

«Os acontecimentos que o céu nos proporciona manifestam-se sob as mais diversas formas; e muita coisa acontece, para além de nossos temores e suposições; muita vez o que se espera, nunca sucede; e o que nos assombra, realiza-se com a ajuda dos deuses» (Eurípides, Alceste)
«Não se trata já de intervir no destino,
esse sentido abstrato para onde antigamente
[caminhavam as coisas
(como se fosse um plano inclinadíssimo).
Trata-se, sim, de algo bem mais concreto
[e ofensivo:
uma tentativa de intromissão no normal
[funcionamento
dos órgãos humanos (…)
Que intervenham no vago destino mas não
[em vísceras vivas… »
(Gonçalo M. Tavares, Os velhos também querem viver)
(uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 24 de março de 2015)
Era de se esperar que um autor tão prolífico como Gonçalo M. Tavares mostrasse sinais de arrefecimento. No entanto, Os velhos também querem viver (Editora Foz) prova que sua inventividade continua afiada: trata-se de um poema narrativo, em cinco partes (além de prólogo e epílogo) que segue os acontecimentos de Alceste —a mais antiga (encenada pela primeira vez em 438 a.C.) entre as tragédias preservadas de Eurípides—, ambientando-os em Sarajevo durante o cerco pelo exército sérvio (1992-96), guerra recente que pulverizou a Iugoslávia[1].
O protagonista, Admeto, é atingido por uma bala, nos azares da refrega, e deve morrer[2]. O deus Apolo, não concordando com o «nobre noivado entre causa-efeito» exige da morte exceção para seu protegido. Seu desejo será atendido se alguém se oferecer a substituir o morto. Todos, inclusive os pais de Admeto, se recusam, mas sua esposa, Alceste, aceita o sacrifício. Moribunda, faz com que ele prometa nunca colocar outra mulher dentro de casa.
Por essa altura, Hércules chega a Sarajevo. Admeto é conhecido por sua hospitalidade e esconde o luto que há na casa por Alceste, o que escandaliza servos e cidadãos (há um Coro, composto de gente mutilada pela guerra), ainda mais que o famoso herói se revela um fanfarrão, bebendo e festejando à larga. Um dos servos, num momento de revolta, revela o ocorrido e ele, envergonhado, se propõe a resgatar Alceste da morte. Acontece que ele a traz de volta sob um véu, sem se dar a conhecer, e pede que Admeto a receba, em flagrante quebra da promessa solenemente feita. Hércules o admoesta: «Qual o sentido do sacrifício de Alceste?/Qual o sentido de ela te dar a sua vida se depois tu/vivo/ficas a lamentar-te de o estar?» Ou seja, mais que sobreviver, “viver” é trair os mortos.
É nessa linha, também, o embate—durante os funerais de Alceste—entre Admeto e o pai, Feres. O filho acusa o pai de covardia por não ter se oferecido em seu lugar, o pai não entende por que não deveria continuar a viver, mesmo velho, com poucos anos pela frente. Heroísmo, códigos de honra, afetos e laços entre as gerações ficam em xeque diante do apego à sobrevivência (ainda mais numa cidade em ruínas, onde a morte é presença diária): «Aos mortais Apolo, o deus, pergunta/um a um, como num mero interrogatório policial:/Queres viver?/Sim, todos respondem, Sim, queremos viver!//E a questão é esta, não há outra… » Diga-se, de passagem, que o final “feliz” a diferenciar Alceste de outras tragédias (tornando sua reputação canônica um tanto quanto problemática) ganha um cunho impiedosamente irônico em sua nova versão (para ser franco, nem o final da peça de Eurípides, «a volta feliz de Alceste»–estas as últimas palavras da peça[3]—, apesar do reencontro dos esposos proporcionado por Hércules, me parece tão auspicioso assim, ainda que se furte à mortandade habitual nas obras do gênero—não dá para apagar os acontecimentos anteriores, e principalmente a quebra da promessa em nome da hospitalidade, para não falar da própria situação inicial[4]).
