Seja como for, agradeço o tempo que dedicou a essa correspondência.” (28.01.10)

Creio também (e por isso pedi permissão a ele para divulgar nossa pequena correspondência) que as nossas observações mais detalhadas serão úteis e oportunas ao leitor do livro traduzido e do meu blog.

“Oi, Alfredo!,  Se quiser postar os esclarecimentos, fique à vontade, desde que eventuais comentários em resposta sejam feitos com respeito ao meu trabalho e também ao dos tradutores em geral. Naturalmente isso não o impede de tecer mais críticas se achar que esta é a coisa a fazer — apenas pressupõe que estas sejam redigidas com o mesmo bom-senso e a objetividade demonstrados no seu email, e não nos termos genéricos e abrangentes usados anteriormente no blog. Parece-me que críticas nos moldes dessas feitas no seu email só tem a acrescentar a essa relação tradutor-leitor (você apontou erros indiscutíveis pelo menos em relação ao nome “Hadrian” e às gírias do circuito gay — que pretendo corrigir em edições posteriores –, e acredito que pelo menos um ou dois comentários meus devam tê-lo convencido de que o que parecia ser erro não era), ao passo que menosprezar o trabalho do tradutor não contribui em nada para qualquer discussão que se pretenda minimamente séria ou útil a respeito do assunto.

Se estiver de acordo, vá em frente. Fique à vontade para corrigir quaisquer erros de digitação também (notei que comi um pedaço de uma frase logo no início do meu email e escrevi “vinha” amarelo, entre outros)”.(28.01.10);acho, por essa última observação que talvez ele pense que eu tenha uma sanha assassina andando à cata de erros e deslizes; só sou um pouco detalhista demais…

16/06/2013

OS MORTOS (The Dead), um texto-chave na obra de James Joyce

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Fico sempre assombrado com a idade em que certos textos foram escritos. É o caso de Os mortos (The dead), o último e mais famoso conto de Dublinenses. James Joyce tinha  25 ou 26 anos ao escrevê-lo, naquela primeira década do século XX (nascera em 1882) em que se dedicava à criação da versão inicial do seu romance de formação, que só seria publicado, depuradíssimo em 1916, como Um retrato do artista quando jovem (dois anos antes, ele conseguira publicar, tardiamente, os quinze contos de Dublinenses, entre eles Os mortos, que fecha a coletânea).

Se Stephen Herói resultava informe, desagregado, frouxo enquanto narrativa, os contos daquela época mostram que Joyce poderia ficar na história como um dos grandes do gênero, independentemente da sua reputação futura, mais calcada na ruptura e na ousadia formal. São textos praticamente perfeitos, com um sopro do teatro de Ibsen neles[1], mas perfeitamente alinhados a grandes mestres “atmosféricos” (Maupassant, Turguêniev, Tchekhov) do gênero.

Caetano W. Galindo, que no ano passado causou sensação com sua tradução para Ulysses, agora traduziu para a Penguin/Companhia das Letras, dois dos contos de Dublinenses, o já referido Os mortos e “Arábias”. Com o acréscimo do monólogo de Molly Bloom, isso perfaz o pequeno volume joyceano para a coleção “Grandes Amores”.

Assim como A festa de Babette, de Isak Dinesen, Os mortos trata das pequenas ironias e truques do destino, do trançamento dos fios do cotidiano. Com seu espantoso senso do detalhe material, Joyce narra o pequeno baile tradicional na casa das tias solteironas do protagonista, Gabriel Conroy, as irmãs Morkan (e sua sobrinha, também solteirona) Mary Jane, na época do Natal. Apesar de se sentir um tanto “estrangeiro” e superior ao ambiente, por ser um intelectual mais “continental” do que arraigadamente irlandês, Gabriel tem muito carinho pelas tias, um sentimento cálido pelo pitoresco dublinense que elas representam, e no discurso obrigatório que é incitado exalta a “hospitalidade” como uma qualidade nativa que quase não encontra eco no resto da Europa.

O próprio Gabriel não se destaca de forma tão evidente na tessitura narrativa que dá conta dos eventos da festa, pois ali são muitos os centros de atração, como um microcosmo da “gente de Dublin”, não numa primeira leitura.

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Mas, ao se reler o texto, vemos como Joyce calcula cada momento da festa de uma maneira a preparar o extraordinário clímax, centrado no casal Conroy, em que a materialidade toda aí narrada se torna insubstancial. E aí, durante a releitura, o leitor se dá conta de como o casal praticamente não é visto junto e mal interage durante a festa, tal como nos é narrada. Há um pequeno episódio de hostilidade (em que ele dá uma resposta atravessada à esposa) e há um momento de contemplação (em que ele, no andar de baixo, a vê encostada na escada, no andar de cima, enlevada com uma canção, da qual ele mal ouve a letra, cena que é reelaborada na mente dele como motivo para um quadro, ou seja, é como se a esposa e o seu momento de enlevo fossem um “motivo” artístico).

Apesar do carinho e respeito das tias e dos demais presentes, Gabriel é alvo de vários “foras” ao longo da narrativa, sempre de forma a frustrar um intento da parte dele, onde ele parece querer mostrar o melhor da sua natureza. Faz uma observação entre jocosa e paternal à jovem serviçal da festa, Lily, e dela recebe uma áspera réplica, dança uma quadrilha com a Srta. Ivors, sua contemporânea de geração, fervorosa patriota (“o grande broche que trazia preso à parte da frente de seu colarinho tinha um emblema irlandês e um lema gaélico”), que o espicaça como intelectual e escritor anglófilo, quase um traidor, colaborando com um jornal “inglês” e desconhecedor do idioma da terra natal.

Vale a pena transcrever uma parte do diálogo:

“__ E o senhor não tem de manter contato com o seu próprio idioma, o gaélico?—perguntou  a Srta. Ivors.

__ Bom, disse Gabriel, a bem da verdade, sabe, o gaélico não é a minha língua.”

A Srta. Ivors insiste, convidando-o a excursionar pelas Ilhas Aran no verão. Gabriel declina (ele, que se gabara de conhecer “não pouco da Europa” em outro momento da festividade):

“E o senhor não tem que visitar a sua própria terra—continuava a senhorita Ivors—, que o senhor mal conhece, ou o seu próprio povo, e o seu próprio país?

__ Ah, para ser sincero—retorquiu Gabriel subitamente—, eu estou cheio do meu país, cheio!

__ Por quê ?—perguntou a Srta. Ivors.

    Gabriel não respondeu, pois estava fervendo depois de sua reação.

__ Por quê?—repetiu a Srta. Ivors.”

    Ao comentar com a esposa a proposta de excursão para as Ilhas Aran e constatar o entusiasmo dela, é que ele dá a resposta atravessada que já mencionei. O ponto a se destacar aqui é que o casamento de Gabriel com a bela Gretta não acontecera sem tensões. Para a mãe de Gabriel, ela não passava de uma camponesa sonsa, que havia realizado um casamento além da sua condição social (esse desnível entre casais protagonistas é recorrente em Joyce). E essa lembrança vem à tona na festa justamente por conta dessas provocações.

Findando a festa, após contemplar Gretta ouvindo a canção e compondo uma “figura de quadro”, amortece em Gabriel a tensão entre sua “anglofilia” (que o afasta até da esposa) e sua condição de “dublinense”. E na ida para o hotel, com a magia da neve e das lembranças de momentos “encantados” do casal, desde a lua-de-mel, vai emergindo nele um furor de desejo por Gretta, tanto que ele não vê a hora em que estejam a sós.

Se podemos aproximar a parte da festa do modo cinematográfico (em que tantos mortos são evocados, de uma forma nostálgica e num misto de respeito e irreverência), é evidente que Joyce teatraliza ao máximo a parte final, ao concentrar-se no casal. Gabriel dispensa até a luz da única vela que o idoso funcionário do hotel trouxe até o quarto, e temos apenas a luz que vem dos lampiões da rua na madrugada de neve intensa. Não quero entrar em mais detalhes, mas é nesse momento em que ele já ruminou vários momentos íntimos do seu casamento, e o desejo está mais forte do que nunca, em que ele calou as provocações e acicatamentos das suas posturas éticas e intelectuais, que Gretta resolve confessar que a canção ouvida na festa a fez lembrar-se de um rapaz, Michael Furey, antigo paixonite adolescente, que “morrera por ela”. Eis aí um morto para a qual não há solução respeitosa ou irreverente, quase tão insidioso quanto o amante fantasmático da esposa do Fridolin de Breve romance de Sonho, de Arthur Schnitzler. Como vencer um amante morto? Que figura de homem cunhada por Gabriel em sua trajetória de marido e intelectual tem a virtude e o ímpeto de se impor a essa figura do passado? Pois o passado não é apenas o território das perdas, no sentido de mortes pessoais, mas das perdas, no sentido de possibilidades (o casal Bloom tematizará tudo isso com muito mais nuances, mais tarde, o espantoso é Joyce levantar tais questões na idade que tinha, e ele ainda tão autocentrado, apesar de já se valer dos benefícios que Nora trará a ele no sentido de libertá-lo desse emparedamento, tão visível em Stephen Herói, em Um retrato do artista quando jovem e mesmo na primeira parte de Ulisses).

