MONTE DE LEITURAS: blog do Alfredo Monte

31/03/2015

Destaque do Blog: OS VELHOS MARINHEIROS OU O CAPITÃO DE LONGO CURSO, de Jorge Amado

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«Como se por um passe de mágica deixasse Periperi  de ser um pacato subúrbio da Leste Brasileira , habitado por velhos à espera da morte, e se transformasse em estação interplanetária de onde decolavam  audaciosos pilotos para a conquista dos espaços siderais…»

(uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 31 de março de 2015)

Os velhos marinheiros ou O capitão de longo curso desde 1976 é um livro independente. Quando foi lançado originalmente, em 1961, era a segunda das «Duas histórias do cais da Bahia»[1] — a outra, mais curta, ficou bem mais famosa: A morte e a morte de Quincas Berro D´Água. Agora, com a adaptação cinematográfica de Marcos Jorge em cartaz (O Duelo, insosso e infeliz título) espera-se que «a completa verdade sobre as discutidas aventuras do comandante Vasco Moscoso de Aragão, capitão de longo curso» seja finalmente reconhecido como uma das obras-primas de Jorge Amado, o qual, de 1958 (ano de Gabriela, cravo e canela) a 1969 (ano de Tenda dos milagres), passando pelos velhos marinheiros, pelos pastores da noite (1964) e por Dona Flor e seus dois maridos (1966), estava em estado de graça como prosador e ficcionista. É a sua fase áurea[2].

Vasco Moscoso de Aragão, em 1929, às vésperas da liquidação da República Velha, instala-se em Periperi, sacudindo a pasmaceira do balneário de aposentados, onde o maior foco de interesse é a vida alheia, principalmente os trâmites de um processo movido por Chico Pacheco. O lúdico homem do mar, com histórias mirabolantes, seus instrumentos náuticos, a geografia variada e exótica que descortina para seus numerosos admiradores (sua casa torna-se uma atração local), ofusca Pacheco que, invejoso e desconfiado, intenta desmascará-lo como um farsante, um charlatão.

Essa rivalidade é contada vinte anos depois por um narrador (envolvido ele mesmo em imbróglios sentimentais, eróticos e financeiros), a partir do mote: «o que é a verdade[3]. Conheceremos os verdadeiros fatos biográficos de Aragão, apurados por Pacheco, em sua ânsia de desbancar o desafeto: neto de um comerciante sovina e rico, que queria fazer dele um sucessor, seu temperamento sonhador tornava-o uma decepção. Só com a morte do avô, quase aos 30 anos, o futuro capitão de longo curso começará a viver como sempre quis, com um grupo de amigos que forma a “nata” da sociedade baiana (na perspectiva da dona de uma famosa “pensão de moças”, Carol), pândego e pródigo.

O amigo dele, Georges Nadreau, capitão dos portos, nota que, apesar de ter “tudo”, Vasco vive «com a crista caída». O motivo dessa insatisfação faz de Os velhos marinheiros uma espécie de versão pícara e estendida do genial O espelho, de Machado de Assis, onde um alferes só se sentia “existindo” quando fardado.  Vasco anela por um título que o nobilize (essa fixação por ser “doutor”, ou outro tratamento equivalente, forma um fundamento recorrente da nossa desigualdade social, e atitudes recentes de certos juízes só ratificaram sua permanência na mentalidade brasileira), ser apenas “Seu” Aragão lhe parece  aviltante (e ele se sente inferior ao grupo de amigos): «…entrava na Pensão Monte Carlo e Carol saudava-o com ternura, seu  Aragãozinho, após ter dito Coronel, Doutor, Comandante, Tenente aos outros quatro».

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Assim, todo um esquema é montado para que ele obtenha a condição de Comandante (até uma condecoração), mesmo nunca tendo pisado numa embarcação. Nasce assim o herói náutico de Periperi — pelo menos até ser desmistificado pelo rancoroso Pacheco.

Entretanto, se a fabulação corre solta em todo o romance, é na sua terceira parte, quando Vasco embarca como Comandante (peça de decoração, de fato — não podemos esquecer o lado ridículo do  personagem com sua obsessão com a aparência e as formalidades) numa viagem, que Amado deita e rola no estado de graça sob o qual foi escrito Os Velhos Marinheiros, pois o discurso narrativo embaralha a auto-ilusão do personagem (viagens e experiências fabulosas) e a realidade, num triunfo de linguagem que embaralhará igualmente a questão da verdade e do apego aos fatos[4]:

«O Comandante sorriu. Um dia, quando estivessem vivendo na casa de janelas verdes sobre o mar, em Periperi, nas noites de lar tranquilo, ela fazendo tricô, ele cachimbando, contar-lhe-ia o que lhe sucedera quando, nas costas da Turquia, uma apaixonada e insensata maometana se escondera em seu beliche e ele a descobrira quando já ia o barco em alto-mar. Muitas histórias lhe contaria, aflições de SOS, perigos em portos de ópio e contrabando, tinha uma vida excitante a entregar-lhe, a depositar em seu seio, a dividir com ela.»

