MONTE DE LEITURAS: blog do Alfredo Monte

30/07/2014

“Verão de 1914” (“Os Thibault”): o estupendo retrato ficcional do mergulho da Europa na Primeira Guerra Mundial

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Recuso-me por instinto às ilusões metafísicas. Jamais o nada teve para mim tanta evidência. Dele me aproximo com horror, com uma revolta do instinto, mas nenhuma tentação de negá-lo, de procurar refúgio em absurdas esperanças.”    

                                   (Antoine Thibault)

Os Thibault (Les Thibault), iniciado em 1922 e dividido em oito partes, foi um dos mais influentes do século passado, embora hoje esteja um tanto esquecido[1].

Em 1936 (um ano depois, ganharia o Nobel), Roger Martin du Gard deu maior fôlego e amplitude à sua obra-prima, com Verão de 1914 [ “L´ÉTÉ 1914], a sétima parte (há ainda um longo Epílogo, publicado em 1940), onde narra  a transição entre o mundo tradicional e sufocante da  “Velha França”, que parecia tão sólido e duradouro[2], e a convulsão efetivada pela Primeira Guerra Mundial.

Jacques Thibault vive em Genebra, após abrir mão da herança paterna. Atua como jornalista e principalmente como agitador socialista, no meio de um grupo de expatriados, cujas discussões e prognósticos conspiratórios a respeito do que as grandes potências farão a partir do atentado em Sarajevo (enquanto estão na expectativa do congresso da Internacional Socialista, marcado para agosto de 1914, em Bruxelas) preenchem um vasto espectro ideológico,  que vai dos anarquistas aos socialistas e militantes comunistas mais radicais.

Uma coisa fica clara: o imperialismo capitalista precisa da guerra e fomenta a sua aparente necessidade e inevitabilidade.

Para alguns leitores, os imensos diálogos podem parecer áridos e as idéias velhas. Com seu poder narrativo, porém, du Gard consegue fazer com que mergulhemos de cabeça na “mentalidade” que precede a guerra, de um modo mais palpável e palpitante do que qualquer livro de história, mesmo um do nível de A era dos extremos, de Hobsbawn.

Numa das suas “missões”, Jacques volta a Paris, onde reencontra o irmão, Antoine, o qual  ao contrário de Jacques, tomou posse de sua parte na herança, utilizando-a numa guinada ambiciosa de sua carreira. Na verdade,  transformou-se num grande burguês, em muitos aspectos parecido com o pai (há um momento em que dá uma risada e se assusta ao constatar que ela é igualzinha á do pai, a quem tanto ridicularizara). Jacques fica chocado com sua alienação com relação à ameaça de guerra. Essa opção por uma existência “monadista”, indiferente aos destinos gerais, como se estivesse isento do que acontece no resto do mundo, já distanciava Antoine da libertária Rachel, seu primeiro grande envolvimento amoroso (agora tem uma ligação com a mulher de um amigo, Anne).

Antoine já percebia as “cadeias” que o ligavam ao mundo burguês, da “honesta França”: “mas não desejava nem por um momento rompê-las; e experimentava, contra tudo o que Rachel amava e lhe era tão estranho, a aversão de um animal doméstico contra tudo o que ronda e ameaça a segurança da casa”.

Apesar de Os Thibault ser a história dos dois irmãos, Jacques é quem domina a cena de Verão de 1914. Ele vê pouco a pouco a opinião pública sendo compelida a resignar-se (e até a rejubilar-se) com a perspectiva da guerra iminente e percebe que nem os círculos socialistas são capazes de resistir á sedução dos apelos patrioteiros e chauvinistas. Mesmo o seu irmão, Antoine, e o seu amigo de infância, Daniel de Fontanin, engajam-se na mobilização geral. Poucos romances mostraram tão bem o que é um país preparar-se para entrar em guerra.

Jacques está decidido a tentar de tudo para evitá-la e a não lutar nela. Nessa roda-viva, ainda encontra tempo de efetivar sua ligação com Jenny, irmã de Daniel (dessa ligação nascerá um menino que mais tarde simbolizará para Antoine, o tio, a “humanidade futura”). Quando finalmente o conflito começa, Jacques resolve abandonar Jenny e realiza um ato de sacrifício, tentando sobrevoar as trincheiras num aeroplano para espalhar panfletos pacifistas. O avião cai e ele fica gravemente ferido. É tido como espião pelos soldados franceses, que o arrastam numa padiola durante uma retirada, até que ele se torna um tal estorvo, que se é obrigado a abatê-lo. Esse terrível final de Verão de 1914 é um momento antológico da ficção.

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Por algum tempo, pensou-se que era também o desfecho de Os Thibault. Jacques aparecia como o grande personagem da obra, uma vez que a figura do  outro irmão não sofrera maior evolução . Para o grande crítico húngaro Georg Lukács, por exemplo, o centro de irradiação do ciclo é “o encontro decisivo de Jacques Thibault com o socialismo”. Será mesmo?

Lançado já em plena Segunda Grande Guerra, Epílogo muda tudo. Em 1918, Antoine está condenado à morte devido aos gases utilizados na guerra que está por terminar. Ele enfrenta a realidade de sua extinção pessoal próxima num sanatório (após uma rápida visita a Paris, quando ficamos sabendo mais ou menos do destino das outras personagens importantes de Os Thibault).

Muita gente considera esse epílogo um mero prolongamento de uma obra que já dissera o que tinha a dizer. Não concordo: tanto a figura de Antoine quanto essa seção final são marcantes demais para serem consideradas “mero prolongamento”[3]. Pelo contrário, levam o livro a dimensões insuspeitadas. Um traço da alta ficção do século XX é o enciclopedismo, o passeio por discussões e áreas que ampliam sobremaneira o enredo e a linguagem. No diário que Antoine escreve antes de sua morte, o leitor vai sendo alçado a esse clima enciclopédico (que domina também A montanha mágica, de Thomas Mann, ou Em busca do tempo perdido, de Marcel Proust, certamente os monumentos do romance europeu do século XX). É o destino de um personagem, mas também é o destino da civilização que está em pauta, além de toda uma gama de conhecimentos (filosofia, política, história, medicina, biologia, etc).

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[1] No Brasil, ele foi publicado em 5 volumes. A edição mais recente é de 2002 (ainda usando uma já antiquada tradução de Casemiro Fernandes, ed. Globo). Há alguns anos assisti a uma  competentíssima adaptação em forma de minissérie (de 2003, escrita, entre outros, por Jean-Claude Carrière), com direção de Jean-Daniel Verhaegue. Jean Yanne fazia maravilhosamente Pére Thibault, Malik Zidi interpretava Jacques, e gostei muito do Antoine de Jean-Pierre Lorit.

[2] Retratado de forma indelével nas seis partes anteriores.

VER AQUI NO BLOG: https://armonte.wordpress.com/2010/10/24/da-velha-franca-a-guerra-mundial-numa-obra-prima-do-romance/

[3] Talvez esse meu ponto de vista tenha a ver com a minha identificação maior com a figura de Antoine mais do que com a de Jacques.

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29/07/2014

O trágico e o cômico do teatro de Ariano Suassuna (1927-2014): “Uma mulher vestida de sol” e “O santo e a porca”

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(uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 29 de julho de 2014)

Esta minha coluna corre o risco de transformar-se num veículo necrológico. Tantos são os óbitos de escritores notáveis que alguns chegaram a ser negligenciados (como o de Nadine Gordimer, responsável por alguns dos mais belos e perceptivos romances da ficção contemporânea) e eles estão em franca concorrência com os lançamentos do ano.

O fato é que João Ubaldo Ribeiro e Ariano Suassuna são dois nomes fundamentais da nossa literatura. Na semana passada, a morte do primeiro me propiciou uma revisão de juízo a respeito de O sorriso do lagarto; nesta, me volto para o fascinante teatro do autor de A pedra do Reino: há exatamente 50 anos, eram publicadas em livro a trágica Uma mulher vestida de sol e a cômica O santo e a porca.