Não é à toa que uma das pedras-de-toque para Os mortos fosse uma das “Irish Melodies” de Thomas Moore (“O ye dead”):

“É verdade, é verdade, somos sombras frias e pálidas

E os belos e bravos a quem amamos na terra se foram;

       Mas mesmo assim na morte,

       Tão doce o hálito vivo

Dos campos e flores sobre os quais caminhamos na nossa juventude,

        Que embora aqui condenados vamos

        Congelar nas neves de Hecla,

Saborearíamos isso por um momento, pensando que vivemos outra vez!”

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    É bom não perder de vista que esse amor da juventude de Gretta é justamente de uma região próxima àquela que despertara nela o entusiasmo em revisitar (para irritação de Gabriel)  e que ela viu pela última vez Michael Furey na neve. Ou seja, todos os elementos e leitmotivs de Os mortos se ligam e se entretecem nos mínimos detalhes da trama, um tipo de composição (embora em ponto pequeno) que nortearia toda a futura produção joyceana. Sobre essas reverberações, Richard Ellmann em sua magnífica biografia comenta: “Os Mortos começa com uma festa e acaba com um cadáver, assim misturando funferal, como na vigília de Finnegan.”  E num trecho posterior: “Na sua lírica, melancólica aceitação de tudo o que a vida e a morte oferecem, é uma chave na obra de Joyce. Existe aquela situação básica de adultério, real ou imaginário, que existe em toda ela. Há a comparação joyceana especial de detalhe específico elevado a uma intensidade rítmica. O objetivo final da história, a dependência mútua entre vivos e mortos, é algo sobre o que ele meditou bastante desde sua juventude.”

E há a célebre e considerada enigmática frase do último parágrafo: “Era chegada a hora de ele partir em sua jornada rumo oeste”. Esse “rumo oeste” seria a indicação da curva que a vida tinha dado, em direção à morte, ou à consciência da mortalidade, pelo menos, no seu sentido mais pungente? Ou da aceitação de sua pátria, da qual deveria forjar a consciência incriada? Seu retorno à Ítaca para recuperar, enfim, a mulher?

Essa belíssima anedota do destino que marca definitivamente a primeira fase da obra de Joyce tem outra coisa em comum com A festa de Babette: ambos tiveram adaptações cinematográficas bem-sucedidas. A de Os mortos marcou um último grande momento da carreira de John Huston; ao contrário dos seus filmes imediatamente anteriores (Fuga para a vitória, Annie, À sombra do vulcão, mesmo o delicioso A honra do poderoso Prizzi),não se trata de um filme menor, mas de um trabalho que pode se alinhar ao que de melhor Huston fez (O tesouro de Sierra Madre, O segredo das joias, Uma aventura na África, Freud, Cidade das Ilusões, O homem que queria ser rei)  e a única grande aproximação entre Joyce e o cinema, pelo menos aquele de apelo comercial. E o título brasileiro realçou a verdade poética da fábula: Os vivos e os mortos. Nada mais exato.

(escrito especialmente para o blog, em 16 de junho de 2013)

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TRECHO SELECIONADO

Na tradução de Caetano W. Galindo:

__ Ele era o quê?—perguntou Gabriel, ainda ironicamente.

__ Trabalhava na usina de gás—ela disse.

    Gabriel se sentia humilhado pelo fracasso de sua ironia e pela evocação dessa figura de entre os mortos, um menino da usina de gás. Enquanto ele estava tomado de memórias de sua vida conjunta secreta, tomado de ternura e de alegria, ela o estava comparando mentalmente a um outro. Uma consciência vergonhosa de sua própria pessoa o tomou de assalto. Ele se viu como uma figura ridícula, fazendo de garoto de recados para as tias, um sentimentalista nervoso e bem-intencionado, perorando para o vulgo e idealizando suas próprias luxúrias afobadas, o sujeito fátuo e reles que entrevira no espelho. Instintivamente virou as costas mais para a luz para que ela não pudesse ver a vergonha que lhe ardia na testa.

   Ele tentou manter seu tom de fria interrogação, mas sua voz, quando falou, era humilde e indiferente.

__ Acho que você foi apaixonada por esse Michael Furey, Gretta—ele disse.

__ A gente se dava muito bem naquela época—ela disse.

  A voz dela era velada e era triste. Gabriel, sentindo agora quanto seria vão tentar levá-la aonde planejara, afagou-lhe uma das mãos e disse, triste também:

__E de que foi que ele morreu assim tão novo, Gretta? Foi de tuberculose?

__ Acho que ele morreu por mim—ela respondeu.

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    Na tradução de Hamilton Trevisan (Civilização Brasileira, 11ª. edição, 2006):

__Que fazia ele?—perguntou Gabriel, ainda com sarcasmo.

__ Trabalhava na companhia de gás.

   Gabriel sentiu-se humilhado pelo fracasso de sua ironia e pela evocação da figura do morto, um garoto da companhia de gás. Enquanto vibrava com íntimas recordações, repleto de ternura, alegria e desejo, ela o comparava com outro. Uma humilhante consciência de si mesmo o assaltou. Viu-se como uma figura ridícula, fazendo de menino travesso para as tias, um sentimentalista tímido e bem-intencionado discursando para pessoas vulgares e idealizando seus cômicos desejos: o lamentável pretensioso que vira de relance no espelho. Instintivamente, voltou-se contra a luz, para a esposa não ver o rubor que se alastrava em seu rosto.

   Procurou manter o tom de frio interrogatório, mas sua voz soou humilde e indiferente.

__ Suponho que esteve apaixonada por esse Michael Furey, Gretta.

__Queríamo-nos muito bem nesse tempo—respondeu ela.

   Sua voz era velada e triste. Percebendo como seria tolo tentar arrastá-la ao que pretendia, Gabriel começou a acariciar-lhe a mão e disse, também com tristeza:

__ E por que ele morreu tão jovem, Gretta? Tuberculose, foi?

__ Creio que morreu por minha causa.

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    Em 1993, José Roberto O´Shea traduziu assim (editora Siciliano):

__ O que ele fazia na vida?—perguntou Gabriel, ainda com ironia.

__ Trabalhava no gasômetro—ela disse.

   Gabriel sentiu-se diminuído pelo fracasso de sua ironia e pela evocação da figura do morto, um garoto que trabalhava no gasômetro. Enquanto ele revivia as lembranças da vida íntima do casal, cheio de carinho e felicidade e desejo, ela o comparava a um outro homem. Um grande sentimento de humilhação assaltou-o. Viu-se como uma figura ridícula, como um menino fazendo gracinhas para as tias, como um sentimental nervoso e ingênuo discursando para plebeus e idealizando seus próprios desejos ridículos: era de fato o sujeito presunçoso que vira refletido no espelho. Instintivamente, deu as costas para a luz, com receio de que Gretta percebesse a vergonha que lhe queimava o rosto.

  Procurou manter o tom frio de interrogatório, mas quando voltou a falar a voz saiu com um tom humilde e inócuo.

__Imagino que você esteve apaixonado por esse Michael Furey, Gretta—ele disse.

__Fui feliz ao lado dele, naquela época—ela disse.

   Tinha a voz velada e triste. Gabriel, dando-se conta de que seria inútil tentar levá-la na direção em que pretendera, acariciou a mão da mulher e disse, igualmente triste:

__ E ele morreu de quê, Gretta, tão jovem? Foi tuberculose?

__Acho que ele morreu por mim—ela respondeu.

   O´Shea fez pequenas modificações na sua versão de 2012 (editora Hedra):

__ O que ele fazia na vida?—perguntou Gabriel, ainda com ironia.

__ Trabalhava no gasômetro—ela disse.

   Gabriel sentiu-se diminuído pelo fracasso de sua ironia e pela evocação da figura do morto, um garoto que trabalhava no gasômetro. Enquanto ele revivia as lembranças da vida íntima do casal, cheio de ternura e alegria e desejo, ela o comparava mentalmente com um outro homem. Uma grande sensação de insegurança o assaltou. Via-se como uma figura ridícula, um menino fazendo gracinhas para as tias, um sentimental nervoso e ingênuo, discursando para plebeus e idealizando seus próprios desejos ridículos, o sujeito presunçoso que vira refletido no espelho. Instintivamente deu as costas para a luz com receio de que ela visse a vergonha que lhe queimava a fronte.

    Procurou manter o tom frio de interrogatório mas quando voltou a falar a voz soou humilde e inócua.

