“Quero pensar assim também, que não vai morrer, que não me consola nada essa história de que algumas pessoas, e Mamãe estaria entre essas, quando morrem, vão para o céu, um lugar destinado aos puros de coração, onde não existe nenhum sofrimento, mas também de onde não é permitido retornar, de onde nunca ninguém escreveu uma carta, nem telefonou para falar de saudade. Um lugar que não pode ser encontrado em nenhum mapa, distante de chegar, impossível de sair. O infinito de Deus. Foi assim que aprendi. E como isso é cruel! Quero Mamãe junto de mim. Não quero esquecer seu olhar de fada. Não quero esquecer que sou um filho.” ( trecho de Nem as estrelas são para sempre)
“Tanto encantamento para dar no que deu. Lembro-me do dia em que lhe perguntei se amor acabava e você me respondeu rindo, certa da eternidade do seu, quando se parte, Ursinha, é porque não era cristal de verdade. Quando penso nas coisas que me contou sobre as noites de vocês dois, os beijos, as juras de paixão, os projetos para futuro, e o amor! Ah, Bel, o amor! Você me dizia assim: quando fazemos amor, Ursinha, penso que vou morrer. E nem precisava me explicar nada, pois a expressão fazer amor ficava ecoando em meus ouvidos, rendia horas em minha imaginação, soprava um braseiro no meu sangue. Então, Bel, quando penso nisso tudo, no que você teve e perdeu, aí entendo como é que o amor pode se transformar em noite escura, em bicho feroz, e atormentar e devorar as pessoas, como fez com você.” ( trecho de Cristal partido)
(O texto abaixo foi escrito especialmente para o blog, em fevereiro de 2014-Advertência ao leitor: com exceção da primeira, nas notas de rodapé, revela-se o final dos contos)
Foi através de um romance, Suíte de silêncios (2012)[1], que comecei a ler Marilia Arnaud. Após a leitura tardia da última reunião de contos publicada por ela até agora, O LIVRO DOS AFETOS, ainda que fique na maior expectativa quanto a uma futura produção romanesca da autora paraibana, torço para que não desista da arte da narrativa curta, tal a maturidade e o equilíbrio entre leveza e densidade alcançados nos nove textos da coletânea de 2005 (sua terceira).
O título não poderia ser mais preciso: trata-se de fato de uma enciclopédia ficcional de afetos, desde as relações familiares, que percorrem o espectro que vai do geracional (pais, filhos e irmãos) ao conjugal, até as eróticas extracurriculares—por por assim dizer—, na vigília e no sonho.
Marilia Arnaud trata do lastro afetivo concreto, atávico ou construído ao longo da existência, todavia como se O. Henry fosse “possuído” por Arthur Schnitzler, seus textos revelam ainda mais a sombra desses afetos, uma espécie de fantasmagoria afetiva que muitas vezes descostura e esgarça o tecido dos sentimentos urdidos ao nosso redor, o tecido do que aparentemente é a nossa realidade (com as relações efetivas que ela demanda).
Em Açucena, o último conto, o narrador nos fala do “sorvedouro de forças ocultas, passos em falso, respostas provisórias” a marcar seu amor por Açucena, ou melhor, as projeções e obsessões que a sombreiam: “Ciúmes daquilo que eu não sabia o que era, mas de que Açucena estava tão densamente impregnada, um sentimento maior, algo de que me sentia irremediavelmente excluído”.
Essa exclusão tem o seu peso atávico, daquilo que corrói o narrador desde a infância (“Não queria contar-lhe de um pai de quem nunca ouvira falar, de uma mulher que sumira sem deixar vestígios, e a quem eu, se quisesse, poderia chamar de mãe. Sim, fui à escola, joguei bola, fiz alguns amigos, conheci mulheres, mas nunca falei para Açucena das minhas dificuldades com tudo isso…”); e tem o peso do ciúme machista, da tentativa do macho de controlar a vida e os prazeres da “fêmea”, tornando-o “fraco, mesquinho e louco”: “Que fazer se a redenção vinha com o aconchego dos seus braços, com a visão do gozo boiando-lhe nos olhos? Mesmo daquilo passei a descrer. Das palavras e gestos que celebravam o seu desejo por mim”.
Nunca ouviremos Açucena. Apenas teremos o debruçar-se do narrador sobre sua presença e sua ausência, mais um “dos milhões de espectros que me habitam desde a infância”.