Já se disse que a distinção básica entre tragédia e comédia é o desenlace: em ambas, em três atos, temos um pai autoritário e zeloso, com uma filha única, tida como seu maior “tesouro”, e que tem de se haver com um pretendente indesejável, amado por ela, contrariando os planos dele.

Primeira peça de Suassuna, escrita aos 20 anos, Uma mulher vestida de sol (1947[1]) é perpassada por uma gravidade ímpar. Sem chegar à solenidade artificiosa, o tom das falas é sentencioso e fatalista: todos em cena estão conscientes do peso do sangue e da palavra “empenhada” (eco da noção de honra cavalheiresca), da mortandade exigida pelo conflito cuja origem é a posse da terra: “Quem pode esquecer a morte, vivendo entre estas paredes?”, diz uma das personagens femininas. Temos um clã que se divide em duas facções (uma cerca é o pomo da discórdia), e de todos se exige um papel na engrenagem: quando Francisco, o filho pródigo de Antônio Rodrigues, afirma não ter interesse pelas terras em litígio (na verdade, é um artifício dele), o pai imediatamente o risca da sua vida: se ele não é o herdeiro da luta, não será “nada”.

Francisco ama Rosa, filha de Joaquim Maranhão, contrário à união não apenas pela quizila com a família do outro lado da cerca, como também por inclinação incestuosa evidente (como, antes, tinha pela irmã, Inocência, casada com o inimigo Antônio)[2]. Traiçoeiro e vil, ele apenas extrapola as características gerais dos donos da terra: o que impera nessa mentalidade, sejam os personagens mais ou menos simpáticos, é a lei do “pôs o pé na minha propriedade leva bala”. Intentando destruir os Rodrigues, utilizando até a filha (que, após casar com Francisco, é sequestrada pelo pai) como isca, Joaquim prepara a própria perdição ao assassinar um rapazote, Neco, filho do até então pacato retirante Inácio. Donana (tia de Rosa) o interpela: “Ele não estava derrubando a cerca não, estava só tirando mel!… Ele não tinha a ver com o pessoal de Antônio!; Ele: “Como é que eu podia saber? Estava na minha cerca, eu só podia pensar que era para derrubar. E ele atirou em mim!”; Ela: “Com uma garrucha de menino, carregada de chumbo…”; Ele: “Cale a boca… Foi uma desgraça que aconteceu com ele como podia acontecer comigo. Manuel, leve o rapaz no caixão de caridade… E diga ao pai do menino que eu o matei por engano…”!

Uma mulher vestida de sol (cujo título remete ao Apocalipse[3], enquanto o casal Francisco-Rosa pertence a toda uma tradição “Romeu e Julieta” do romanceiro popular nordestino[4]) ajuda a esclarecer que a violência atual que horroriza a tantos é a feição moderna de uma situação tornada atávica pelos desmandos de uma noção patriarcal e patrimonialista do mundo. Dramaturgicamente, ela é ainda muito forte, nada fica a dever às peças mais contundentes, de ambientação mais urbana, de um Nelson Rodrigues.

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O santo e a porca (1957) pertence ao ciclo supostamente mais brejeiro e singelo, cujo representante manjadíssimo é Auto da Compadecida (1955). É muito engraçada e dinâmica (Suassuna teve como modelo o romano Plauto, mestre da farsa), com um personagem que fez escola (de Molière a Ivani Ribeiro): o avarento. É o caso de Euricão Árabe, que esconde uma fortuna numa porca (um cofrinho), sempre em impagáveis apelos (e diatribes, quando contrariado) a Santo Antônio, pois tem a obsessão de que todos querem roubá-lo. Um dia, recebe a notícia de que o fazendeiro Eudoro Vicente, o qual tinha hospedado durante alguns meses sua filha, Margarida, chegará à cidade. Horrorizado com a possibilidade de ter de retribuir o favor, Euricão se apressa em reservar um quarto num hotel. Ao saber do verdadeiro objetivo do viúvo Eudoro (pedir a mão da moça), planeja extorquir do pretendente mais cabedal para forrar sua porca.

Acontece que Margarida ama Dodó, filho de Eudoro, que se disfarçou (como corcunda, coxo, embarbichado e com a boca torta) de empregado da casa, após abandonar os estudos, movido pela paixão. Ao longo da peça, como manda a lei do vaudeville (e dos espetáculos circenses), não faltarão disfarces, trocas de trajes entre os personagens (misturando as identidades), falas de duplo sentido (inclusive com a palavra “porca”), enfim engenhosidades cênicas nas quais Suassuna era um mestre. Curiosamente, a farsa se fecha com um toque sombrio e moralista, acentuando a cilada existencial que Euricão preparou para si ao se deixar levar pelo amor monomaníaco à porca (roçando o clima de algumas estranhas comédias shakespearianas, como O mercador de Veneza)[5].

Mas quem rouba mesmo a cena é a criada Caroba, uma das personagens mais inesquecíveis do teatro brasileiro. Na montagem de estreia (1958), ela foi vivida por Cleyde Yaconis, que dividia o palco com Cacilda Becker (Margarida) e Ziembinski[6] (Euricão). Se Caroba fosse casada com João Grilo (de Auto da Compadecida), sai de baixo, minha gente. Não haveria mundo para tanta tramoia, confusão e verve na fala.

No mais, tanto no registro trágico quanto no cômico, são justas as afirmações do próprio Suassuna, a quem deixo a última palavra: “Serei eu, na verdade, um escritor popular? Sim, às vezes, desde que se entenda esta palavra num sentido menos ilegítimo do que aquele que vem sendo empregado pela crítica brasileira. Mas às vezes também, mesmo no meu teatro, um poeta; bom ou mau, não importa, mas poeta”.

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NOTAS

[1] Mas profundamente reformulada dez anos depois (é o texto que comento na resenha acima). Mesmo assim, Suassuna ainda era um homem jovem quando criou seu fantástico ciclo de peças.

[2] Não se pode esquecer que ele assassinou a esposa.

[3] E que no meu entender toma o sentido da terra ensolarada (do sertão), mas encharcada de sangue, ao final.

[4] E tanto da cultura popular do Ocidente como um todo, mas também da tradição literária, basta lembrar de Romeu e Julieta na Aldeia, de Gottfried Keller.

VER: https://armonte.wordpress.com/2014/06/12/leituras-em-espelho-romeu-e-julieta-na-aldeia-gottfried-keller-e-lady-macbeth-do-distrito-de-mtzensk-nikolai-leskov/

[5] Devo dizer que a cena final me parece pouco convincente, ainda mais com seu apelo camusiano sobre o absurdo essencial do mundo. Também me parece meio forçada a dicotomia “santo” e “porca”, no senido de dois caminhos opostos na vida, o da santidade e o do interesse próprio. Nada na ação da peça (a sua verdade teatral, como diria Suassuna) enfatiza tal oposição.

[6] Este pode se orgulhar de estar envolvido na montagem dos dois maiores dramaturgos brasileiros do século XX, basta lembrar da montagem original de Vestido de Noiva.

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25/07/2014

O SORRISO DO LAGARTO 25 anos depois

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(uma versão do texto abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 22 de julho de 2014);

(VER também no “Letras in.verso e re.verso” de 23 de julho de 2014:

http://letrasinversoreverso.blogspot.com.br/2014/07/relendo-o-sorriso-do-lagarto-25-anos.html)

Há 25 anos, João Ubaldo Ribeiro (1941-2014) lançava O sorriso do lagarto, e parecia-me naquele momento — juízo que prevaleceu durante certa fase (ratificado com o aparecimento de “O feitiço da Ilha do Pavão, de 1997 e “A casa dos budas ditosos”, de 1999) — a indicação clara de que o outrora grande prosador baiano estava pendendo para o comercial, no sentido de aclimatar fórmulas do best seller internacional standard, numa mistura de triângulo amoroso com elementos de ficção científica e suspense (não faltavam nem cenas clichês como a da conversa entre o herói e o cientista-vilão, quando este explica seus planos para o adversário que tentava desvendá-los). De fato, as vendas foram expressivas e houve até uma adaptação televisiva, onde todos os elementos folhetinescos eram realçados até a caricatura.