__ Imagino que você esteve apaixonada por esse Michael Furey, Gretta—ele disse.

__ Fui feliz ao lado dele naquela época—ela disse.

   Tinha a voz velada e triste. Gabriel, dando-se conta de que seria inútil tentar levá-la na direção em que pretendera, acariciou a mão dela e disse, igualmente triste:

__ E ele morreu de quê, Gretta, tão jovem? Foi tuberculose?

__Acho que morreu por mim—ela respondeu.

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Na versão de Guilherme da Silva Braga (L&PM, 2012):

__ O que ele fazia na vida?, perguntou Gabriel, ainda de maneira irônica.

__ Trabalhava no gasômetro, ela respondeu.

    Gabriel sentiu-se humilhado pelo fracasso da ironia e pela evocação dessa imagem dos mortos—um garoto no gasômetro. Enquanto sentia-se repleto de memórias da vida secreta do casal, cheio de ternura e alegria e desejo, ela o comparava com outro. Sentiu-se invadido por uma consciência vergonhosa em relação a si próprio. Viu-se como uma figura ridícula, como o estafeta das tias, como um sentimentalista nervoso e bem-intencionado que discursava para o vulgo e idealizava as próprias luxúrias farsescas, como o pobre sujeito patético que tinha vislumbrado no espelho. Instintivamente virou as costas em direção à luz para que ela não percebesse a vergonha que lhe abrasava o rosto.

   Tentou manter o tom frio de interrogação, mas quando falava a voz saía humilde e indiferente.

__ Parece que você era apaixonada por esse Michael Furey, Gretta, disse.

__ Nós éramos muito próximos naquela época, respondeu ela.

    A voz parecia velada e triste. Gabriel, percebendo que seria inútil tentar levá-la até onde pretendia, acariciou-lhe uma das mãos e disse, também com tristeza na voz:

__ E do que ele morreu tão jovem, Gretta? De tísica?

__Acho que morreu por minha causa.

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  No original, lemos:

–What was he? asked Gabriel, still ironically.

–He was in the gasworks, she said.

Gabriel felt humiliated by the failure of his irony and by the evocation of this figure from the dead, a boy in the gasworks. While he had been full of memories of their secret life together, full of tenderness and joy and desire, she had been comparing him in her mind with another. A shameful consciousness of his own person assailed him. He saw himself as a ludicrous figure, acting as a penny-boy for his aunts, a nervous, well-meaning sentimentalist, orating to vulgarians and idealizing his own clownish lusts, the pitiable fatuous fellow he had caught a glimpse of in the mirror. Instinctively he turned his back more to the light lest she might see the shame that burned upon his forehead.

He tried to keep up his tone of cold interrogation, but his voice when he spoke was humble and indifferent.

–I suppose you were in love with this Michael Furey, Gretta, he said.

–I was great with him at that time, she said.

Her voice was veiled and sad. Gabriel, feeling now how vain it would be to try to lead her whither he had purposed, caressed one of her hands and said, also sadly:

–And what did he die of so young, Gretta? Consumption, was it?

–I think he died for me, she answered.

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ANEXO

já o primeiro parágrafo de Os mortos mostra como a tradução de Joyce sempre é cercada de contradições e complicações. Lily, a jovem serviçal que recebe os convidados da tradicional festa das irmãs Kate e Julia (e sua sobrinha Mary Jane) Morkan, é filha de quem?

Galindo traduz assim a primeira frase do conto: “Lily, a filha do zelador, estava literalmente perdendo a cabeça”.

Também assim o entendia o primeiro tradutor de DUBLINENSES no Brasil, Hamilton Trevisan:  “Lily, a filha do zelador, estava literalmente esgotada”.

Em 1993, na sua versão de DUBLINENSES, José Roberto O´Shea, no entanto, verteu assim o início do conto mais famoso do livro: “Lily, a filha da empregada, não conseguia ficar sentada um minuto sequer”.

No ano passado, O´Shea publicou nova versão da sua tradução. E o trecho de abertura aparece ali da seguinte forma: “Lily, a filha do zelador, estava literalmente exausta”.

Então poderíamos crer que, enfim, estava assentado que Lily é mesmo a filha do zelador. Mas no mesmo ano  apareceu a versão de Guilherme da Silva Braga, onde lemos: “Lily, a filha da zeladora, não tinha literalmente um segundo de sossego”.

No original: “Lily, the caretaker’s daughter, was literally run off her feet.”

Mais adiante, ainda no primeiro parágrafo, não creio que Galindo foi muito feliz ao caracterizar o arranjo que as solteironas fizeram para as senhoras na festa:

“…tinham transformado o banheiro do primeiro andar num CAMARIM para as senhoras

Na versão de Trevisan: “…tinham pensado nisso e convertido em VESTIÁRIO o banheiro de cima”.

Na primeira versão de O´Shea: “… tinham convertido o banheiro do segundo andar numa espécie de TOALETE feminina”; na segunda versão:  “…tinham pensado nisso e convertido o banheiro do segundo andar num TOALETE feminino”.

Na versão de Braga: “…tinham pensado nisso e convertido o banheiro no andar de cima em um VESTIÁRIO feminino.”

No original: “But Miss Kate and Miss Julia had thought of that and had converted the bathroom upstairs into a ladies’ dressing-room.”

Outro detalhe da tradução. O problema do nome de um dos personagens, o sr. Browne, aludido jocosamente por ele. Galindo traduz da seguinte forma: “Bom, senhora Morkan, tomara que eu esteja bem ´marrom´ na sua opinião porque, sabe como é, eu me chamo ´brown´, não é mesmo?”—o que, convenhamos, é uma solução fraquinha, fraquinha.

Trevisan solucionou (ou não solucionou, melhor dizendo) assim a blague: “Ora,senhorita Morkan, espero  que eu pelo menos seja bem dourado para senhora, pois, como sabe, sou todo Brown.”

Em 1993, O´Shea (que, aliás, chama a atenção para o trecho em nota de rodapé), solucionou assim: “Espero, Miss Morkan, que a senhora ache que eu esteja bem dourado, pois sou ´Browne´ da cabeça aos pés”.  Em 2012: “Espero, Miss Morkan, que a senhora ache que eu esteja bem dourado, pois sou ´bronzeado´ da cabeça aos pés.”

Na versão de Braga: “Bem, sra. Morkan, espero que pelo menos eu esteja moreno o suficiente, pois como a senhora sabe eu sou moreno até no nome!”

No original: “-Well, I hope, Miss Morkan, said Mr Browne, that I’m brown enough for you because, you know, I’m all Brown…”

CONSULTAR

http://english-learners.com/wp-content/uploads/THE-DEAD.pdf

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[1] “É preciso que se diga direta e imediatamente que àquela época Stephen sofreu a influência que mais lhe marcou a vida. O espetáculo do mundo conforme apresentado por sua inteligência com todos os detalhes sórdidos e enganosos alinhado ao espetáculo do mundo apresentado pelo monstro que o habitava, agora guindado a um estágio razoavelmente heróico, também costumava levá-lo a um desespero tão súbito que só podia ser aplacado por meio da composição de versos melancólicos. Estava prestes a considerar os dois mundos alheios entre si—por mais dissimulados que fossem ou por mais que expressassem o mais completo pessimismo—, quando encontrou, valendo-se de traduções pouco procuradas, o espírito de Henrik Ibsen. Compreendeu tal espírito instantaneamente (…) as mentes do velho poeta nórdico e do jovem celta inquieto se encontravam num momento de radiante simultaneidade. Stephen foi cativado primeiramente pela nítida excelência da arte: não demorou muito para ele afirmar, mesmo com escasso conhecimento do tratado, obviamente, que Ibsen era o melhor dramaturgo do mundo (…) Ali e não em Shakespeare ou Goethe estava o sucessor do primeiro poeta dos europeus, ali, somente como em Dante, uma personalidade humana se unira a um estilo artístico que em si mesmo constituía quase um fenômeno natural: e o espírito da época promovia uma união mais imediata com o norueguês que com o florentino.” (trecho de Stephen Herói, tradução de José Roberto O´Shea, editora Hedra)

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12/03/2013

“Bem-vindos, sangue, destruição e morte!”: Ricardo III e a patologia do poder

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“A quem temo? A mim mesmo? Estou sozinho.

Ricardo ama Ricardo. Eu sou eu mesmo.

Há um assassino aqui? Não—sim, sou eu:

Devo fugir? De quem? Fugir de mim?

Qual a razão? Vingança? De mim mesmo?

Não, eu me amo. E por quê”  (Shakespeare, Ricardo III)[1]

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(uma versão da resenha abaixo  foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 12 de março de 2013)

No mês passado foi anunciada a descoberta dos restos mortais (embaixo de um estacionamento) de Ricardo III, reacendendo as discussões sobre como seria o caráter “exato” do mal afamado rei (de 1483 a 1485) da Inglaterra, cuja derrocada marcou a liquidação da dinastia Plantageneta, inaugurando a mítica era Tudor. Evidentemente, todo mundo associa-o a Shakespeare, pois Ricardo III é a mais famosa e palatável entre as suas chamadas “peças históricas”, que compõem a porção menos popular do cânone do bardo, ao contrário das tragédias e comédias. Poucos têm ainda a paciência de ler, por exemplo, as três partes de Henrique VI ou Rei João.[2]

Cá entre nós, confesso que me perco um pouco na sucessão de monarcas dessas peças, e não foram poucas as vezes em que confundi Ricardos, Eduardos e Henriques—se fosse pego de supetão, era capaz de pagar o maior mico, misturando alhos com bugalhos; e mesmo apreciando Ricardo III, acho muito difícil deslindar totalmente os eventos históricos ali dramatizados (principalmente no primeiro ato), em razão de haver dezenas de personagens em cena.