O entrelaçamento de um poderoso mito grego (com importantes desdobramentos éticos), daqueles que fundamentaram a civilização europeia (e ocidental, por extensão), com um episódio histórico (Sarajevo, em plena consolidação da União Europeia) cuja maior consequência foi desvelar as fraturas (para não dizer a falência) desse projeto civilizatório, que não resolveu dilemas recorrentes, em particular a guerra e as distinções de classe e de gênero (no caso de Admeto, até o privilégio de ter alguém para morrer em seu lugar[5]), é um grande trunfo de Os velhos também querem viver.
Entretanto, o que impressiona fortemente é a exatidão milimétrica da linguagem, que recria Eurípides num compasso à João Cabral de Melo Neto, desde a «bala inequívoca» que atinge Admeto e se aloja «na casa mais casa que um homem tem/a sua cabeça, o seu cérebro»[6]: «Os velhos, note-se, sempre pareceram formas/humanas/de, em plena vida, se publicitar a morte;/formas experientes de anunciar algo que/se aproxima/por baixo, por cima, por todos os lados».
Deuses e semideuses estão presentes na Sarajevo do genial autor português (nascido em Angola). Nem eram necessários: a vida nua e o arbítrio do destino e dos homens são o que há de mais constante na existência.
____________
[o texto acima foi publicado no LETRAS IN.VERSO E RE.VERSO, em 25 de março de 2015, VER:
http://letrasinversoreverso.blogspot.com.br/2015/03/a-questao-e-esta-nao-ha-outra-goncalo-m.html]


TRECHO SELECIONADO
«De fato, se existissem instrumentos técnicos
capazes de transformar a tensão do cortejo
[em energia explosiva,
toda a cidade de Sarajevo iria pelos ares,
e Sarajevo assim não precisaria de inimigos,
bombas ou cerco: bastaria um sacrifício,
e a insatisfeita perplexidade que nos outros
[daí resulta,
para a cidade colapsar e se render.
O tremor não vem, pois, do cansaço ou da carga
[física
de quem carrega o caixão;
um morto pesa, estranhamente, na direção oposta,
fenômeno que vai contra os preconceitos da velha
[Física
e muitos outros.
Um morto pesa para cima, faz força no sentido
[do solo para o céu;
como se imóvel saltasse, ou quisesse saltar,
dali para o que está no topo do nada, esse nada
[que existe,
mas no lugar mais afastado.
A sensação, pois, de que o transporte de um morto
[tem limites simbólicos
e não apenas de linhas traçadas no chão:
é necessário descanso, mesmo para os que
[passaram para aquele lado
onde não há cansaço».


ANEXO
Abaixo vão alguns trechos marcantes de Alceste: quando Admeto fala de sua situação ao coro; quando o seu pai, Feres, contesta suas recriminações; e, por fim, aquele belo recurso do teatro clássico, em que uma personagem secundária (e mais “comum”) narra para nós as ações de um protagonista.
«Amigos, a sorte de minha mulher é, em minha opinião, mais feliz do
que a minha, embora pareça o contrário. Nenhuma dor a atingirá jamais e
de muitos sofrimentos saiu gloriosa. Eu, porém, que já devia ter morrido,
escapei ao destino para arrastar uma vida miserável; compreendo-o agora.
Como poderei eu transpor a entrada desta casa? A quem dirigirei a palavra
ou quem me saudará, que possa alegrar a minha chegada? Para onde me
voltar? A solidão da minha expulsar-me-á, quando diante dos olhos eu
tiver o leito vazio da minha mulher e as cadeiras em que se sentava, e sob o
teto um solo coberto de pó. E os meus filhos, lançando-se sobre os meus
joelhos, hão de chorar a mãe, enquanto os servos lamentarão a boa senhora
que a casa perdeu. Eis o que se passará no interior da minha casa. Mas, no
exterior, os esponsais dos Tessálios e as reuniões de mulheres hão de
impelir-me de novo para o palácio; não suportarei ver as companheiras de
minha mulher. E qualquer inimigo meu poderá dizer estas palavras: “Vede
como ele vive na vergonha, ele que não ousou morrer, dando em troca
aquela que desposou para escapar cobardemente ao Hades. Julgará ele,
depois disto, que é um homem? E ainda odeia os pais, por não ter querido
morrer.” Esta a fama que há de somar-se à minha desgraça. Que vantagem
terei eu em viver, amigos, prejudicado na reputação e mergulhado na
infelicidade?»

