MONTE DE LEITURAS: blog do Alfredo Monte

23/10/2018

GÊNIO DA RAÇA PARTE DOIS

(Uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos em 23 de outubro de 2018) 

Continuo meu comentário sobre “VIDA E MORTE DE M. J. GONZAGA DE SÁ, de Lima Barreto. Foi o primeiro romance levado a cabo pelo grande escritor carioca (por isso se nota a “angústia da influência” com relação a Machado de Assis e seu Conselheiro Aires). 

Através da amizade entre Machado e Gonzaga de Sá, vislumbramos o Rio de Janeiro do início do século, sobrepondo mais do que contrapondo a revolta do jovem e a resignação filosófica do velho funcionário diante da mediocridade imperante e da destruição do Rio imperial que Gonzaga de Sá conheceu e que está sendo desfigurado pela Primeira República. 

A atitude filosófica de Gonzaga de Sá lembra, é claro, mas só superficialmente, a do Conselheiro Aires criado por Machado de Assis para filtrar de modo ainda mais sutil seu humor e pessimismo corrosivos.  

Por vezes, o velho Gonzaga abandona sua atitude de “sábio obscuro”, de “geólogo da memória da cidade” para revoltar-se, enraivecer-se, numa atitude mais adequada a seu discípulo, um idealista revoltado como o narrador de outro grande romance de Barreto (foi o próximo a ser completado), “Recordações do Escrivão Isaías Caminha” (publicado em 1909): “Longe de me confortar, a educação que recebi só me exacerba, só fabrica desejos que me fazem desgraçado. Por que mas deram? Para eu ficar na vida sem amor, sem parentes e, porventura, sem amigos? Ah! Se eu pudesse apagá-la do cérebro! Varreria, uma por uma, as noções, as teorias, as sentenças, as leis que me fizeram absorver; e ficaria sem a tentação danada da analogia, sem o veneno da análise”. 

Nesse entrançar de mocidade e velhice, revolta e sabedoria, amizade e solidão, espírito amplo e amargura, o Rio de Janeiro avulta. O livro é uma das mais cabais demonstrações da “poesia das cidades” instaurada por Baudelaire, sendo, como é, um passeio pela cidade, centro, praias e subúrbios, passado e presente. É por isso que seu ponto alto é a extraordinária sequência de capítulos em que Machado acompanha Gonzaga de Sá para velar e enterrar um compadre que morava no subúrbio. É ali que, na atmosfera carregada do velório, Machado despertará para o desejo sexual representado por Alcmena, vizinha do compadre falecido: “No dia seguinte, diante do caixão já fechado, senti-me penetrado de uma indiferença glacial… O domingo estava maravilhoso, glorioso de luz, e os ares eram diáfanos, estava sedutor e sorria abertamente, convidando a gozá-lo em passeios alegres. O silêncio da sala, aquelas velas mortiças, os semblantes contrafeitos e estremunhados das pessoas presentes, diante da soberba luz do sol, da cantante alegria da manhã, pareceram-me sem lógica.”.

16/10/2018

GÊNIO DA RAÇA PARTE UM

(Uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos em 16 de outubro de 2018) 

Em 1919 foi publicado (por Monteiro Lobato) o derradeiro livro de Lima Barreto, “VIDA E MORTE DE M. J. GONZAGA DE SÁ”. Na verdade, foi o primeiro que ele escreveu. 

Nele, o narrador, Augusto Machado, conta como conheceu o personagem-título, também funcionário público (só que bem mais velho) por causa de uma ridícula questiúncula envolvendo o número de salvas de canhão devidas a um bispo em visita a uma cidade. 

Através da amizade entre Machado e Gonzaga de Sá, vislumbramos o Rio de Janeiro do início do século, sobrepondo mais do que contrapondo a revolta do jovem e a resignação filosófica do velho funcionário diante da mediocridade imperante e da destruição do Rio imperial que Gonzaga de Sá conheceu e que está sendo desfigurado pela Primeira República. 

Veja-se o que Machado nos conta no capítulo “O passeador”: “O que me maravilhava em Gonzaga de Sá era o abuso que fazia da faculdade de locomoção. Encontrava-o por toda parte… Subia morros, descia ladeiras, devagar sempre e fumando voluptuosamente, com as mãos atrás das costas, agarrando a bengala. Imaginava ao vê-lo, nesses trejeitos que pelo correr do dia, lembrava-se: como estará aquela casa, assim, assim, que eu conheci em 1876? E tocava pelas ruas em fora para de novo contemplar um velho telhado, uma sacada e rever nelas fisionomias… Ia em procura de sobrados, das sacadas, dos telhados, para que à vista deles não se lhe morressem de todo na inteligência as várias impressões, noções e conceitos que essas coisas mortas sugeriram durante aquelas épocas da sua vida”. 

O leitor de “VIDA E MORTE DE M. J. GONZAGA DE SÁ” vai notando que, conforme o livro vai se desenvolvendo, Gonzaga de Sá parece o passeador e mais ele e Machado representam, no fundo, uma só pessoa: Machado, a mocidade; Gonzaga, a maturidade (uma maturidade, uma atitude sábia, um tanto problemáticas). Por vezes, o velho Gonzaga abandona sua atitude de “sábio obscuro”, de “geólogo da memória da cidade” para revoltar-se, enraivecer-se, numa atitude mais adequada a seu discípulo, um idealista revoltado (continua na próxima semana). 

23/01/2014

Os caminhos de Isaías Caminha ou Três voltas sobre o mesmo parafuso

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“Bem aventurados os tempos que podem ler no céu estrelado o mapa dos caminhos que lhes estão abertos e que têm de seguir!” (George Lukács, A teoria do romance)

“Antes de entrar, olhei ainda o céu muito negro, muito estrelado, esquecido de que a nossa humanidade já não sabe ler nos astros os destinos e os acontecimentos.”  (Lima Barreto, Recordações do escrivão Isaías Caminha)

(o texto abaixo foi escrito no primeiro semestre de 1994 para o curso Problemas de Teoria Literária: três teorias do romance (alcance, limitações, complementaridade ministrado pelo saudoso João Luiz Lafetá)

PREÂMBULO

No sexto capítulo de Recordações do escrivão Isaías Caminha, o narrador interrompe o fio da sua história passada para comentar sua situação no presente da narrativa e refletir sobre o livro que escreve e que o incomoda. No final do capítulo anterior explodira sua revolta pelas decepções sucessivas no Rio de Janeiro, a última das quais foi ser apontado como suspeito de um roubo ocorrido no hotel onde se hospedara. Defendendo-se na entrevista com o delegado, Isaías, mulato, alegara ser estudante e aquele expressara, então, sua descrença e escárnio: “Injustiças, sofrimentos, humilhações, misérias, juntaram-se dentro de mim, subiram à tona da minha consciência” e ele vitupera o delegado como “imbecil”, indo, claro, para o “xadrez”.

A quebra do relato proporciona ao momento na cadeia um forte timbre iniciático, um rito de passagem que realça a transformação moral de Isaías: do jovem que sai de casa para ser “doutor” ao mulato chamado de “malandro” e “gatuno” pelo delegado.

Meu objetivo é analisar o romance de Lima Barreto a partir da convergência evidenciada no referido capítulo VI de três aspectos de uma mesma problemática: a formação do herói, a revelação do espaço urbano e o uso do romance como “confissão”. Embora tenha dividido a empreitada em três partes, por razões de clareza, isso não significa que sejam estanques, longe disso.