O que salva a peça (escrita em 1592 ou 1593) para os dias de hoje é mesmo o protagonista. Imagine-se um Iago com poder. A patologia do futuro governante reflete-se, dentro de uma concepção bastante eficaz no palco, em seu aspecto físico, o que já fica claro na inesquecível fala de abertura: “Eu, que não tenho belas proporções/Errado de feições pela malícia/Da vida; inacabado, vindo ao mundo/Antes do tempo, quase pelo meio/E tão fora de moda, meio coxo/Que os cães ladram, se deles me aproximo (…) Determinei tornar-me um malfeitor/E odiar os prazeres destes tempos./Armei conspirações, graves perigos…” [3]

É como se ele já nascesse com a sina da deformação pelo poder. Há poucos dias, aqui mesmo em A TRIBUNA, o cientista político Alcindo Gonçalves, refletindo a respeito do tema, relembrava alguns princípios do Príncipe de Maquiavel: “É necessário a um príncipe, para ser manter, que aprenda a ser mau (…) É muito mais seguro ser temido que amado.

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Aa maldade de Ricardo opera em surdina, de início: dissimulado, intrigante, ele coloca uns contra os outros (também raras vezes se viu uma constelação de ruthless people, incluindo as crianças[4]), e pouco a pouco vai se aproximando do trono, ao eliminar os herdeiros diretos (embora seu crime mais perverso seja o assassinato do irmão, Clarence[5]). Ele engana, burla, faz promessas vãs, recruta asseclas cada vez mais sórdidos. Praticamente há uma morte brutal em cada página lida[6].

Boa parte do efeito dramático (apesar da confusão com relação aos fatos) se deve à grandiosidade da maldição lançada pela usurpada rainha Margaret, líder dos Lancaster contra os York de Eduardo IV, o qual se encontra no poder no momento em que Ricardo começa a executar seus ambiciosos planos[7]. É a célebre Guerra das Rosas, com 30 anos de duração.  Como há várias facções e alianças (às vezes as mais inusitadas), e pequenos interesses, ela anatematiza a todos, sem exceção, de sorte que, traídos e executados pelo sanguinário rei, cada um se lembra das terríveis pragas da viúva de Henrique VI.

Um dos melhores momentos da peça acontece no quarto ato, quando Ricardo, o “embaixador do inferno, vai enfrentar a sua derradeira batalha contra o que restou de seus inimigos e três das mulheres cujos entes queridos foram mortos por suas armações, se reúnem diante do palácio: Margaret, Elizabeth (esposa de Eduardo IV) e a mãe de Ricardo, a Duquesa de York (que sempre enxergara sua maldade, a despeito da opinião geral), para a qual Shakespeare reservou algumas das falas mais poéticas, lindas e memoráveis dessa peça de juventude: “Eu chorei um marido bom e honrado/E vivi de mirar suas imagens/Mas hoje dois espelhos que o mostravam/Foram quebrados pela morte ignara./E eu, por consolo, tenho um falso espelho/Que fere refletindo-me a vergonha (aqui ela se refere a filho e aos dois irmãos dos quais ele deu cabo); ou ainda: “Ventre maldito o meu, berço da morte/Que trouxe a este mundo o basilisco/Que mata com o veneno do olhar”.[8]

   O desalentador é pensar que a natureza do poder não mudou nada. Não há decerto tanta sanguinolência explícita para que homens do naipe do Ricardo imaginado por Shakespeare, os quais viram as costas para a sociedade e os interesses gerais, possam ascender ao poder (executivo ou legislativo); nem por isso o caos, a desmoralização e os resultados brutais são menores: pois seus efeitos aparecerão nas filas lotadas de hospitais públicos (cujas verbas foram subtraídas em esquemas ominosos), na educação precária (regada à retórica inflada), na infra-estrutura totalmente comprometida[9]. Como não pensar, testemunhando as infinitas vezes em que a governança e a legislação passam a mãos corruptas e desprezíveis, no lamento apocalíptico da viúva de Eduardo IV: “Bem-vindos, sangue, destruição e morte!”?

“Que mundo é o nosso! Quem será tão tolo

Que não veja um palpável artifício?

Mas quem terá coragem pra dizê-lo?

O mundo é mau; e tudo está perdido

Se dizer a verdade é proibido.”[10]

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[1] Utilizo a tradução de Ana Amélia Carneiro de Mendonça, publicada pela Nova Fronteira, em 1993 (num volume reunindo Ricardo III/Henrique V; este última traduzida por Bárbara Heliodora, filha da primeira).

Carlos Alberto Nunes traduz assim o trecho:

“Medo de quê? Não há ninguém por perto.

Ricardo ama Ricardo; eu sou eu mesmo.

Haverá aqui dentro um criminoso?

Não… Sim: eu próprio. Então, foge depressa.

Mas, fugir de mim mesmo? Justifica-se:

Poderia vingar-me. Como! Eu próprio

De mim tomar vingança? Amo-me muito.

Por quê?…”  (tenho em mãos A tragédia do Rei Ricardo III, volume XX da Coleção Shakespeare da Melhoramentos, s/d; mas atualmente essa tradução da peça está num dos três volumes reunindo a mesma coleção, editado pela Agir).

Beatriz Viégas-Faria traduz em prosa:

“Tenho medo do quê? De mim mesmo? Não tem mais ninguém aqui? Não. Sim, sou eu! Então fuja. Mas, o quê, de mim mesmo? É um bom motivo para que eu não me vingue? Mas, o quê, vingar-me eu de mim mesmo? Ai de mim, eu me amo. Mas, por quê?…” (há uma edição em separado dessa tradução, na coleção Pocket da L&PM, mas uso –da mesma editora—o volume William Shakespeare-Obras escolhidas. 2008).

Um dos maiores entusiastas shakesperianos, Harold Bloom, detesta essa passagem: para ele é uma tentativa canhestra, com péssimos versos, de introspecção, mostrando como o bardo ainda era imaturo na época em que os escreveu (“Não consigo me lembrar de qualquer outro trecho, nem mesmo no clamor entediante que predomina em Henrique VI, em que Shakespeare seja tão inepto”; no seu entender, Ricardo é mais uma hábil caricatura, com apelo peculiar ao público, daí o fracasso na tentativa de transformá-lo em “personagem dotado de introspecção psicológica”; ao fim e ao cabo, “A grande originalidade de Ricardo III, que resgata essa peça tão pesada e tão longa, não é bem o personagem de Ricardo em si mesmo, mas a surpreendente intimidade que o herói-vilão consegue firmar com o público”; cf. Shakespeare- A invenção do humano, em tradução de José Roberto O´Shea, Objetiva, 2000).

Concordo plenamente que a peça é pesada e longa, e que os personagens chegam a tagarelar demais. Penso, todavia, que há algo de muito intrigante (se levarmos em conta Freud) nesse esboço de introspecção exercitado em Ricardo, que antecipa em séculos as agonias experimentadas pelo William Wilson de Poe, no desdobramento da sua personalidade em consciência e impulso (e todo o narcisismo: “Ricardo ama Ricardo”). Pode ser canhestro. Também é fecundo. São passos da “invenção do humano”

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[2] E mesmo Henrique IV, que Bloom adora, especialmente por causa do personagem Falstaff, é um tanto quanto chata.

[3] “(…) eu, que me acho/falto de proporção, logrado em tudo/ por uma natureza enganadora/ deformado, incompleto, antes do tempo/lançado ao mundo vivo, apenas feito/ pela metade, tão monstruoso e feio/ que os cães me ladram, se por eles passo (…)/determino/conduzir-me qual biltre rematado/e odiar os vãos prazeres de nossa época. Por meio de conjuras, arriscadas/insinuações…” (Carlos Alberto Nunes).

“(…) eu, que fui deserdado de belas proporções, roubado de uma forma exterior por natureza dissimuladora, foi com deformidades, inacabado e antes do tempo que me puseram neste mundo que respira, feito mal-e-mal pela metade, e esta metade tão imperfeita, informe e tosca que os cachorros começam a latir para mim se me paro ao lado deles (…) estou decidido a agir como um canalha e detestar os prazeres fáceis dos dias de hoje. Divisei planos e armei perigosos preparativos…” (Beatriz Viégas-Faria)

De passagem, note-se que, na tradução de Ana Amélia Carneiro de Mendonça, o já proverbial “the winter of our discontent”, na abertura da fala e da peça, tradicionalmente traduzido como “o inverno do nosso descontentamento” ou “o inverno da nossa desesperança”, foi vertido como “inverno de nosso desgosto”.

[4] Como prova, leitor, as falas dos filhos de Clarence—o irmão assassinado de uma forma grotesca a mando de Ricardo—, dirigindo-se à tia, rainha Elizabeth:

FILHO- Minha tia, não chorastes nosso pai.

