MONTE DE LEITURAS: blog do Alfredo Monte

30/09/2014

Destaque do Blog: OS LUMINARES, de Eleanor Catton

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(uma versão da resenha abaixo foi publicada em A TRIBUNA de Santos, em 30 de setembro de 2014)

A riqueza e a complexidade de veios e minérios misturados na ambiciosa composição das quase 900 páginas de Os Luminares [The Luminaires], um dos romances mais prestigiados dos últimos anos, vencedor do Booker Prize 2013, servem para esconder duas pepitas básicas (e que podem ser de valor incalculável ou irrisórias) do mundo do folhetim: o interesse pelo destino de um casal que se forma e se desencontra, ao longo da narrativa (no caso, Emery Staines e Anne Wetherell); o paradeiro de uma fortuna (milhares de libras em ouro).

Emery é um indivíduo solar (mesmo em suas desditas posteriores) e sua fama, em Hokitika, povoado mineiro na Nova Zelândia dos anos 1860, é a de sortudo; em contrapartida, a sina de Anne, prostituição e dependência do ópio, é lunar e quase aziaga: quando o leitor a conhece, ela está toda enleada com a repercussão de uma suposta tentativa de suicídio.

O ouro, por sua vez, passa por várias mãos, assume várias formas (costurado em vestidos, trazendo a marca de um local de prospecção improdutivo, o Aurora), desde que os vilões da trama, Thomas Carver e Lydia Wells (a qual se valerá de muitos avatares no relato: cafetina, dona de antro de jogo, viúva, médium) puseram em prática seus planos de roubá-lo e contrabandeá-lo, envolvendo não apenas o jovem par amoroso, como também o marido de Lydia, Crosbie, e seu meio-irmão, o eminente político Alistair Lauderback.

Comentando a origem de O Nome da Rosa, Umberto Eco conta que tinha a ideia de matar um monge, cuja consequência foi a criação de um mundo ficcional, e de uma linguagem, que propiciassem sua realização. Eleanor Catton (atualmente, com 29 anos) fabulou e urdiu intrigas e molduras narrativas para unir — apesar das impossibilidades e eclipses — o sol e a lua, mostrando os estragos que um capital-fetiche pode acarretar.

Para tanto, ela criou uma estrutura narrativa que se fundamenta na astrologia: doze personagens se reúnem e confabulam, com todos os prós e contras, numa espécie de assembleia astral na qual os veios da história se encontrem; cada um deles representa um signo do zodíaco e todos  participaram de eventos ligados ao casal protagonista. Além deles, temos os planetas regentes: assim, por exemplo, Carver e Lydia representarão Marte e Vênus, o carcereiro-chefe de Hokitika, Sheperd, Saturno, e o candidato Lauderback, Júpiter.

Tudo isso num universo de faroeste, num fim de mundo, onde  as pessoas se reinventam (como o jovem aristocrata Walter Moody, Mercúrio, que vem tentar uma vida como aventureiro do ouro, e é quem dá início à história, ao entrar incautamente no salão no qual os doze personagens zodiacais se reuniram), numa aurora de “civilização” (quer dizer, brancos explorando e espoliando povos nativos, como os maoris, ou estrangeiros, como os chineses), com os conflitos e impasses gerados, entre costumes e códigos antigos e a “lei” instituída, tal como podemos entrever numa curta passagem:

 Quando dois códigos de justiça estão à disposição simultaneamente, um homem sempre utilizará um para obstruir o outro (…) Não penso que a lei é deficiente; meramente pretendo sintetizar o que ocorre quando o selvagem encontra o civilizado (…)