  1. O HERÓI

“No romance, sentido e vida separam-se e, com eles, essência e temporalidade; poder-se-ia quase dizer que no que ela tem de mais íntimo, a totalidade da ação do romance não passa de um combate contra as forças do tempo. No Romantismo da Desilusão o tempo é um princípio de depravação (…) É por isso que todo o valor é aqui atribuído ao que é vencido, ao que, por isso mesmo que deperece (sic) progressivamente, mantém o caráter da juventude em via de estiolar, e é ao tempo que se reserva toda a brutalidade, toda a duração daquilo que não tem ideias…” (Lukács, A teoria do romance[1])

Quando, ainda no sexto capítulo, o narrador retoma o fio do relato, conta-nos que, liberado pelo delegado, resolve deixar de lado a ambígua’ condição de “estudante” (mesmo porque sua situação financeira aperta). Apavorado pela perspectiva da miséria, resolve tornar-se um trabalhador comum, sem sucesso. Tem a “sensação de estar num país estrangeiro” e, debruçado na muralha do cais, sofre a tentação de se jogar ao mar, “dissolver-se nas suas águas infinitas sem vontade nem pensamento”[2]. A “potência da vontade” (título do livro de cabeceira de Isaías) degrada-se em inércia (a mesma que o levará ao mundo da imprensa), por força da amorfia do destino.

O Romantismo da Desilusão é, para Lukács, a inadaptação do herói cuja realidade interior entra em concorrência com a realidade externa (a sociedade dominada pelas convenções). O romance, como forma, descamba para a análise psicológica e o “lirismo” (representação de estados da alma) ressignifica o estatuto épico da necessidade e possibilidade dos atos heroicos.

O paradigma para o drama de Isaías seria, à primeira vista, Ilusões perdidas, de Balzac. Mas a “essência estiolada” do herói de Lima Barreto já está num ponto mais crítico e abebera-se muito mais do universo flaubertiano, o qual representa uma radicalização quase dissolvente no estreitamento e amesquinhamento do campo de ação das personagens. Pois em Balzac e Stendhal, não obstante o demonismo das forças sociais, a aventura da ascensão social e os mistérios da metrópole permitem ainda uma subjacente “estória romanesca” (afinal, Rastignac encontra Vautrin…)

Embora o Rio (ou pelo menos, um certo Rio) se descortine para Isaías, ao longo de  Recordações…, isso não o leva a nenhuma “aventura”; de fato, não há continuidade nas figuras emblemáticas que ele conhece e que lhe apresentam aspectos da vida urbana, como Leiva, o dândi revolucionário (depois jornalista), levando-o tanto a palestras sobre o Positivismo quanto ao Passeio Público. São instâncias episódicas, fragmentárias, que apenas evidenciam o estreitamento do horizonte e o isolamento de cada personagem, o que se acentuará quando Isaías conviver com os membros da redação de O Globo, momento em que a individualidade do herói-narrador estará tão “esmagada”, triturada pelo mundo da experiência, que ele praticamente “some” por páginas e páginas, limitando-se a observar (só voltando ao primeiro plano ao ingressar no corpo de repórteres)[3].

A passividade do herói, malgrado os momentos de revolta (impotente), parece coincidir com a representação do mundo flaubertiana segundo Erich Auberbach, que a contrasta com a balzaquiana: “A vida não mais ondula e escuma, mas flui viscosa e pesadamente. Para Flaubert, o peculiar dos acontecimentos quotidianos e contemporâneos não parecia estar nas ações e nas paixões muito movimentadas, não em seres ou forças demoníacas, mas no que se faz presente durante muito tempo, aquilo cujo movimento superficial não é senão burburinho vão…”

   Talvez se possa objetar que, embora medíocres, envolvidos pelo mundo das “ilusões, hábitos, impulsos e chavões” (a famosa bêtise), figuras como Loberant, Gregoróvitch ou Floc acabam por ajudar, dentro do processo de um “romance de formação”, Isaías a atingir certos patamares iniciáticos e de compreensão do mundo. Mas contra essa perspectiva otimista (e a própria ideia “formativa”) há o fundo bovarista que persiste no herói. Lembremos que o próprio Lima Barreto tinha uma concepção muito clara de bovarismo: uma pessoa ou país se representar  aquilo que não é (uma das bases, aliás, do ufanismo). Isaías padece desse mal. Desde criança, sentia uma “desigualdade de nível mental” com relação ao meio família, uma “necessidade de ser diferente” que o faz almejar a capital, para atingir a sua “majestade de homem”.  Tal visão grandiosa de si mesmo, ainda que confrontada com a dura realidade, subsistirá (e será um subtexto amargurante e irônico do Isaías-narrador).

No mesmo dia em que é preso, ele encontra Gregoróvitch e, durante o almoço, o exaltado estrangeiro lhe fala de “poetas e filósofos”: “Traçou, a grandes golpes, o destino da humanidade, provocou-me grandes e consoladoras visões patrióticas”[4]. Na sequência, ao voltar para o hotel, recebe a intimação. Portanto, a ideia íntima que faz de si (e que poderia ser exaustivamente exemplificada (e que justifica seu ofuscamento inicial com o mundo jornalístico, o complexo napoleônico que assombrou todo jovem imaginativo de um certo período do Ocidente, acaba sendo ridicularizada e degradada pela teia dos acontecimentos.

No Rio de então preparam-se grandes transformações na fisionomia urbana, as quais expressam um desejo de ajustamento de passo (nem que seja por  retoques na maquiagem) com o mundo capitalista, porém o herói não participa, a priori porque já é um excluído (pela cor e pela condição social), mesmo que ilusoriamente, ao enfronhar-se na grande mentira da imprensa, pareça ter essa possibilidade no seu horizonte; ao fim e ao cabo, retira-se do jogo, como homem (e como escritor, como veremos). Assim a vida “ondulante e escumante” metamorfoseia-se em “vida viscosa e pesada”.

A.Teoria.do_.Romance.Gyorgy.Lukács

  1. O ESPAÇO

“…Sua experiência da multidão comportava os restos da iniquidade e dos milhares de encontrões que sofre o transeunte no tumulto de uma cidade e que só fazem manter tanto mais viva a sua autoconsciência…” (Walter Benjamin, Charles Baudelaire- Um lírico no auge do capitalismo)

“Quando não há muita árvore e muita água a terra de vocês é feia! É preciso que haja muita,muita, para que ela seja bonita…” (Lima Barreto, Recordações do escrivão Isaías Caminha)

No mais que referido capítulo VI de Recordações…, ainda próximo ao mar “convidativo” em seu apelo nirvânico, Isaías observa os bondes que passam, que “subiam vazios e desciam cheios”. Observa os olhares de desdém dos ingleses com relação aos brasileiros e o olhar desgostoso dos passageiros quando o avistam: “Eu não tinha nem a simpatia com que se olham as árvores; o meu sofrimento e as minhas dores não encontravam o menor eco fora de mim. As plumas dos chapéus das senhoras e as bengalas dos homens pareceram-me ser enfeites e armas de selvagens, a cuja terra eu tivesse sido atirado por um naufrágio. Nós não nos entendíamos: as suas alegrias não eram as minhas; as minhas dores não eram sequer percebidas[5]… Por força, pensei, devia haver gente boa aí… Talvez tivesse sido destronada, presa e perseguida; mas devia haver… Naquela que eu via ali, observei tanta repulsa nos seus olhos, tanta paixão baixa, tanta ferocidade (…) tive ímpetos de fugir antes de ser devorado… Só o mar me contemplava com piedade, sugestionando-me e prometendo-me grandes satisfações no meio da sua imensa massa líquida…”

O trecho acima é, a meu ver, um notável confronto entre imagens apocalípticas e imagens demoníacas, seguindo a conceituação de Northrop Frye. Por um lado, o demoníaco que veio se abatendo sobre Isaías (abatendo-o), ao longo de toda a ação anterior e que irá continuar seu ato de “devoração” na sequência da história: a cidade indiferente, a multidão ameaçadora, trazendo à mente a imagem sacrificial do bode expiatório (o pharmakós), símbolo do “sparagmós”, o dilaceramento do personagem, cujas dores “não eram sequer percebidas”. É o mundo da experiência (compreendido na grande síntese demoníaca que é a alienação), o qual abriu fissuras no desejo absoluto, “napoleônico”, expresso no primeiro capítulo. Por outro lado, no mesmo movimento (e por isso é tão bela a passagem), vindo justamente após o narrador passar ao leitor as ideias de ferocidade e possibilidade de devoração, a grande imagem apocalíptica do mar, com sua aura de apaziguamento e inocência, uterino, restaurando provisoriamente o mundo do desejo.