              Como podemos chorar convosco.

FILHA- Nossa orfandade não vos trouxe prantos.

            Seja vossa viuvez também sem lágrimas.

[5] O personagem menos antipático da peça, e cujo sonho, antes de morrer, é, para Bloom, um ponto alto da peça, no sentido poético. Eu, de minha parte, exaltaria mais o humor negro que envolve a figura dos dois assassinos, cujo diálogo antes do crime é burlesco e sinistro (e em estilo prosaico):

PRIMEIRO ASSASSINO- O que é isso, está com medo?

SEGUNDO ASSASSINO- Não de matá-lo, pois tenho aqui a ordem para fazê-lo; mas de ser condenado aos infernos por fazê-lo, contra o que não há ordem que me defenda.

PRIMEIRO ASSASSINO- Pensei que já estava resolvido

SEGUNDO ASSASSINO- E estou, mas a deixá-lo viver.

PRIMEIRO ASSASSINO- Então eu volto para contar ao duque de Gloster [Ricardo]

SEGUNDO ASSASSINO- Espere um pouco; tenho esperança de que esse acesso de emoção desapareça logo. Em geral só agüenta até eu contar vinte.

PRIMEIRO ASSASSINO- Como é que está se sentindo agora?

SEGUNDO ASSASSINO- Ainda estou sentindo uns restinhos de consciência dentro de mim.

PRIMEIRO ASSASSINO-Lembre-se da recompensa depois do serviço.

SEGUNDO ASSASSINO- Raios! Ele morre. Eu tinha esquecido a recompensa.

PRIMEIRO ASSASSINO- Onde é que está sua consciência?

SEGUNDO ASSASSINO- Na bolsa do duque de Gloucester.”

invenção do humano

[6] Gosto muito da retórica de perfídia de Ricardo (e a sua manipulação da cumplicidade), como no momento em que ele sugere o assassinato dos filhos do rei a Buckingham:

RICARDO- Ai, Buckingham, agora vou pedir-te

                      A prova de que és mesmo ouro de lei;

                       O pequenino Eduardo inda está vivo.

                       Pensa agora o que eu quero te dizer.

BUCKINGHAM-  Diga-o, senhor.

RICARDO- Eu quero ser o rei.

BUCKINGHAM- Mas já o é, meu glorioso amo.

RICARDO- Sou, é verdade. Mas Eduardo vive.

BUCKINGHAM- Certo, meu nobre príncipe.

RICARDO- Ó desgraça

                      Que Eduardo esteja vivo! É a verdade!

                      Meu primo, tu não eras tão opaco:

                      Devo ser claro?—Eu quero que os bastardos

                      Morram; e quero tudo bem depressa.

                      Que dizes tu? Fala depressa e claro.

BUCKINGHAM- Sua Alteza fará o que quiser.

RICARDO- Vejo que está gelado o teu afeto.

                      Diz: tu consentes que eles sejam mortos?

BUCKINGHAM- Um momento, senhor, dê-me uma pausa

                               Antes que eu manifeste a minha ideia:

                               Eu lhe darei depressa uma resposta. (SAI)

CATESBY (à parte, a um outro) O rei está zangado, morde os lábios.

RICARDO- Quero falar com loucos e rapazes

                     De cabeça de ferro: não me agradam

                     Os que me dão olhares ponderados.

                      O duque está ficando ponderado…”

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[7] E aqui,como mais adiante, mais uma vez minha percepção da peça contrasta sensivelmente com a de Harold Bloom:

“Outro ponto fraco de Ricardo III é Margaret, viúva de Henrique VI, para quem Shakespeare foi incapaz de escrever um único verso decente. Uma vez que Ricardo III é exageradamente longa, Shakespeare teria se saído bem melhor caso dispensasse a tagarela Margaret, que só faz praguejar.”

   Como explico na minha resenha, acho o “praguejar” de Margaret um princípio estruturador e coesivo de uma trama que, sem ele, seria muito mais dispersa e inextricável.

[8]DUQUESA DE YORK- O embuste pode usar formas amáveis

                           E a face da virtude esconde o vício!

                           É meu filho, aí ´stá minha vergonha,

                           Embora de meu peito não herdasse

                           Tanta maldade.

Meu ilustre companheiro de travessia por Ricardo III, Harold Bloom acha as falas, o carpir todo dessa mulherada, algo sentencioso e reprovável do ponto de vista poético e dramático: “Na verdade, a peça é um pesadelo para qualquer atriz, pois nenhum dos papéis femininos é encenável, seja o da pobre Anne, seduzida por Ricardo através do terror; o de Elizabeth, viúva de Eduardo IV, ou o da Duquesa de York, mãe de Ricardo. O máximo que Shakespeare permite a tais personagens é declamar versos, como se as falas bombásticas de Margaret houvessem estabelecido um novo estilo dramático…” A meu ver, sem essa participação das mulheres, a peça seria muito mais desinteressante (como bem diz a Duquesa de York: “Por que é que a dor é rica de palavras?”), embora seja difícil realmente imaginar o “tom” a ser adotado no palco, sem cair no histrionismo excessivo ou no ridículo.

[9] Incidentalmente, também creio que seja útil apontar que as cenas dos cidadãos, comentando os acontecimentos “palacianos” evocam o topos do “mundo virado do avesso”, que parece ser uma sensação do senso comum, em qualquer época:

SEGUNDO CIDADÃO- Más notícias, por Deus nunca vêm boas:

                                           Tenho medo que o mundo esteja louco.

E mesmo em seu carpir, as personagens nobres ampliam essa perspectiva, como na seguinte fala da Duquesa de York: “E depois de seguros, superadas/ As domésticas rixas, eles mesmos/ Conquistadores, se guerrearam todos/ Irmão co´o próprio irmão, sangue com sangue/ Um contra o outro; ó coisa indigna e horrível:/ Cessa de vez com isso, ultraje absurdo/ Ou deixa-me morrer, fugindo à morte!”

[10] “Belo mundo, realmente! Quem seria

tão bronco que não visse tal embuste?

Mas quem tão corajoso que o declare?

Péssimo é o mundo, e acabará em nada

porque tamanha infâmia é tolerada.” (Carlos Alberto Nunes)

“Belo mundo, este em que vivemos! Quem pode ser tão obtuso a ponto de não ver artimanha assim palpável? Mas, por outro lado, quem seria peitudo a ponto de dizer que está vendo? Porcaria de mundo, e tudo vai dar em nada, já que uma falcatrua dessas somos forçados a reconhecer apenas em pensamento.” (Beatriz Viégas-Faria)

VER TAMBÉM NO NO BLOG:

https://armonte.wordpress.com/2010/12/03/a-mulher-negra-o-homem-dourado-e-o-malabarista-de-palavras/

https://armonte.wordpress.com/2012/04/02/tres-comentarios-sobre-rei-lear/

https://armonte.wordpress.com/2010/12/04/hamlet-generico/

https://armonte.wordpress.com/2010/08/10/o-bloomshakespeare/

https://armonte.wordpress.com/2010/12/05/o-contexto-de-shakespeare-sob-o-signo-da-peste/

https://armonte.wordpress.com/2011/04/17/os-personagens-de-shakespeare-em-quatro-atos-longos-e-um-quinto-ato-curto/

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Ricardo III

10/03/2013

NOITE DE REIS: Os “humores” humanos (sangue, bílis, linfa, fleuma) na comédia maluca de Shakespeare

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(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 09 de abril de 2005)

Depois de fazer justiça ao trabalho de fôlego de Barbara Heliodora  no sábado passado, convém lembrar que outra tradutora de Shakespeare, Beatriz Viégas-Faria, já tem uma respeitável lista de títulos nos últimos anos: entre outros, Macbeth, Otelo, Romeu e Julieta, Sonho de uma noite de verão, Muito barulho por nada,  Júlio César; sendo  Noite de Reis um dos mais recentes. A versão de Heliodora, por sua vez, acaba de ser lançada pela Lacerda.

Embora um Bobo, Feste, tenha grande importância em Noite de Reis, e paire “loucura” no ar, estamos longe de Rei Lear. Trata-se de uma mascarada, de uma fantasia brincando com o amor e a identidade sexual. A Corte (de Elizabeth I e Jaime I)  tinha por hábito usar o teatro como diversão no período subseqüente ao Natal, culminando com a 12ª noite, daí o título original.

Na comédia maluca de Noite de Reis o casal de gêmeos, Sebastian e Viola, é vítima de um naufrágio e os dois chegam, separados dessa forma, à Ilíria, na qual Orsino, o Duque, corteja em vão a Condessa Olívia.  Viola disfarça-se de homem e passa a servir Orsino (por quem se apaixona), inclusive como intermediário entre ele e a esquiva Olívia (que se apaixona por Viola enquanto rapaz). Quando Sebastian aparece, uma série de confusões se estabelece porque todos o tomam pela irmã. Um dos momentos mais engraçados acontece quando  Sir Andrew Aguecheek, ridículo pretendente de Olívia, o encontra na rua e o esbofeteia. Ao revidar, Sebastian pensa: “Serão todos loucos ?”, pergunta nada exagerada, pois logo a seguir ele é levado para a Igreja por Olívia, a quem nunca vira  a fim de celebrar o noivado.