__ Entendo o seu ponto; o perigo é essa penumbra entre o mundo antigo e o novo…”

    Qual é o sentido, em pleno século XXI, de um romance enorme que, além de tudo, se apropria da forma de narrar dos romances vitorianos à Dickens[1]? Será que o gênero não estaria mesmo moribundo, aos praticantes restando apenas exercícios estilizados, a ser degustados por desocupados (privilegiados quanto ao tempo para se ocupar deles)?[2] Correndo o sério risco de me ver incluído entre os últimos, devo dizer que acho perfeitamente natural construir todo um vasto empreendimento ficcional para matar um monge e unir um casal de antípodas (“E há corpos celestes e corpos terrestres, mas uma é a glória dos celestes e outra a dos terrestres. Uma é a glória do sol, e outra a glória da lua, e outra a glória das estrelas; porque uma estrela difere em glória de outra estrela”– Cor. 15. 40, 41[3]). . E, mais ainda, acho que essa é uma vocação do romance. Perder-se por dias e semanas numa leitura como Os Luminares é uma experiência cognitiva realmente privilegiada: ao viver nesse mundo autônomo, embora conectado ao nosso, temos uma enciclopédia de paixões humanas, para a qual contribuem os princípios jurídicos (largamente explorados no relato), a descrição topográfica, os detalhes históricos, e todos os elementos contingentes, o “acidental” que tanto valor adquire num mapa existencial tão precário quanto o de cada indivíduo.

Nesse quesito, o livro de Eleanor Catton já seria um feito e tanto e, sim, aquelas pepitas adquirem aqui valor incalculável. Ainda é pouco: se ela é capaz de esconjurar todos os clichês da falta de tempo e de relevância para a criação de um romance completo e pródigo de fabulação folhetinesca (ainda utilizando uma linguagem de apuro quase sobrenatural[4]—que a tradução de Fábio Bonillo preserva com felicidade—malgrado inúmeros erros de revisão), mais admirável ainda é sua ardilosidade, digna de Lydia Wells.

Pois só quem não ler Os Luminares até o fim, poderá considerá-lo tão somente um romance à antiga. As três primeiras partes, mais extensas, é que se encarregam dessa “atmosfera”. As nove restantes recuam no passado, desvelando os fundamentos de todos os imbróglios já explorados em forma de quebra-cabeças.  E aí Catton descortina um arquipélago de cenas rápidas e quase truncadas, as quais vão adquirindo uma conotação cada vez mais irônica (por isso, o resumo, bem no feitio dos romances antigos, que serve de introito, mostra-se mais rico de acontecimentos e considerações do que aquilo efetivamente mostrado em cada capítulo[5]) de lampejos do porvir[6]. Então, não se apressem os anunciadores dos necrológicos romanescos em realçar o lado anacrônico de um livro que é, também, um vigoroso e malicioso mostruário da dissolução da “coesão” oitocentista do gênero.

Afirmei que o cenário do romance evocava o faroeste. Os Luminares me faz lembrar de Sergio Leone que, em Era uma vez no Oeste, valendo-se dos seus elementos primordiais, orquestrava uma grandiosa reencenação elegíaca desse universo. E o casal Emery (sol) e Anne (lua), cuja união talvez só possa ser possível na ilusória paz do ópio, traz à mente outro título do mestre italiano, Era uma vez na América, onde toda a realidade da história perdia, no final, seu “peso” no sonho opiáceo. Tenho para mim que o esplêndido romance de Eleanor Catton ganhará, com o tempo, o mesmo status de clássico desses filmes de Sergio Leone. Fumaça e minério mesclados. Apoteose e elegia de um gênero.

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TRECHO SELECIONADO

    “__ Lauderback assim o disse, exatamente—disse Moody. Ele balançou a cabeça.—Fico pensando se devo acreditar nas intenções do senhor Lauderback ao citar o nome desta jazida tão casualmente ao senhor Balfour esta manhã.

__ O que quer dizer com isto, senhor Moody?

__Não confia nele, em Lauderback?

__Seria muito pouco lógico desconfiar do senhor Lauderback—disse Moody—, visto que nunca na vida encontrei o homem. Estou muito ciente do fato de que os acontecimentos pertinentes dessa história estão sendo transmitidos de segunda mão, até, em alguns casos, de terceira mão. Tomo como exemplo a menção à jazida Dunstan. Francis Carver aparentemente mencionou o nome dessa jazida ao senhor Lauderback, que por sua vez narrou ao senhor Balfour, que por sua vez retransmitiu sua conversa a mim, hoje à noite! Todos vocês hão de convir que eu seria um tolo em tomar como verdadeiras as palavras do senhor Balfour.

     Mas Moody subestimara sua plateia ao questionar tópico tão delicado quanto a ´verdade´. Houve uma explosão de indignação ao redor da sala.