Isaías, todavia, não pode subtrair-se ao mundo da experiência e cairá (como Frye alerta tão eloquentemente, os mitos são deslocados: sim, será uma descida aos infernos; ou, ainda, um mergulho no Letes, rio do esquecimento—de qualquer forma, o sempiterno mito da queda) no mundo da produção.

Para o autor de Anatomia da crítica as ideias estruturais do “imitativo baixo” (a grande seara do Realismo, embora se possa encontrar em Recordações do escrivão Isaías Caminha a inequívoca seta para o modo “irônico”—aliás, tanto no sentido de Frye quanto no lukácsiano) são a gênese e o trabalho. A gênese está presente no ato criador de Isaías, é o seu grito dentro do silêncio ameaçador da multidão, de certa forma seu “mergulho” simbólico no mar apaziguante; já a  “profissão” é um dos elementos norteadores do romance (a partir do título)—de passagem, é possível apontar o desconforto de Isaías enquanto “estudante” (daí eu ter utilizado o adjetivo ambíguo anteriormente com relação a esse “estado civil”, por assim dizer)—, e o trabalho na grande imprensa concentrará, metonimicamente, toda a força demoníaca da cidade (Benjamin: “Dificilmente a história da informação pode ser escrita separando-a da história da corrupção da imprensa”).

Só no final do romance aparecerá nova indicação da analogia apocalíptica com a inocência. Nas palavras de Frye, “o mundo demoníaco é uma sociedade unida por uma espécie de tensão molecular de egos, uma lealdade ao jugo do chefe que diminui o indivíduo”. O que caracteriza o clima da redação de O Globo, onde há o chefe “tirânico” (Loberant) que se liga ao pharmakós (Isaías) numa relação que afasta o último ainda mais nitidamente de seus objetivos primordiais, propiciando a aparição dos seus dois avatares contraditórios no presente da narrativa (o escrivão e o escritor). Porém, com o mesmíssimo Loberant (e mais uma prostituta italiana), Isaías viverá uma experiência que, trazendo a nostalgia do mundo do desejo, dar-lhe-á força para cortar o laço demoníaco (tal libertação é provisória, a julgar pelas repetidas alusões ao coletor, seu chefe, no presente da narrativa, e com quem parece ter reproduzido dissimuladamente sua ligação com Loberant): Leda, a italiana, quer ir para um lugar “sem gente conhecida”, e o trio dirige-se à Ilha do Governador, onde começam a andar meio a esmo: “o doutor estava apreensivo, eu resignado e Leda contente, recordando talvez a sua infância de campônia”.

À medida que adentram no território da ilha, o lugar leva Isaías à autoconscientização: “… lembrei-me muito da minha casa, e da minha infância. Que tinha eu feito? Que emprego dera à minha inteligência e à minha atividade? (…) Lembrava-me de que deixara toda a minha vida ao acaso e que não a pusera ao estudo e ao trabalho com a força de que era capaz. Sentia-me repelente, repelente de fraqueza, de falta de decisão, e mais amolecido agora com o álcool e com os prazeres…”

   Em meio a esse momento de introspecção, que abre uma fissura no companheiro satisfeito e autocomplacente (ainda que subalterno) do diretor do jornal, o trio retorna ao Rio, onde está acontecendo um tumulto, uma aglomeração, por conta da prisão de uma mulher (mais um pharmakós da cidade grande?), a quem Isaías conheceu no passado, justamente quando ainda alimentava as maiores ilusões com relação ao seu destino.

Nesse momento a cidade torna a fechar-se sobre ele, a cidade que conhecera por etapas iniciáticas que nunca configuraram um todo, um sentido, sempre constituíram descensos no seu destino anunciado, proclamado mesmo, no primeiro capítulo (em certo sentido, Recordações… é um romance irônico de de-formação).

E assim, retorno do espaço coletivo para o “herói” individual, cujo último avatar (após ser o estudante futuro doutor, o contínuo e o jornalista pau pra toda obra) é ser double: escrivão-escritor.

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  1. A CONFISSÃO (O romance)

“Désespéré de ce qu´il sait et ne peut plus annuler, mais fidèle malgré tout au Don Quichotte intransigeant qui lui dicte son ideal, il va rester écartelé entre deux exigences incompatibles et également impérieuses, l´une, utopique, qui l´entraîne irrésistiblement dans l´irresponsabilité de la rêverie; l´autre, realiste qui le contraint à regarder de tous ses yeux du côté des choses ´positives´ les plus propres à soulever en lui angoisse, mépris haineux, rage, dégoût…” (Marthe Robert, Roman des origines et origines du roman)

“A má vontade geral, a excomunhão dos outros, tinham-me amedrontado, atemorizado, feito adormecer em mim o Orgulho, com seu cortejo de grandeza e força. Rebaixara-me tendo medo de fantasmas e não obedecera ao seu império…” (Lima Barreto, Recordações do escrivão Isaías Caminha)

No sexto capítulo, o peso colocado na escritura do romance, que aparta Isaías da vida comum e passa a ser o último refúgio do Orgulho, faz pressentir a persistência do Enjeitado (enfant trouvé), para utilizar a expressiva terminologia de Marthe Robert, que caracteriza desse modo o tipo criador preso ainda ao estágio pré-edipiano, ao narcisismo infantil. Mas Recordações… também é a história de um arrivismo fracassado, de um “nascimento vergonhoso e no entanto motivo de orgulho”[6], que precisa ser legitimado diante da sociedade por meio de uma trajetória campeã, o que caracterizaria mais o Bastardo (em verdade, a própria condição de Isaías na vida social, como mulato, é bastarda, fruto de um casamento “desigual”), assim como a rejeição já edipiana de diversos “pais” (como Laje da Silva, Loberant); por último, existe o impulso criador que imita o pai, sempre mantido como imagem absoluta e fantasmática.[7]

Mas é justamente (e paradoxalmente) o ato criador—escrever—que imita o ato geracional do pai, o elemento psicológico segundo o qual Isaías retrocede ao Enjeitado, o que sempre foi uma de suas tentações ao longo de toda a narrativa[8], diante do peso esmagador da realidade adversa que faz seu primeiro projeto, napoleônico, esboroar-se (ele agora abraça o projeto quixotesco de corrigir os costumes). E não podemos esquecer a morte do filho, que aniquila o ato criador de Isaías dentro do estágio da sexualidade (e portanto do plano edipiano onde opera o Bastardo). Ele, então, retorna à condição psicológica de “filho” e volta-se para a escrita (trabalho noturno que substitui a atividade sexual), a qual primeiro ele utilizou “bastardamente” como jornalista de O Globo e a seguir como escrivão, e que à noitinha passa a ser o seu veículo mais íntimo, válvula de escapa da libido em regressão.

Daí a confissão, a forma ficcional que utiliza e que também lhe serve como instrumento de represália: faz sua autobiografia,  dando-se um nascimento, e criando um “ritual noturno” que se transforma numa luta em que os pesos estão desequilibrados devido ao “lirismo” (ainda no sentido lukácsiano)[9], problematizando o livro enquanto “romance”. Explicando melhor: a confissão, que geralmente é a história mental de um personagem (Frye), e forneceria a base do romance de formação, se desequilibra e se fratura porque no fundo o narrador está se valendo de outra forma ficcional (descrita por Frye como “enciclopédica”), a anatomia[10]. Mesmo esvaziada do seu conteúdo fantástico original, tal forma (e assim o “ritual noturno” da escrita realmente se aproxima do sono da razão) hipertrofia a tendência caricaturesca de Recordações…, mesmo que o narrador aparente manter o decoro realista-naturalista na superfície.