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A personagem mais famosa da peça é Malvólio, um puritano afetado, vítima de uma  trama de serviçais e parentes de Olívia: ele fica convencido de que sua patroa  está apaixonada por ele e é tido como lunático. Como bem observou Harold Bloom, o que torna interessante Malvólio (e define a atmosfera de Noite de Reis) é que ele sonha “a ponto de distorcer a sua própria noção de realidade, permitindo, assim, que Maria lhe perceba a natureza e contra ele arme uma cilada”. O mesmo Bloom  mostra que Feste, o Bobo, é o único personagem sensato nessa comédia desvairada. Todos, tocados pelo amor, ou confundindo o amor com outra coisa (mania de grandeza, interesse material) piram, saem dos eixos, traem suas naturezas e suas vontades racionais. Shakespeare também se vale comicamente de uma teoria predominante em sua época: de que o homem é escravo dos seus “humores” (sangue, bílis, linfa, fleuma) e que eles definem seu temperamento.

Apesar da sua agora já extensa intimidade com Shakespeare, Beatriz Viéga-Faria ainda se contenta em nos dar paráfrases das falas, sem arriscar vôos poéticos ou cômicos. Acostumado durante anos com as  traduções de Carlos Alberto Nunes (e  olhe que elas já foram muito criticadas), é difícil ver uma passagem como esta, por exemplo (em que Orsino se declara à Viola), “Vosso dono vos deixa, e em pagamento / dos serviços de prol que lhe prestastes / contra a disposição de vosso sexo / e a ternura que em tudo vos é própria / já que tanto tempo me chamastes / de Senhor, minha mão ora aqui tendes / de ora avante és a dona de teu dono, virar isso: “O seu amo não precisará de seus serviços. E, pelo trabalho prestado, tão contrário às aptidões de seu sexo, tão abaixo de sua criação nobre e delicada,  e dado que você me chamou de mestre por tanto tempo, eis aqui a minha mão: a partir de agora, você é a dona de seu mestre, senhora de seu senhor”. É tudo igual, mas como tudo muda! Se para melhor ou pior, depende do leitor.

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30/01/2013

ORGULHO E PRECONCEITO 200 anos: Traduções Brasileiras

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Com a comemoração dos duzentos anos da publicação original de ORGULHO E PRECONCEITO (Pride and Prejudice), de Jane Austen (1775-1817), o leitor comum pode sentir a necessidade de indicações quanto às mais confiáveis entre as numerosas traduções brasileiras desse romance genial. Editoras nunca muito cortejadas pela mídia, uma delas injustamente (a L&PM); a outra, só agora dando mostras de sair do atoleiro de descrédito abissal, contudo lucrativo, em que se afundara (a Martin Claret), apresentam boas traduções, que ombreiam com a tradução paradigmática (e ainda muito útil, a meu ver) de Lúcio Cardoso, a qual desde 1940 vem sendo incessantemente republicada. Não sei nem o que dizer da versão publicada pela Landmark, tão abaixo do nível de uma Jane Austen ou de qualquer autor clássico ela me parece.

Entre as mais recentes, a mais badalada—inclusive pelo aparato que a acompanha—foi certamente a publicada pela Penguin/Companhia. No entanto, houve incríveis falhas sobretudo de revisão, e ela resultou desleixada e discutível. Logo nas primeiras páginas há um erro incrível: são atribuídas QUATRO filhas ao casal Bennet (na verdade, são cinco, e no original lemos: “When a woman has five grown-up daughters…”; traduziu-se assim: “Uma mulher com quatro filhas adultas…”; não seriam “cinco filhas [já] crescidas”?); logo a seguir este trecho incompreensivelmente truncado: “Lizzy não é em nada melhor que as outras; e garanto que sua beleza não chega nem à metade da beleza de Lydia.” (no original: “Lizzy is not a bit better than the others; and I am sure she is not half so handsome as Jane, nor half so good-humoured as Lydia.”). Portanto, acautele-se leitor com relação a essa versão.

Nota- Para maiores informações sobre traduções de Jane Austen, aconselho a leitura de:

http://naogostodeplagio.blogspot.com.br/2010/01/orgulho-e-preconceito-da-best-seller.html

http://naogostodeplagio.blogspot.com.br/2010/01/orgulho-e-preconceito-da-lpm.html

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Escolhi um trecho do capítulo 42 para cotejar as cinco traduções de que disponho:

Primeiramente o original:

“Had Elizabeth´s opinion been all drawn from her own family, she could not have formed a very pleasing picture of conjugal felicity or domestic comfort. Her father captivated by youth and beauty, and that appearance of good humour, which youth and beauty generally give, had married a woman whose weak understanding and illiberal mind, have very early in their marriage put an end to all real affection for her. Respect, esteem, and confidence, had vanished for ever; and all his views of domestic happiness were overthrown. But Mr. Bennet was not of a disposition to seek comfort for the disappointment which his own imprudence had brought on, in any of those pleasures which too often console the unfortunate for their folly or their vice. He was fond of the country and of books; and from these tastes had arisen his principal enjoyments. To his wife he was very little otherwise indebted, than as her ignorance and folly had contributed to his amusement (…)

    Elizabeth, however, had never been blind to the impropriety of her father´s behavior as a husband. She had always seen it with pain; but respecting his abilities, and grateful for his affectionate treatment of herself, she endeavoured to forget what she could not overlook, and to banish from her thoughts that continual breach of conjugal obligation and decorum which, in exposing his wife to the contempt of her own children, was so highly reprehensible.”

(extraído de The complete novels of Jane Austen, The Wordsworth Library Collection)

pride and prejudice

“Se as opiniões de Elizabeth se originassem do exemplo dado por sua própria família, sua ideia de felicidade conjugal e de conforto doméstico não poderia ser das mais lisonjeiras. Seu pai, cativado pela mocidade, beleza e aparência de bom humor que a juventude em geral confere às mulheres, casara-se com uma pessoa de compreensão limitada e de ideias estreitas; pouco depois do casamento, esses defeitos haviam extinto toda a afeição sincera que tinha por ela. O respeito, a estima, a confiança, tinham-se desvanecido para sempre. E todos os seus anseios de felicidade doméstica foram destruídos. Mas o senhor Bennet não era desses homens que procuram se consolar das desilusões causadas por suas próprias imprevidências entregando-se a esses prazeres em que os infelizes procuram uma compensação para suas loucuras e vícios. Ele gostava do campo e dos livros, suas principais distrações. Quanto à sua mulher, pouco mais lhe devia do que os divertimentos que o espetáculo de sua ignorância e sua falta de sensibilidade lhe tinham proporcionado (…)

   Elizabeth, no entanto, nunca fora cega aos defeitos de seu pai como marido. Aquilo sempre lhe doera, mas, admirando suas qualidades e grata pela maneira afetuosa com que a tratava, esforçava-se por esquecer o que não podia deixar de  perceber e bania dos seus pensamentos essas contínuas irregularidades de conduta conjugal, que, expondo sua mãe aos desprezo das próprias filhas, era portanto altamente repreensível.”

(tradução de Lúcio Cardoso, utilizada em diversas edições, ao longo das décadas)

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“Se a opinião de Elizabeth fosse formada a partir de sua própria família, ela não teria estabelecido uma opinião muito favorável sobre a felicidade conjugal ou o conforto doméstico. Seu pai, cativado pela juventude e pela beleza, e por aquela aparência de bom-humor que a juventude e a beleza geralmente dão, tinha se casado com uma mulher cuja fraca compreensão e mente nada liberal tivesse [sic] colocado um termo, logo no começo do casamento, a toda real afeição por ela. O respeito, a estima e a confiança teriam se esvaído para sempre; e todas as opiniões dele sobre a felicidade no lar seriam reviradas. Mas o Sr. Bennet não tinha o temperamento de buscar conforto, pelo desapontamento que sua própria imprudência tinha causado, em nenhum desses prazeres que muito comumente consolam os desafortunados pela sua fantasia ou pelo seu vício. Ele era apaixonado pelo campo e pelos livros; e desses gostos, se erguiam suas principais diversões. Por outro lado, ele devia muito pouco à sua esposa, do que a ignorância e os desatinos tinham contribuído para seu deleite (…)

    Elizabeth, porém, nunca fora cega à impropriedade do comportamento de seu pai como marido. Ela sempre o vira com dor; mas respeitando suas habilidades e grata pelo tratamento afetuoso que recebia, ela tentava se esquecer do que não conseguia passar despercebido e banir de seus pensamentos aquela contínua quebra de obrigação conjugal e decoro que, ao expor sua esposa ao desprezo de suas próprias crianças, era tão altamente repreensível.”