O resultado não podia ser mais lindo (só acho os parágrafos finais um tanto quanto proselitistas, num tom que me incomoda um pouco: « Onde está a verdade, respondam-me por favor; na pequena realidade de cada um ou no imenso sonho humano?»), um dos pontos altos da nossa prosa de ficção. Muitos (entre os quais eu me incluo, durante um longo período de desdém, forçoso é fazer esse ‘mea culpa’) torciam o nariz quando se falava do escritor baiano como candidato nacional ao Nobel. Hoje, na revisão de obras como essa, tomamos consciência do quão injusto foi seu nome nunca ter sido anunciado.

os-velhos-marinheiros-jorge-amado-10432-MLB20029188095_012014-F TRECHO SELECIONADO

«Expliquei-lhe minhas preocupações em torno da atitude assumida pela população de Periperi naquela primeira fase da luta entre o Comandante e Chico Pacheco.    

Não concordou Telêmaco com o Meritíssimo, “que entende aquela  besta do comportamento dos homens?”. Não eram, segundo ele, as provas concretas e materiais—diplomas, mapas, cronógrafo—a causa fundamental do apoio dado ao Comandante.  Não era assim tão simples e fácil, nem dão os homens tanto valor às provas materiais (…) Que lhes oferecia Chico Pacheco? As tricas de um processo judicial contra o Estado, era pouco. Se ainda fosse um processo criminal, com mortes, esposa adúltera e amante sórdido, facadas ou tiros, júri emocionante, promotor e advogado, ciúme, ódio e amor, talvez tivesse alguma possibilidade… Mas essa pendência em torno de uma aposentadoria era quase nada para o muito de que necessitavam, sua carência de vida mais verdadeira e profunda.» oduelo-fotos-7-650x400patricia-pillar-e-joaquim-de-almeida-no-filme-o-duelo-original ____________________________

NOTAS

[1] Sob o título geral de “Os velhos marinheiros”.

[2] Sei que essa minha afirmação vai de encontro ao estabelecido pela crítica em geral, que valoriza mais a produção anterior, caso de títulos como Terras do sem-fim ou Jubiabá. Mas sem desmerecer esses, e ainda outros títulos marcantes, como Capitães de areia, Mar morto, a escrita de Amado nesse período está longe do brilhantismo posterior.

[3] Amado usará ainda mais brilhantemente esse foco narrativo naquele que é o meu romance predileto dentro da sua obra, Tenda dos milagres.

[4] E, mutatis mutandis, tornando-se um belo ancestral da linguagem exercitada por Ricardo Lisias em O livro dos mandarins.

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26/03/2015

A QUESTÃO É ESTA, NÃO HÁ OUTRA: GONÇALO M. TAVARES E A TRAGÉDIA DA SOBREVIVÊNCIA

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«Os acontecimentos que o céu nos proporciona manifestam-se sob as mais diversas formas; e muita coisa acontece, para além de nossos temores e suposições; muita vez o que se espera, nunca sucede; e o que nos assombra, realiza-se com a ajuda dos deuses» (Eurípides, Alceste)

«Não se trata já de intervir no destino,

esse sentido abstrato para onde antigamente

                  [caminhavam as coisas

(como se fosse um plano inclinadíssimo).

Trata-se, sim, de algo bem mais concreto

                  [e ofensivo:

uma tentativa de intromissão no normal

                  [funcionamento

dos órgãos humanos (…)

Que intervenham no vago destino mas não

                  [em vísceras vivas… »

(Gonçalo M. Tavares, Os velhos também querem viver)

(uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 24 de março de 2015)

Era de se esperar que um autor tão prolífico como Gonçalo M. Tavares mostrasse sinais de arrefecimento. No entanto, Os velhos também querem viver (Editora Foz) prova que sua inventividade continua afiada: trata-se de um poema narrativo, em cinco partes (além de prólogo e epílogo) que segue os acontecimentos de Alceste —a mais antiga (encenada pela primeira vez em 438 a.C.) entre as tragédias preservadas de Eurípides—, ambientando-os em Sarajevo durante o cerco pelo exército sérvio (1992-96), guerra recente que pulverizou a Iugoslávia[1].

O protagonista, Admeto, é atingido por uma bala, nos azares da refrega, e deve morrer[2]. O deus Apolo, não concordando com o «nobre noivado entre causa-efeito» exige da morte exceção para seu protegido. Seu desejo será atendido se alguém se oferecer a substituir o morto. Todos, inclusive os pais de Admeto, se recusam, mas sua esposa, Alceste, aceita o sacrifício. Moribunda, faz com que ele prometa nunca colocar outra mulher dentro de casa.

