MONTE DE LEITURAS: blog do Alfredo Monte

28/04/2015

O gênio de George Eliot e a arte da novela: O VÉU ERGUIDO

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(uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 28 de abril de 2015)

A Grua vem editando a coleção Arte da Novela, e entre títulos excessivamente traduzidos (Bartleby, de Melville; Os Mortos, de Joyce; Um Coração Simples, de Flaubert), conquanto fundamentais, desponta uma grata surpresa: a versão de Lilian Jenkino para O Véu Erguido (“The Lifted Veil”, 1859), uma das primeiras obras de George Eliot (1819-1880), autora de primeira grandeza, mas de escassa fama (e insuficientes traduções) no Brasil, ao contrário de  Dickens e Jane Austen, por exemplo.

Por conta disso, o relato de Latimer, filho caçula de um grande capitalista, desdenhado pelo pai por sua constituição frágil e sua psique sensível demais, e que após longa enfermida passa a ter vislumbres do futuro e a capacidade de “ouvir” a mente das pessoas à sua volta, para além dos véus do decoro social e da hipocrisia (tão típica da era vitoriana)[1], não se transformou numa daquelas narrativas paradigmáticas e onipresentes, valendo-se do sobrenatural para desvelar o fracionamento da identidade humana, posteriormente diagnosticado por Freud, como O Médico e o Monstro, O Retrato de Dorian Gray, Frankenstein, A Volta do Parafuso,  ou certos contos de Poe, para ficar na esfera anglo-saxã[2].

«Minha adivinhação enferma das consciências alheias continuou a me atormentar». Há, entretanto, uma exceção a essa «intromissão involuntária nas almas alheias»[3]: Bertha, jovem destinada ao casamento com o irmão dele e seu oposto em temperamento e traquejo social, Alfred. A não ser em certo momento aterrador: após contemplar um quadro clássico de Giorgione representando Lucrécia Bórgia (o que já é bem  sintomático), sua clarividência lhe traz uma cena de ódio —emanado por uma Bertha madura, casada com ele:

«E se eu tivesse enxergado dentro do coração de Bertha, aquela mulher madura—Bertha, minha esposa? Mas Bertha, a moça, continuava a ser um segredo fascinante (…) O medo do veneno não pode contra a sensação da sede (…)

   É história antiga ver os homens se venderem ao tentador, firmando pacto com sangue, já que o resultado só se vê em dia distante; e então ver esses mesmos homens buscando avidamente o copo que aplaca a sede da alma com um impulso não menos selvagem na companhia de uma sombra ainda mais negra. Não existe atalho, nenhum trilho patente, para a sabedoria: mesmo com séculos de invenções, o caminho da alma deita pelo ermo espinhento que precisa ser trilhado em solidão, com pés sangrentos, com soluços implorando ajuda, uma vez que foi trilhado por eles em tempos idos… »[4]

Com esse sutil toque fantástico (amiúde exercitado por seu maior discípulo, Henry James), a romancista de O moinho sobre o rio[5] nos faz refletir sobre o medo do futuro[6], encarar como como nossas inclinações moldam nosso destino, tornando-o fatalístico, desmontando ilusões românticas, o autoengano (também uma seara explorada por James—quem pode esquecer A fera na selva?), além de trazer à baila a estreiteza da mentalidade pragmática e positivista do mundo burguês, confrontando ciência e senso moral[7]. De fato, a história de Latimer nos ajuda a entender a seguinte afirmação de Frederick R. Karl, alentada biografia A Voz de um Século: «Eliot se dividia entre a personalidade que se alimenta de derrotas, resignação, sentido de mortalidade e o fim do próprio eu e a personalidade que produz, se desenvolve, amadurece, emerge e procura atingir o público como autora e ser social»[8].

   Portanto, mesmo num texto curto, aquela que escreveu o supremo romance inglês oitocentista, Middlemarch (1872)[9], delineia as grandes linhas de força que consolidaram a alta prosa narrativa, partindo do folhetim e do gótico, e que fizeram de certos personagens peças-chave do imaginário ocidental. Não falta sequer o típico retrato da instituição do casamento, ingrediente indispensável daquela época, e que aqui ganha pinceladas sinistras, bem dentro da relutante vidência de Latimer («…pressentimentos emanados de uma previsão em pé de guerra com a paixão…»)[10], com a inclusão de uma criada-vilã, cuja jornada para a morte, em agonia, ensejará uma cena que tem não apenas o seu quê de Poe como também o seu quê de Machado de Assis (penso em A causa secreta, por exemplo): o espetáculo da mortalidade rasgando de forma definitiva os derradeiros véus das relações humanas, queiramos ou não: «As feições dela naquele momento pareciam tão sobrenaturalmente afiadas, os olhos tão ríspidos e ávidos—ela lembrava um imortal cruel  que se refestela espiritualmente  nas agonias de uma corrida mortal. Por entre tais feições ásperas surgiu um clarão quando soprava a última hora,  e todos nós sentimos que  o véu escuro havia  completamente caído. Que segredo haveria entre Bertha e aquela mulher? Tirei os olhos de Bertha por um medo horrível de ter de volta os vislumbres, com medo de ser obrigado a enxergar aquilo que fermentava  no coração entre duas mulheres não-amadas. Senti que Bertha aguardava o momento  daquela morte como se  esperasse o sepultamento de um segredo: eu agradeci ao Céu por tal segredo permanecer oculto para mim…»[11]

Mais que mero destaque de uma coleção interessante, O Véu Erguido é o ponto alto de um gênero. Merece ser mais amplamente conhecido.

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TRECHO SELECIONADO

«… não importa o quão vazio esteja o ádito, conquanto seja espesso o véu. Tão absoluta é a necessidade da alma de algo escondido e incerto visando à manutenção da dúvida, da esperança e do esforço, que são o sopro da vida, que, mesmo que todo o futuro fosse desnudado hoje, o interesse da humanidade inteira recairia nas horas intermediárias (…) Imagino a condição da mente humana se toda e qualquer proposição fosse autoexplicativa exceto uma, que se tornaria evidente ao findar de um dia de verão, mas que, enquanto isso, pode ser o objeto de questionamento, de hipótese, de debate. A arte e a filosofia, a literatura e as ciências  se tumultuariam como abelhas sobre essa única proposição repleta do mel da probabilidade, e tais artes estariam  ainda mais famintas porque seu deleite ficaria com o acaso. Nossos impulsos, as atividades espirituais, não se ajustam à ideia da nulidade futura mais do que  já fazem as batidas do coração  ou a irritabilidade dos músculos…»

«… no matter how empty the adytum, so that the veil be thick enough.  So absolute is our soul’s need of something hidden and uncertain for the maintenance of that doubt and hope and effort which are the breath of its life, that if the whole future were laid bare to us beyond to-day, the interest of all mankind would be bent on the hours that lie between (…)Conceive the condition of the human mind if all propositions whatsoever were self-evident except one, which was to become self-evident at the close of a summer’s day, but in the meantime might be the subject of question, of hypothesis, of debate.  Art and philosophy, literature and science, would fasten like bees on that one proposition which had the honey of probability in it, and be the more eager because their enjoyment would end with sunset.  Our impulses, our spiritual activities, no more adjust themselves to the idea of their future nullity, than the beating of our heart, or the irritability of our muscles…»

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NOTAS

[1] Um argumento similar foi desperdiçado por Joaquim Manuel de Macedo em seu A Luneta Mágica (1869).