(tradução editado pela Landmark e realizada por Marcella Furtado que—entre tantas soluções horrendas—parece titubear nos tempos verbais, basta ver o trecho sublinhado)

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“Fossem todas as opiniões de Elizabeth formadas a partir de sua própria família, sua ideia de felicidade conjugal ou conforto doméstico não seria das mais agradáveis. O pai, cativado pela juventude, pela beleza e por aquela aparência de bom-humor que em geral acompanha a juventude e a beleza, casara-se com uma mulher cuja pouca inteligência e espírito intolerante em pouco tempo destruíram todo o afeto que sentira por ela. Respeito, estima e confiança desapareceram para sempre, e toda esperança de felicidade doméstica foi abandonada. Mas o sr. Bennet não tinha propensão para buscar conforto para o desapontamento causado por sua própria imprudência em nenhum daqueles prazeres que tantas vezes consolam os desafortunados por sua loucura ou devassidão. Ele gostava do campo e de livros; e dessas preferências brotaram suas maiores alegrias. À esposa, ao contrário, pouco devia, além da diversão provocada pela ignorância e pela loucura (…)

    Elizabeth, entretanto, nunca fora cega à impropriedade do comportamento do pai enquanto marido. Sempre sofreu com isso, mas, respeitando suas qualidades e grata pelo afetuoso tratamento que ele lhe dispensava, tentava esquecer o que não podia deixar de perceber e afastar do pensamento a contínua transgressão das obrigações conjugais e a falta de decoro que, por expor a mulher ao desprezo de suas próprias filhas, era tão altamente condenável.”

(Tradução editada pela L&PM, e realizada com Celina Portocarrero, que nada fica a dever à tradicional e vetusta versão de Lúcio Cardoso)

L&PM

“Se a opinião de Elizabeth se baseasse apenas em sua própria família, não poderia ter feito um julgamento muito favorável da felicidade conjugal ou da paz doméstica. Seu pai, cativado pela juventude e pela beleza e por aquela aparência de bom humor que a juventude e a beleza geralmente provocam, casara-se com uma mulher cuja pouca inteligência e generosidade mental haviam, desde muito cedo no casamento, posto um ponto final em todo real afeto por ela. Respeito, estima e confiança haviam desaparecido para sempre; e todos os seus projetos de felicidade doméstica foram arruinados. Não era da natureza do sr. Bennet, porém, procurar reconforto para a decepção que sua própria imprudência produzira em algum desses prazeres que muitas vezes consolam o infeliz por sua insensatez ou seu vício. Adorava o campo e os livros; e desses gostos vinham suas principais alegrias. Sua dívida para com a mulher era muito pequena, a não ser pela diversão que o espetáculo de sua ignorância e insensatez lhe proporcionava (…)

   Elizabeth, porém, nunca foi cega à impropriedade do comportamento do pai como marido. Sempre a encarava com pesar; mas, respeitando a capacidade dele e grata ao tratamento carinhoso que ele lhe dispensava, tentava esquecer o que não podia superar, e expulsar de seus pensamentos essa violação das obrigações e do decoro conjugais, que, ao expor a mulher ao desdém das próprias filhas, era tão repreensível.”

(Editada pela Martin Claret—num volume onde estão também Razão e Sensibilidade  & Persuasão—e realizada por Roberto Leal Ferreira, também num trabalho de qualidade)

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Se as opiniões de Elizabeth fossem sempre as mesmas de sua família, ela não teria criado um quadro muito agradável  da felicidade conjugal ou dos confortos do lar. Seu pai, cativo da juventude e da beleza, e daquela aparência de bom humor que a juventude e a beleza costumam conferir, casara-se com uma mulher de parcas luzes e mentalidade tacanha, e logo no início do casamento abdicara de qualquer afeto genuíno por ela. Respeito, estima e confiança haviam sumido para sempre; e todas as suas aspirações à felicidade doméstica foram abolidas. Mas o senhor Bennet não parecia disposto a procurar consolo para uma frustração que sua própria imprudência acarretara em nenhum daqueles prazeres que tantas vezes consolam os desafortunados em sua loucura ou seu vício. Ele gostava do campo e de livros; e desses dois prazeres extraía o principal de seus deleites. À esposa, ele era grato simplesmente na medida em que sua ignorância e suas tolices ajudavam a distraí-lo (…)

    Elizabeth, contudo, jamais fora cega às impropriedades do comportamento do pai como marido. Sempre lamentara tal atitude; mas, respeitando suas qualidades e grata pelo tratamento afetuoso que lhe dedicava particularmente, ela procurava esquecer  o que não conseguiria relevar e bania de seus pensamentos a contínua falha dos deveres e do decoro conjugal que, expondo a esposa ao desprezo das próprias filhas, era nele altamente repreensível.”

(Co-editada pela Penguin-Companhia, essa tradução de Alexandre Barbosa de Souza é altamente irregular, como se pode ver pelo início infeliz do trecho, e muito literal por vezes, apresentando no entanto boas soluções aqui e ali)

AQUI NO BLOG:

https://armonte.wordpress.com/2010/07/30/minha-amiga-elizabeth/

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25/01/2013

Traduções dos sonetos de Antero (segunda parte): O Palácio da Ventura, Il Pallazzo della Ventura, Erdenglüch

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O PALÁCIO DA VENTURA

Sonho que sou um cavaleiro andante.

Por desertos, por sóis, por noite escura,

Paladino do amor, busco anelante

O palácio encantado da Ventura!

                                                           

Mas já desmaio, exausto e vacilante,

Quebrada a espada já, rota a armadura…

E eis que súbito o avisto, fulgurante

Na sua pompa e aérea formosura!

 

Com grandes golpes bato à porta e brado:

Eu sou o Vagabundo, o Deserdado…

Abri-vos, portas d´ouro, ante mais ais!

 

Abrem-se as portas d´ouro, com fragor…

Mas dentro encontro só, cheio de dor,

Silêncio e escuridão—e nada mais!

 

“A vida biológica e social tem uma propensão muito profunda a fixar-se na sua imanência: os homens aspiram simplesmente a viver e as estruturas sociais a manter-se intactas; e o afastamento, a ausência de um Deus ativo tornaria onipotente a inércia dessa vida que se basta a si mesma e se abandona em paz à sua própria estagnação se não acontecesse aos homens, dominados pelo poder do demônio, elevar-se por vezes acima de si mesmos—de uma maneira infundada e infundável—e renunciar aos fundamentos psicológicos e sociológicos da sua própria existência.  É então que esse mundo abandonado por Deus se revela de repente como privado de substância, mistura irracional, simultaneamente densa e porosa; o que parecia ser o mais firme, quebra-se como argila seca sob os golpes do indivíduo possesso do demônio, e a transparência vazia que deixava entrever paisagens de sonho transforma-se bruscamente numa parede de vidro contra a qual, vítimas de uma vã e incompreensível tortura, nos chocamos como a abelha contra o vidro, sem conseguir furá-lo, sem querer perceber que aqui não há caminho…” (György Lukács)

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O PALÁCIO DA VENTURA é um dos mais belos e perfeitos, e provavelmente o mais paradigmático, entre os sonetos de Antero de Quental, porque é uma constatação do homem contemporâneo, do homem tocado pelo “demoníaco” no sentido lukácsiano, o anti-herói do “romantismo da desilusão”, em plena era burguesa, quando não encontra mais sentido no mundo ao seu redor. O imaginário medieval fornece uma daquelas imagens recorrentes de um mundo que é, ainda, costurado por uma ideia-mestra alegórica (O Palácio da Ventura), a peregrinação se dá naquele tônus cristão típico (clima de Mistérios). Vagabundo, deserdado, espada quebrada, armadura rota, símbolos externos que não são alheios aos próprios cavaleiros medievais em suas demandas, mas igualmente são signos de um desalinho interno, bem característico de uma época em que a costura do mundo se desalinhavou e há um hiato entre consciência e aquilo que a cerca. Mas a grande decepção é encontrar o ideal externo, o que se busca, o objetivo transcendente, “vazio”, pleno de escuridão e silêncio apenas. No mais, o moto de Antero habitual: o sonho.

Eu, que tenho a mania comparativa, sempre penso no soneto de Quental associado a um outro, igualmente belíssimo e com o mesmo imaginário épico-cristão enxovalhado, por assim dizer:

VANDALISMO (Augusto dos Anjos)

Meu coração tem catedrais imensas,

Templos de priscas e longínquas datas,

Onde um nume de amor, em serenatas,

Canta a aleluia virginal das crenças.

 

Na ogiva fúlgida e nas colunatas

Vertem lustrais irradiações intensas

Cintilações de lâmpadas suspensas

E as ametistas e os florões e as pratas.

 

Como os velhos templários medievais

Entrei um dia nessas catedrais

E nesses templos claros e risonhos…

 

E erguendo os gládios e brandindo as hastas,

No desespero dos iconoclastas

Quebrei a imagem dos meus próprios sonhos.

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Abaixo, duas traduções italianas e uma alemã de O PALÁCIO DA VENTURA, encontradas numa edição de 1890 de OS SONETOS COMPLETOS:

IL PALLAZZO DELLA VENTURA

Son io, nei sogni, un cavaliero errante.