Por essa altura, Hércules chega a Sarajevo. Admeto é conhecido por sua hospitalidade e esconde o luto que há na casa por Alceste, o que escandaliza servos e cidadãos (há um Coro, composto de gente mutilada pela guerra), ainda mais que o famoso herói se revela um fanfarrão, bebendo e festejando à larga. Um dos servos, num momento de revolta, revela o ocorrido e ele, envergonhado, se propõe a resgatar Alceste da morte. Acontece que ele a traz de volta sob um véu, sem se dar a conhecer, e pede que Admeto a receba, em flagrante quebra da promessa solenemente feita. Hércules o admoesta: «Qual o sentido do sacrifício de Alceste?/Qual o sentido de ela te dar a sua vida se depois tu/vivo/ficas a lamentar-te de o estar?» Ou seja, mais que sobreviver, “viver” é trair os mortos.

É nessa linha, também, o embate—durante os funerais de Alceste—entre Admeto e o pai, Feres. O filho acusa o pai de covardia por não ter se oferecido em seu lugar, o pai não entende por que não deveria continuar a viver, mesmo velho, com poucos anos pela frente. Heroísmo, códigos de honra, afetos e laços entre as gerações ficam em xeque diante do apego à sobrevivência (ainda mais numa cidade em ruínas, onde a morte é presença diária): «Aos mortais Apolo, o deus, pergunta/um a um, como num mero interrogatório policial:/Queres viver?/Sim, todos respondem, Sim, queremos viver!//E a questão é esta, não há outra… » Diga-se, de passagem, que o final “feliz” a diferenciar Alceste de outras tragédias (tornando sua reputação canônica um tanto quanto problemática) ganha um cunho impiedosamente irônico em sua nova versão (para ser franco, nem o final da peça de Eurípides, «a volta feliz de Alceste»–estas as últimas palavras da peça[3]—, apesar do reencontro dos esposos proporcionado por Hércules, me parece tão auspicioso assim, ainda que se furte à mortandade habitual nas obras do gênero—não dá para apagar os acontecimentos anteriores, e principalmente a quebra da promessa em nome da hospitalidade, para não falar da própria situação inicial[4]).

O entrelaçamento de um poderoso mito grego (com importantes desdobramentos éticos), daqueles que fundamentaram a civilização europeia (e ocidental, por extensão), com um episódio histórico (Sarajevo, em plena consolidação da União Europeia) cuja maior consequência foi desvelar as fraturas (para não dizer a falência) desse projeto civilizatório, que não resolveu dilemas recorrentes, em particular a guerra e as distinções de classe e de gênero (no caso de Admeto, até o privilégio de ter alguém para morrer em seu lugar[5]), é um grande trunfo de Os velhos também querem viver.

Entretanto, o que impressiona fortemente é a exatidão milimétrica da linguagem, que recria Eurípides num compasso à João Cabral de Melo Neto, desde a «bala inequívoca» que atinge Admeto e se aloja «na casa mais casa que um homem tem/a sua cabeça, o seu cérebro»[6]: «Os velhos, note-se, sempre pareceram formas/humanas/de, em plena vida, se publicitar a morte;/formas experientes de anunciar algo que/se aproxima/por baixo, por cima, por todos os lados».

Deuses e semideuses estão presentes na Sarajevo do genial autor português (nascido em Angola). Nem eram necessários: a vida nua e o arbítrio do destino e dos homens são o que há de mais constante na existência.

____________

[o texto acima foi publicado no LETRAS IN.VERSO E RE.VERSO, em 25 de março de 2015, VER:

http://letrasinversoreverso.blogspot.com.br/2015/03/a-questao-e-esta-nao-ha-outra-goncalo-m.html]

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TRECHO SELECIONADO

«De fato, se existissem instrumentos técnicos

capazes de transformar a tensão do cortejo

                      [em energia explosiva,

toda a cidade de Sarajevo iria pelos ares,

e Sarajevo assim não precisaria de inimigos,

bombas ou cerco: bastaria um sacrifício,

e a insatisfeita perplexidade que nos outros

                     [daí resulta,

para a cidade colapsar e se render.

 

O tremor não vem, pois, do cansaço ou da carga

                     [física

de quem carrega o caixão;

um morto pesa, estranhamente, na direção oposta,

fenômeno que vai contra os preconceitos da  velha

                    [Física

e muitos outros.

Um morto pesa para cima, faz força no sentido

                    [do solo para o céu;

como se imóvel saltasse, ou quisesse saltar,

dali para o que está no topo do nada, esse nada

                    [que existe,

mas no lugar mais afastado.

A sensação, pois, de que o transporte de um morto

                    [tem limites simbólicos

e não apenas de linhas traçadas no chão:

é necessário descanso, mesmo para os que

                   [passaram para aquele lado

onde não há cansaço».

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ANEXO

Abaixo vão alguns trechos marcantes de Alceste: quando Admeto fala de sua situação ao coro; quando o seu pai, Feres, contesta suas recriminações; e, por fim, aquele belo recurso do teatro clássico, em que uma personagem secundária (e mais “comum”) narra para nós as ações de um protagonista.