A prevenção talvez fosse fruto do impacto da leitura de alguns de seus primeiros títulos: “Sargento Getúlio (publicado quando ele tinha apenas 30 anos, em 1971), uma das obras-primas fundamentais do romance brasileiro, assim como o menos conhecido “Vila Real, de 1979, bem como duas extraordinárias coletâneas de contos, “Vencecavalo e o outro povo” (1974) e “Livro de histórias” (1981).

Ainda hoje os considero as joias da coroa do reinado ubaldiano, com sua mescla genial de fabulação, experimentação linguística (o uso da língua em João Ubaldo Ribeiro é um caso à parte) [1] e escavação de certa mentalidade (aquela definida, para o bem e para o mal, como o atraso nacional).

Devo reconhecer que sou minoria: a maior parte dos leitores e críticos celebra “Viva o povo brasileiro” (1984) como obra maior. Para mim (pelo menos enquanto não faço uma releitura), esse romance ciclópico iniciou a “diluição” agravada pelos títulos posteriores, impressão (ou equívoco) que pode ser consequência do Zeitgeist, do espírito daquele tempo, a desilusão com a chamada Nova República (civil, porém espúria, acordo de caciques, numa eleição indireta): alguns leitores[2], entre os quais me incluo, consideraram certos romances com fôlego épico, “histórias de fundação” da identidade nacional, mais ou menos explícitas (além do livro de João Ubaldo, “A república dos sonhos”, de Nélida Piñon, e “Tocaia Grande”, de Jorge Amado, seriam outros fortes exemplos) como empreendimentos ficcionais legitimadores de um ufanismo carente de base, um tanto quanto fabricado[3].

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Em 2002, porém, apareceu o surpreendente “Diário do farol, com seu narrador insidioso, ominoso, terrível, e os pesos e as medidas tiveram de ser reavaliados. Saudando a volta do “verdadeiro” João Ubaldo (a essa altura, adorado por milhares de leitores de suas crônicas), impossível não rever juízos anteriores. Assim, na esteira do choque com sua morte súbita, resolvi reler o romance de um quarto de século atrás, encantando-me com o seu vigor e sua oportuna atualidade.

Em O sorriso do lagarto, se por um lado se atenua aquela ousadia experimental do início, há um domínio da técnica narrativa tradicional que se torna mais admirável ainda pelo que apresenta de especulação nos domínios da ciência, algo raro na nossa alta ficção, e que adquiriu um “quê” de profético (lembremos que o romance apareceu bem antes dos “Arquivos X, da onipresença da internet e da vulgarização das tecnologias mais evidenciadas hoje em dia, inclusive a da pesquisa genética).

O político (embora vindo das lutas estudantis, tornou-se corrupto e venal) Ângelo Marcos, abalado pelo tratamento de um câncer, passa uma temporada na Ilha de Itaparica. Ali, sua esposa, Ana Clara, se apaixona pelo dono de uma peixaria, João Pedroso, na verdade um biólogo manqué, meio fracassado e beberrão: “não nasci para plantar árvores nem para escrever livros e sou praticamente donzelo, aliás sou um donzelo militante, um punheteiro. Eu nasci para estudar, investigar, descobrir, interpretar. Mas não faço nada disso e com certeza é esta a razão por que sinto o Mal me rondando…”, ele desabafa, a certa altura, com seu amigo, padre Monteirinho.

O Mal que ronda Itaparica e bafeja João Pedroso é a existência de seres “monstruosos”, híbridos que foram criados em experiências científicas comandadas por um eminente médico, Lúcio Nemésio. O até então passivo biólogo-peixeiro se coloca no caminho de duas forças poderosas: o representante de uma elite grotesca em sua desfaçatez (e mesmo a ascensão da esquerda na nossa democracia não deixou de acirrar esse comportamento predatório, conforme vimos nos últimos 25 anos), Ângelo Marcos, através da sua relação com Ana Clara (ameaçando o casamento dele); e o representante de uma ciência sem ética, em nada diferente (e certamente praticada com muito empenho, apesar das “leis”, não tenha dúvida, leitor) das experiências em campos nazistas (e que chocaram tanto o mundo civilizado), o doutor que carrega a nêmese no nome, ao insistir em denunciar a existência das criaturas. É quase certo que, apesar do seu tardio despertar heroico, seu destino será trágico…

Decerto as questões levantadas pelo romance são riquíssimas e candentes (infelizmente causando um desalento enorme no leitor). O que me faz, entretanto, me penitenciar do apressado julgamento de anos atrás é a vitalidade com que o narrador, em cada segmento, se cola aos cacoetes de linguagem e da mente de cada personagem[4]. Dessa forma, até os clichês mais desaforados, até a cafonice tremenda de certas descrições eróticas podem ser faturados na conta daqueles que vivem o enredo, pois estão em cena os vícios e virtudes de sua classe, de sua formação específica[5]. Nesse sentido, Ângelo Marcos é um triunfo de criação de um caractere ficcional. Postado entre os discursos (em primeira pessoa) das mentalidades perturbadoras, diríamos até deformadas, do Sargento Getúlio e do narrador de “Diário do farol, ele nada a fica a dever a eles. É outro prisma de um espelho implacável das mazelas nacionais.

Que escritor perdemos no dia 18 de julho!

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NOTAS

[1] Como será que Patricia Secco (aquela mesma que simplificou o vocabulário dos textos de Machado de Assis) enfrentaria o trecho abaixo do extraordinário “Sargento Getúlio”, uma das provas mais veementes, se fora preciso uma prova ainda, de que a posse de vocabulário não é um luxo, e sim uma maneira de dar mais extensão, uma sintonia mais fina, não só à apreensão do real à nossa volta, mas também dos nossos processos e mecanismos mentais lidando com esse “à nossa volta” (e por isso, a literatura triunfa na linguagem “específica”): “Plantas e mulheres reimosas, possibilitando chagas, bichos de muita aleiva, potós, lacrais, piolhos de cobra, veja. Matei uns três infelizes assim, pelo cima de uns quipás, sendo que um chegou devagar no chão, receando os espinhos sem dúvida. Assunte se quem vai morrer se incomoda com conforto. Fosse dado a sangria, terminava o vivente no ferro, porém faz um barulho esquisito e não é asseado por causo de todo aquele esguincho que sai. E dessa forma acertei um disparo no cachaço, procurando atitude para não desperdiçar munição. Inda xinguei por me obrigar a caçar pelessas catingas, arremetido naquela soareira, estropeando as reiúnas novas naquelas catanduvas embarecentas. Só se vê cabeça de frade, macambira, cantingueira e urubu. Nem ouviu mais o xingamento, amunhecou e esfriou.Trabalheira ordinária. Ias me fazer chegar aonde? Itaspicuru? Vitória da Conquista? Sei lá. Não tem limites para a frouxidão que faz o homem dar nas canelas e botar a alma no mundo, correndo do destino. A hora de cada um é a hora de cada um. O bexiguento lá estrebuchado, agora ancho nos espinhos, como se o chão fosse forrado de barriguda. Que diferença faz? Quem já viu o derradeiro tiro sabe como é. Aquela sacudida no corpo, uma estremidela de uma vez só. Depois os urubus, que a tarefa aí já não é mais de punição, é de limpeza…” ?

[2] Como Flora Süssekind, cf. “Literatura e Vida Literária” (Ed. Jorge Zahar, 1985)

[3]  Não custa lembrar que O sorriso do lagarto também aparece num ano de forte carga simbólica, ano das eleições diretas, enfim, que polarizaram Collor e Lula, com a vitória do primeiro. Evidentemente, seria preciso verificar se, passados 30 anos, tal associação dos três romances à Nova República justifica uma visão parcimoniosa do seu valor literário.