No texto não há uma única cena ou referência que justifique esse lento envenenar da relação pelo ciúme e pela desconfiança, e mesmo assim Açucena é eivada de um teor fantasmático antes mesmo do desfecho[2].
Mesmo nos textos em que há uma situação “extracurricular” explícita ou confessada, não se desatam os nós da incerteza, da dúvida, nem diminui a fantasmagoria.
No texto que abre o volume, Os dias revelados, a esposa revela ao marido (o relato é ardilosamente construído como uma espécie de confissão-desabafo, ela querendo que ele a ouça, enfim: “Fica tranquilo. Nada do que eu te disser hoje te fará sofrer mais do que sofreste.”) que teve um amante, uma relação degradante, com um sujeito maltrapilho, morador de periferia, envelhecido e que pouco ligava para ela (a qual chegava a ficar esperando horas na porta da casa dele a sua volta, geralmente vindo de algum boteco):
“Como num campo gravitacional, eu era tragada, arrastada, devorada pelo buraco negro, e mesmo quando te olhava, Eugênio, eu não te via, e estando junto a ti, em verdade eu estava lá, com ele, ou o esperando, diante da porta fechada, sentada nos degraus da entrada, exposta aos olhares hostis ou compassivos dos vizinhos, enquanto ele se embriagava em algum bar imundo, para depois, num acesso de fúria, atirar-se contra as paredes, socando-as até os dedos sangrarem. Então, eu o odiava e o amaldiçoava. Velho, bêbado, patético, como ousava deixar-me jogada ali, refém da sua indiferença e egoísmo? O que mais queria?”
Enquanto isso, o marido estava ali, à mão: “Queria, sim, guardar-te em uma caixa confortável, tu, teu violino, tuas peças e partituras, o moto-perpétuo dos teus harmoniosos acordes, teu belo universo da música, o tempo necessário, a eternidade se preciso fosse, para viver com inteireza aquela história.”[3]
Uma relação extraconjugal também é o cerne de A mulher do próximo, no qual o filho transa com a nova (e bem mais jovem) esposa do pai. Quando o conto começa, ela vem dar um ultimato à relação, recapitulada então por ele, assim como a sua formação enquanto homem, enquanto figura masculina, um dado muito importante no texto:
“Não havia sido uma criança bonita. E, como homem, não atraía os olhares femininos. Às vezes, ouvia pessoas comentarem que a ausência de beleza era algo irrelevante diante da firmeza de caráter. Porém, estava convicto de que, por não possuí-la, eu fora, de certa forma, negligenciado por minha família quando criança, principalmente por minha mãe, tornando-me um adolescente retraído e inseguro, habituado à solidão, ao sentimento de estar sempre à parte.
Mais tarde, quando beirava os dezoito anos, a primeira mulher com quem me deitei, bela e experiente, acabou me convencendo, ao longo de muitas noites, de que eu era dono de braços fortes e rosto másculo e de que fazia sexo como se fosse pela última vez e com a única mulher existente na face da terra. Eu não podia ser melhor do que era. A partir daí, deixei de considerar-me uma desgraça irremediável. Aceitei-me. Contudo, a sensação de desamparo e autocomiseração nunca me abandonou por completo.”[4]
Considero A mulher do próximo o mais bem-realizado dos contos de O LIVRO DOS AFETOS a abordar situações adúlteras, não só pela qualidade do texto, de ponta a ponta, mas também por mostrar como um contista de qualidade pode nos fazer intuir um mundo de intrigas a mais, uma série de acenos dos bastidores, sem precisar ser explícito ou expositivo a respeito (e, paradoxalmente, isso também é um ótimo laboratório para um futuro romancista, que queira aproveitar essas intrigas deixadas em suspenso). Numa mera cena de despedida, toda uma vida de família é pressentida, além da existência do grande enganado (será mesmo?), o pai (“Não imaginava que tivesse virilidade para amá-la. Até a noite em que fui surpreendido pelos gemidos dois dois. Aquilo me transtornou. Enquanto eu perambulava pela casa, sem conseguir dormir ou fazer qualquer outra coisa, a vadia deitava-se com o pai, para logo na tarde seguinte deitar-se com o filho e deliciar-se com isso, com dois homens, numa mesma casa.”).