«Amigos, a sorte de minha mulher é, em minha opinião, mais feliz do
que a minha, embora pareça o contrário. Nenhuma dor a atingirá jamais e
de muitos sofrimentos saiu gloriosa. Eu, porém, que já devia ter morrido,
escapei ao destino para arrastar uma vida miserável; compreendo-o agora.
Como poderei eu transpor a entrada desta casa? A quem dirigirei a palavra
ou quem me saudará, que possa alegrar a minha chegada? Para onde me
voltar? A solidão da minha expulsar-me-á, quando diante dos olhos eu
tiver o leito vazio da minha mulher e as cadeiras em que se sentava, e sob o
teto um solo coberto de pó. E os meus filhos, lançando-se sobre os meus
joelhos, hão de chorar a mãe, enquanto os servos lamentarão a boa senhora
que a casa perdeu. Eis o que se passará no interior da minha casa. Mas, no
exterior, os esponsais dos Tessálios e as reuniões de mulheres hão de
impelir-me de novo para o palácio; não suportarei ver as companheiras de
minha mulher. E qualquer inimigo meu poderá dizer estas palavras: “Vede
como ele vive na vergonha, ele que não ousou morrer, dando em troca
aquela que desposou para escapar cobardemente ao Hades. Julgará ele,
depois disto, que é um homem? E ainda odeia os pais, por não ter querido
morrer.” Esta a fama que há de somar-se à minha desgraça. Que vantagem
terei eu em viver, amigos, prejudicado na reputação e mergulhado na
infelicidade?»

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«Ó filho, quem julgas tu, na tua insolência, que estás a atacar com as
tuas injúrias? Um Lídio ou um Frígio comprados com o teu dinheiro? Não
sabes que sou tessálio, filho de pai tessálio e livre por nascimento?
Abandonas-te a muitos excessos, mas, depois de lançares contra mim os
teus juvenis sarcasmos, não vais partir assim. Gerei-te a criei-te para seres
senhor deste palácio, mas não tenho obrigação de morrer por ti. Não recebi
dos antepassados, nem é grega essa lei de que os pais devem morrer pelos
filhos. Feliz ou infeliz, é para ti que nasceste. O que devias receber de mim
já o possuis. És chefe de muitos homens e deixar-te-ei terras de muitas
jeiras que recebi de meu pai. Em quê, pois, te causei dano? De que te privo
eu? Não morras por mim, que eu não morrerei por ti. Regozijas-te de ver a
luz? E pensas que o teu pai não tem o mesmo direito? Imagino como será
longo o tempo debaixo da terra, e a vida é breve, mas agradável.
Entretanto, tu, sem pudor, lutaste para não morrer e estás vivo: escapaste à
sorte imposta pelo destino, matando-a a ela. E falas da minha cobardia, ó
celerado, quando afinal tu te deixaste vencer por uma mulher que morreu
por ti, por um jovem lindo como tu? Descobriste uma boa maneira de
nunca morrer, se persuadires sempre a mulher que tiveres na ocasião a
morrer por ti. E vens agora insultar os teus por não quererem fazer isso,
quando tu próprio não passas de um cobarde? Cala-te e pensa que, se tens
amor à vida, os outros também têm; e se continuas a dirigir-me palavras
desagradáveis, vais ouvir muitas do mesmo gênero, e merecidas.»

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«CORO
Então que ela saiba que, morrendo em glória, é de longe a mais
nobre mulher debaixo do sol.

CRIADA
Como não há de ser a melhor? Quem o contradirá? Que terá de ser a
mulher capaz de exceder? E como pode alguém demonstrar mais amor por
um esposo do que oferecendo a vida por ele? A cidade inteira conhece
esses fatos; e as coisas que fez em casa, ouvi-las-ás com admiração.
Quando se apercebeu de que chegava o dia marcado, banhou o alvo corpo
em água do rio e, tirando de uma câmara de cedro um veste e adereço,
vestiu-se como lhe competia. Depois, colocando-se em frente ao altar de
Héstia, orou assim: “Senhora, visto que vou para debaixo da terra, tens-me
aqui a teus pés, pedindo-te pela última vez, que veles pelos meus filhos
órfãos: une um em casamento com uma esposa querida, a outra dá-a a um
nobre esposo. Que os meus filhos não morram novos como sua mãe que já
sucumbe, mas felizes, na terra de seus pais, terminem uma vida aprazível.”
Aproximou-se de todos os altares que estão na casa de Admeto,
coroou-se e fez preces, ao mesmo tempo que cortava folhagem de ramos de
mirto., sem chorar, sem gemer, sem que o mal próximo lhe alterasse a
beleza natural da face. E depois, lançando-se para o quarto nupcial e
caindo sobre o leito, aí chorou e disse: “Ó leito, onde desatei o meu cinto
virginal com aquele homem por quem morro, adeus! Não te odeio: só a
mim perdeste. Morro por não ter querido trair a meu esposo e a ti. Outra
mulher te possuirá, não mais leal, mas talvez mais feliz.”
Caindo de joelhos, beija o leito e inunda-o de lágrimas, afasta-se de
cabeça baixa, arrancando-se para fora da câmara nupcial, mas, depois,
retrocedendo muitas vezes, volta de novo para o leito. Os filhos, agarrados
às vestes da mãe, choravam; e ela, tomando-os nos braços, acariciava ora
um ora outro, como quem ia morrer. Em casa, todos os criados choravam,
lamentando a sua senhora. E ela estendia a mão direita cada um, e ninguém
era tão vil que não recebesse a sua palavra e que não lhe correspondesse.
São estes os males que há na casa de Admeto. Atingido pela morte, ele
teria perecido, mas foi salvo e, no entanto, suporta tal dor que jamais
esquecerá.»