«Ó filho, quem julgas tu, na tua insolência, que estás a atacar com as
tuas injúrias? Um Lídio ou um Frígio comprados com o teu dinheiro? Não
sabes que sou tessálio, filho de pai tessálio e livre por nascimento?
Abandonas-te a muitos excessos, mas, depois de lançares contra mim os
teus juvenis sarcasmos, não vais partir assim. Gerei-te a criei-te para seres
senhor deste palácio, mas não tenho obrigação de morrer por ti. Não recebi
dos antepassados, nem é grega essa lei de que os pais devem morrer pelos
filhos. Feliz ou infeliz, é para ti que nasceste. O que devias receber de mim
já o possuis. És chefe de muitos homens e deixar-te-ei terras de muitas
jeiras que recebi de meu pai. Em quê, pois, te causei dano? De que te privo
eu? Não morras por mim, que eu não morrerei por ti. Regozijas-te de ver a
luz? E pensas que o teu pai não tem o mesmo direito? Imagino como será
longo o tempo debaixo da terra, e a vida é breve, mas agradável.
Entretanto, tu, sem pudor, lutaste para não morrer e estás vivo: escapaste à
sorte imposta pelo destino, matando-a a ela. E falas da minha cobardia, ó
celerado, quando afinal tu te deixaste vencer por uma mulher que morreu
por ti, por um jovem lindo como tu? Descobriste uma boa maneira de
nunca morrer, se persuadires sempre a mulher que tiveres na ocasião a
morrer por ti. E vens agora insultar os teus por não quererem fazer isso,
quando tu próprio não passas de um cobarde? Cala-te e pensa que, se tens
amor à vida, os outros também têm; e se continuas a dirigir-me palavras
desagradáveis, vais ouvir muitas do mesmo gênero, e merecidas.»

«CORO
Então que ela saiba que, morrendo em glória, é de longe a mais
nobre mulher debaixo do sol.
CRIADA
Como não há de ser a melhor? Quem o contradirá? Que terá de ser a
mulher capaz de exceder? E como pode alguém demonstrar mais amor por
um esposo do que oferecendo a vida por ele? A cidade inteira conhece
esses fatos; e as coisas que fez em casa, ouvi-las-ás com admiração.
Quando se apercebeu de que chegava o dia marcado, banhou o alvo corpo
em água do rio e, tirando de uma câmara de cedro um veste e adereço,
vestiu-se como lhe competia. Depois, colocando-se em frente ao altar de
Héstia, orou assim: “Senhora, visto que vou para debaixo da terra, tens-me
aqui a teus pés, pedindo-te pela última vez, que veles pelos meus filhos
órfãos: une um em casamento com uma esposa querida, a outra dá-a a um
nobre esposo. Que os meus filhos não morram novos como sua mãe que já
sucumbe, mas felizes, na terra de seus pais, terminem uma vida aprazível.”
Aproximou-se de todos os altares que estão na casa de Admeto,
coroou-se e fez preces, ao mesmo tempo que cortava folhagem de ramos de
mirto., sem chorar, sem gemer, sem que o mal próximo lhe alterasse a
beleza natural da face. E depois, lançando-se para o quarto nupcial e
caindo sobre o leito, aí chorou e disse: “Ó leito, onde desatei o meu cinto
virginal com aquele homem por quem morro, adeus! Não te odeio: só a
mim perdeste. Morro por não ter querido trair a meu esposo e a ti. Outra
mulher te possuirá, não mais leal, mas talvez mais feliz.”
Caindo de joelhos, beija o leito e inunda-o de lágrimas, afasta-se de
cabeça baixa, arrancando-se para fora da câmara nupcial, mas, depois,
retrocedendo muitas vezes, volta de novo para o leito. Os filhos, agarrados
às vestes da mãe, choravam; e ela, tomando-os nos braços, acariciava ora
um ora outro, como quem ia morrer. Em casa, todos os criados choravam,
lamentando a sua senhora. E ela estendia a mão direita cada um, e ninguém
era tão vil que não recebesse a sua palavra e que não lhe correspondesse.
São estes os males que há na casa de Admeto. Atingido pela morte, ele
teria perecido, mas foi salvo e, no entanto, suporta tal dor que jamais
esquecerá.»