[2] No clímax do relato, há algo da atmosfera tétrico-necrófila de Os fatos do caso de Mr. Valdemar, de Poe. E quem não lembraria dos diálogos de Oscar Wilde na seguinte passagem:

« “Como pode dizer isso, Bertha?”

“Ora! Sua Sabedoria crê ser necessário que eu ame o homem a quem desposarei? Seria a mais desagradável das coisas. Com ele eu duelarei… Um pouco de desprezo silencioso muito contribui para a elegância da vida…”»

No original:

« “How can you ask that, Bertha?”

“What! your wisdom thinks I must love the man I’m going to marry?  The most unpleasant thing in the world.  I should quarrel with him… A little quiet contempt contributes greatly to the elegance of life.” »

[3]  Trechos tirados da seguinte passagem: «… minha adivinhação enferma das consciências alheias continuou a me atormentar (…) Era como um sentido sobrenaturalmente elevado da audição, tornando audível como rugido o que os outros consideravam como perfeita mansidão. O cansaço e o desgosto dessa intromissão involuntária nas almas alheias eram contrabalançados apenas pela ignorância em relação a Bertha e pela crescente paixão por ela; uma paixão enormemente estimulada, senão produzida, por tal ignorância. Ela era meu oásis de mistério no deserto monótono do conhecimento… »

«…my diseased anticipation in other people’s consciousness continued to torment me (…)It was like a preternaturally heightened sense of hearing, making audible to one a roar of sound where others find perfect stillness.  The weariness and disgust of this involuntary intrusion into other souls was counteracted only by my ignorance of Bertha, and my growing passion for her; a passion enormously stimulated, if not produced, by that ignorance.  She was my oasis of mystery in the dreary desert of knowledge…»

[4] «What if I saw into the heart of Bertha, the matured woman—Bertha, my wife?  Bertha, the girl, was a fascinating secret to me still: I trembled under her touch; I felt the witchery of her presence; I yearned to be assured of her love.  The fear of poison is feeble against the sense of thirst (…)

    It is an old story, that men sell themselves to the tempter, and sign a bond with their blood, because it is only to take effect at a distant day; then rush on to snatch the cup their souls thirst after with an impulse not the less savage because there is a dark shadow beside them for evermore.  There is no short cut, no patent tram-road, to wisdom: after all the centuries of invention, the soul’s path lies through the thorny wilderness which must be still trodden in solitude, with bleeding feet, with sobs for help, as it was trodden by them of old time..

[5] VER AQUI NO BLOG:

https://armonte.wordpress.com/2012/04/20/maggie-tulliver-e-isabel-archer-o-mundo-e-um-moinho/

[6] Logo no início da narrativa em primeira pessoa:

«…eu deveria, ao menos uma vez, tentar descobrir se os sofrimentos da expectativa ilusória conseguem sobrepujar os sofrimentos da previsão verdadeira…»

«…I should for once have known whether the miseries of delusive expectation can outweigh the miseries of true provision…»

E bem mais adiante:

«Eu sentia um tipo de angústia imbuída de pena em relação ao pathos que me cabia: a sina de um ser finamente ajustado para a dor, mas com quase nenhuma fibra que respondesse ao prazer—alguém a quem a ideia do mal futuro roubava o presente de sua alegria, e para quem a ideia de uma bonança futura não acalmava a tormenta de um anseio ou de um temor presentes…»

«…I felt a sort of pitying anguish over the pathos of my own lot: the lot of a being finely organized for pain, but with hardly any fibres that responded to pleasure—to whom the idea of future evil robbed the present of its joy, and for whom the idea of future good did not still the uneasiness of a present yearning or a present dread…»

[7] Há uma cena em que um frenólogo examina o crânio de Latimer, para estabelecer suas “tendências”, e não podemos esquecer do experimento “científico” do clímax.

[8] VER AQUI NO BLOG:

https://armonte.wordpress.com/2013/10/14/tijolaco-biografico-pouco-ajuda-a-conhecer-george-eliot/

[9] VER AQUI NO BLOG:

https://armonte.wordpress.com/2010/11/22/mundo-imerso-no-mundo-a-maior-rival-de-tolstoi/

A respeito de outro admirável romance de Eliot, Daniel Deronda:

https://armonte.wordpress.com/2010/11/22/o-projeto-mais-ambicioso-da-voz-do-seculo-xix/

[10] «…the presentiments that spring from an insight at war with passion…»

[11] «The features at that moment seemed so preternaturally sharp, the eyes were so hard and eager—she looked like a cruel immortal, finding her spiritual feast in the agonies of a dying race.  For across those hard features there came something like a flash when the last hour had been breathed out, and we all felt that the dark veil had completely fallen.  What secret was there between Bertha and this woman?  I turned my eyes from her with a horrible dread lest my insight should return, and I should be obliged to see what had been breeding about two unloving women’s hearts.  I felt that Bertha had been watching for the moment of death as the sealing of her secret: I thanked Heaven it could remain sealed for me…»

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22/04/2015

Destaque do Blog: A CAIXA, de Günter Grass (1927-2015)

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(uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 21 de abril de 2015)

1

Em 1998, maravilhado com a riqueza mirabolante da narrativa de Um Campo Vasto (1995), como acontecera tantas vezes na leitura do  recém-falecido Günter Grass (O Tambor, 1959; Anos de Cão, 1963; O Linguado, 1977; A Ratazana, 1986), eu terminava uma  resenha, para a “A Tribuna” de Santos, afirmando peremptoriamente: « justiça seja feita e que Grass seja o próximo Nobel»[1]; desejo pessoal metamorfoseado em vaticínio: no ano seguinte, ele foi anunciado como vencedor do prêmio[2], devido à «enorme tarefa de rever a história contemporânea lembrando os despojados e esquecidos, as vítimas e os perdedores, e as mentiras que as pessoas querem esquecer porque um dia acreditaram nelas».

Na década seguinte, Nas Peles da Cebola (2006) representou uma reviravolta na reputação do escritor alemão. Ali se revelava alguém que, afinal (tardiamente, decerto), não queria se esquecer da mentira em que um dia acreditara: quando jovem, pertencera aos quadros da hierarquia nazista. O mal-estar geral e a desilusão (Grass há décadas detinha o status de “consciência crítica” de sua nação) empanaram o desassombro e lucidez desse livro de memórias.

Vindo na esteira de obras enormes, “cósmicas”, por assim dizer, e da igualmente alentada e desnorteante autobiografia, A Caixa-Histórias da Câmara Escura (2008) parece, à primeira vista, um projeto mais modesto, um romance “pequeno” em tamanho e ambição[3]. Ledo engano. Trata-se de uma encapsulada “poética” da vida e da obra de Grass, contrapartida (e complemento cronológico) lúdica de Nas Peles da Cebola, onde líamos que, nas estórias, as coisas «se passam de modo mais factual do que na vida real».