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NOTAS

[1] Aliás, Sarajevo aparece em pontos nevrálgicos da história europeia contemporânea, basta lembrar de que um atentado ali ocorrido foi o estopim da Primeira Guerra.

[2] Em Alceste, Apolo toma a palavra logo no início para explicar o contexto da sentença de morte de Admeto:

«Ó casa de Admeto, na qual eu me resignei aceitar a mesa de mercenário, eu que sou um deus! De tudo foi Zeus o causador, ao destruir meu filho Asclépio, lançando-lhe o fogo ao peito. Por este motivo, enfurecendo-me, mato os Ciclopes, artífices do fogo de Zeus; e o meu pai impôs-me, como expiação, ficar a serviço de um homem mortal. Vindo para esta terra, apascentei os bois do meu hospedeiro e guardei a sua casa até este momento. Sendo eu justo, encontrava um homem justo no filho de Feres, que livrei da morte, enganando as Parcas; e as deusas prometeram-me que Admeto escaparia à morte iminente se entregasse em troca outro morto aos senhores dos Infernos. »

Mas é bom lembrar que o mito grego tem outras variantes: Admeto ganhou a mão de Alceste ao aparecer diante do pai dela num carro puxado por leões e javalis, façanha que realizou com a ajuda de Apolo. Porém, durante o sacrifício da festa de casamento, Admeto se esquece de honrar a deusa Ártemis, e encontra seu quarto cheio de cobras. E nesse momento que o deus que serve e protege negocia com as Parcas o acordo com que redundará no sacrifício da esposa.

[3] Pelo menos na tradução de J. B. de Mello e Souza, publicada nos Clássicos Jackson, volume XXII (e que pode ser lida em www.ebooksbrasil.org/eLibris/alceste.html). Na versão sem indicação de autoria, em http://arnobiorocha.com.br/wp-content/uploads/2011/04/alceste1.pdf, o Coro encerra a peça assim:

«Muitas são as formas do divino e muitas as ações imprevistas dos deuses. O que esperávamos não se realizou; para o inesperado o deus achou caminho. Assim terminou este drama».

[4] Admeto, na peça de Eurípides, despede-se de Hércules: «Sê feliz, Hércules! Possas tu retornar mui breve a nosso lar! Que os cidadãos de Feres e todos os habitantes da Tessália celebrem este ditoso acontecimento por festas e danças; que em todos os altares a chama do holocausto se erga, em meio de preces de gratidão! Porque uma vida melhor se vai seguir a dias tão funestos! »

Em outra tradução: «Boa sorte e oxalá tenhas certo o regresso! Aos cidadãos e a toda a tetrarquia ordeno que festejem com danças estes felizes acontecimentos e que os altares fumeguem com a carne propiciatória dos bois. Trocamos agora o passado por uma vida melhor; não negarei que sou feliz.».

Invertendo a frase de Albert Camus sobre Sísifo, para que nós, modernos, tenhamos um mínimo de empatia com o herói euripidiano, “é preciso imaginar Admeto infeliz”, o que talvez  Gonçalo M. Tavares indique na passagem derradeira de seu Os velhos também querem viver:

«Admeto espera, mas Hércules não se faz demorar:

com a mão direita tira o véu da frente do rosto

                        [daquela mulher.

Admeto estremece: é Alceste;

                         está viva. »

[5] «Em tempo de guerra quem faz mais falta:

o homem que fora de casa combate

ou a mulher que dentro de casa protege os filhos

que mais tarde sairão de casa para combater?

Não há resposta e nunca houve resposta,

dentro ou fora de Sarajevo».

[6] «E sim, agora, neste instante: Admeto, o esposo
da nossa heroína,
atingido por uma bala inequívoca, uma
bala de cima,
cai à porta de casa como se o corpo recebesse
encomenda maligna
deixado por carteiro de nome: morte certa,
morte exata,
morte de resto zero.
Uma bala má ali está, então, alojada
na casa mais casa que um homem tem
-a sua cabeça, o seu cérebro-
e Admeto, no centro de Sarajevo,
não tem outra opção senão deixar-se morrer (…)

Porém o Deus Apolo tem ideias distintas,
não concorda com esse sistema antigo-
o nobre noivado entre causa/efeito;
não apoia essa necessidade que um corpo
moribundo tem
de solo, descanso,e nada..»