[4] Como exemplo, um momento em que Ângelo Marcos está perorando sobre a raça negra, em função de ter tratado de forma injuriosa um empregado:

Parou de repente, achou que estava se explicando em demasia, dando importância excessiva a um incidente corriqueiro, afinal de contas só tinha feito umas brincadeiras com um negro da casa, praticamente da família, já vira brincadeiras mais pesadas entre primos e até irmãos. E agora está na moda esse negócio de fazer caras santimoniais, toda vez que alguém fala de uma coisa perfeitamente comum a respeito de pretos. É como judeu. Se você não empresta sua escova de dentes a um judeu, ele chama você de antissemita, existe uma história verídica sobre isso. Agora tudo é preconceito racial, até reconhecer que um sujeito é preto é preconceito racial. Que besteira, encarar a realidade não é preconceito, é apenas objetividade. Por exemplo, é uma verdade objetiva, que qualquer um pode comprovar, que o preto está mais próximo do chimpanzé ou do gorila do que nós, verdade indiscutível, não adianta querer obscurecer as evidências dos fatos…”

O “vilão” de O sorriso do lagarto é memorável em outros terrenos minados, basta observar seu discurso dissociado da prática com relação ao homossexualismo, e como esta dissociação corresponde a todo um lado perverso e oculto (a obsessão em matar pardais), inclusive pela ligação sexual com um matador desde a juventude (e a quem ele encomendará a execução do amante da esposa). Note-se, de passagem, que o matador-liaison dangereux torna-se um ruralista de Goiás.

[5] Mesmo assim, ainda acho uma forçada de mão a cena, já citada, de confronto direto entre João Pedroso (herói) e Nemésio (cientista-vilão).

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22/07/2014

NOSTALGIA DA GRANDEZA: “Romance d’A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta”, de Ariano Suassuna

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Em Geografia do romance, comentando o pensamento de Mikhail Bakhtin, Carlos Fuentes escreve: Numa era de linguagens conflituosas (informação instantânea, sim, integração econômica global, idem, muita estatística e pouco conhecimento), o romance é, será e deverá ser uma dessas linguagens. Mas sobretudo deverá ser a arena onde todas elas podem marcar encontro. O romance não só como encontro de personagens, mas como encontro de linguagens, de tempos históricos distantes e de civilizações que, de outra maneira, não teriam oportunidade de relacionar-se .

Tais palavras aplicam-se bem a uma obra publicada em 1971 (embora venha ocupando boa parte da vida do autor, ao que tudo indica, pois ele pretende reformulá-la), bastante comentada e pouco lida efetivamente: Romance d’A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta, de Ariano Suassuna.

Escrita sob o signo do excesso, apresenta um narrador, Pedro Dinis Quaderna, o qual, aberta a sua tramela, não se consegue que a feche mais. É um tagarela que se repete, que promete sempre fatos e mais fatos e vai nos engambelando direitinho (às vezes, cansando um pouco a paciência), um Tristram Shandy de Taperoá, no sertão do Cariri, na Paraíba (ele começa a contar sua história, na prisão, em 1935). Rebento de uma estirpe de “fidalgos sertanejos” que tentaram impor uma monarquia paralela (ou em sublevação à nossa recém estabelecida, e autoritaríssima, República), num misto de exaltação política, sexual e mística, Quaderna é um intelectual, o qual, entre querelas com seus dois mestres (Samuel, reacionário e simpático ao Integralismo; Clemente, esquerdista e ligado às causas do povo; ambos, ao fim e ao cabo, comicamente parecidos, pois a idéia fixa se embebeda do oposto, já alertava Octavio Paz), almeja restaurar o Reino da família, através da criação de uma epopéia sertanejo-sebastianista, em forma de romance, transfigurando a pobre realidade do Nordeste.

Ao seu modo picaresco, Ariano Suassuna nos dá uma linguagem (através da qual se abebera de inúmeras fontes literárias e populares, de José de Alencar a cantadores de feira) que é evidentemente uma máscara: Quaderna, no exercício do seu estilo “régio” (delicioso e virtuosístico), acaba revelando o desencanto com seu mundo e sua posição social, como agregado de um rico clã, cujo ramo a que pertence empobreceu devido ao furor sexual do pai, a herança dilapidando-se pelos muitos filhos afora.

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Dois aspectos são particularmente notáveis em A Pedra do Reino: um, é o desejo de fazer um “romance”, que une narrador e autor. Curiosamente, num livro tão colorido e exuberante, vemos pouca ação; na verdade, é mais o anúncio eterno de uma ação que virá a ser narrada, tanto quanto o desejo de um Escolhido (o rei Sebastião ou o príncipe Sinésio) reaparecer e convulsionar o Sertão. Até agora não chegou à conclusão se isso é força ou fraqueza, no sentido literário (embora me incline mais para a primeira hipótese).

O outro aspecto é a vontade de que tudo seja significativo e simbólico, das pedras às roupas, dos animais de montaria aos animais selvagens. É a nostalgia do épico puro, das odisséias homéricas,  no qual “toda a ação é somente um traje bem talhado da alma”(Georg Lukács), embora tudo seja filtrado pelo des(encanto) cervantino.

Num mundo sem sentido e sem rumo, tal vontade não deixa de ser comovente. Não deixa de ser também uma forma de sublevação à autoritaríssima (e então recente), República Brasileira (Quaderna começa sua narrativa, preso, em 1938), engrandecendo até os embates, mais para cômicos e caricaturescos, dos dois “mestres” de Quaderna, Samuel e Clemente.

A linguagem de Suassuna, como seu anti-herói, que percorre todas as classes sociais, indo do legítimo e oficial, até o ilegítimo (seus irmãos, frutos do furor sexual de Quaderna-pai, cuja herança dilapidou-se entre os muitos bastardos) e o suspeito, é picaresca e paródica, abeberando-se e apropriando-se de inúmeras fontes literárias e populares, de José de Alencar a cantadores de feira, todos os criadores da “realidade do possível”. Nesse ponto, podemos aproximar o mundão sertanejo de Ariano Suassuna do labirinto urbano urdido por James Joyce, no “bloomsday” de Ulisses: o banal se transfigura, o mito é a “aura” de situações comezinhas.

Já que comecei este meu breve comentário com palavras alheias (Fuentes), também assim termino, adaptando ao sertão do Cariri as palavras de Anthony Burgess a respeito do périplo ulissiano: o épico antigo era expansivo, o teatro, contrativo. Homero abrange céu, terra e mar e uma grande fatia de tempo; Sófocles se atém a um pequeno espaço e restringe a ação a um único dia. Joyce se atém a Dublin no dia 16 de junho de 1904, mas também usa o delírio e a imaginação para conter grande parte da história humana e mesmo o fim do mundo. A épica e o teatro cifram-se na estrutura de um romance burguês moderno… Com painel tão amplo, nenhum detalhe humano fica de fora”.

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15/07/2014

SADIO OU SÁBIO: “filho enfermiço da vida” ou “pândego”

Quando Thomas Mann escreveu Sua Alteza Real  (1909), descobriu uma forma de realismo simbólico que lhe seria  útil para concretizar A montanha mágica (1924), sua maior realização, o maior romance do século XX.

Por que chamar de simbólico o realismo de A montanha mágica? Porque, ao narrar os sete anos que o protagonista, o alemão Hans Castorp passa num sanatório para tuberculosos, nas altas montanhas suíças, o Berghof, este acaba por refletir a Europa anterior à guerra de 14. Tal decodificação simbólico-alegórica poderia parecer fácil e simples se não estivéssemos diante de um livro  total, daqueles que nem mesmo uma série de resenhas daria conta.

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Pertencendo a alta burguesia de Hamburgo, Hans Castorp, “um jovem singelo”, como alerta maliciosamente o narrador (e o leitor deste meu texto não pode imaginar quão malicioso  é o solerte narrador de A montanha mágica), veio ao sanatório Berghof para visitar o primo Joachim, e descobre-se enfermo também. Engenheiro naval, prestes a começar a trabalhar na profissão escolhida (está com 23 anos), acomoda-se sem problemas à “vida horizontal” do Berghof (todos permanecem deitados por boa parte do dia), um cotidiano regulado e regido por um horário minucioso.