_____________
NOTAS
[1] Aliás, Sarajevo aparece em pontos nevrálgicos da história europeia contemporânea, basta lembrar de que um atentado ali ocorrido foi o estopim da Primeira Guerra.
[2] Em Alceste, Apolo toma a palavra logo no início para explicar o contexto da sentença de morte de Admeto:
«Ó casa de Admeto, na qual eu me resignei aceitar a mesa de mercenário, eu que sou um deus! De tudo foi Zeus o causador, ao destruir meu filho Asclépio, lançando-lhe o fogo ao peito. Por este motivo, enfurecendo-me, mato os Ciclopes, artífices do fogo de Zeus; e o meu pai impôs-me, como expiação, ficar a serviço de um homem mortal. Vindo para esta terra, apascentei os bois do meu hospedeiro e guardei a sua casa até este momento. Sendo eu justo, encontrava um homem justo no filho de Feres, que livrei da morte, enganando as Parcas; e as deusas prometeram-me que Admeto escaparia à morte iminente se entregasse em troca outro morto aos senhores dos Infernos. »
Mas é bom lembrar que o mito grego tem outras variantes: Admeto ganhou a mão de Alceste ao aparecer diante do pai dela num carro puxado por leões e javalis, façanha que realizou com a ajuda de Apolo. Porém, durante o sacrifício da festa de casamento, Admeto se esquece de honrar a deusa Ártemis, e encontra seu quarto cheio de cobras. E nesse momento que o deus que serve e protege negocia com as Parcas o acordo com que redundará no sacrifício da esposa.
[3] Pelo menos na tradução de J. B. de Mello e Souza, publicada nos Clássicos Jackson, volume XXII (e que pode ser lida em www.ebooksbrasil.org/eLibris/alceste.html). Na versão sem indicação de autoria, em http://arnobiorocha.com.br/wp-content/uploads/2011/04/alceste1.pdf, o Coro encerra a peça assim:
«Muitas são as formas do divino e muitas as ações imprevistas dos deuses. O que esperávamos não se realizou; para o inesperado o deus achou caminho. Assim terminou este drama».
[4] Admeto, na peça de Eurípides, despede-se de Hércules: «Sê feliz, Hércules! Possas tu retornar mui breve a nosso lar! Que os cidadãos de Feres e todos os habitantes da Tessália celebrem este ditoso acontecimento por festas e danças; que em todos os altares a chama do holocausto se erga, em meio de preces de gratidão! Porque uma vida melhor se vai seguir a dias tão funestos! »
Em outra tradução: «Boa sorte e oxalá tenhas certo o regresso! Aos cidadãos e a toda a tetrarquia ordeno que festejem com danças estes felizes acontecimentos e que os altares fumeguem com a carne propiciatória dos bois. Trocamos agora o passado por uma vida melhor; não negarei que sou feliz.».
Invertendo a frase de Albert Camus sobre Sísifo, para que nós, modernos, tenhamos um mínimo de empatia com o herói euripidiano, “é preciso imaginar Admeto infeliz”, o que talvez Gonçalo M. Tavares indique na passagem derradeira de seu Os velhos também querem viver:
«Admeto espera, mas Hércules não se faz demorar:
com a mão direita tira o véu da frente do rosto
[daquela mulher.
Admeto estremece: é Alceste;
está viva. »
[5] «Em tempo de guerra quem faz mais falta:
o homem que fora de casa combate
ou a mulher que dentro de casa protege os filhos
que mais tarde sairão de casa para combater?
Não há resposta e nunca houve resposta,
dentro ou fora de Sarajevo».
[6] «E sim, agora, neste instante: Admeto, o esposo
da nossa heroína,
atingido por uma bala inequívoca, uma
bala de cima,
cai à porta de casa como se o corpo recebesse
encomenda maligna
deixado por carteiro de nome: morte certa,
morte exata,
morte de resto zero.
Uma bala má ali está, então, alojada
na casa mais casa que um homem tem
-a sua cabeça, o seu cérebro-
e Admeto, no centro de Sarajevo,
não tem outra opção senão deixar-se morrer (…)
Porém o Deus Apolo tem ideias distintas,
não concorda com esse sistema antigo-
o nobre noivado entre causa/efeito;
não apoia essa necessidade que um corpo
moribundo tem
de solo, descanso,e nada..»

