«Com a crise econômica tudo voltou a ter cheiro, fica mais fácil comparar o valor de cada um», afirma o narrador de A.S.G.I.M.P.-Alojamento de surra gratuita e intensiva para adeptos da moda punk 2012, penúltimo dos quinze textos de Arranhando paredes. Não foi somente o cheiro, o valor de cada um. Muitas coisas “voltaram” nos últimos tempos, e talvez nem tenham ido embora, permaneciam no rés, nos vãos, nas fissuras e fendas dessas paredes arranhadas pelos textos de Bruno Ribeiro (nascido em 1989, ano da nossa primeira eleição presidencial “livre”, pós ditadura). E tanto é assim, que o próprio relato de que pincei a frase tem atmosfera e situações que poderiam muito bem fazer parte da ficção do período mais repressivo do regime militar[1] (embora negros e periféricos não tenham certeza de que aquela era realmente chegou ao fim): ao invés do DOI-CODI, alguma milícia que dá uma “lição” a manifestantes: «Você não é polícia não, porra? E essa roupa? …isso né delegacia não?».
Dando uma folheada em Arranhando paredes[2], pescando uma passagem aqui e ali, dei com muito sangue jorrando, mutilações, aquela hipérbole estilizada da violência que Tarantino consagrou. Também em algumas alusões a estupros e bizarrices da submissão feminina, deu para identificar a duradoura influência de Almodóvar. Tarantino & Almodóvar com todos os estereótipos ligados, não, não, disse com meus botões, nem quis prosseguir. Entretanto, a partir do momento em que deixei de sobrevoar a coletânea, com todas as marcas de geração que formam a camada de arranhões mais vistosa nas paredes, percebi que o livro tinha sua marca própria, podemos dizer, seu veneno peculiar[3], e que estamos diante de um autor talentoso.
Essa marca já fica evidente no texto que abre o livro, também o mais alentado, de fato uma novela: Zumbis. A história da irmã que se sacrifica para dar um tratamento adequado à gêmea, deformada por queimaduras em 55% do corpo (o rosto foi destruído) após um acidente de carro, é uma delícia. Tinha tudo para se tornar um total besteirol, com uma gótica psicopata que era a namorada secreta da gêmea deformada, aparecendo na narrativa e de cara assassinando o patrão (um dos seus três empregos opressivos e deprimentes) tarado da protagonista; com um freak show explorando a aparência terrível da moça; com mutilações (de forte teor erótico—depois de um espancamento: «As duas se beijaram. Beijo de novela. Se George Romero fizesse novela»); com a destruição pelo fogo do campus onde ambas as irmãs estudavam. Ao fim e ao cabo, o que bate forte no leitor nessa paródia das histórias de sofrimento e superação (com seus elementos muito bem amarrados) é a voz de Lena Mazine, a narradora, que vem se reunir a uma recente série de vozes femininas agônicas e inconfundíveis na ficção brasileira (todas elas mimetizando a ideia de que o futuro morreu, sendo substituído por uma incessante embora precária presentificação)[4], sem fazer feio[5]:
«Estávamos acima de tudo. Livres. Não queremos um rosto. Não queremos vida, nem futuro. Só estamos fugindo. (…) este breve segundo, frame, eu posso chamar de vida. E é assim que se livra dos seus atos pecaminosos e da sua inquisição mental constante: sendo pior sempre».
Além de Zumbis, eu destacaria O favorito, onde um estupro coletivo (e fortemente vinculado ao social, a vítima é a filha de um agricultor que tem «dinheiro pra limpar a bunda») e a voz que o narra (o personagem que justifica o título) se entrelaçam para garantir a expressividade do relato; Lembrança do café das três, uma prova de que um escritor criativo pode tirar leite de pedra, pois Bruno Ribeiro consegue fazer uma inusitada e original história de vampiro, um verdadeiro achado; Cindy Crawford, que poderia cair no clichê do pai de família sendo passivo para um travesti, mas que se valoriza especialmente pela segunda parte, as consequências afirmativas da “relação”, justamente no seio familiar («A família parou de fazer sons, todos estavam inertes onde deveriam estar»); Música pop, que até poderia ser mais desenvolvido, uma ideia fantástica de misturar fantasia sexual, canções que ficam na mente, e infelicidade conjugal; Fluxo capital infinito de amores invisíveis, com a eterna tentativa de ter mais do que uma satisfação sexual transitória já frustrada pela própria condição do protagonista; O bom selvagem, com outro pai de família que precisa relaxar (espancando e se fazendo chupar por um pivete, «negro, magro, feio e cheio de perebas pelo corpo», por exemplo), para não incomodar ninguém e se manter cidadão exemplar.
Há textos-vinhetas, curtíssimos e muito bons, como o já citado A.S.G.I.M.P.; Uma cavala (interconectando o breve relato com um e-mail de rodapé, o qual «poderia ser a salvação de anos de carne vencida»; Tortura 1987, onde há uma relação quase à Dürrenmatt de um serial killer com o pai de sua primeira vítima.
No começo deste comentário, citei a semelhança com a atmosfera da ditadura num dos contos. Arranhando paredes ganha relevância maior, além das suas qualidades intrínsecas, nesta nossa época em que o país vive tremenda e despudorada onda reacionária, quando vêm à baila termos como “pessoas de bem” (as quais consentem tranquilamente com linchamentos, redução da maioridade penal, etc), “definição de família”, em que programas de televisão policialescos e sensacionalistas definem a moralidade coletiva enquanto exploram avidamente os detalhes mais sórdidos e vis de crimes chinfrins. Diante de um quadro desses, o hiper-realismo exuberante de Bruno Ribeiro ganha foros de realismo documentário. Pelo menos, do imaginário predominante (curiosamente, acabamos misturando mesmo Tarantino com Almodóvar). Não é transgressão, é a velha e boa mimesis.
(escrito especialmente para o blog em agosto de 2015)
VER:https://www.youtube.com/watch?v=wc1NrNxMDZM
NOTAS
[1] O título nos remete também a certos contos de Rubem Fonseca daquele período.
[2] Editado pela pequena, mas cheia de títulos interessantes, Bartlebee, de Juiz de Fora.
[3] «Peguei o copo de suco que estava na mesa dos cupins, ela tomou da minha mão, encheu outro copo e disse: beba do seu, no meu tem veneno».
[4] Cf. O novo tempo do mundo, de Paulo Arantes.
[5] Penso em Por escrito (Elvira Vigna), Quarenta dias (Maria Valéria Rezende), F (Antônio Xerxenesky) e Julho é um bom mês para morrer (Roberto Menezes), para citar alguns.