03-05-06/51

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17/03/2015

ALICE NÃO MORA MAIS AQUI: Lisa Genova e o Alzheimer

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(uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 17 de março de 2015)

Embora a nova capa de Para Sempre Alice[1] se valha do medonho costume de copiar o cartaz da versão cinematográfica, pelo menos nos livramos do constrangedor subtítulo que poluía a edição anterior do romance de Lisa Genova pela Nova Fronteira, «Quando não há certezas possíveis, só o amor sabe o que é verdade» !!!???

Como se sabe, por sua interpretação a admirável Julianne Moore, uma das grandes atrizes do nosso tempo, ganhou um esperado (e tardio) Oscar. Sua personagem, Alice Howland, tem a mente deteriorada precocemente—aos 50 anos—pelo Alzheimer. Intelectual e professora (em Harvard) reputadíssima, na área da psicologia que pesquisa a linguagem e suas ligações com os mecanismos do cérebro—o que permitiu que ela escrevesse um livro em parceria com o marido, John, da área da biologia—, os 24 capítulos do romance percorrem um arco, de setembro de 2003 a setembro de 2005 ( com o acréscimo de um epílogo ‘fora do tempo’, por assim dizer, pois é assim que estará Alice no País do Alzheimer[2]), através do qual acompanhamos a rapidez com que a doença vai causando seus estragos cognitivos e físicos: «Ainda conseguia ler e compreender textos curtos, mas o teclado do computador se tornara uma mixórdia indecifrável de letras. Na verdade, ela havia perdido a capacidade de compor palavras com as letras do alfabeto no teclado. Sua capacidade de usar a linguagem, aquela coisa que mais distinguia os seres humanos dos animais, a estava abandonando, e Alice sentia-se cada vez menos humana à medida que ela partia». Ou então: «o cheiro desagradável de seu corpo lhe informou que fazia dias que ela não tomava banho, mas não conseguia reunir a coragem nem o conhecimento necessário para entrar na banheira».

Contudo, nem uma doença trágica consegue fazer de Para Sempre Alice um grande livro, basicamente porque Lisa Genova usa um filtro cor-de-rosa em demasia para relatar esse caso individual que poderia dizer respeito a todos, como acontece em A Morte de Ivan Ilitch, por exemplo (sei, claro, que é injusto comparar qualquer escritor com Tolstói). Para começar, a existência de Alice é ajustadíssima ao status quo[3]. Para ela, ter uma carreira como a sua, do marido e dos filhos, é o ideal (e a autora parece concordar com sua heroína). Por isso, o único ponto discordante, até os sintomas começarem a se manifestar, é a rebeldia da caçula, Lydia, que desistiu da formação universitária e deseja ser atriz (os detalhes da sua vida em Los Angeles são estereotipadíssimos). Mesmo com a evolução da sua doença, os conflitos do romance não saem do clichê: tendo a esposa encerrado abruptamente a carreira, John se debate (e entra em confronto com os filhos) entre a lealdade ao casamento e novas perspectivas profissionais. E assim, Lydia, que era a filha que não se entendia com a mãe, de repente começa a ser a mais dedicada a ela.

É por isso que o desfecho me chocou tanto, apesar de ‘tocante’, com sua apologia da afetividade (em detrimento do intelecto). Em termos de reflexão sobre a condição humana, me parece totalmente falso, até apelativo. No fim das contas, o único mal solto no mundo parece ser o Alzheimer, e mesmo ele pode ser confinado dentro das paredes da harmonia familiar. E assim, a romancista estreante, que escreve bem, e nos proporciona alguns momentos de voo menos curto (como o das instruções de suicídio que uma ainda lúcida Alice escreveu para seu futuro ‘eu’ já comprometido cognitivamente—este até chega a tentar colocá-las em prática, entretanto as esquece no tempo de subir uns lances de escada), desperdiça bagagem profissional (era neurocientista) e munição ficcional numa historinha que renderia no máximo um telefilme, um daqueles nos quais, para variar, só o amor saberia o que é verdade quando não há mais certezas possíveis.

para-sempre

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NOTAS

[1] A ótima tradução brasileira para STILL ALICE, publicado em 2007 de forma independente nos EUA, e em 2009, em edição tradicional.

[2] Era o título que eu tinha planejado para a resenha, mas José Geraldo Couto antecipou-se em sua incisiva crítica à mediania do filme (mesmo com uma atriz muito acima da média), VER http://www.blogdoims.com.br/ims/alice-no-pais-do-alzheimer; então apelei para outra forte referência, desta vez o filme de Martin Scorsese.

[3] O personagem-título da novela de Tolstói também é ajustadíssimo, em sua obsessão a fazer tudo comme il faut, mas essa alienação e conformismo nunca são seguidos pela visão autoral. Devo dizer que evidentemente Alice é mais simpática ao leitor que Ivan Ilitch, mas se ele analisar um pouco mais fundo, vai achar seu modo de viver complacente e no fundo, no fundo mesmo, desagradável e egoísta.

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03/03/2015

UM CINTILANTE MOSAICO DE DÚVIDA: Thomas Pynchon e seu “Vício Inerente”

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«__ Falando sozinho de novo—disse Clancy.—Você precisa encontrar o verdadeiro amor, Doc.