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2

«Possivelmente também nós, do jeito que estamos sentados aqui e conversando, sejamos apenas inventados… Isso ele pode,  e isso, na verdade, ele domina muito bem: inventar, imaginar, até que tudo se torne realidade e inclusive projete sombra», diz um dos oito filhos[4] (com mães diferentes) do velho escritor, às vésperas dos oitenta anos, reunidos com a missão de, entre seus compromissos pessoais, em refeições fartas em lugares e momentos variados (por exemplo, «Depois de comerem com gosto o gulache de cordeiro, eles vão sentar na sacada com vista  para o pátio interno e para o terreno vazio de uma escola ao anoitecer…»), fazer a crônica familiar, do que representou para cada deles ter tal pai famoso e polêmico (atacado pela direita e pela extrema-esquerda), vivendo em diversas casas, com a vida do clã pontuada por grandiosos projetos autorais acalentados por anos e anos até o aparecimento de um Livro (assim, com maiúscula, pela amplitude e repercussão). Mas como toda reunião, mesmo a das pessoas mais próximas e íntimas, o que deveria ser um arsenal de reminiscências em comum fratura-se com as percepções diversas de cada evento, com os ressentimentos que afloram, com as revelações inesperadas, com o fato de que, mesmo numa tapeçaria familiar inconsútil (e com a sombra de tal pai), cada qual tem sua trajetória irredutível.

E não podemos esquecer do “pai narrador”, a instância por trás de tudo, que “quer que seja assim”: «Coisas que não foram ditas pairam no ar. Só vagarosamente os irmãos tomam o rumo das confusões de sua infância, falam retroativamente, ora se mostrando animados, ora de mau humor, e fazem questão de continuar se mostrando feridos, magoados. Porque o pai deles quer que seja assim…»; ou mais adiante, em outra toada: «Agora o pai não sabe o que fazer: apagar o que está escrito? Encontrar algo mais inocente para substituir o que foi dito e impedir que alguém fique magoado? Ou prolongar a briga? Ou insinuar, contra a vontade dos filhos, em orações subordinadas, qual é a erva que os dois fumam em segredo, até porque o cheiro…»[5]

Essa feição narrativa (desdobramento de colóquios, em diversos encontros) já é emaranhada por natureza. Mas há ainda a caixa do título, a máquina fotográfica utilizada por Marie[6], presença onipresente na família (alguns desconfiam de que era amante do pai) durante décadas, ajudando o escritor em sua obsessão de tornar vivo o passado em suas obras («E de qualquer modo só ficou claro, sé que um dia ficou, apenas bem devagar, que ele precisava das fotos para poder imaginar como tudo era no passado. É assim mesmo com nosso paizinho: vive só do passado, e continua vivendo assim. Não consegue largá-lo. Precisa voltar sempre de novo…»). As fotografias da irascível e indomada Marie, que só sobreviveram no pensamento mágico coletivo da família, tinham o vezo de alterar o real, às vezes mostrando o que já não existia mais, às vezes antecipando o futuro, contudo sempre trazendo à tona desejos latentes, quando não ranços nunca resolvidos de todo («Mas a câmara de Mariechen não se limitava a realizar desejos, Quando ela ficava com raiva por causa de vocês, ou o vento soprava da direção errada, ou outra coisa a roía por dentro—o grande  dente roedor das recordações que a guerra deixara dentro dela…»). Fotos-estórias, mais factuais do que a vida vivida de fato: «…mas isso aconteceu. Pois tudo o que a velha Marie fotografa com sua caixa da Agfa, mal ela revelava os rolos de filme em sua câmara escura, saía bem diferente da realidade».

E, na sua maestria octogenária, Grass nos brindou com a mais precisa junção de invenção e memória («Ora, mas pouco importa com que foi que ela fotografou. Importante é que acreditamos em tudo… »). A Caixa tanto representa uma ótima introdução à sua obra inigualável, como um encantador e mágico reencontro do leitor habituado ao universo desse gênio da literatura.

(uma versão do texto acima foi publicado no LETRAS IN.VERSO E RE.VERSO em 22 de abril de 2015, VER:

http://letrasinversoreverso.blogspot.com.br/2015/04/a-caixa-uma-poetica-da-vida-e-da-obra.html

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TRECHO SELECIONADO

«A velha Marie fotografou nossa Casa de Tijolos por dentro e por fora com sua Agfa-Especial, para que papai pudesse ver quem vivera por ali no passado e pintara suas coisas no sótão, onde ele ficava sentado agora. Era alguém que mais tarde inclusive ficou famoso, e isso com uma fotografia especial. Era um pintor de paisagens marítimas. Pintava quadros conhecidos como marinhas. Navios de três mastros de velas enfunadas, mas também vapores transatlânticos. Mais tarde quase sempre navios de guerra. Cruzadores e outros do tipo, quando a Primeira Guerra Mundial começou, e nossa frota e a dos ingleses lutou e se afundou mutuamente no Mar do Norte. Eram quadros da batalha do Doggerbank e da batalha de Skagerrak, nas quais morreu muita gente. Mas um dos quadros que ele pintou tratava da batalha marítima nas Ilhas Falkland… Ali dava para ver restos de um cruzador alemão que se chamava Leipzig.  Ao fundo, navios de guerra ingleses fumegam. E na parte da frente um marujo se encontrava em pé sobre uma prancha ou sobre uma quilha que ainda restara do cruzador, em meio ás ondas. Ele segurava com uma ou com ambas as mãos uma bandeira, que parecia com as bandeiras que os skinheads da direita ainda carregam hoje em dia por aí, quando querem aparecer na televisão. Chamava-se O Último Homem…

   E justamente desse quadro a Agfa-Especial de Marienchen conseguiu se lembrar…

   Lógico! Porque a câmera dela era retrovidente…

    Ainda me lembro como ela se postava na janela grande, curvada para frente, mas ficava olhando sobre os ombros…

     E do mesmo jeito retorcido ela às vezes ficava parada conosco no povoado, sobre o dique, e, com a câmera virada para a frente, olhava para trás, como se o passado ficasse ali e, na frente, houvesse apenas ar…»

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NOTAS

[1] VER https://armonte.wordpress.com/2013/10/03/um-campo-vasto-a-implacavel-visao-de-gunter-grass-da-unificacao-das-alemanhas/

[2] VER https://armonte.wordpress.com/2013/10/03/a-vastidao-gunter-grass/

[3] Não percamos de vista que volta e meia Grass apresentava obras de ficção mais curtas, nem por isso menos notáveis, caso de Gato e Rato (1961), Anestesia Local (1969), Maus Presságios (1992), Passo de Caranguejo (2002), também traduzidos no Brasil, como todos os demais títulos citados.