Um dos amigos de Hans durante sua permanência no “mágico”  Berghof, que parece impedir que as pessoas consigam partir, será o italiano Settembrini, paladino da razão iluminista. É ele que, preocupado pedagogicamente com o rapaz, adjetiva-o com um dos dois epítetos significativos e contraditórios que Hans receberá ao longo da história:  “filho enfermiço da vida” e “pândego”. É na oscilação entre esses dois epítetos que a narrativa será conduzida.

Hans escolheu a profissão de engenheiro naval mais por causa do status do que por convicção. Obrigado a ficar no sanatório, não em razão de um desejo seu exteriorizado, mas sim por uma providencial enfermidade, ele não precisa assumir um papel no “mundo da atividade”, que fica adiado para o futuro, sem que ele se desonre. No fundo, ele tem uma enfermidade secreta: está ligado à sua classe social num sentido totalmente oposto ao que ela apresenta como ideologia (a produtividade) e da qual a profissão de engenheiro é um epítome; assim como Thomas Buddenbrook, ele se identifica com a alta burguesia no sentido mortuário, na sua tendência à petrificação, na sua resistência à mudanças, um desejo de estabilidade estagnada incompatível com o dinamismo da própria burguesia (tão admirado por Marx). No Berghof Hans encontra essa sua predisposição radicalizada na “vida horizontal” e inerte que ali se vive e à qual ele, como “singelo filho enfermiço da vida” se adaptará muito melhor que o primo rebelde (atraído pela vida militar), que teima em partir (e voltará moribundo).  Hans pode ficar indefinidamente na situação em que se encontrou num passeio de barco: entre o dia que morria e a noite que chegava, suspenso entre os dois.

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Só que ele também está destinado a uma legítima educação sentimental no Berghof e a ela se entregará de modo “pândego”. Apesar das advertências pedagógicas de Settembrini, apesar da recusa de Joachim, “estamos aqui para ficar mais sadios e não mais sábios”, ele assiste aos debates filosóficos intermináveis e divertidos (porque A montanha mágica é também um dos romances mais divertidos da história da alta ficção) entre o libertário italiano e Naphta, um jesuíta aficcionado pelo totalitarismo e pelo terror instituído. Entrega-se a estudos que,da maneira como se imiscuem no tecido narrativo, abrem um caminho novo para o gênero, e lemos maravilhados as  investigações científicas de Hans a respeito da origem da existência e sobre o tempo.

De fato, poucos livros revelaram tão bem na sua própria construção formal afora as inúmeras considerações do narrador, o problema da passagem do tempo. Assim, os primeiros dias de Hans no sanatório são narrados com minúcias extravagantes, enquanto que seus sete anos ali parecem se revestir de um clima de sonho e irrealidade, parecem não ter peso, como se fossem constituídos pela mesma atmosfera da sua célebre noite de amor com a exótica Clawdia Chauchat (que parece ser a personificação feminina de Pribislav Hippe, um companheiro de colégio que fascinou Hans, numa daquelas situações de ambivalência sexual tão prezadas e utilizadas por Mann), noite de amor cujo teor o leitor brasileiro que não é versado em francês (pois é a língua utilizada entre ambos nesse importantíssimo momento da narrativa) terá de adivinhar, uma vez que a Nova Fronteira não se deu ao trabalho de colocar (como fez o Círculo do Livro) uma tradução em notas de rodapé.  Após essa noite, nosso herói fica com o mais bizarro troféu amoroso já conquistado na literatura: a radiografia do pulmão da amada.

Portanto, se a vida no Berghof no plano das formalidades sociais é “horizontal” e apropriada  a um filho enfermiço da vida, a um rapaz singelo e medíocre, no plano interior, da alquimia que acontece no íntimo de Hans Castorp (o qual ele também conhece ou espreita, por assim dizer, através do raio X, noutro momento célebre), ela se verticaliza e o transforma num pândego, num aventureiro do corpo, do espírito, do coração e da mente.

A fusão de minúcia realista com atmosfera irreal de sonho, ou seja, do dia que morre e da noite que nasce, é bem pertinente: sendo o sanatório a civilização européia em microcosmo, nada mais justo do que refletir a problemática aceleração do tempo que se acentua na existência humana “civilizada”, pois, como se percebe no livro e na vida, há uma dupla angústia do tempo. Por um lado, percebemos demais o tempo, medimo-lo, fazemos com que ele esteja onipresente, através dos mais variados instrumentos, de forma que sempre o temos no nosso campo de visão e ideologia do “real”; por outro lado, não prestamos suficiente atenção ao tempo, ele nos escapa, escoa-se, torna-se abstrato, irreal, e o perdemos.

(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos em  19 de dezembro de 2000)

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ADENDO-

Uma versão da resenha acima foi publicada em A TRIBUNA de Santos, em 15 de julho de 2014, com o título “Os 90 anos do maior gol do craque alemão Thomas Mann”, aproveitando o gancho do final da Copa do Mundo, com vitória alemã.

O início desta nova versão:

Os alemães podem se orgulhar de ter conquistado com mérito o tetra na Copa do Brasil e, entre os craques em outras áreas, contar com o único escritor que, já nobelizado (em 1929) foi seriamente cogitado a receber uma segunda premiação: Thomas Mann. Sua obra máxima, a meu ver o mais genial romance do século passado, A Montanha Mágica, chega aos 90 anos em 2014, sempre com boa vendagem, em edições ininterruptas aqui no Brasil.

Ironicamente, poucos livros tiveram um parto mais complicado: considerado ultrapassado, regurgitando e ultrapassando sua visão chauvinista e ultranacionalista durante a Primeira Guerra, à beira dos 50 anos, após uma década sombria, Mann conseguiu concretizar um painel simbólico-alegórico da civilização europeia anterior ao conflito, num dos romances “totais” (como “Ulisses” e “Em Busca do Tempo Perdido”) que marcam o modernismo e representam, num certo sentido, o ápice do gênero.

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10/07/2014

O FILHO INCORRIGÍVEL DAS DITADURAS: Imre Kertész e “História Policial”

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-uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 08 de julho de 2014;

-uma versão da resenha abaixo foi publicada em LETRAS IN.VERSO E RE.VERSO em 09 de julho de 2014- VER:

http://letrasinversoreverso.blogspot.com.br/2014/07/imre-kertesz-o-filho-incorrigivel-das.html

Em Eu, um outro (1997), Imre Kertész deu a si mesmo uma veredito irrevogável: “Sou filho incorrigível de ditaduras, ser estigmatizado é minha particularidade”.

Vinte anos antes, em História policial [Detektívtörténe], curto romance lançado agora no Brasil pela Tordesilhas, o Nobel de literatura de 2002 examinava de forma implacável a lógica das ditaduras (infelizmente, Direita e Esquerda, em suas contrafações, equivalendo-se no tocante aos resultados históricos): mesmo que calcadas, a princípio, em lutas pela justiça social, não passam de projetos de poder, tudo o mais se subordina à sua manutenção; para isso, tornam-se “estados policiais”, mantendo os cidadãos sob vigilância, apelando para o arbítrio, a tortura, a supressão de qualquer oposição.

Numa passagem arrepiante, um torturador afirma: “O mundo seria diferente se nós, policiais, fôssemos unidos… Não apenas aqui em casa, mas no mundo todo”. O narrador, “novato” no ramo, replica: “Você quer dizer também os policiais dos países inimigos?”, obtendo a seguinte resposta: “Os policiais nunca são inimigos, em lugar algum[1].

Kertész tinha um background nada invejável (se não levarmos em consideração o rendimento literário) para seu esmiuçar cirúrgico dos fundamentos dos regimes totalitários: aos 14 anos, foi enviado para Auschwitz, Buchenwald e Zeitz, campos de concentração nazistas, experiência-limite que propiciou a base de seu romance de estreia (ainda seu livro mais famoso), Sem Destino (1975), certamente um dos relatos mais desconcertantes e perturbadores sobre o tema[2]; depois da guerra, viu seu país, a Hungria, transformar-se num dos satélites da União Soviética: uma tentativa de revolução, em 1956, foi esmagada virulentamente, transformando-se no evento cristalizador da desilusão de toda uma geração com o comunismo.