   A bem da verdade, ele pensou, eu me contento em só achar o meu caminho nessa história. Os seus dedos, dotados de opinião própria, começaram a rastejar na direção da sebe plástica. Talvez se ele a revistasse por tempo suficiente, noite suficientemente avançada, encontrasse alguma coisa que pudesse ajudar—algum minúsculo fiapo perdido da sua vida que ele nem sabia que tinha desaparecido, algo que faria toda a diferença» 

«…de repente as leis do acaso, decidindo-se por um clássico foda-se, instruíram  a máquina de centavos de Puck a acertar também... »

«…quando diversos tipos de caos estouraram…»

(uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 03 de março de 2015)

      Na semana passada, comentei Uma Breve História do Tempo e a proposição do autor, Stephen Hawking, de uma Teoria de Tudo, título do filme que deu o Oscar a Eddie Redmayne. Já Paul Thomas Anderson teve sua quarta indicação[1] ao prêmio como roteirista pela adaptação (dirigida por ele, e que estreia este mês no Brasil) de Vício Inerente [“Inherent Vice”, 2009], romance em que Thomas Pynchon, um dos mais cultuados autores contemporâneos (candidato recorrente ao Nobel), useiro e vezeiro da Teoria do Caos — que trata das instabilidades no cerne de sistemas complexos e deterministas —, faz uma sombria paródia do romance noir à Raymond Chandler & Dashiell Hammet[2].

Numa conjunção aziaga, a Califórnia dos anos 1970, onde a ação ocorre (há um intermezzo em Las Vegas[3]), é governada por Ronald Reagan, e o presidente é Richard Nixon. A guerra do Vietnã, que desmoralizou o país, está em seus estertores, enquanto a cultura hippie ainda floresce. O detetive particular Doc Sportello, maconheiro em tempo integral (não dispensa um ácido, se pintar), investiga o sumiço de Shasta Fay Hepworth (os personagens têm nomes rebarbativos, como costuma acontecer no gênero[4]), antigo e conturbado caso, agora amante do poderoso empresário Michael Wolfmann, igualmente desaparecido (talvez sequestrado ou assassinado). Esses eventos estão ligados ao sinistro navio Canino Dourado, uma das fachadas de um insidioso cartel de drogas, atuante em todas as esferas da sociedade, inclusive clínicas de reabilitação: «se o Canino Dourado conseguia deixar os seus fregueses chapados, por que não ir para o outro lado e vender também a eles um programa que os ajudasse a largar? Deixá-los indo e vindo, o dobro do lucro e sem precisar se preocupar com fregueses novos—enquanto a Vida Americana fosse algo de que as pessoas tivessem de fugir…»[5].

Coy Harlingen, sax tenor de uma banda de surf music, supostamente morrera de overdose, entretanto aparece o tempo todo nos caminhos da investigação (e ligado a uma milícia direitista violenta, os Vigilantes da Califórnia, ou mais singelamente, viggies), e Doc começa a suspeitar (a paranoia é a seara do autor de O Arco-íris da Gravidade, uma das obras-primas do século passado[6]) de que tudo e todos estão interligados numa indescortinável, porque caótica, teia de crime e poder: «O mundo acabava de ser desmontado, qualquer um aqui podia estar metido em qualquer golpe que você pudesse imaginar, e já estava mais do que na hora, como dizia  o Salsicha, de dar o fora daqui, Scooby, meu filho».

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As referências às identidades assumidas por Coy e à dupla Salsicha-Scooby Doo ajudam a delinear, ainda que ligeiramente, aspectos tipicamente pynchonianos de Vício Inerente: as inúmeras analogias de ambientes e situações com contatos extraterrestres, ou descidas em planetas desconhecidos e inóspitos[7]; pessoas que surgem e somem como truques de mágica[8]; a realidade postiça de Hollywood e Las Vegas; a associação do uso de drogas com estados alterados, alucinações, trips diversas (ou hippiefanias); tudo isso proporciona um clima de insubstancialidade, a sensação de que somos seres fractais, jamais euclidianos[9] («Agora, duas ou três linhas ocorriam a Doc ao mesmo tempo, exibindo-se em uma espécie de padrão hiperdimensional no pedaço de parede vazia do escritório que ele frequentemente usava para esses exercícios»), numa . realidade (?) “borrada” («e do lado de fora das janelas o neon da cidade começou a se alongar em compridos borrões espectrais»).Ou seja, regidos pelo caos e acaso, e se houver uma ordem subjacente, ela é nossa antagonista[10]. Em termos literários, como se o universo de corrupção e desmoralização da sociedade de um James Ellroy fosse invadido pela fantasia distópica de um Philip K. Dick ou um William Gibson. O romance, aliás, aponta para a futura hegemonia do mundo virtual  e da “informação”, com Doc roçando os primórdios da computação e seus usuários e programadores, descritos em termos que lembram os “chapados” por outros meios: «e eu juro que parece ácido, um outro mundo estranho—tempo, espaço, essa porcariada toda»