Ai raggi ardenti, e per la notte oscura,

Paladino di amor cerco anelante

Il palagio incantato di Avventura.

 

Nei deserti già stanco e vacillante

Sono e rotta é la spada e l´armatura:

Ecco a un tratto la veggo sfolgorante

Quell´aerea beltade e le alte mura.

 

Picchio e ripicchio ed urlo, quanto ho fiato,

Il vagabondo io son, diseredato,

Porte d´oro v´aprite ad um dolente!

 

Le porte d´oro s´apron com fragore,

E non vi trovo, pieno di dolore,

Che tenebra, silenzio… e più niente.

(tradução de Emilio Teza)

 

 

 

IL PALAZZO DELLA VENTURA

Per desertí, col sole, a notte oscura,

Sogno Che sono un cavaliere errante,

Paladino d´amor, cerco anelante

L´incantata magion de la Ventura.

 

Ma l´acciar franto e fessa è l´armatura,

Io casco a terra esausto e vacillante

E allor mel veggo incontro sfolgorante

De la beltá più maestosa e pura.

 

Picchio a l´ingresso e grido con furore:

“Sono Il diseredato, Il vagabondo…

Schiudetevi al mio pianto, aurate porte!”

 

S´apron la porte d´oro con fragore…

E veggo dentro con dolor profondo

Nient´altro, ohimè, che orror, silenzio e morte!

(tradução de Thomaz Cannizzaro)

 

ERDENGLÜCH

Mir träumt, ich fahr´umirrend ohne Rast,

Ein Paladin der Minne, durch die Lande

Und such´in  Winterfrost, und Sommerbrande

Ringsher nach Frau Fortunas Wunschpalast;

 

Bereits erlieg´ich all der Müh´und Hast,

Am Schwerte Scharten, Riss´im Stahlgewande:

Da she ´ich plötzlich fern am Bergesrande

Aufglüh´n der Zinnen Kranz in gold, gem Glast;

 

Hineilend ruf´ich mit Geschrei und Pochen:

“Ich bin enterbt, verlassen und gebrochen,

Spring auf, erbarme dich, du Thor des Lichts!”

 

Da klafft die Pforte mit gewalt´gem Schlage;

Jedoch im Inn´ren find´ich Schmerz und Klage,

Schweigen und Finsterniss—und anders nichts.

(tradução de Guilherme Storck)

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24/01/2013

Traduções dos sonetos de Antero (primeira parte)

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A CLÁUDIA, pelo presente e pela amizade


Consulta

 

Chamei em volta do meu frio leito

As memórias melhores de outra idade,

Formas vagas, que às noites, com piedade,

Se inclinam, a espreitar, sobre o meu peito…

 

E disse-lhes: —No mundo imenso e estreito

Valia a pena, acaso, em ansiedade

Ter nascido? dizei-mo com verdade,

Pobres memórias que ao seio estreito….

 

Mas elas perturbaram-se —coitadas!

E empalideceram, contristadas,

Ainda a mais feliz, a mais serena…

 

E cada uma delas, lentamente,

Com um sorriso mórbido, pungente,

Me respondeu: —Não, não valia a pena!

os sonetos

Recebi da minha diletíssima amiga Cláudia um inesperado e belo presente, numa visita à Disquería, a loja dela e de Wagner Parra, com discos, CDs, DVDs e livros:  OS SONETOS COMPLETOS, de Antero de Quental (1842-1891), ou Anthero de Quental, como está, numa edição de 1890, da Livraria Portuense, de Lopes & C.A.-editores. Pois bem, tenho várias edições diferentes da obra desse que é meu poeta oitocentista favorito, em língua portuguesa, junto com o igualmente admirável Cesário Verde, desse que é um romântico incurável perdido em plena época positivista, materialista, burguesa, que faz uma poesia filosófica que tem nostalgia dos arroubos do mais descabelado romantismo.

Que diferença esta traria? Além da grafia (ao reproduzir os poemas em português, achei melhor modernizá-la, para facilitar a leitura, entretanto até me arrependi um pouco de tê-lo feito. Olha que delícia: “Só uma vez ousei interrogal-o:/Quem és (lhe perguntei com grande abalo)/Phantasma a quem odeio e a quem amo?// Teus irmãos (respondeu) os vão  humanos/ Chamam-me Deus, há mais de dez mil annos…/Mas eu por mim não sei como me chamo…”), o volume é completado com diversas traduções dos poemas em espanhol, em francês, em italiano, em alemão, algumas das quais reproduzo abaixo, junto com o original “modernizado”. Têm sido minha diversão nos últimos dias e quero compartilhá-la com meu leitor:

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Evolução

 

Fui rocha, em tempo, e fui, no mundo antigo,

Tronco ou ramo na incógnita floresta…

Onda, espumei, quebrando-me na aresta

Do granito, antiquíssimo inimigo…

 

Rugi, fera talvez, buscando abrigo

Na caverna que ensombra urze e giesta;

Ou, monstro primitivo, ergui a testa

No limoso paul, Glauco pascigo…

 

Hoje sou homem —e na sombra enorme

Vejo, a meus pés, a escada multiforme,

Que desce, em espirais, na imensidade…

 

Interrogo o infinito e às vezes choro…

Mas, estendendo as mãos no vácuo, adoro

E aspiro unicamente à liberdade.

 

 

Evolution

 

Einst war ich Fels und war in alter Welt

Baum oder Strauch im unbekannten Wald;

Als schäum´ge Welle ward ich ohne Halt

Vom frühsten Feinde, dem Granit, zerschellt;

 

Ich brüllt als Raubthier, wo zu schatt´gem Zelt

Einhüllten Ginst und Farn den Höhlenspalt,

Und hob als urweltart´ge Missgestalt

Lässig den wüsten Kopf aus Sund und Belt;

 

Jetzt bin ich Mensch —und seh´im falben Licht

Weithin zu Füssen mir die Stufenschicht,

Die niedersteigt in vielgewund´nem Gang;

 

Das Unbegrenzte fragend, wein´ich still;

Doch, ausgestreckt die Händ´in´s Leere, —will

Und wünsch´inh Freiheit bloss aus diesem Zwang.

(tradução de Guilherme Storck)

 

 

 

Elogio da morte III

 

Eu não sei quem tu és —mas não procuro

(Tal é a minha confiança) devassá-lo.

Basta sentir-te ao pé de mim, no escuro,

Entre as formas da noite com quem falo.

 

Através de silêncio frio e obscuro

Teus passos vou seguindo, e, sem abalo,

No cairel dos abismos do Futuro

Me inclino à tua voz, para sondá-lo.

 

Por ti me engolfo no noturno mundo

Das visões da região inominada.

A ver se fixo o teu olhar profundo…

 

Fixá-lo, compreendê-lo, basta uma hora,

Funérea Beatriz de mão gelada…

Mas única Beatriz consoladora!

 

 

Elogio de la muerte III

 

Yo quien eres no sé; mas no procuro,

Tal es mi confianza, averiguarlo;

Para huir el temor, para esquivarlo,

Bástame verte junto á mi en lo oscuro.

 

Tu paso lento y á tu fin seguro

Persigo en el silencio, sin turbarlo,

E inclínome á tu voz, por sondëarlo,

Al borde del abismo del futuro.

 

Por ti me engolfo en la región fecunda

De los nocturnos sueños, tu mirada

Solicitando plácida y profunda;

 

Mirada á mi hondo afan reveladora,

Fúnebre Beatriz de mano helada,

Mas única Beatriz consoladora.

(tradução de Manoel Curros Henriquez)

 

 

Divina Comédia

 

Erguendo os braços para o céu distante

E  apostrofando os deuses invisíveis,

Os homens clamam: “Deuses impassíveis,

A quem serve o destino triunfante,

 

Porque é que nos criastes?! Incessante

Corre o tempo e só gera, inextinguíveis,

Dor, pecado, ilusão, lutas horríveis,

Num turbilhão cruel e delirante…

 

Pois não era melhor na paz clemente

Do nada e do que ainda não existe,

Ter ficado a dormir eternamente?

 

Porque é que para a dor nos evocastes?”

Mas os deuses, com voz inda mais triste,

Dizem: “Homens! porque é que nos criastes?”

 

 

Divine Comédie

 

Levant leurs bras meurtris vers le cieux incléments,

Apostrophant, hagards, tous  les dieux invisibles,

Les hommes disent: “Dieux éternels, impassibles,

Dieux servis par le sort vainqueur, dieux  triomphants,

 

Pourquoi nous avez-vous créés?! Toujours le temps

Marche, aveugle semeur, semant d´inextinguibles

Douleurs, illusions, deuils, pleurs, combats terribles,

En des noirs tourbillions, hurlants et sanglotants!

 

Ne serions-nous bien mieux dans la paix infinite

Du néant, de ce qui n`a pas encor la vie,

Dans um sommeil clément et sans réveil noyés?

 

Pour la douler pourquoi faut-il que l`homme existe?”

Mais les dieux, d`une voix infinitement plus triste,

Disent: “Hommes, pourquoi nous avez-vous crées?”

(tradução de Fernando Leal)

 

 

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