[4] Conforme a biografia de Grass, seis biológicos e dois de uma de suas mulheres. Diga-se de passagem, embora sua obra seja marcada pela homenagem à Mulher (exemplo supremo é O Linguado), esse “feminismo” é ironicamente evocado em A Caixa, onde o designam como “paxá” autocentrado («…porque enfim encontrou uma mulher junto da qual pode terminar de escrever seu livro. Pois isso sempre foi para ele a coisa mais importante… »), e brinca-se o tempo com sua condição “patriarcal” ao ponto de evocar-se o parricídio pela horda primordial (não podemos esquecer também de Cronos, devorador dos filhos, na mitologia): «Devias ter visto na câmara escura dela, como nós, na condição de horda, as crianças, as mães e eu, estávamos sentados em torno do fogo, enrolados em peles, mordiscando raízes e roendo ossos. Um grupo desgrenhado, sempre com as clavas e machados de pedra à mão, de modo que mais tarde, quer dizer, no último filme, quando a fome não terminava, vocês acabaram por pegar o pai de vocês, porque ele era inútil e só ficava contando suas histórias…» (todas as citações de A Caixa, no original “Die Box”, são da tradução de Marcelo Backes, publicada pela Record em 2013).

[5] «Eles não queriam mais seguir suas palavras. A filha, os filhos, se negaram a ser parceiros de suas histórias. “Deixe-nos fora disso”, eles exclamaram. “Mas”, ele dissera, “as histórias de vocês também são minhas, tanto as divertidas quanto as tristes”…».

Em contrapartida:

«__ Não nos resta tanto tempo assim, se quisermos terminar antes de meados de outubro [o mês de aniversário de Grass, nascido em 1927—provavelmente aí se trata dos seus 80 anos].

__ E ainda por cima tudo deve correr segundo as ordens de papai. Ele simplesmente vai nos inventar! —exclamou Nana.

__ E vai botar palavras em minha boca que absolutamente não são minhas—queixa-se Taddei…»

[6] Inspirada em Maria Rama, colaboradora de Günter Grass, a quem o livro é dedicado. A Caixa poderia ser etiquetado dentro da categoria da “autoficção”, tão em voga. Em uma das caracterizações da personagem ao longo do romance, lemos:

«Ela sempre ficava à parte e, magra como era, parecia um tanto perdida. Parecia sozinha, não triste, na verdade, o que a princípio até teria sido compreensível, mas antes ausente.  “É que eu apenas restei”, ela dizia para mim […]

  Às vezes ela dizia: “Assim são as coisas, crianças, quando apenas restamos. Fica-se parado por aí e não se bate mais muito bem da bola.

    Nunca sabíamos ao certo quem era que não batia mais muito bem da bola. Se era ela ou a câmera ou se eram as duas».

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18/04/2015

OS HOMENS QUE NÃO AMAVAM AS MULHERES: Agatha Christie para nerds

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(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 31 de janeiro de 2012)

Apesar da deplorável e escandalosa decisão editorial de traduzir o livro da versão francesa e não do original sueco[1], me envolvi muito com o mistério criado por Stieg Larsson  (1954-2004) no primeiro volume da série Millennium (nome da revista dirigida pelo protagonista, Mikael Blomkvist), Os homens que não amavam as mulheres: a investigação, décadas depois, do desaparecimento e possível assassinato de Harriet Vanger, em 1966, aos 16 anos, numa pequena ilha onde os moradores são  membros da sua família, que se odeiam e hostilizam entre si (e alguns deles têm um passado de engajamento nazista).

Mikael (condenado num processo de difamação jornalística, e que por esse motivo aceita o trabalho, afastando-se da Millennium) se reúne a uma parceira improvável: a hacker que preparou o dossiê a respeito dele para o empresário Henrik Vanger, o qual todos os anos recebe uma flor emoldurada como presente de aniversário, gesto que credita ao assassino da sobrinha.

Lisbeth Salander é uma figura disfuncional, com aparência anoréxica, toda tatuada, parecendo uma menina ainda, e um comportamento antissocial acentuado. Ela nunca baixa a guarda (e, pelo desenvolvimento da trama, não deve mesmo, pois sofre severos abusos sexuais de um tutor legalmente constituído, já que ela apresenta histórico psiquiátrico; aliás, diga-se de passagem, o diagnóstico de Stieg Larsson sobre a liberdade na Suécia, a violência contra a mulher e o estado de corrupção nas finanças do país parecerá desalentador a quem tenha ilusões com os países ultra desenvolvidos e civilizados).

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Conforme vai descobrindo novas pistas a partir da manipulação modernizada de fotos antigas, e também de uma associação entre passagens do Levítico bíblico anotadas pela desaparecida Harriet e brutais crimes contra várias mulheres, a dupla se sente cada vez mais ameaçada no microcosmo familiar da ilha onde os Vanger habitam.

Esse núcleo de mistério clássico foi muito bem adaptado na versão cinematográfica, que eliminou alguns elementos importantes do romance (como a ligação amorosa de Mikael com uma Vanger) sem grande prejuízo e alterou a solução do desaparecimento da Harriet de uma forma que considero muito mais eficaz e bem sucedida que a de Larsson.

Infelizmente, o competentíssimo e estiloso (embora nada pessoal) filme de David Fincher manteve o calcanhar de aquiles que compromete o resultado final de Os homens que não amavam as mulheres . Solucionado o  caso da família Vanger, Mikael volta à Millennium para ajustar contas com o corrupto empresário Wennerström, que o liquidara nos tribunais. Até aí tudo bem. Acontece que ele faz Lisbeth Salander virar uma heroína de romance de Robert Lundlum ou do seriado Alias (aquele do J.J.Abrams, onde Sidney Bristow-Jennifer Garner se disfarçava a torto e direito pelo mundo afora, acessando qualquer sistema ou área restrita): dando uma de loira fatal, turbinada e poderosa, limpará as contas do vilão pela Europa afora e fará dele um fugitivo arruinado e com a cabeça à prêmio. Ora, ora. Até Rooney Mara, indicada ao Oscar, e cuja caracterização é absolutamente perfeita, vacila nessa hora, tropeça e vira uma caricatura. Não dá para  para um leitor ou espectador verdadeiramente adulto não achar lamentável essa transformação de Agatha Christie em fantasia nerd.

A personagem, que era o grande trunfo de Stieg Larsson, transforma-se num elemento risível. E Os homens que não amavam as mulheres perde todo o seu encanto sombrio. Mas talvez já se devesse pressentir tal triste fim diante de passagens como a seguinte, ao longo do texto: “A mochila continha seu iBook Apple 600, branco, com o disco rígido de 25 gigas e memória RAM de 420 megas, fabricado em janeiro de 2002 e com tela de 14 polegadas. Quando o adquiriu, era o que havia de melhor na Apple (…) Fizera cópias de todos os documentos e ainda possuía um velho computador de mesa Mac G3 e outro Toshiba portátil que poderia usar (…) Optou, como era de se esperar, pela melhor escolha possível: o novo Apple Powerbook G4 de 1Ghz, com tampa de alumínio e dotado de um processador Power PC 7451, AltiVec Velocity Engine, memória RAM de 960 megas e disco rígido de 60 gigas. Tinha Bluetooth e um gravador de CD e DVD integrado. Mais que isso, era o primeiro notebook do mundo com tela de 17 polegadas, uma placa Nvidia e resolução de 1440 por 900 pixels…” A Apple agradece o merchandising.