Essa qualidade se faz ainda mais presente naquele que considero o ponto alto da coletânea, Nem as estrelas são para sempre, cujo narrador é um menino ressentido com um pai brutal (o qual tem uma paixão pela irmã da esposa—o filho surpreende-o em declarações amorosas) que o rejeita devido à falta de virilidade ostensiva, e angustiado com a morte iminente da mãe pelo câncer. Todo o relato da dinâmica familiar, antes e após a doença se instalar na casa (tendo como consequência a vinda da tia, para cuidar da mãe) é agudo e preciso. Fica até difícil escolher alguma passagem específica, tão bom é o resultado[5] (se eu fizesse uma antologia do conto contemporâneo brasileiro, inclui-lo-ia sem hesitar).
Outros pontos altos de O LIVRO DOS AFETOS, e meus favoritos, junto com Nem as estrelas são para sempre: A noite de Alícia, O homem que veio do sonho e Cristal partido (especialmente este último).
A noite de Alícia é emblemático do aspecto fantasmático, de sombra do real, dos afetos dos quais se ocupa a autora. O narrador visita Alícia, sua parente de segundo grau, uma visita formal e meio forçada (“Pergunta-me pela família, a nossa. Conto-lhe da doença do meu pai, dos casamentos e divórcios de primos que ela conheceu ainda adolescentes, de nascimentos e mortes… tenho a impressão de que me ouve com atenção, mas sem entusiasmo”), mas na verdade o que ocupa a sua mente é uma outra Alícia, quando ela tinha 19 anos (ele, 14—novamente em questão a formação de um homem[6]), que vira nua e a quem espreitava (assistindo inclusive a uma sessão de masturbação).
Enquanto que para ela, é apenas uma visita de obrigação, uma cerimônia maçadora, para ele é uma tentativa proustiana meio gorada[7] (o que nos dá uma pista do que foi a vida dele dos 14 anos até agora), de rememoração de certos ritos de passagem e de uma educação sentimental pessoal (e, mais uma vez, temos uma ação nos bastidores, que nunca será totalmente esclarecida: os motivos da estadia de Alícia na casa dele).
Tanto O homem que veio do sonho e Cristal partido abordam crimes ligados a sexo: no primeiro, único caso de narração em terceira pessoa no conjunto, o mundo dos sonhos, das pulsões transformadas em imagens de perigo e abuso, vai infiltrando-se na realidade com grande habilidade e senso de “atmosfera” (como quando, acordada, a jovem Dalila vê no jardim da sua casa o seu abusador na esfera onírica: “…lá estava ele, a uma distância mínima, desertor do seu sonho, usurpador da sua realidade e espaço, erguendo para ela a cara medonha, tragando-a com o mesmo olhar de areia movediça”[8]); no segundo, a narradora, Ursinha (um apelido infantilizador) é amiga (e pelo visto, apaixonada por ela) da empregada da sua casa, Belmira (são indícios que a narrativa semeia e deixa para a imaginação do leitor), que se envolve com um homem que ela terminará por assassinar, antes de desaparecer. O relato é feito depois que a narradora descobre o crime, deixando ali no local um bilhete comprometedor para a amiga (um esquecimento dos mais ambíguos: “Estou sozinho, eu e o nosso segredo, e nem sei até quando conseguirei guardá-lo, porque o bilhete, me perdoe, Bel, acho que esqueci o maldito lá na casa de Antonio, não sei exatamente onde, mas, no momento do desespero, acabei largando o envelope no meio daquela bagunça toda e só me dei conta de que o havia perdido quando já estava na rua…”; “Sei que se estivesse no meu lugar e fosse eu quem tivesse escrito o bilhete, você voltaria lá para pegá-lo. Sinto muito, Bel, mas me falta coragem. É tudo tão monstruoso! Penso que irão encontrá-lo e a culpa vai ser toda minha…”). É um conto excelente, digno dos melhores momentos da grande Lygia Fagundes Telles.
Assim, Dalila e Ursinha, antes mesmo de viverem experiências mais adultas e percorrer o mundo de afetos, conhecem o seu avesso sombrio e destruidor. E espero que a essa altura do meu percurso pelo universo de Marilia Arnaud, já se tenha dado conta de quão necessária é uma nova edição de O LIVRO DOS AFETOS, pois a da 7Letras (dentro daquela interessante Coleção Rocinante) encontra-se atualmente esgotada.