Transpondo a ação para um país imaginário da América Latina, para cavar a publicação (as editoras, como de praxe no universo soviético e adjacências, eram estatais e submetidas à censura), Kertész conseguiu criar não só uma alegoria da opressão em seu país natal, como também (sem que esse fosse seu objetivo) uma síntese acurada dos processos truculentos então levados a cabo na nossa realidade latino-americana, com sua cota trágica de regimes autoritários de direita, ou seja, o outro lado do espelho.

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História policial narra a investigação que leva à prisão de Enrique, filho do importante empresário Federico Salinas, que almeja participar da luta clandestina contra o governo, sempre esbarrando na hostilidade e desconfiança contra a sua classe social. Após um episódio emblemático (fora alvo de uma diligência policial ao, provocativamente, ficar abaixo do limite de velocidade permitido numa faixa de rodovia próxima a um dos sinistros locais de reclusão de presos políticos; contudo, sua condição de membro de uma família importante o salvaguardara de represálias maiores), ao desabafar com o pai, descobre que este pertencia a um grupo de resistência.  Vigiado de perto, e num momento em que há a ameaça de um atentado (verdadeiro ou fabricado pelos agentes do regime, pouco importa), Enrique é levado para o “Departamento”. Seu pai, iludido quanto à própria imunidade pessoal, ali adentra para se informar do seu paradeiro, e o destino de ambos ali é selado.

Além da dinâmica da relação entre Federico e Enrique (há uma revelação surpreendente quanto a isso), o grande achado de História policial é que a narrativa é feita por um dos torturadores, justamente o “novato”, aquele que ainda está aprendendo os códigos da ação repressiva. Após a queda do governo, preso, confessa que está em sua posse o diário pessoal de Enrique, pelo qual tem um peculiar apego, verdadeira fascinação (eu, um outro?).

Através desse diário, ficamos sabendo que a insatisfação do mauricinho vai além da situação política, escancarando um mal estar que os frequentadores da obra de Imre Kertész (além das já citadas, o ambicioso romance O Fiasco, por exemplo, onde podemos ler a seguinte passagem: “se bem que ocorreu a Köves: será que o homem já não vive de um jeito impossível de viver, e ao final acaba descobrindo que apesar de tudo sua vida teria que ser essa?”[3]) reconhecerão de imediato: “Parece que após a filosofia do existencialismo só poderia vir a filosofia do não existencialismo. Ou seja: a filosofia do existir sem existir”[4]. E então o leitor começa a se perguntar que tipo de pessoa pode ser, de fato, o novato: “Fiz o curso, passei por uma lavagem cerebral. Não foi o suficiente, longe disso”.

Outro trunfo do texto é a sua sugestão dos horrores praticados no “Departamento”, sem ser preciso nenhum detalhe explícito. De explícito, apenas o horror da lógica totalitária, como na cena em que um tabelião colaborador do regime é submetido à tortura por sua associação meramente comercial com Federico Salinas:

“__ Não entendo os senhores, não os entendo. O que querem de mim? Pois se o Estado confia em mim…

__ Bem, sim.—Díaz balançava a cabeça como um professor primário.—O problema é que nós não confiamos no Estado…

__ Não entendo, não entendo… Então acreditam em quê?

__ No destino. Mas no momento nós é que assumimos o papel do destino: portanto, em nós mesmo—disse Díaz com seu sorriso inigualável…”

È a esse destino que o filho incorrigível e pródigo sempre retorna.

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NOTAS

[1] Utilizo a tradução de Gabor Aranyi. Nessa versão lançada pela Tordesilhas há uma passagem que ficou estranhíssima em português, logo no Prefácio do autor, escrito em 2004 para a edição alemã. Nele, Kertész relata como História policial surgiu a partir da recusa de um romance anterior (seu segundo), O rastejador (ainda não lançado em português, mas conhecido em inglês como The pathseeker); lemos então que o diretor da editora (que aprovara a publicação do primeiro romance do autor húngaro, Sem destino) “leu O rastejador e também o editaria de bom grado—declarou-me—se fosse um texto maior. Um livro precisava ao menos de dez páginas (sic) inteiras para que tivesse corpo, e o meu texto não passava de seis páginas (sic), se tanto. Sugeriu-me que acrescentasse algo. Então me veio à mente o enredo de História policial”.

Bem, ou na Hungria o conceito de página é diferente do nosso, ou aí há um grosseiro erro de interpretação,e um ainda mais grosseiro de revisão.

Devo dizer, embora lamentando (por causa da louvável iniciativa editorial) que esse desleixo de revisão é constante nas edições que a Planeta fez das obras de Kertész (foram lançados quatro importantes títulos: Sem destino; O fiasco; Eu, um outro; A bandeira inglesa). Na tradução de Sandra Nagy para Eu, um outro, lemos: “Pois é: no final das contas, fora os meus dois livros, o Sem destino e o Fiasco, que acabavam de ser publicados naquele mesmo ano, nada mais constava da lista dos meus crimes”. Ora, a Planeta editou tanto Sem destino, que é de 1975, quanto O fiasco, que é de 1988, ninguém ali se deu conta do absurdo da passagem?!

Os outros títulos kertészianos lançados até agora no nosso país são Kadish, por uma criança não nascida (Imago), que compõe uma trilogia com Sem destino e O fiasco; a coletânea de ensaios A língua exilada e o primeiro romance pós-Nobel, Liquidação (ambos pela Companhia das Letras).

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[2] Como amostra, transcrevo a extraordinária passagem do anúncio da libertação dos prisioneiros do campo (utilizando a tradução de Paulo Schiller):

“Talvez já fosse quatro da tarde quando, por fim, o alto-falante emitiu alguns estalidos e, depois de um breve chiado e de sons sibilantes, deu a entender a nós todos que era o LagerältesterKamaraden, disse, lutando audivelmente contra um sentimento que o asfixiava e ora o fazia engasgar, ora a voz fica mais aguda, gemente, wit sind frei!, ou seja, estamos livres (…) e para minha grande surpresa, de repente: Atenção, atenção! O comitê húngaro do campo…—e pensei: nem suspeitava que isso existisse! Porém, não valeu a pena prestar atenção, pois também ele, como todos antes dele, só falou sobre a libertação e não fez nenhuma referência à sopa que não tinha vindo. Eu também fiquei muito feliz, sim, naturalmente, por estarmos livres, mas não tenho culpa de ter sido obrigado a pensar em outra coisa… A noite de abril estava escura, Pjetyka também havia voltado, vermelho, excitado, cheio de milhares de palavras incompreensíveis, quando o Lagerältester se apresentou de novo pelo alto-falante. Dessa vez, dirigiu-se aos membros do antigo destacamento dos Kartoffelschäler pedindo-lhes que fizessem a gentileza de reassumir os postos na cozinha, e aos demais moradores do campo solicitou que ficassem acordados ao menos até o meio da noite, pois começaram a cozinhar uma grossa sopa de gulash; só então me deitei, aliviado, no travesseiro; só então alguma coisa se desprendeu lentamente de mim, e só então pensei—talvez pela primeira vez com seriedade—na liberdade”.

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[3] Cujas primeiras 100 páginas são uma experiência formal desafiadora, com seus parênteses incessantes e frases que vão e volta para depois mergulhar numa fábula kafkiana, cuja atmosfera pode ser exemplificado pelo seguinte diálogo entre Köves (o protagonista) e a mulher que o aloja em casa:

““ __ Sim, Köves disse, só que não estou trabalhando para nenhum jornal—depois, pouco se incomodando com a decepção que poderia causar à mulher (quem sabe ela até já se tenha vangloriado de ter um inquilino jornalista)—acrescentou rapidamente: Fui despedido…

__ Então foi despedido—a locadora falou de novo, agora com certa familiaridade, como se não tivessem mais nada a esconder um do outro, ao mesmo tempo com a voz baixa, como se não quisesse que outros a ouvissem (apesar de ninguém mais estar no quarto além deles)—Por quê?…

__E pode-se saber?

__ Não—respondeu a mulher, deixando-se pender lentamente sobre a cadeira, momentos antes oferecida porém logo recusada, enquanto toda e qualquer expressão abandonava seu rosto, como se de repente se tivesse dado conta de sua incomensurável fadiga—não se pode… O senhor sabe… às vezes sinto que já não entendo mais nada…” (utilizo, fazendo algumas adaptações, a tradução de Ildikó Sütö).