Como o relato é represália, Isaías utiliza os caracteres humanos que conheceu como um enciclopedista que coleciona verbetes, num “simpósio” antitético no qual, no plano do vivido, apresenta-se como observador passivo, vítima e joguete; no plano criador, o demiurgo que os encaixa  nos seus ritos de passagem e momentos iniciáticos, acentuando todos os seus aspecto monstruosos[11]. A duras penas, porque ele se sente, nesse processo, como uma “mulher pública” (o que denuncia o lado “embaraçoso”, vergonhoso mesmo, do seu ritual noturno).

Em seus caminhos, Isaías perdeu rapidamente a possibilidade (um dos elementos da equação épica — o outro é a necessidade) de desvarios romanescos do tipo napoleônico (Julien Sorel, Rastignac)… Está mais para Emma Bovary. Por isso, pode muito bem ritualizar a sua má consciência (fazendo o seu número de “mulher perdida”) de ser “especial”, de ser “diferente”, numa atividade noturna inconfessável (apesar de ser uma confissão).

Se não me perdi no caminho, concluo então que é o ato de escrever que caracteriza a ilha do Enjeitado em Recordações… E sua luta como Crusoé nessa ilha é com a matéria que escreve, a qual representa o mundo onde atuou como Bastardo. Por isso seu romance representa sua má consciência (que se junta ao solipsismo deliberado de que nos fala Marthe Robert) porque ele reassume a diferença e o sentimento de superioridade que sentia com relação às pessoas do seu lar (à exceção do seu fantasmático pai), e aí que pode se afastar de seu avatar de escrivão, que é ainda seu avatar Bastardo (e que continuará a atuar, como indica o Pós-escrito à “Breve notícia”), enquanto o escritor de um livro noturno (e que é a sua necessidade, aquele outro pólo da equação épica, aqui rearranjado e desalinhavada pelo lirismo) é o seu avatar Enjeitado.

Balzac tornado Flaubert, quase Kafka…

marthe robert

CONCLUSÃO

Procurei demonstrar através da leitura dos caminhos de Isaías Caminha como o “lirismo” (na acepção lukácsiana) acentua-se num romance da fatura realista-naturalista, ressaltando o hibridismo das formas ficcionais presentes no romance.

Tentei mostrar também como isso acompanha um processo em que toda a estrutura social externa ao herói passa a ser uma vasta imagem demoníaca (rompida vez em quando por acenos da natureza, colocada num plano secundário, como um contracanto dissonante), o que constrange, confina e distorce o que Lukács chama de “problema épico fundamental”: necessidade e possibilidade de ação por parte do herói.

Os indivíduos marginalizados nesse processo criam seus próprios avatares compensatórios, em que vivem o avesso da vida, ou então como narradores que vão do confissional (formativo) ao anatômico (enciclopédico e pseudo-totalizante), surgindo então um processo paralelo, introvertido e mesmo intelectualizado, que parece seguir os ditames diurnos da racionalidade e organização da experiência (sempre medida no campo edipiano, da sexualidade formada), contudo também correspondendo aos apelos noturnos do narcisismo pré-edipiano.

Espero, dessa forma, ter encontrado para a análise do livro de Lima Barreto uma síntese coerente do psicanalítico, do sociológico e do campo formal.

VER TAMBÉM NO BLOG:

https://armonte.wordpress.com/2012/11/26/a-traicao-ao-anonimato-papeleiro/

https://armonte.wordpress.com/2012/11/25/o-falso-conselheiro-aires/

https://armonte.wordpress.com/2012/05/08/genio-da-raca-lima-barreto/

auerbachbenjamin


[1] Utilizo a tradução portuguesa de Alfredo Margarido.

Observe-se que, numa formulação bem diferente, as noções de depravação da temporalidade (mundo da experiência) e do sacrifício da essência (mundo do desejo) apresentam afinidades com a caracterização do “demoníaco” (inclusive com a “vítima sacrificial”) de Northrop Frye em Anatomia da Critica.

[2] Esse desejo tem um quê de retórico, em certo sentido: muito mais do que a perspectiva de suicídio, parece interessar ao narrador transmitir a sensação de aniquilação de um sonho.

[3] Todas essas considerações me levam a pensar nas brilhantes afirmações de Auerbach acerca dos personagens de Flaubert, no seu Mimesis:

“O que acontece com estes dois [Emma e Charles] vale para quase todos os personagens do romance. Cada um dos muitos seres medíocres que nele se movimentam tem o seu próprio mundo de estupidez néscia, um mundo de ilusões, hábitos, impulsos e chavões; cada um está só, nenhum pode compreender o outro, nenhum pode ajudar o outro a atingir a compreensão…” (trecho do capítulo “Na mansão de La Môle”, grifo meu).

Benjamin, no seu ensaio sobre a Paris do Segundo Império, afirma por sua vez: “Essa indiferença brutal, esse isolamento insensível de cada indivíduo em seus interesses privados, avultam tanto mais repugnantes e ofensivos quanto mais esses indivíduos se comprimem num espaço exíguo…” (ver Charles Baudelaire- Um lírico no auge do capitalismo)

[4] Essa característica de Isaías faz lembrar os colóquios e efusões entre Emma e Léon, em Yonville, antes da partida dele, quando são os “sensíveis” da pequena cidade.

[5] Perceba-se que o lado da alegria fica para os Outros; para ele, o lado das dores.

[6] “La naissance mystérieuse de l´Enfant trouvé ne lui était en cela d´aucune utilité, mais sitôt qu´il l´échange contre la naissance honteuse et glorieuse du Bâtard—gloire et honte ici ne font qu´un, l´une confirme l´autre—, il intervient en personne dans le processus intime de l´engendrement…” (cf. Roman des origines et origines du roman)

Note-se que não estou me valendo da instância biográfica, que ligaria Isaías a Lima Barreto. Não é o terreno da minha leitura, totalmente voltada para motivos formais e conteudísticos, e não os intencionais (a não ser do personagem).

[7] “…il relègue son père dans un royaume de fantaisie, dans um au-delà de la famille qui a le sens d´un hommage et plus encore d´un exil…”

Curiosamente, Isaías coloca o pai num plano ascético totalmente disparatado com relação à existência da mãe, o que torna seu nascimento realmente um deslize que ele precisa legitimar enquanto criador—ou seja, ele precisa justificar sua existência.

Outro aspecto interessante: a atitude de Isaías com a esposa. Parece muito com a que mantinha com a mãe.

[8] Basta observar o seu trato com as mulheres e suas reflexões sobre o ato sexual (que têm algo de enojado e punitivo).

[9] Assim, a “apreensão” do Rio de Janeiro, sempre um dos grandes fascínios da obra de Lima Barreto, é dada pelo viés de um estado d´alma de Isaías, o que, a meu ver, confirma plenamente as seguintes afirmações de Benjamin: “As descrições reveladoras da cidade grande (…) procedem daqueles que, por assim dizer, atravessam a cidade distraídos, perdidos em pensamentos ou preocupações”. O autor de Um lírico no auge do capitalismo nos dá Dickens como exemplo desse transeunte não-observador (mas que entretanto revela a cidade), e cita Chesterton, o qual escreveu o seguinte sobre o grande vitoriano: “Quando concluía o trabalho, não lhe restava senão andar à solta, e então vagava por meia Londres. Quando criança, foi um sonhador; seu triste destino o preocupava mais que o resto (…) Dickens não recolhia em seu espírito a impressão das coisas; seria mais exato dizer que era ele quem imprimia o seu espírito nas coisas(grifo meu). Seria preciso lembrar também que em Vida e morte de M.J. Gonzaga de Sá há aquele maravilhoso capítulo chamado “O passeador”?