Por outro lado, os delirantes detalhes das mais diversas subculturas que impregnam a narrativa comprovam que Pynchon jamais permite que seu belo romance da maturidade (um tanto subestimado, ao que me parece) esmoreça num fácil pastiche de um gênero, embora ele até se valha de frases típicas da pulp fiction mais deslavada: «Doc estava com uma ereção e seu nariz escorria». Autor que sofre de horror vacui (horror ao vazio), ao mesmo tempo em que o insinua, ele satura suas obras de tal forma que elas se tornam sistemas próprios e autônomos (muitos, infelizmente, acham difícil adentrá-los; já outros, como eu, tornam-se viciados), porém incisivos como poucos, com relação aos impasses políticos do que chamamos de realidade[11].

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TRECHO SELECIONADO

Que explica o título do romance de Pynchon e o título do meu post:

«Doc pegou a sua lente e examinou cada imagem até que uma a uma elas começaram a sair flutuando em manchinhas coloridas. Era como se o que quer que tivesse acontecido tivesse chegado a algum tipo de limite. Era como achar o portal do passado sem vigilância, desproibido porque não precisava ser. Embutido no ato de retorno havia por fim um cintilante mosaico de dúvida. Algo como o que os colegas de Sauncho que trabalham com seguros marítimos gostam de chamar de vício inerente.

__Isso é igual ao pecado original?—Doc especulou.

__ É o que você não pode evitar—Sauncho disse…»

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NOTAS

[1] As anteriores foram por Boogie Nights, Magnólia & Sangue Negro (por este último ele concorreu ainda como diretor e como co-produtor). Escusado dizer que ele não ganhou por nenhuma. Não sou entusiasta dos filmes de Anderson, mas que ele tem ambição e ousadia, isso não dá para negar (e isso dá margem para seus intérpretes ousarem e brilharem, também).

[2] E também a apropriação do noir por Hollywood. O herói do livro sempre evoca a figura de John Garfield, intérprete de vários filmes no gênero, inclusive da clássica versão do livro mais famoso de James M. Cain, O destino bate à sua porta.

[3] «Olha só tudo isso. Como é que isso pode ser de verdade? como é que alguém pode levar isso a sério? »

  A respeito dos lugares de jogatina menos vistosos, por assim dizer, em Las Vegas:

«Os jogadores aqui tendiam a jogar por dinheiro, cuidando de suas vidas esperançosas ou desesperadas, chapados ou caretas, cientificamente ou calcados em superstições tão exóticas que não podiam ser prontamente explicadas, e em algum lugar nas sombras o senhorio, a financeira, a comunidade dos agiotas, estavam sentados invisíveis e calados, batendo os pés dentro de sapatos caros, ponderando opções de castigo, leniência—e até, raramente, misericórdia»

[4] Outros exemplos:  Sauncho Smilas, Rudy Blatnoyd, Puck Beaverton, Rhus Frothingham, Trillium Fortnight…

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[5] Todas as citações são da maravilhosa tradução de Caetano W. Galindo (há um genial “pau-pites” na pág. 389). Também inspirada é a capa de Elisa V. Randow.

[6] O substantivo “paranoia” e seus adjetivos correlatos são utilizados à farta em Vício Inerente («ou será que tenho que começar a ficar paranoico de verdade?»), mas gostaria de chamar a atenção de que ele muitas vezes brinca com isso (Pynchon= paranoia+ironia+caos):

«__Eu posso dizer uma coisa em voz alta? Será que tem alguém ouvindo?

__ Todo mundo. Ninguém. Faz diferença?»

[7] Dois exemplos tomados ao acaso: «Como viajantes do espaço em uma nave espacial»; «e foi como pousar em outro planeta».

[8] «…e—será que Doc tinha piscado ou alguma coisa assim?—sem mais nem menos desapareceu»

[9] Um dos indicadores é o uso contínuo do ponto de interrogação para frases e declarações supostamente afirmativas.

[10] Frequentando seus lugares usuais, Doc não reconhece ninguém e nem sequer os ambientes e aí lemos: «Ninguém que ele reconhecesse. Ele pensou brevemente em ir para o seu apartamento, mas começou a recear que não fosse reconhecê-lo também, ou pior, que o apartamento não o reconhecesse—não estivesse lá, a chave não coubesse ou alguma coisa assim»

[11] Um ponto que não pude desenvolver na resenha acima e a respeito do qual gostaria, entretanto, de chamar a atenção, é para a renitente e ao mesmo tempo insustentável inocência do herói do livro, Doc Sportello, que toca num ponto nevrálgico do imaginário norte-americano. Se ele tem intuições do caos como meio de administrar totalitariamente o sistema em plena “democracia” («e quando no fim os patriotas e os tiranos são as mesmas pessoas?»), ao longo da narrativa, também tem a atitude criticada na passagem seguinte:

«__ E você—ela diz a Doc—um dia vai ter que se conformar.

__ Como assim?

__ Ser como todo mundo».

 

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