[4] Não concordo nem um pouco com Luís S. Krausz, no posfácio à edição da Tordesilhas, intitulado Nos subterrâneos do século XX, quando diz que o “não existencialismo” é uma “cultura de resignação”, “única postura viável diante das arbitrariedades”. Fosse uma ética de resignação, a obra de Kertész perderia boa parte da sua força. Eu diria que é uma tortuosa ética de teimosia e obstinação, o que é muito, muito diferente.

Resignação, ou conformismo, é o que Enrique Salinas observa (revoltado) à sua volta, ou seja,  a acomodação ao regime, ao ponto de seus aspectos mais gritantes tornarem-se “invisíveis”, parte da paisagem social: “Estava andando pela cidade. Fazia um calor infernal. À minha volta, a algazarra noturna de sempre. Casais de namorados nas calçadas e gente se acotovelando rumo aos cinemas e às casas noturnas. Como se nada tivesse acontecido, nada. Vivendo sua vida inexistente. Ou será que eles existem e eu não? Na rua, um ou outro parecia ter perdido alguma coisa. Por toda parte se via gente com cara de policial, farejando, ouvindo as conversas e pensando que ninguém se incomoda com eles. E estão certos: as pessoas não se incomodam com eles. Bastaram esses poucos meses para se acostumarem com eles”.

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01/07/2014

Redescobrindo “O Homem Duplicado” de Saramago

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(uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 01 de julho de 2014)

Quem não leu O Homem Duplicado — que até agora eu considerava o mais fraco entre os romances de José Saramago[1] — pode pensar que o diretor canadense Dennis Villeneuve (utilizando um roteiro de Javier Guillón) mexeu muito na trama. No geral, entretanto, a versão cinematográfica (em cartaz no momento) manteve-se fiel ao original, com pequenas transposições, simplificações convincentes e uma curiosa gravidez da esposa do duplo. Pena que o único elemento diferencial importante (as recorrentes aranhas) tenha sido utilizado de forma tão grosseira e tosca. O que poderia ser uma realização digna dos claustrofóbicos filmes de Polanski acaba flertando com o lado mais discutível (e de mau gosto) do universo de um David Lynch (com um toque cronemberguiano), mesmo nos seus melhores trabalhos. Uma pena, se lembrarmos da entrega de Jake Gyllenhaal aos seus dois personagens, da fotografia e da maneira como ele filma o espaço urbano.

Mesmo assim, Enemy valeu por me fazer revisitar o livro, E não é que gostei bastante de O Homem Duplicado doze anos após seu lançamento (no ano em que o admirável escritor português chegava aos oitenta)?

Como se sabe, o professor de história Tertuliano Máximo Afonso (o qual, apesar do nome pomposo, assaz repetido página a página, sempre de forma completa, é um indivíduo apagado, vivendo uma existência desbotada) descobre através de um vídeo alugado um sujeito (ator com irrisória participação em diversas produções) em tudo semelhante a ele. Utilizando alguns expedientes, narrados com minúcia, fica sabendo o nome, o telefone o endereço de António Claro (cujo nome artístico é Daniel Santa-Clara). Ao entrar em contato, desestabiliza-lhe o casamento, já minado, saberemos depois, por várias infidelidades (o filme se apressa em esclarecer de saída esse lado menos simpático).

A inusitada aparição de Tertuliano Máximo Afonso parece (com o detalhe importantíssimo da preocupação em estabelecer quem é o “protótipo” e quem é a “imitação”) acionar em António Claro a mola da rivalidade, com certos requintes de perversidade: resolve tomar Maria da Paz, que é apaixonada pelo professor, e cujas tentativas em entrar mais profundamente na vida dele esbarram na sua relutância, como amante —como uma espécie de desagravo de macho, fazendo-se passar pelo outro (não sem antes informá-lo e até ameaçá-lo). Será uma decisão trágica, que impedirá, entre outras coisas, que Tertuliano retome a própria vida.

Ainda persiste a impressão de que Saramago caprichou mais nas pesquisas de seu protagonista com relação ao ator (o primeiro contato ocorre apenas na pág. 195, de um total de 316, na edição brasileira[2]) e depois precipita demais os eventos (aliás, uma desarmonia gritante em seus romances pós-Nobel, à exceção de A Viagem do Elefante, que considero uma de suas obras-primas). Mas não tacharia mais de bisonha a solução final, como se me afigurou na primeira leitura. O que ainda continua meio estranho é o afloramento súbito de uma sordidez (o lado cafajeste) que então parece característica de António Claro (nesse ponto, é preciso reconhecer que o filme preparou com mais inteligência estratégica esse comportamento — que serve para enfatizar a condição de inimigos entre os dois, já que um deles está “sobrando”).

É impossível não se divertir com a questão dos disfarces, ou não reconhecer que, mais uma vez, Saramago se mostra um mestre nas personagens femininas (Maria da Paz; Helena, a esposa; a mãe de Tertuliano). Seu maior feito, e dou a mão à palmatória por não ter reconhecido isso, é ter se safado do déjà vu do tema do doppelganger (da duplicação), com larga tradição na literatura, ao mostrá-lo tão entremeado ao irrisório do dia a dia, ao paradoxo capitalista de incutir o fetiche da individualidade, de ser “único”, quando tudo contraria essa ilusão: a uniformidade das experiências, o alcance tentacular das obrigações, laços muitas vezes forçados e da nossa “fisionomia social”, o nosso “nome”, por assim dizer.

Como heróis, somos atores de terceira categoria, parece dizer o irônico autor de Ensaio sobre a Cegueira. A dimensão política é tão forte quanto a voragem existencial evidenciada pelo relato. Afinal, ele mesmo já afirmou que hoje mais importante que o nome é o número do cartão de crédito.

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Alguém poderá replicar: que observação mais óbvia! E justamente, caro alguém, aí reside o que O Homem Duplicado tem de melhor: ao invés de ser uma diluição do estilo saramaguiano, ele representa sua depuração madura, essa voz narrativa que se cristalizou, tornando-se inconfundível — ao  mesmo tempo em que faz um relato[3], se vale do senso comum para interpelar seu personagem, e que utiliza certo prosaísmo “chão”  como motor para o discurso narrativo[4].

Como neste trecho maravilhoso: “Também em tempos que já lá vão, houve na terra um rei, considerado de grande sabedoria que, em um momento de inspiração filosófica fácil, afirmou, supõe-se que com a solenidade inerente ao trono, que debaixo do sol não havia nada de novo. A estas frases não convém tomá-las nunca demasiadamente a sério, não se dê o caso de as continuarmos a dizer quando tudo à nossa volta já mudou e o próprio sol já não é o que era. Em compensação, não variariam muito os movimentos e os gestos das pessoas, não só desde o terceiro rei de Israel como também desde aquele dia imemorial em que um rosto humano se apercebeu pela primeira vez de si mesmo na superfície lisa de um charco e pensou, Este sou eu. Agora, onde estamos, aqui, onde somos, decorridos que foram quatro ou cinco milhões de anos, os gestos primevos continuam a repetir-se monotonamente, alheios às mudanças do sol e do mundo por ele iluminado, e se de algo ainda necessitássemos para ter a certeza de que assim é, bastar-nos-ia observar como, diante da lisa superfície do espelho da sua casa de banho, António Claro ajusta a barba que havia sido de Tertuliano Máximo Afonso com os mesmos cuidados, a mesma concentração de espírito, e talvez um temor semelhantes àqueles com que ainda não há muitas semanas, Tertuliano Máximo Afonso, noutra casa de banho e diante de outro espelho, havia desenhado o bigode de António Claro na sua própria cara. Menos seguros porém de si mesmos que o seu bruto antepassado comum, não caíram na ingênua tentação de dizer, Este sou eu, é que desde então os medos mudaram muito e as dúvidas ainda mais, agora, em vez de uma afirmação confiante, o único que nos sai da boca é a pergunta, Este quem é…” Ou então: “e agora vai dizer a Helena a palavra que ainda falta para que a incrível história dos homens duplicados se acabe de uma vez e a normalidade da vida retome o seu curso, deixando as vítimas atrás de si, conforme é uso e costume.