[10] Diga-se de passagem, me parece que o desenvolvimento da obra de Lima Barreto registra crescente tendência enciclopédica. Lanço a sugestão, já que não é possível desenvolver a ideia, aqui.

[11] A “deformação” decorrente da presença da anatomia enquanto processo literário em Recordações… pode ser exemplificada pela caracterização de Raul Gusmão, cuja fala era um “espumar de sons ou gritos de um antropoide que há pouco tivesse adquirido a palavra articulada”; mais adiante, o narrador chamá-lo-á de “pithecanthropus literato”. Não é como se um naturalista fizesse a descrição e classificação de espécimes?

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26/11/2012

A traição ao anonimato papeleiro

A editora Record vem lançando uma coleção com os textos da primeira edição de clássicos brasileiros, entre eles, o de Triste Fim de Policarpo Quaresma, publicado em 1915 (mas escrito anos antes), um dos textos mais brilhantes e lúcidos da nossa ficção.

Muitos veem o herói, Policarpo Quaresma, como um Dom Quixote nacional (mas se pensarmos em algumas figuras da Primeira República cheias de projetos nacionalistas utópicos, como o escritor gaúcho João Simões Lopes Neto, dos Contos gauchescos , Quaresma não chega a ser um caso tão peculiar). Ele é um funcionário público quarentão que se entupiu de livros e abraçou um ideal absoluto de nacionalidade, e que começa a cometer “loucuras” para o senso comum, como propor à Assembleia Legislativa a adoção do tupi-guarani como língua oficial do país. Há em Quaresma o mesmo desencontro entre o mundo vislumbrado nos livros e a realidade, e a mesma tomada de consciência da “realidade”, destruindo o ideal, ao final, quando “recobra-se” do fervor patriótico ao ser preso por protestar contra os desmandos da ditadura de Floriano Peixoto, que avilta os direitos humanos após sufocar a Revolta da Armada.

Os embates de Quaresma têm seu lado cômico, contudo há a grandeza pressentida pela afilhada, Olga: “Sentia confusamente nele alguma coisa de superior, uma ânsia de ideal, uma tenacidade em seguir um sonho, uma ideia, um voo enfim para as altas regiões do espírito que ela não estava habituada a ver em ninguém o mundo em que freqüentava”.

E é nesse diferenciar-se da mediocridade imperante que podemos ver também (e sobretudo) a influência de Flaubert, mais nítida ainda do que a de Cervantes, que considero mais superficial. Pois se Olga não está habituada a ver em ninguém a grandeza, mesmo que submetida ao ridículo, de seu padrinho, é porque Lima Barreto enfatiza para o leitor as mesquinharias e mazelas, a bêtise triunfante na vida social na última década do século passado, concentrando-se na vida suburbana e dos pequenos funcionários (na primeira parte), depois mostrando a vida rural, quando Quaresma tnta tornar produtivo um sítio na cidadezinha de Curuzu (na segunda parte, digna de Bouvard e Pécuchet), e,mais tarde, ao mostrar o jogo de interesses que preside o “patriotismo”, o sentimento nacionalista, quando explodem as revoltas contra Floriano. Tudo se mostra pequeno, acanhado, acachapante, a própria Olga (que tem mais imaginação que as outras moças) resigna-se ao destino do casamento por conveniência.

Veja-se a descrição de como os colegas de trabalho de Quaresma reagem à sua súbita notoriedade por causa da proposta da adoção oficial do tupi-guarani: “É como se se visse no portador da superioridade um traidor da mediocridade, do anonimato papeleiro. Não há só uma questão de promoção, de interesse pecuniário; há uma questão de amor-próprio, de sentimentos feridos, vendo aquele colega, aquele galé como eles, sujeito aos regulamentos, aos caprichos dos chefes, ás olhadelas superiores dos ministros, com mais direito à consideração, com algum direito a infringir as regras e os preceitos” (é preciso lembrar que já em meados do século XIX, Gogol, com O Capote, e Hawthorne, na introdução de A letra escarlate, já lançavam um olhar de medusa ao reino encantado da mediocridade burocrática).

Enfim, o espetáculo miúdo da estupidez cotidiana, o pesadelo burocrático, a corrupção e a tirania política conduzem ao belíssimo capítulo final, um dos mais amargos já escritos. Felizmente, para contrabalançar a tristeza, onde o “triste fim” de Policarpo quaresma não é tanto sua morte físico, mas a morte dos seus sonhos, há o despertar de Olga,que retoma um processo de diferenciação que não é o da loucura (um dos grandes tema do livro) ou o do quixotismo e sim a consciência de si mesma. E é aí, talvez, que Lima Barreto deixa para trás paralelos com quaisquer outros autores e torna-se ele mesmo, um autor único.

(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, , em 26 de outubro de 1999)

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https://armonte.wordpress.com/2012/11/25/o-falso-conselheiro-aires/

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25/11/2012

O FALSO CONSELHEIRO AIRES: “Vida e Morte de M.J. Gonzaga de Sá”

A Ática incluiu na sua série de clássicos da língua portuguesa Vida e morte de M.J. Gonzaga de Sá, uma das melhores obras de Lima Barreto, mas que está bem longe de ser conhecida como Triste Fim de Policarpo Quaresma ou, nos últimos anos, Clara dos Anjos. Foi o primeiro romance levado a cabo pelo grande escritor carioca (por isso se nota a “angústia da influência” com relação a Machado de Assis e seu Conselheiro Aires), porém o último a ser publicado em vida (por iniciativa de Monteiro Lobato, em 1919, só que não parece ter sofrido nenhuma demão muito significativa).

Nele, o narrador, Augusto Machado, conta como conheceu o personagem-título, também funcionário público (só que bem mais velho) por causa de uma ridícula questiúncula envolvendo o número de salvas de canhão devidas a um bispo em visita a uma c cidade.

Através da amizade entre Machado e Gonzaga de Sá, vislumbramos o Rio de Janeiro do início do século, sobrepondo mais do que contrapondo a revolta do jovem e a resignação filosófica do velho funcionário diante da mediocridade imperante e da destruição do Rio imperial que Gonzaga de Sá conheceu e que está sendo desfigurado pela Primeira República.

Veja-se o que Machado nos conta no capítulo “O passeador”: “O que me maravilhava em Gonzaga de Sá era o abuso que fazia da faculdade de locomoção. Encontrava-o por toda parte… Subia morros, descia ladeiras, devagar sempre e fumando voluptuosamente, com as mãos atrás das costas, agarrando a bengala. Imaginava ao vê-lo, nesses trejeitos que pelo correr do dia, lembrava-se: como estará aquela casa, assim, assim, que eu conheci em 1876? E tocava pelas ruas em fora para de novo contemplar um velho telhado, uma sacada e rever nelas fisionomias… Ia em procura de sobrados, das sacadas, dos telhados, para que à vista deles não se lhe morressem de todo na inteligência as várias impressões, noções e conceitos que essas coisas mortas sugeriram durante aquelas épocas da sua vida”.

A atitude filosófica de Gonzaga de Sá lembra, é claro, mas só superficialmente, a do Conselheiro Aires criado por Machado de Assis para filtrar de modo ainda mais sutil seu humor e pessimismo corrosivos. O leitor de Vida e morte de M.J. Gonzaga de Sá vai notando que, conforme o livro vai se desenvolvendo, menos Aires parece o passeador e mais ele e Machado representam, no fundo, uma só pessoa: Machado, a mocidade; Gonzaga, a maturidade (uma maturidade, uma atitude sábia, um tanto problemáticas). Por vezes, o velho Gonzaga abandona sua atitude de “sábio obscuro”, de “geólogo da memória da cidade” para revoltar-se, enraivecer-se, numa atitude mais adequada a seu discípulo, um idealista revoltado como o narrador de outro grande romance de Barreto (foi o próximo a ser completado), Recordações do escrivão Isaías Caminha (publicado em 1909): “Longe de me confortar, a educação que recebi só me exacerba, só fabrica desejos que me fazem desgraçado. Por que mas deram? Para eu ficar na vida sem amor, sem parentes e, porventura, sem amigos? Ah! Se eu pudesse apagá-la do cérebro! Varreria, uma por uma, as noções, as teorias, as sentenças, as leis que me fizeram absorver; e ficaria sem a tentação danada da analogia, sem o veneno da análise. Então, encher-me-ia de respeito por tudo e por todos, só sabendo que devia viver, de qualquer modo”.