[1] VER AQUI NO BLOG: https://armonte.wordpress.com/2012/10/29/elegia-de-duina-suite-de-silencios-de-marilia-arnaud/
[2] Numa atitude, cara á cultura machista brasileira, o narrador prefere matar Açucena a ser abandonado por ela. E a tessitura pessoal da vida da mulher (Açucena faz poesias) é referida de modo cruel e desprezivo: “Açucena iria compor seus versos no silêncio do plâncton, liquens, nácares”.
[3] É preciso dizer que a despeito da progressão dramática do conto ser impecável, os dois últimos parágrafos decepcionam e esvaziam um pouco do seu efeito. Parte-se para uma abstração “poética” e cheia de imagens mal resolvidas que pouco têm a ver com a crueza (e crueldade calculada, penso eu) da confissão:
“É verdade que me agarrei a este homem com todo o desespero e a esperança de uma náufraga. Não, não me salvei, se é isto que queres saber. Meu barco tem o casco rebentado e, vez em quando, aderna sob a influência de instáveis e misteriosas correntes subterrâneas, mas a tempestade se foi e, junto a ti, estou tateando uma certa ordem para tantas e turbulentas emoções, buscando uma reconciliação com o nosso frágil universo. Frágil e despedaçado, sim. Todavia, e tu hás de concordar comigo, real, possível.
E agora que são passados todos esses anos, Eugênio, o que te revelo me parece tão irreal quanto uma dessas histórias que vemos no cinema. Ou que vivemos em sonho. Um sonho obscuro e opressivo, quase um pesadelo. Um tempo impreciso, pontuado apenas pelo sussurro de Deus, um lugar indefinido jamais alcançado pela luz do sol, torres e catedrais em ruínas, despojos, cadáveres farejados por assombrosos animais, pântanos, mangues, rios de águas vermelhas, e eles dois, sobreviventes de uma fera chamada vida, condenados, num perverso sortilégio, a dançar infinitamente o ilusório e noturno tango dos amantes.”
Tirante o trecho por mim grifado em itálico, e que nos remete justamente à atmosfera das histórias de Schnitzler (em que um dos polos de uma relação tenta fazer entender o outro suas fantasias e reptos, o que nunca dá certo, na verdade), esse final do texto pouco tem a ver com a qualidade das páginas precedentes e, por esse motivo, como um conto geralmente é construído para um efeito final, Os dias revelados, não ficou entre os melhores de O LIVRO DOS AFETOS.
Outro texto que também trata de uma aventura extraconjugal muito calcada na fantasia, e que é muito bom até que o final estrague todo o efeito, é A Passageira.
Nele, o narrador iria se encontrar com a esposa, Una, para o tradicional jantar “em algum bom restaurante”. Em meio ao trânsito, uma desconhecida entra no seu carro, cobrando dele que, desta vez, fique com ela para sempre. Embaraçado com a situação, e acabrunhado com a possibilidade de um mal entendido com Una, nem por isso o narrador deixa de observar atentamente a mulher. O magistral no texto é a mudança de registro: primeiro, ela não lhe é nada atraente, mas conforme vai se deixando levar pela situação, a passageira vai lhe despertando cada vez mais o desejo, e de repente, é como se ele não tivesse uma vida anterior para voltar, e sim uma existência alternativa com aquela desconhecida.
E aí então, após chegar a um ponto sensacional do texto (“A mulher veio limpar-me e acomodar-me na cama onde havíamos feito o bebê, num tempo que eu nunca imaginara ter existido. Ela sorria, e como ficava bonita quando sorria. Seus traços suavizavam-se. Quis falar-lhe disso, da sua beleza, que acabara de me ser revelada, mas antes que pudesse fazê-lo, antes mesmo que pudesse amá-la, adormeci.”), a autora entorna o caldo e nos dá uma banal frase final, para mim, uma sentença aniquiladora: “Quando acordei, Una dormia ao meu lado.”!!!!???
E ainda outro texto problemático, nessa mesma linha sobre adultério: Girassóis no inferno. Boa parte dele é sensacional: o marido da narradora, Arturo, morre (enfarte), num lugar ermo, durante um encontro amoroso com uma desconhecida. A esposa fica obcecada não só com o lugar do encontro fatal (“Tardes inteiras, eu imóvel, deitada à sobra da figueira, única árvore num raio de quilômetros, onde ele estacionara o carro àquela manhã de verão, para estar fora do alcance de olhos alheios. Ali ele amara a mulher que eu não sabia quem era…”) como também—e sobretudo—com a identidade da amante (“Todos os dias, dormindo ou acordada, sonhava com a mulher em cujos braços Arturo estivera pouco antes de partir”. A única pista é um conjunto de poemas estranhos, herméticos, desafiadores.