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[1] Tradução de Paulo Neves (de Les hommes qui n´aimaient pas les femmes). Millennium-I (Män som hatar kvinnor, Suécia, 2005)

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13/04/2015

VOO DE GRANDE ALTURA: A FICÇÃO DE SÉRGIO TAVARES

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«…e nada seria absurdo, pois não há absurdo na ilusão…» (trecho de Sono)

(uma versão da resenha abaixo foi publicada em A TRIBUNA de Santos, em 14 de abril de 2015)

Em Quebranto, conto final de Queda da Própria Altura, o protagonista em estado de narcose num quarto de hospital, à espera de um transplante, mal consegue lembrar de sua própria identidade, até que um novo paciente o reconheça como o mágico Quebranto e resgate sua existência: «durante uma semana, ele foi o narrador de mim. reconstruindo minha memória, meu passado, minha vida… »

Esse esgarçamento do ser, espécie de esbatimento progressivo diante da fragilidade das decisões e escolhas, percorre todo o livro de Sérgio Tavares—não à toa, ele se divide em três partes, ou movimentos: Impulso, Voo, Queda. E pensar que quase desisti da leitura, apesar do título açulador[1] e da capa esplêndida, pois ao folheá-lo me deparei com aquele vezo—para o qual não consegui ainda reconheci a funcionalidade— recente, e já tão velho, de abolir as maiúsculas!

Sofreria uma perda enorme: é uma das melhores obras de ficção publicadas neste século até agora, arquitetada de forma brilhante e muitíssimo bem escrita, sem titubeios ou firulas gráfico-formais (por isso, cai tão mal o recurso do uso exclusivo de minúsculas, a não ser nos nomes próprios): «minha mãe plantou a muda de hera um dia depois de o meu pai desaparecer, um dia depois do aniversário dela. meu pai falou que iria sair para comprar as velas do bolo e nunca mais voltou. lembro de minha mãe me arrastar horas e horas pelas ruas procurando-o, para enfim perceber o que tinha acontecido. na volta, passamos por uma casa cujo muro da frente era todo tomado por uma maranha de hera. pediu que eu esperasse, arrancou uma muda e, logo na manhã seguinte, plantou ao pé do muro da nossa casa. minha mãe disse que a nossa vida, a partir daquele momento iria ser como a hera: um cruzamento de dias presentes e futuros, sem distinção de começo e fim, um eterno renascimento. desde então, passou a se dedicar ao crescimento da planta como um perfeccionista que mantém uma pintura viva[…] minha mãe só deixou de cuidar da hera quando foi diagnosticada com câncer. passei, desse modo, a zelar pelo viço , sob o comando e o patrulhamento dela. a hera era a segunda coisa de que minha mãe mais gostava.
a primeira coisa era o cigarro. minha mãe sempre estava fumando. a princípio, cheguei a acreditar que o vício se agravou depois de o meu pai fugir de casa. agora estou certo de ter sido o contrário: foi o cigarro que fez com que ele nos abandonasse. meu pai sempre se preocupou com a morte. eu diria que de uma maneira um tanto anormal[..]
oito meses após o exame, minha mãe não parou de fumar um minuto sequer. o câncer brotou na parede do pulmão direito, tomando, em dias, todo o sistema respiratório; como a hera, sem distinção de começo e fim..»

O trecho acima, de Hera, comprova a segurança, o ritmo da escrita, e também que estamos num universo em que o realismo pode às vezes nem valer (o narrador do conto assumirá um estado fantasmagórico, atraído pela beleza da vizinha, ser vampírico que se alimenta da juventude daqueles que seduz, reduzindo-os a trapos, literalmente), mas há sempre regras, e severas. E sempre um preço a pagar, ora por cumpri-las, ora por se rebelar contra elas, como vemos no narrador de Ofélia e sua irmã, que dá o título ao relato. O que acaba gerando esses  heróis (só há uma narradora feminina, em Cerimônia, e mesmo assim as regras e contratos, por mais frágeis e patéticos que se mostrem, entre as pessoas, também dão o tom a esse pungente conto) tão autodepreciativos: «me parecia um gigante diante do ser curvado e desprezível que me tornei»;  «o que sou: um sujeito patético, covarde, que tenta racionalizar o desastre»[2].

O que vale para a exploração do fantástico em Hera; para o abismo devorador de identidade em Quebranto; para o fascinante clima alegórico em que transcorrem as tensões afetivas de uma família, em Ofélia[3]; e também para o registro mais realista e nem por isso menos inventivo[4], do ponto-de-vista literário, de Sono, história de um casal que na luta pelo equilíbrio econômico (a tão sonhada e famigerada prosperidade) a “realidade morna”, sina de todos nós, é destruído pela morte do filho no momento do parto.

Apreciei praticamente todos os textos de Queda da Própria Altura (embora o conto de abertura, Evolam-se os Barcos seja o mais fosco entre eles), mas o meu predileto é justamente esse Sono porque Tavares consegue algo muito difícil, e que eu só tinha testemunhado na notável ficção de João Anzanello Carrascoza: ousar investir no lirismo dos laços afetivos elementares em nossa vida (pais, filhos, cônjuges), atravessando a corda bamba sob a qual aguardam, ansiosos, o sentimentalismo e a fraude. Ao fazê-lo, ele nos deu uma obra-prima.

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TRECHO SELECIONADO

«pego algumas bermudas e empilho sobre a cama, acima do par de meias e do tênis já arrumados, a que foi ao cinema é uma das suas preferidas, se bem que eu acho que ele optaria pela branca com os bolsos vermelhos, ele gosta de combinar cores […] contudo, o instinto materno me diz que ele preferiria usar calças, neste caso, não tenho dúvida […]

   a calça da revista foi a primeira roupa que ele pediu que eu comprasse, até então suas vontades eram restritas a brinquedos, livros e cartuchos de vídeo game, ele também gosta de desenhos animados, fica horas em frente à televisão, rindo das estripulias do gato que quer pegar o rato e do coiote que inventa geringonças, coleciona álbuns de figurinhas e histórias em quadrinhos. foi numa dessas revistas que ele viu a calça que trazia decalques em velcro dos personagens da Vila Sésamo. eu estava na cozinha preparando o almoço, quando ele chegou excitado,  pedindo que eu comprasse para ele… » (trecho de Cerimônia)

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E este recado comercial poderia ser uma legenda da cena final de Hera:

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NOTAS

[1] Curiosamente, trata-se de um conceito da medicina: «deslocamento não intencional do corpo a um nível inferior à posição inicial, com incapacidade de correção em tempo hábil, determinado por circunstâncias multifatoriais, comprometendo a estabilidade» (pesquisei no Google).