Nesse entrançar de mocidade e velhice, revolta e sabedoria, amizade e solidão, espírito amplo e amargura, o Rio de Janeiro avulta. O livro é uma das mais cabais demonstrações da “poesia das cidades” instaurada por Baudelaire, sendo, como é, um passeio pela cidade, centro, praias e subúrbios, passado e presente. É por isso que seu ponto alto é a extraordinária seqüência de capítulos em que Machado acompanha Gonzaga de Sá para velar e enterrar um compadre que morava no subúrbio. É ali que, na atmosfera carregada do velório, Machado despertará para o desejo sexual representado por Alcmena, vizinha do compadre falecido, rebelando-se contra o fato de estar atrelado a uma cerimônia de morte, quando deseja tanto viver, sentir-se vivo, antecipando um pouco o “estrangeiro” de Camus: “No dia seguinte, diante do caixão já fechado, senti-me penetrado de uma indiferença glacial… O domingo estava maravilhoso,glorioso de luz, e os ares eram diáfanos, estava sedutor e sorria abertamente, convidando a gozá-lo em passeios alegres. O silêncio da sala, aquelas velas mortiças, os semblantes contrafeitos e estremunhados das pessoas presentes, diante da soberba luz do sol, da cantante alegria da manhã, pareceram-me sem lógica.”

É um dos maiores momentos da nossa literatura, que compensa até a frouxidão (justificável, num texto escrito aos 20 e poucos anos, e hesitando entre dois caminhos conflitantes: um deles, faria dele um êmulo talentoso de Machado; o outro, o que ele seguiu gloriosamente) da estrutura narrativa e o excesso de discursos na fala dos personagens (como se estivessem fazendo preleções e não conversando).

75 anos após a sua morte (em primeiro de novembro de 1922), Lima Barreto continua muito vivo, mais do que muitos autores do Modernismo.

(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 21 de outubro de 1997, ano dos 75 anos da Semana de Arte Moderna)

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08/05/2012

Gênio da raça: Lima Barreto

lima_barreto

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PERIPÉCIAS E VICISSITUDES  DE UM LEITOR PARA CONSEGUIR LER OS CONTOS DE LIMA BARRETO

      Ao longo dos últimos meses, a obra de Lima Barreto (1881-1922) reapareceu em edições mais completas, caso das crônicas (pela Agir) e dos contos (pela Crisálida), seguindo tardiamente o caminho aberto pelo pioneiro Um longo sonho de futuro (Graphia), em 1993. Já era tempo. Pois o leitor poderia imaginar eternamente que só os romances contavam, já que eram os únicos reeditados, ou poderia  ser induzido a erro pelas confusões editoriais, como aconteceu com a pra-lá-de-discutível  Prosa Seleta,  (des)organizada por  Eliane Vasconcellos e lançada pela Nova Aguilar em  2001, na qual toda a parte dos contos é precária, dos títulos das seções à própria seleção.

Contos Reunidos possibilita o acesso  a 58 textos, antes dificilmente encontráveis em conjunto. E na apresentação, Oséias Silas Ferraz aponta com justiça as falhas da Nova Aguilar e sua Prosa Seleta.

Nesse caso, porém, trata-se do roto falando do esfarrapado: não é nada impecável a edição da Crisálida, os erros de revisão avultam e irritam e há até uma epígrafe que sumiu do início de “O filho de Gabriela” (um pensamento de Guyau, em francês, como de praxe na época: “Chaque progrès, au fond, est um avortement, mais l’échec même sert”—mais ou menos: “Cada progresso , no fundo, é um aborto, mas mesmo o fracasso serve”).

“O filho de Gabriela” é uma das obras-primas que compõem a 1ª parte dos Contos Reunidos. São sete textos que funcionavam como apêndice da 1a edição do genial  Triste Fim de Policarpo Quaresma.

O mais fraco (por conta de um certo sensacionalismo e por deixar desde cedo muito óbvio o desfecho) é “Um especialista”, no qual o amante de uma mulata descobre estar dormindo com a própria filha. Também poderia ter sido  desenvolvida com mais pormenores e situações a atmosfera da pensão siderada pela presença de estrangeiros “distintos” em “Miss Edith e seu tio”.  Quanto aos outros cinco é difícil escolher o melhor: a magnífica associação que uma manteúda faz entre um homem que deseja e o automóvel que ele dirige (isso em 1913!),    em  “Um e Outro”; “Como o homem chegou” onde se narra a kafkiana odisséia do transporte de um prisioneiro pelo interior do Brasil, arrastando-se  por anos; a conhecidíssima, e nem por isso menos extraordinária, alegoria  da passagem do império para a república que é “A nova Califórnia” (“O alienista” da obra de Lima Barreto); o também sempre favorito das antologias e que nunca deixa de ser atual na cultura brasileira, basta ver as demonstrações de  verniz erudito no congresso nas semanas recentes, “O homem que sabia javanês”, no qual uma reputação e uma carreira diplomática são feitos através do  logro intelectual.

E, por fim, o pungente  “O filho de Gabriela” , aquele que ficou sem epígrafe e que mostra, através do filho mulato da criada, adotado por um casal  de brancos, a divisão que atormentava o grande escritor carioca: na reveladora cena de delírio febril do protagonista, a ouvir tambores, cantos e danças que se contrapõem à toda cultura formal que ele assimila com inteligência, porém sempre como um pária, um estrangeiro. E em meio ao seu doloroso ajustamento ao mundo da racionalidade e da vida organizada, o apelo do nada, da dissolução, do não-ser.

resenha publicada riginalmente em A TRIBUNA de Santos,  em  6 de agosto de 2005)

SEGUNDA PARTE

Fica difícil evitar dor-de-cabeça  ao se tentar seguir os rastros editoriais de Lima Barreto.  Os erros contínuos dos Contos Reunidos, já apontados na primeira parte, prosseguiram –e avançando ao ponto da desarticulação de parágrafos— na 2ª parte, correspondente ao único volume de contos que publicou em vida (1920), Histórias e Sonhos.

    A solução foi consultar uma edição melhor, no caso a da Ática,  e que ainda traz mais 22 textos curtos, 13 dos quais (os Contos Argelinos) NÃO aparecem na supostamente completa e definitiva seleção dos Contos Reunidos. Porém, 2 textos de Histórias e Sonhos desapareceram na da Ática: “Sua Excelência” e “A matemática não falha”. Não bastassem o descaso e o sofrimento na vida terrena (e a edição original de Histórias e sonhos foi um dos maiores desgostos de Lima Barreto, tanto que escreveu uma veemente errata)!

    Na leitura de Histórias e Sonhos (se já não houvesse uma obra-prima como “Um e Outro” para demonstrá-lo) cai por terra uma das afirmações mais repisadas a respeito do seu autor: ele não saberia criar grandes personagens femininas! Ora, ora! Temos a versão em miniatura do seu texto-chave, o mais revelador de todos, tanto que o ocupou a vida inteira, “Clara dos Anjos” (o romance, que enriquece de forma considerável a história, é tido por muitos como inacabado, hipótese indefensável para o responsável por esta coluna), a perfeita trama da sedução de uma mulata ingênua por um mequetrefe, para a qual  conspira toda uma subcultura musical tipicamente brasileira. Temos o extraordinário “Cló”, a história de uma garota suburbana praticamente oferecida pelos pais como amante a um deputado casado (e a figura de Maximiliano, o pai, intelectual e incestuoso, é um caso à parte). O fim, em especial, é um arraso (e é preciso observar que nem sempre Lima Barreto era bom em desenlaces). Tem a sonhadora e eternamente casadoira  protagonista do cruel “Livia” (Quinze namorados! Quinze! De que lhe serviram ? Um levara-lhe beijos, outro abraços, outro uma e outra cousa; e sempre esperando casar-se, isto é, libertar-se, ela ia languidamente, passivamente deixando”).