No final, os que somos leitores apaixonados de sua obra (creio que a experiência de ler O Homem Duplicado satisfará menos quem o pegar como introdução a ela) descobrimos a pólvora pela milésima vez: as pessoas podem ser duplicadas (miragens de territorialidade individual à parte), o estilo saramaguiano é único.

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NOTAS

[1] Tive a impressão que ele estava imitando o próprio estilo, que já mostrava sinais de desgaste, mercê da produção ininterrupta.

Sobre outros romances pós-Nobel de Saramago, VER AQUI NO BLOG:

https://armonte.wordpress.com/2012/05/20/saramago-e-as-paisagens-alegoricas/

https://armonte.wordpress.com/2012/06/09/atos-de-insurreicao-etica-segunda-parte-ensaio-sobre-a-lucidez/

https://armonte.wordpress.com/2012/06/08/a-molecagem-do-sisudo-saramago-caim/

[2] Agora também há uma edição de bolso.

[3] A própria intervenção do narrador é muito característica:

“Por respeito à verdade, devemos dizer que António Claro, até agora, e apesar das inúmeras voltas dadas ao assunto, não conseguiu chegar a um traçado razoavelmente satisfatório de um plano de ação merecedor desse nome. No entanto, o privilégio de que gozamos, este de saber tudo quanto haverá de suceder até à última página deste relato, com exceção do que ainda vai ser preciso inventar no futuro, permite-nos adiantar que o ator Daniel Santa-Clara fará amanhã uma chamada telefônica para casa de Maria da Paz, nada mais que para saber se há alguém, não esquecer que estamos no verão, tempo de férias…”

   De passagem, não é ocioso chamar a atenção para o fato de que Saramago brinca brilhantemente com a metalinguagem, de forma simples e natural, sem fanfarras, como na passagem abaixo (quando Tertuliano volta para casa, após uma viagem de visita à casa da mãe), onde de raspão ele ainda dá um peteleco no creacionismo que propõe um design inteligente da criação do mundo:

“De acordo com as convenções tradicionais do gênero literário a que foi dado o nome de romance e que assim terá de continuar a ser chamado enquanto não se inventar uma designação mais conforme às suas atuais configurações, esta alegre descrição, organizada numa sequência simples de dados narrativos em que, de modo deliberado, não se permitiu a introdução de um único elemento de teor negativo, estaria ali, arteiramente, a preparar uma operação de contraste que, dependendo dos objetivos do ficcionista, tanto poderia ser dramática como brutal ou aterradora, por exemplo, uma pessoa assassinada no chão e ensopada no seu próprio sangue, uma reunião consistorial de almas do outro mundo, um enxame de abelhões furiosos de cio que confundissem um professor de História com a abelha-mestra, ou, pior ainda, tudo isto reunido em um só pesadelo, uma vez que, como se tem demonstrado à saciedade, não existem limites para a imaginação dos romancistas ocidentais, pelo menos desde o antes citado Homero, que, pensando bem, foi o primeiro de todos eles. A casa de Tertuliano Máximo Afonso abriu-lhe os baços como uma outra mãe, com a voz do ar murmurou, Vem, meu filho, aqui me encontras à tua espera, eu sou o teu castelo e o teu baluarte, contra mim não vale nenhum poder, porque sou tua mesmo quando estás ausente, e mesmo destruída serei sempre o lugar que foi teu. Tertuliano Máximo Afonso pousou a mala no chão e ligou as luzes do teto. A sala estava arrumada, sobre os tampos dos móveis não havia um grão de pó, é uma grande e solene verdade que os homens, mesmo vivendo sozinhos, nunca conseguem separar-se inteiramente das mulheres, e agora não estávamos a pensar em Maria da Paz, que por suas pessoais e duvidosas razões, apesar de tudo o confirmaria, mas à vizinha do andar de cima, que ontem passou aqui toda a manhã a limpar, com tanto cuidado e atenção como se a casa fosse sua, ou mais ainda, provavelmente, que se o fosse. O gravador de chamadas tem a luz acesa (…) a terceira chamada era a que António Claro deixou no outro dia, a que começava assim, Boas tardes, fala António Claro, calculo que não estaria à espera de uma chamada minha, bastou que a voz dele  tivesse ressoado naquela até aí tranquila sala para se tornar evidente que as convenções tradicionais do romance atrás citadas não são, afinal de contas, um mero e desgastado recurso de narradores ocasionalmente minguados de imaginação, mas sim uma resultante literária do majestoso equilíbrio cósmico, uma vez que o universo, sendo embora, desde as suas origens, um sistema falto de qualquer tipo de inteligência organizativa, dispôs em todo o caso de tempo mais que suficiente para ir aprendendo com a infinita multiplicação das suas próprias experiências, de modo a culminar, como o vem demonstrando o incessante espetáculo da vida, em uma infalível maquinaria de compensações, que só necessitará, também ela, de um pouco mais de tempo para mostrar que qualquer pequeno atraso no funcionamento das suas engrenagens não tem a mínima importância para o essencial, tanto faz que haja que esperar um minuto ou uma hora, como um ano ou um século. Recordemos a excelente disposição com que o nosso Tertuliano Máximo Afonso entrou em casa, recordemos, uma vez mais, que, de acordo com as convenções tradicionais do romance, reforçadas pela efetiva existência da maquinaria de compensação universal a que acabamos de fazer fundamentada referência, deveria ter dado de caras com algo que no mesmo instante lhe destruísse a alegria e o afundasse nas vascas do desespero, da aflição, do medo, de tudo o que sabemos que é possível encontrar ao virar uma esquina ou ao meter a chave a uma porta. Os monstruosos terrores que então descrevemos não passaram de exemplos simples,  poderiam ter sido aqueles, poderiam ter sido piores, e afinal nem uns nem outros, a casa abriu maternalmente os braços de seu proprietário (…) enfim, para não ter de usar mais palavras, parecia que nada poderia estragar o regresso feliz de Tertuliano Máximo Afonso ao lar. Puro engano, pura confusão, ilusão pura. As rodagens da maquinaria cósmica tinham se transportado para os intestinos eletrônicos do gravador de chamadas,  à espera de que um dedo viesse premir o botão que abriria a porta da jaula ao último e mais temível dos monstros, não já o cadáver ensanguentado no chão, não já o inconsistente consistório de fantasmas, não já a nuvem zumbidora e libidinosa dos zangões, mas a voz estudada e insinuadora de António Claro…”

[4] O narrador (ou seu protagonista, professor de história que pode ter lacunas no conhecimento literário) comete um pequeno equívoco, na pág. 260, num diálogo entre Tertuliano e sua mãe. Ali lemos:

“O que a mãe tem é vocação para Cassandra, Que é isso, A pergunta não deve ser que é isso, mas quem é essa, Então ensina-me, sempre ouvi dizer que ensinar quem não sabe é uma obra de misericórdia, A tal Cassandra era filha do rei de Tróia, um que se chamava Príamo, e quando os gregos foram pôr o cavalo de madeira às portas da cidade, ela começou a gritar que a cidade seria destruída se o cavalo fosse trazido para dentro, vem tudo explicado em pormenor na Ilíada de Homero…” Não, nada disso vem explicado na Ilíada, ali não consta o cavalo de madeira. Será Ulisses na Odisséia que evocará o estratagema que possibilitou a vitória grega contra os troianos.

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