[2] «… se por uma possibilidade mágica conseguíssemos, seria menos difícil aceitar que cada conquista está atrelada a uma perda e a entrega não é condição de recompensa…»

[3] Texto em que ele consegue o que Andréa Del Fuego almejou e não conseguiu em Os Malaquias. VER https://armonte.wordpress.com/2013/09/08/procurando-o-angulo-do-encontro-com-os-malaquias/

[4] «… não podemos nos meter em zonas fronteiriças e cavar um buraco na história para encontrar uma verdade diferente da realidade que quase nos partiu». Vindo após de uma história onde os homens de cada família têm de cavar buracos , esse trecho ganha uma camada a mais de ironia. Aliás, nada Ícaro (pois não vemos nenhuma queda), mais para Dédalo, Tavares deixa que alguns elementos “reapareçam” de forma inquietante, como um aparador (peça-chave tanto em Ofélia quanto em Hera).

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09/04/2015

MIASMAS DA DITADURA: “A Merda do Mundo”

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“Lendo alguns relatórios, o psiquiatra soube que o general sentia, às vezes por várias horas seguidas, um forte cheiro de pudim queimado (…) Já estava na hora de tudo aquilo terminar. O psiquiatra cobriu o general, fez que sim respondendo a alguma bobagem que ele estava falando, abriu o envelope com o papel em que deveria escrever o laudo, assinou antes e, sentado à minúscula mesa, escreveu em letras redondas e muito compreensíveis apenas uma linha: Augusto Pinochet Ugarte não apresenta boas condições mentais.

    O general Pinochet, por outro lado, é um filho da puta”. (Ricardo Lísias, “Anna O.”)

“Os gritos surgiam ora em português; ora na língua inaudita e forte dos Kiña; ora na língua inconfundível da dor”. (trecho de “Apiemieke?”)

I

Thiago Roney é um jovem de Manaus, prestes a completar 30 anos, que vem demonstrando apreciável ambição como escritor: já fez duas versões do seu livro de estreia, O estouro da artéria de um cavalo húngaro — e a segunda, com relação à original, é uma prova e tanto de amadurecimento da sua prosa[1] — e agora se arrisca em aventuras editoriais, sem contar o desafio de desenvolver uma obra em parceria: o seu selo, Thysanura, lançou recentemente A merda do mundo, coautoria dele e de Arcângelo Ferreira (nascido em Parintins, em 1969).

Os onze textos são apresentados como contos, dois deles escritos por Ferreira (“Pausa” e “As transfigurações de um tempo imóvel”), dois outros, por Roney (“O cano duplo da anarco-sindicalista” e “Apiemieke?”), os demais a quatro mãos (“Os minotauros de Pancrácio”, “Está feito”, “O Velázquez de Danúbia”, “A merda do mundo”, “O baile das carnes”, “A fenda e as pedras” e “Quando o teu nome cortou minha memória”), mas também podemos tomá-los como capítulos de um romance, girando em torno de um velho militar (ora apresentado como coronel, ora como general), Pancrácio, torturador contumaz no regime militar pós-1964.

Em torno dele se constrói um universo miasmático, nos umbrais do onírico, num tom com seu quê de expressionista, e também de alegórico, sempre remetendo, no entanto, a esse período sombrio da vida brasileira, quando torturadores tinham à sua disposição um “baile de carnes”. Sobrevivendo a ele, atormentado e decrépito[2], Pancrácio como que convoca o mitológico, o monstruoso, o labiríntico, minotauro ele mesmo, num “contratempo”[3], sem nunca ter enfrentado um Teseu redentor, assim como nunca enfrentamos de forma satisfatória os anos de chumbo, por conta de um tortuoso conceito de anistia e conciliação.

A Memória, aqui, toma a forma de uma dança macabra, em que os passos evocam referências literárias (Scorza, por exemplo), musicais (Soza, por exemplo), geracionais (tanto a juventude daquela época como a de agora, fascinada por Roberto Bolaño)[4] e arrastando “comboios de ressentimento”.

Nesses espelhos deformantes, “o caminhão do velho Pancrácio” (“bruto general nojento disfarçado de caminhoneiro”) não por acaso “tem a força de mil novecentos e sessenta e oito cavalos” (1968, o ano que nunca terminou, ano do AI-5). E todos têm de enfrentar o Tempo, “esse poema de amor e ódio deixado nos muros de Pompeia”. Uma Pompeia de desaparecidos e procurados pelo regime, que povoam a infância do narrador de “As transfigurações de um tempo imóvel”. Uma Pompeia (aliás, uma nação imaginária, Maro) invadida pela merda do mundo, onde o indivíduo é “enclausurado na multidão”.

E o impune Pancrácio terá de se haver com o lamento das tribos amazônicas massacradas em nome da Ordem e do Progresso: “Porque era o certo, seus vermes! Se não aprenderam a serem civilizados, tinham que morrer mesmo, porra! Por quê? Não viram a importância da civilização? Por que quem pergunta sou eu, por que não morrem de uma vez, caralho? Nem pra morrer vocês servem?”.

No final das contas, nessa mistura do histórico-memorialístico (quase a contrapelo) com um onírico muito marcado pelo fisiológico (e sobretudo pelo escatológico), Pancrácio “deixa as lembranças fluírem, as inventa. Aponta um estigma do lado interno das coxas e diz que as marcas são como os vestígios da existência. Mas aquela não iria retratar em narrativa, iria ficar nela para todo o sempre, levaria para o túmulo. Deixaria no arquivo de sua memória individual, para ele memória coletiva era uma fantasia perversa da Ordem que ajudou a forjar”.

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2

Lastimavelmente, apesar dessa virtual riqueza de veios temáticos, em torno dos miasmas que a ditadura deixou em nossa atmosfera civil, A merda do mundo também é miasmático do ponto de vista textual.

Com a exceção de “Apiemieke?”, todos os textos deixam a desejar. Além da monocórdia, eles são truncados e muitas vezes incompreensíveis[5]. Em uma das Fisiologias (a da Solidão) de Ricardo Lísias, o narrador afirma: “Acho patéticos os ficcionistas que continuam claros no século XXI…São artistas vulgares. Pessoas ignorantes. A limpidez ficcional, no mundo contemporâneo, revela personalidades simplórias[6]. Não, não estou exigindo esse tipo primário de limpidez, mas a senda oposta, a da amorfia obscura, também não me parece uma opção viável.

O que podemos entender da seguinte passagem: “É impossível ficar na sombra de uma fotografia, pois a fotografia é a própria sombra”???!!! Ou então: “Muito mais que uma catarata da dor em um menino, era uma toxoplasmose ocular de um pau de arara”???!!! E “minhas manhãs nunca foram tardes de baralho”!!!???

Há contos particularmente toscos, como “A fenda e as pedras”, que joga com referências sem que os autores se preocupem em dar uma mínima vestimenta ficcional para elas.

O coitado (nesse sentido específico, evidentemente) do Pancrácio, um achado dos autores, acaba perdido nessa mixórdia.

Mesmo não apreciando o resultado, sou obrigado a confessar que, sem embargo desse tratamento miasmático e confuso, A merda do mundo ainda assim assombrou estes meus dias, especialmente as noites, desde a leitura, com sua conjunção da evocação de um regime terrível e um clima alucinatório. Portanto, há um imaginário muito válido e virtualmente possante. Tomara que os autores algum dia consigam dar conta dele em termos verbais convincentes, apesar de não exatamente “límpidos”. Afinal, Roney já provou que pode se reinventar na escrita, para proveito nosso. Era o caso, aqui.