Na verdade, o leitor logo desconfia que não se trata de uma mulher. E, de fato, após levar os poemas para um especialista, ela recebe a visita de um rapaz, autor dos poemas e o verdadeiro amante do marido. Não que a realização do conto resida nessa “surpresa”, mas não só ela não é nenhuma surpresa (a não ser para os muito incautos), como também é encenada de modo pouco sutil. O maior problema, no entanto, é que depois da aparição do rapaz e a “surpresa”, a autora parece não saber muito bem como terminar a história. Não dá para o leitor se contentar com a fuga do rapaz e essas frases banais:
“Num ímpeto, levantei-me e corri atrás dele, mas acabei voltando antes de tomar o elevador. Aquilo não se fazia mais necessário. Estava tudo acabado e eu acordava de um longo pesadelo.
Sobre a mesa, enxerguei a pasta onde guardara os poemas, cujo autor se fora sem que eu tivesse a oportunidade de lhe dizer como a incompreensão de seus versos havia me assombrado.”
Portanto, os três textos (Os anos revelados, A passageira, Girassóis no inferno) deixam a desejar, (lógico que dentro da formulação tradicional do conto como criação de um “efeito”) justamente pelo final, que os enfraquece consideravelmente.
[4] Ao contrário dos outros contos adulterinos citados, o final de A mulher do próximo é perfeito: “Num esforço, ergui-me e fui embora, com a sensação de que ela me seguia com o olhar. No final da alameda, voltei-me e, para minha surpresa e frustração, Ana Laura mantinha-se na mesma posição em que a deixei, sentada, a cabeça baixa, o olhar fixo nos próprios sapatos.”
[5] Eu adoro o final: “Esse porquê, da paixão secreta de meu pai por Tia Corina, é tão grande e perigoso quanto o da doença de Mamãe. E parece que quando não se tem a quem perguntar, onde buscar a resposta, o porquê vai inchando e apodrecendo dentro da gente, feito comida estragada. E esmo que tivesse coragem de matar meu pai, pois eu poderia, se quisesse, acabar com ele de alguma forma, sem que a gente tivesse de ficar frente a frente, bastando, para isso, descobrir em qual canto desta casa Mamãe guarda veneno para ratos, ainda assim, se eu o matasse, continuaria com todas as interrogações latejando dentro do meu peito, ainda assim, não poderia remendar as asas machucadas da borboleta, nem fazê-la voltar a voar.”
[6] “Nessa época, ainda não conhecia as mulheres. Tudo o que sabia a respeito delas me era contado pelos primos mais velhos. Bolinavam as namoradas e pagavam para deitar com umas mulheres que faziam ponto no centro da cidade. Putas. Bastava essa palavra, pronunciada por qualquer um deles, para me pôr os nervos à flor da pele. Então, dizia para mim mesmo que logo iria chegar a minha vez. Sabia, mais ou menos, como deveria agir, embora intuísse que as coisas nunca se passavam exatamente do jeito que a gente imagina. Os primos, fanfarrões e cheios de si, viviam me perguntando o que eu esperava para estar com uma delas. Não sabia. E eles se divertiam em zombar daquela minha fraqueza…”
[7] “Oferece-me um café e eu agradeço. Não tenho mais o que esperar. Aliás, continuo sem saber o que esperava antes de chegar aqui, se é que eu esperava alguma coisa. Na desordem da fantasia, Alícia nunca me faltou. Como realidade, sei agora que não me basta…”
[8] Assim como em Os anos revelados, o desejo se mistura à repugnância, a uma espécie de negação da higiene, do asseio, dos atributos exteriores de desejabilidade, tais como domesticados pela repressão civilizatória:
“Cheirava mal, a axilas suadas, a dias de andança à toa. Cheirava à miséria e solidão. Meu estômago dava saltos…” (Os anos revelados)
“O homem abraçou-a num supetão e apertou-a contra seu corpo, esfregando, na sua, a cara ossuda de barba rala. Estremeceu com o fedor que se desprendia dele…” (O homem que veio do sonho)