Nesses e em muitos contos, a presença do “bovarismo”, uma obsessão de Lima Barreto (a pretensão de ser uma coisa que não se é). Ele o desmascara com precisão em “Um músico extraordinário”, “O feiticeiro e o deputado”, “Sua Excelência” e “A matemática não falha”.

Há o curioso “Mágoa que rala” conto-reportagem de um caso patológico: um rapaz que se apresenta como autor de um assassinato no Jardim Botânico, mobilizando a opinião pública, e o qual insiste em se dizer o culpado mesmo com todas as evidências em contrário.

Há alguns contos em que ele se mostra um grande, mas imperfeito continuador da linha de contos machadianos do tipo “O segredo do Bonzo” : o acabamento final deixa a desejar, e muitas vezes a mágoa pessoal que ralava o grande escritor suplanta a ironia e o sarcasmo, em textos, no entanto,  cheios de momentos brilhantes como “Harakashy e as escolas de Java” e “O Congresso Pan-Planetário”. Em compensação, “Hussein ben Áli-al-Balek e Miquéas Habacuc” é impecável e pode ser considerado uma cartilha para a aquisição do patrimônio digamos ético de muitos políticos que aparecem com destaque no dia a dia da nossa mídia.

Três textos bárbaros e críticos merecem destaque em Histórias e Sonhos (junto com “Cló): “O moleque”, o delicioso  “Agaricus auditae” (isto é, cogumelos auditivos) e “A biblioteca” (este último faz uso malicioso das teorias hereditárias que dominavam a cena na época). O mais perturbador é a atualidade de todos eles, encarando a burguesia atual de todo gênero, os recursos e privilégios de que dispõe, como sendo unicamente meios de alcançar fáceis prazeres e baixas satisfações pessoais, e não se compenetrando ela de ter, para com os outros, deveres de todas as espécies…”

(resenha publicada originalmente em  A TRIBUNA de Santos, em 13 de agosto de 2005)

TERCEIRA PARTE

Para finalizar o comentário a respeito da infaustamente mal cuidade edição (a Crisálida perdeu uma oportunidade ímpar) dos Contos Reunidos de Lima Barreto (1881-1922), este artigo abordará as duas seções que apresentam textos publicados postumamente em livro (num total de 32, ou seja, a maior parte dos 58 que constam do volume). O leitor pode encontrá-los numa coletânea bem superior da Garnier (também intitulada Contos Reunidos).

Dos 14 que compõem Outros Contos Reunidos (1951), o destaque vai para “Dentes Negros e Cabelos Azuis”, um dos momentos mais chocantes do ema do racismo e mesmo da autopercepção racista na obra de Lima Barreto, hipertrofiados nas características físicas do protagonista apontadas no título e que estarrecem um assaltante, cujo maior crime acaba sendo o de apiedar-se.

Os demais são basicamente vinhetas, muitas perspicazes e sardônicas, como  “Uma Academia da Roça”, farpa mortífera contra a nossa grotesca Academia Brasileira de Múmias. Há tam´bem a versão-miniatura da trama central de Numa e a Ninfa (1915), romance político que poderia ter sido uma obra-prima não fosse tão desalinhavado e pouco orgânico, mas que é recheado de episódios e tipos geniais. No conto, muda-se, enfraquecendo , o nome da Ninfa: de Edgarda passa-se a Gilberta, porém convenhamos que o primeiro era perfeito para a dominatrix do tíbio Numa. Mantém-se o precioso final do livro, quando o deputado descobre que é o amante da esposa quem escreve seus discursos, com os quais brilha no plenário: “Viu que os dois acabam de beijar-se. A vista se lhe turvou;quis arrombar a porta, mas logo lhe veio a idéia do escândalo… O que se jogava ali!A sua honra! Era pouco. O que se jogava ali eram a sua inteligência e a sua carreira, era tudo! Não, pensou ele de si para si, vou deitar-me”.

Entre os 18 Contos Recolhidos (1949) os destaques são muitos, com um dos dois pintos assassinados na alta ficção brasileira (o outro é o de A Legião Estrangeira, de Clarice Lispector), em “O único assassinato de Cazuza”; o notável “Milagre do Natal” é tão bom quanto qualquer grande conto machadiano, com um final digno do mestre, quando o pretendente diz à noiva: “Foi Nosso Senhor Jesus Cristo que nos casou” e ela replica: “Foi a sua promoção”, nesse que é um dos inúmeros piparotes de Lima Barreto contra a praga burocrática que nos assola. Machado de Assis também vem à mente inevitavelmente na leitura de “Carta de um defunto rico”.

É maravilhoso “Quase ela deu o Sim, mas…”, que já configura de forma definitiva (assim como o Cassi Jones, de Clara dos Anjos, só faltou o consumo de drogas) aquela figura típica de tantas famílias brasileiras: o vagabundo doméstico, sempre dependente dos outos, filando tudo e levando a vida, com o futebol (que Barreto abominava, até fez campanha contra) como horizonte cultural máximo. Em “O jornalista” encontramos uma siuação extrema e a grande tentação da imprensa: fabricar fatos ao inves de noticiá-los.

Às vezes, ele fica a dever: como o leitor gostaria que fossem ampliados os detalhes da teia de dívidas que aprisiona a mulher e as filhas do contramestre José de Andrade, “homem morigerado, sem vícios, exemplar chefe de família”, no delicioso e cruel “O tal negócio das prestações”!

Ninguém arrasou mais (ou melhor) a falsa cultura dos emergentes que se tomam por patronos das artes (“Lourenço, o Magnífico”). E há um conto bruzundanga (o livro Os Bruzundangas, aliás, é imperdível), “O falso Dom Henrique V”, que é uma das mais precisas críticas ao feitio da nossa republica. O presidente bruzundanga “decuplicou os direitos de entrada de produtos estrangeiros manufaturados”, “O dinheiro da receita não chegava, aumentou os impostos, e vexações, multas, etc”, “Nunca houve tempo em que se incentivassem com tanta perfeição tantas ladroeiras legais. A fortuna particular de alguns, em menos de 10 anos, quase quintuplicou, mas o Estado, os pequenos burgueses e o povo pouco a pouco foram caindo na miséria mais atroz”. A miséria talvez não seja mais tão atroz, mas todo o resto permanece intocado pelo tempo e pelos corruptos da hora.

(resenha ublicada originalmente em A TRIBUNA de Santos,  em 20 de agosto de 2005)

 serviço: Contos Reunidos de Lima Barreto – Organização de Oséias  Silas Ferraz. Editora Crisálidas. 360 págs. Histórias e sonhos (incluindo Outras Histórias & Contos Argelinos). Editora Ática. Série Bom Livro. 192 págs. + apêndice. Contos Reunidos (47 textos). Editora Garnier. 258 págs.

A Martins Fontes lançou em 2008 a mais palatável reedição dos contos de Histórias & Sonhos. Escrevi uma resenha na época,da qual “recorto” alguns trechos:

Um dos maiores desgostos de Lima Barreto em sua atribulada vida foi ver a edição de Histórias & Sonhos deformada pelos erros. Isso em 1920.  Até a presente data nenhum relançamento dera conta de restituir a integridade (seja em termos da publicação completa dos dezenove contos, seja em ausência de erros de impressão e revisão) da coletânea.