(uma versão da resenha acima foi publicada no LETRAS IN.VERSO E RE.VERSO em 8 de abril de 2015, VER: http://letrasinversoreverso.blogspot.com.br/2015/04/miasmas-da-ditadura-merda-do-mundo.html)

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NOTAS

[1] VER AQUI NO BLOG:

https://armonte.wordpress.com/2013/08/14/notas-sobre-um-jovem-contista-o-estouro-da-arteria-de-um-cavalo-hungaro-de-thiago-roney/

https://armonte.wordpress.com/2014/02/18/o-talentoso-mr-roney-os-contos-de-o-estouro-da-arteria-de-um-cavalo-hungaro-2a-edicao/

[2] “…aquela assinatura saturada de Tempo seria do decrépito coronel Pancrácio?”, lemos em “Pausa”.

[3]Como desatar os nós enjaulados nos buracos do contratempo”, lemos em “Os minotauros de Pancrácio”.

[4] Como vemos em “A fenda e as pedras”.

[5] Numerosos problemas de revisão atrapalham também, ortográfica e sintaticamente.

[6] Em outra delas (a da Amizade), lemos: “Apenas escritores muito ingênuos acreditam em ficção histórica”. Os trechos de Lísias podem ser encontrados em CONCENTRAÇÃO E OUTROS CONTOS (Alfaguara, 2015).

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06/04/2015

FISIOLOGIA DO TALENTO: “Concentração e Outros Contos”, de Ricardo Lísias

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(uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 07 de abril de 2015)

«…senti uma sensação horrível de derrota. É um fracasso que se manifesta no corpo… Com a literatura, já sei que não vou conseguir dizer o que eu quero da maneira que acho a ideal. Então, terei que fazer repetições. Apesar de conseguir, com isso, uma espécie de alívio contínuo para o mal-estar que sinto, por outro lado a certeza da incompletude da escrita também me angustia».

O trecho acima, de Fisiologia da Dor, um dos 15 textos de Concentração e Outros Contos, no qual Ricardo Lísias, prestes a completar 40 anos, reuniu parte da sua produção no gênero desde 2001, espelha o dilema do resenhista que tenta, em sumários traços, delinear para o seu leitor o universo denso e único daquele que é o mais brilhante escritor da sua geração.

Curiosamente ele publicara até agora apenas outra coletânea, Anna O. e Outras Novelas (2007)[1]. Dela, temos quatro textos: o conto-título (onde um psiquiatra é encarregado do laudo sobre as condições mentais do General Pinochet), Capuz, Dos Nervos e Diário de Viagem, todos narrando situações em que mantras reiterativos da linguagem dos protagonistas, a fixação de “metas” e projetos, a criação de padrões, procuram represar a crescente desagregação, quando não o colapso total (inclusive da própria linguagem)[2].

Mais recentemente, Lísias enveredou pelo caminho da “autoficção”, modismo crítico pós-moderno (que ele parodia num conto com esse título—a meu ver, o texto mais discutível de Concentração) para experiências ficcionais que deformam e confundem os dados biográficos, mesmo que o personagem ostente o nome do autor. Nessa linha, Ricardo Lísias/personagem vivencia diferentes formas de dilaceração e tentativas de serenar o tumulto interno,  tanto no divertidíssimo Evo Morales quanto na mais radical de suas aventuras autoficcionais, Tólia (em que se une a uma seita para salvar o planeta), além da extraordinária seção das Fisiologias (da Memória, do Medo, da Dor, da Solidão, da Amizade, da Infância e da Família), registrando o Brasil pós-Abertura através dos laços familiares e afetivos, com um virtuosismo que só encontra paralelo no argentino Alan Pauls (História do Pranto) ou no chileno Alejandro Zambra (Formas de voltar para casa).

«É um fracasso que se manifesta no corpo». As linhas de força que percorrem Concentração podem ser verificadas no conto-título: Damião sente um excruciante mal-estar físico, só aliviado quando faz a barba (causando graves danos ao seu rosto) a todo instante. Como típico herói de seu autor, apega-se a padrões e rotinas que permitam suportar seu estado agônico; assim, viaja a Buenos Aires atrás de um clube de xadrez e de um casal de dançarino de tangos, a partir de três vagas fotografias, vã odisseia («no país inteiro ninguém sabe mais como dançar tango e jogar xadrez»—desse modo, ele constatará a penúria econômica da população portenha) que envolverá os miasmas dos regimes autoritários latino-americanos, a morbidez argentina em torno dos seus ícones políticos (Perón e Evita), numa corda bamba de racionalizações extremas em meio ao caos e à falta de sentido, que, no fundo, dizem respeito a todos nós, aprisionados pelos muros quase sem brechas da ideologia do mercado global.

Um dos pontos altos da coletânea, esse conto de 2008 tem um dos finais mais perfeitos já escritos, contrariando flagrantemente a afirmação seguinte: «Com a literatura, já sei que não vou conseguir dizer o que eu quero da maneira que acho a ideal». Pena que escrevendo a seu respeito, eu me sinta mais próximo desse sentimento de frustração do que dos seus resultados.

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VER NO BLOG:

https://armonte.wordpress.com/2012/04/14/o-livro-dos-mandarins-satira-deliciosa-a-linguagem-da-globalizacao/

https://armonte.wordpress.com/2012/12/11/destaque-do-blog-duas-vezes-o-ceu-dos-suicidas/

https://armonte.wordpress.com/2013/08/13/a-pele-que-habito-o-problematico-divorcio-de-ricardo-lisias/

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TRECHOS SELECIONADOS

«O avô mora naquela casona perto do museu e quando a gente tropeça, ele logo vai correndo dizer que não foi nada. Não foi nada, nada, apenas que o avô é aquele homem mais velho, careca e engraçado. Ele sabe o que é um astrolábio, consegue fazer um relógio com a sombra e gosta de ir com os netos à praia… E ele corre com a gente: corre em casa, no museu, corre na praia, na rua, corre hoje, corre no ano que vem, na festa da escola, mas cada vez ele corre mais devagar, e depois já não aguenta tanto e quando você vê é o avô que deixou para a sua mãe essa casa.

   Ele é o avô que morre e ensina o que é a morte: é quando o avô morre. »

(Fisiologia da Família)

« Os noventa minutos do jogo entre Brasil e Itália, no estádio espanhol do Sarriá em 1982, foram os únicos em que de fato tive um pai. Precisamos só de um empate, meu filho, mas acho que vai ser 4 a 1. Tentei encostar a mão esquerda naquele braço enorme, mas ele se afastou. Hoje ele não está querendo se deitar: vamos ver o jogo sentados um do lado do outro. Perguntei se Chulapa é o sobrenome do Serginho, que meu pai adorava. Ele não respondeu… Lembro-me da televisão enorme. Como tinha o nome sujo, meu pai não podia comprar nada à prestação. Quem  trouxe foi minha avó. Tem garantia até a próxima Copa, ele me disse quando elogiei a imagem. Meu pai gostava de assistir a todo tipo de programa, menos os telejornais. O comício pelas Diretas Já na Praça da Sé não passou direito, não perdi nada… Minha tia, irmã da minha mãe, quis nos levar para o comício, mas meu avô não achou a ideia boa. Você não viu como seu primo saiu da cadeia? Tudo pode mudar de uma hora para outra. »

(Fisiologia da Infância)

«Naquela época, a gente bebia muito na escola. Então Maria era a líder. Maria bebia muito, então ria muito também. Então. Eu só acompanhava, acho, não posso ter certeza, ela sim tinha muita certeza: então bebe mais um pouco, disse. Então, se sexo oral conta, perdi a virgindade com ela nesse dia então, com ela rindo e tudo rodando.

   Ontem, vi uma foto de Lindbergh Farias no Facebook. Então foi na internet. Ele sorria muito enquanto apertava a mão de Fernando Collor. Nada disso aconteceu. Apenas escritores muito ingênuos acreditam em ficção histórica. E na História, então? Fiquei com muito ódio desse ensaboadinho chamado Lindbergh Farias. »

(Fisiologia da Amizade)

«Sinto-me sozinho (descobri isso quando escrevi meu primeiro livro, sozinho durante um inverno desagradável em Campinas) porque nunca consigo expressar exatamente o que eu quero, e nem da forma que tenho certeza ser a mais adequada.

   Não se trata de humildade. Sou arrogante: algumas vezes, cheguei perto. Mas o cerne do que quero dizer e a forma mais adequada (digo, a ideal para o que eu queria dizer—não estou conseguindo me expressar direito), apenas sei que existem, tenho toda a certeza de que estão ao meu alcance, mas não consigo tocá-los inteiramente. É como se em um determinado momento a comunicação falhasse… Esse isolamento é um sentimento íntimo. Apenas tateio a melhor forma de expressá-lo. Sei que se trata de uma variante muito aguda e intensa de solidão. Só tenho uma possibilidade de me aproximar desse mistério: através da técnica literária. Por causa dela, meu sofrimento é suportável. »

(Fisiologia da Solidão)

« Para mim, as lágrimas e a raiva se complementam. Como sempre tive muita dificuldade para chorar, uso os acessos de ódio para me libertar. Mas não tive a menor chance dessa vez. Levantei agora e, enquanto tomava café, senti uma sensação horrível de derrota. É um fracasso que se manifesta no corpo… Com a literatura, já sei que não vou conseguir dizer o que eu quero da maneira que acho a ideal. Então, terei que fazer repetições. Apesar de conseguir, com isso, uma espécie de alívio contínuo para o mal-estar que sinto, por outro lado a certeza da incompletude da escrita também me angustia. Por isso, achei que as artes plásticas resolveriam o meu problema.

   Ao contrário, agora tenho medo de que arte nenhuma aplaque o sentimento de que não vou conseguir dizer exatamente o que quero na forma que julgo a mais adequada. »

(Fisiologia da Dor)

« Exatamente nesse momento, trêmulo por causa do medo e do frio, caguei nas calças. Não tive tempo nem iniciativa de procurar um banheiro… Dá para ir a pé da avenida Pompeia ao meu apartamento. No caminho, senti um misto de vergonha e pavor. Eu olhava para trás e não conseguia entender se aquelas pessoas estavam me seguindo, rindo porque eu tinha cagado nas calças ou sequer haviam me notado… Eu estava inteiramente sonzinho e, agora escrevendo, lembro que pensei no André enforcado.

   Então, em uma sexta-feira à noite, subindo rapidamente a movimentada avenida Pompeia, morrendo de medo e cheio de merda nas calças, percebi o quanto o André estava se sentindo sozinho quando destruiu o meu apartamento e, uns dias depois, se enforcou… Depois, já perto de casa, senti de novo muita raiva do André: ele me tinha feito descobrir quem eu sou e acho que eu sou exatamente o que o dono (ou o administrador) do cassino clandestino falou, olha aí, você é só um cagão. »

(Fisiologia do Medo)

«… e chorava daquele jeito porque logo o meu amigo André iria se matar, e chorava sem nenhum controle, do jeito que mais me incomoda, sem nenhum controle, porque o André morreu sem conhecer os livros do Roberto Bolaño, não é justo, e eu também sabia que nunca mais iria esquecer: quando a polícia encontrou o corpo do meu amigo André, enforcado lá naquele lugar, havia uma sacola de uma livraria em cima da mesa, com o Noturno do Chile dentro, ele tinha acabado de comprar o Noturno do Chile, então voltou para onde estava morando e se enforcou sem abrir o livro… e eu chorava daquele jeito porque o André nunca mais iria aos meus lançamentos, eu chorava muito, na frente do avião da Japan Airlines, porque as pessoas dizem que eu sou cerebral e eu chorava daquele jeito, como nunca… »

(Fisiologia da Memória)

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NOTAS

[1] Em contrapartida, lançou vários romances, a partir de Cobertor de estrelas(1999): Duas Praças, O Livro dos Mandarins, O Céu do Suicidas; o mais recente dos quais, o polêmico Divórcio.

Convém, notar, entretanto, que vários dos textos de Concentração têm considerável extensão, e dois deles foram publicados separadamente, Capuz e Dos nervos.

[2] «Agora, consigo entender um pouco melhor: meu profundo gosto pela conversa civilizada e inteligente impediu-me de gritar quando vi aquele rapaz sentado no meu sofá. Não sei se já disse, mas posso repetir, que cheguei em casa, vindo da universidade, e encontrei a porta aberta e a luz da sala acesa. Como estava me tratando, o que para dizer a verdade sempre foi um dos sonhos da minha mãe, vivia muito calma naqueles dias e não gritei. Minha intenção era evitar, também, que as pessoas dissessem que eu estava tendo uma crise histérica. Sempre detestei falatórios e costumo ter apenas conversas civilizadas e inteligentes. O hábito de fofocar que minha mãe cultiva com as vizinhas sempre me deixou irritada. Às vezes eu batia a porta e fechava todas as janelas só para não ouvir aqueles murmúrios. Prefiro a conversa civilizada e inteligente. No tempo em que redigia a tese, inclusive, procurava sempre ir a algum café ou bar tranquilo para falar de livros, filmes e música. Claro, e sobre o Padre Vieira. Eu me interessava sobretudo pela questão do gênero: nos mecanismos que diferenciam a fofoca da conversa civilizada e inteligente. Por isso tentava ficar bem quieta para ouvir o que os outros estavam dizendo. Agora compreendo por que ele ficou mudo, deve ter me visto em algum lugar, em algum café civilizado e inteligente, e concluiu que adoro o silêncio», lemos em Dos nervos.

Mais adiante: «Minha mãe sempre me disse, e olha que, que eu precisava. Mas acho que vou ser bem clara com o médico, e dizer que posso perfeitamente criar sozinha o nosso filho. Tenho um bom emprego e, mais, com uma conversa civilizada e inteligente, minha mãe… Por outro lado minha mãe sempre repetia, e olha que ele, que meu pai. Quanto aos meus alunos, o médico… ».

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RICARDO

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