Demorou um pouquinho para Lima Barreto, mas finalmente saiu a edição que lhe daria gosto. É um acontecimento importantíssimo: trata-se de uma seleção extraordinária. Nele, encontramos a versão abreviada do seu texto-chave, o mais revelador de todos, tanto que o ocupou a vida inteira, Clara dos Anjos (o romance, que enriquece de forma considerável a história, é tido por muitos como inacabado, hipótese indefensável para quem aqui escreve),a  perfeita trama da sedução de uma ingênua mulata por um mequetrefe, para a qual conspira toda uma subcultura musical tipicamente brasileira (…) Nesse e muitos outros, a presença do bovarismo, uma obsessão do grande escritor carioca, a pretensão de ser uma coisa que não se é: ele o desmascara com precisão em Um músico extraordinário; O feiticeiro e o deputado e os geralmente cortados das edições do livro,  Sua Excelência e A matemática não falha.

27/12/2009

Em relação ao século XX: 100, 75, 50, 25 anos de obras e autores

[Juan Carlos Onetti]

{Eugene Ionesco}

[Norberto Bobbio]

[Selma Lagerlöf]

100 anos- Em 2009, a escritora alemã Herta Müller ganhou o Nobel. Exatamente cem anos atrás, a sueca Selma Lagerlöf (1858-1940) tornava-se a primeira mulher a receber o prêmio. Não conheço muito bem sua obra,  só li algumas histórias de De saga em saga, uma coletânea que aparece numa coleção dos premiados com o Nobel, porém há um ensaio excelente de Marguerite Yourcenar sobre ela em Notas à margem do tempo, e que nos faz vislumbrar um universo fascinante.

    No mesmo ano em que a autora de A saga de Gösta Berlings (seu livro mais conhecido) se tornava a pioneira de uma lista ainda muito pequena, nascia na Romênia natal de Herta Müller um dramaturgo originalíssimo, que faria parte do chamado “teatro do absurdo”: Eugene Ionesco, de A cantora careca, Os rinocerontes; A lição; e, no Uruguai, um dos prosadores que mais mereceriam o Nobel no século XX: Juan Carlos Onetti, com obras do calibre de A vida breve, O estaleiro & Junta-Cadáveres, e que forma, com o argentino Jorge Luis Borges e o mexicano Juan Rulfo a santíssima trindade da ficção hispano-americana.

      Também em 1909, nascia o grande pensador italiano Norberto Bobbio, autor dos ensaios maravilhosos reunidos em Nem com Marx, nem contra Marx. E na Letônia nascia o luminoso Isaiah Berlin (que faria carreira na Inglaterra), o autor de Pensadores russos, um pensador que gostava mais de escrever ensaios do que preparar “livros”.  E naquele ano, Lima Barreto lançava seu libelo anti-racista que também, e principalmente, é um poderoso romance, Recordações do escrivão Isaías Caminha.

75 anos- De 1934, gostaria de destacar dois romances essenciais: o maior livro de Graciliano Ramos, São Bernardo (ser o melhor livro de um escritor como Graciliano é um fato por si só notável; para mim, aliás, os maiores romances brasileiros do século passado são Grande sertão: veredas; A maçã no escuro; São Bernardo  & Triste fim de Policarpo Quaresma); e o terrível e avassalador Morte a crédito, de Louis-Ferdinand Céline (que talvez seja até maior do que sua obra-prima anterior, Viagem ao fim da noite). Vidas secas e cheias de angústia no Nordeste e na França. A vida lembrada, cá e lá, como memórias do cárcere

[raymond chandler]

50 anos- É difícil escolher o acontecimento literário supremo de 1959, ano em que morria o grande Raymond Chandler, pois nesse ano iniciavam suas carreiras gloriosas nomes como Günter Grass, com O tambor de lata, certamente um dos maiores romances já escritos; os outros não começaram já nesse patamar: Philip Roth (Adeus, Columbus), Vargas Llosa (Os chefes) e Dalton Trevisan (Novelas nada exemplares). O único título comparável em magnitude ao de Grass talvez seja O almoço nu, que revelou o universo muito peculiar de William Burroughs, mas cuja legibilidade maior foi possível graças à notável versão cinematográfica de David Cronemberg (a versão de O tambor nada tem de notável). Mesmo assim, um romance cinquentenário pelo qual tenho um carinho especial é Um cântico para Leibowitz, de Walter M. Miller Jr, merecidamente um clássico da ficção científica, mas que não se restringe a um “livro de gênero”. Na área de contos, é difícil pensar num título mais importante do que As armas secretas, de Cortázar, não só por causa da sua qualidade literária (o meu favorito é “Cartas da mamãe”, mas o mais considerado é “O perseguidor”, baseado na vida de Charlie Parker), como pela sua influência na literatura dos anos 60 e 70: basta lembrar que “As babas do diabo” foi a inspiração de Antonioni para seu Blow up (1968). Também não se pode esquecer a irreverência, a jovialidade e o trato de linguagem de Zazie no metrô, a obra-prima de Raymond Queneau.

     Em 1959, Jean-Paul Sartre dedicou-se a escrever um roteiro imenso (depois não utilizado, naquela época não existiam as produções para a tv a cabo, não existia a HBO; mesmo assim, Sartre resmungou que as pessoas tinham paciência para ver quatro horas da vida de Ben-Hur e não tinham para ver a vida do criador da psicanálise) sobre a vida de Freud para John Huston. O filme é ótimo, mas o texto de Sartre não fica atrás: Freud, além da alma; o marcante romancista português Vergílio Ferreira lançou sua obra mais famosa, o difícil porém importante Aparição; e há quem ache uma obra-prima (não é o meu caso) Crônica da casa assassinada, de Lúcio Cardoso, ainda assim um livro que se deve levar em conta. Em todo caso, eu prefiro o folhetinesco Asfalto selvagem, as deliciosas desventuras em série de Engraçadinha, uma das grandes criações de Nélson Rodrigues

25 anos- Em 1984, morriam tanto Cortázar quanto outro autor genial, Truman Capote, cujo inacabado romance Súplicas atendidas foi lançado no Brasil este ano pela L&PM, e que prova o incrível trabalho feito pela sua alcoólica mãe (que tinha vergonha da homossexualidade do filho) para lhe incutir culpa e autodesprezo. Numa vertente gay oposta, de eliminação de toda essa automortificação, temos um clássico da nossa ficção recente, Vagas notícias de Melinha Marchiotti, de João Silvério Trevisan, um romance paródico, inventivo e infelizmente pouco conhecido, assim como Democracia, da norte-americana Joan Didion, e até mesmo O ano da morte de Ricardo Reis, o menos popular (e o melhor) José Saramago. Muito conhecido, pelo contrário, e igualmente notável é O amante, de Marguerite Duras.

julio cortázar & truman capote]

25 anos- Em 1984, morriam tanto Cortázar quanto outro autor genial, Truman Capote, cujo inacabado romance Súplicas atendidas foi lançado no Brasil este ano pela L&PM, e que prova o incrível trabalho feito pela sua alcoólica mãe (que tinha vergonha da homossexualidade do filho) para lhe incutir culpa e autodesprezo. Numa vertente gay oposta, de eliminação de toda essa automortificação, temos um clássico da nossa ficção recente, Vagas notícias de Melinha Marchiotti, de João Silvério Trevisan, um romance paródico, inventivo e infelizmente pouco conhecido, assim como Democracia, da norte-americana Joan Didion (sempre cito uma de suas frases, “ninguém está isento do movimento geral”, e sua heroína, Inez Christian Victor, é como se fosse uma amiga pessoal), e até mesmo O ano da morte de Ricardo Reis, o menos popular (e o melhor) José Saramago. Muito conhecido, pelo contrário, e igualmente notável é O amante, de Marguerite Duras, a qual justamente em 1959 havia escrito o mais belo dos roteiros em hiroshima, meu amor, dirigido por Alain Resnais.

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