__ Quê? Não confia em um homem que lhe contou a própria história?

__ Posso asseverar que isso é verdade, senhor Moody!

__ Que mais ele poderia lhe dizer, salvo aquilo que contaram a ele?

    Moody foi tomado de surpresa.

__ Não creio que qualquer parte de sua história tenha sido adulterada ou omitida—ele replicou, dessa vez com mais cuidado. Olhou de rosto em rosto.—Queria apenas observar que não de pode nunca assumir como própria a verdade de outro homem.

__ Por que não?—Essa pergunta imediatamente ecoou de toda parte.

    Moody fez uma pausa por um instante, refletindo.

__ Em um tribunal—disse ele finalmente—, uma testemunha jura dizer a verdade, ou seja, sua própria verdade. Ela concorda com dois parâmetros. Seu depoimento deve conter toda a verdade, e esse depoimento não deve conter nada além da verdade. Apenas o segundo desses parâmetros é um limite real. O primeiro, é claro, é grandemente uma questão de discrição. Quando dizemos ´toda a verdade´, dizemos, mais especificamente, todos os fatos e impressões que são pertinentes ao assunto em questão. Tudo que não é pertinente não é apenas irrelevante, é também, em muitos casos, intencionalmente enganador. Senhores—disse ele, embora senha abordagem coletiva lhe houvesse saído esquisita, considerando a companhia diversificada  que ele tinha na sala—, eu defendo que não há verdades totais, e sim apenas verdades pertinentes, e a pertinência, hão de convir,  é sempre uma questão de perspectiva. Não creio que nenhum de vocês haja perjurado de alguma maneira esta noite. Eu acredito que me deram a verdade, e nada além da verdade. Mas suas perspectivas são muitas, e hão de me perdoar se eu não tomar por integral a sua narrativa”.

Eleanor+Catton+Eleanor+Catton+Wins+Man+Booker+uin2nHI2fN9lIllustration by Clifford Harper/Agraphia.co.uk

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NOTAS

[1] Também com elementos de Victor Hugo (algumas cenas entre Anna e o funcionário da Justiça Aubert Gascoigne), avançando para o tipo de romance desenvolvido por George Eliot (aliás, uma  autora que poderia ser tomada como o paradigma de Eleanor Catton) e Henry James.

Veja-se um trecho “jamesiano” do romance:

“Nesse ponto, o negociante comissionado deixou escapar sua deixa. As hipóteses de Nilssen eram sempre do tipo autocorroborativo: ele tendia a favorecer quaisquer provas que melhor aprouvessem a seu senso de conduta, e, igualmente, a agarrar quaisquer condutas  que melhor se prestassem à comprovação. Ele falava constantemente em virtude, assim dando a impressão de ter um temperamento muito entusiasta e otimista, mas sua fé na virtude servia a um mestre bem menos flexível que o otimismo. O benefício da dúvida, para lançarmos mão do provérbio, era um dom fortuito, e Nilssen era muito orgulhoso de seu intelecto para ceder a o poder de uma hipótese.  A seu ver, uma camada protetora de verniz havia sido aplicada às formas cristalinas da alta abstração: ele adorava pôr-lhes repato e admirar-lhes o fulgor, mas ele nunca cogitara descê-las de sua cristaleira esculpida em carvalho, por assim dizer, para senti-las, conformadas, nas próprias mãos. Ele concluíra que Pritchard estava apaixonado somente porque era prazeroso deliberar sobre esse ponto, examinar seu espécime e então retornar ás crenças que há muito possuía…”

[2] VER, por exemplo:  http://epoca.globo.com/colunas-e-blogs/danilo-venticinque/noticia/2014/08/os-blivros-longosb-e-promessa-do-autor.html

[3]E disse Deus: haja luminares no firmamento do céu, para fazerem separação entre o dia e a noite; sejam eles para sinais e para estações, e para dias e anos” (Gênesis, 1, 14)

[4]  Veja-se uma passagem em que se captura uma “pose” de Lydia Wells: “segurava na outra mão um romance de bolso, quase como se o livro servisse de acessório a um desmaio

[5] Veja-se,  por exemplo,  o capítulo “Outro tipo de alvorecer” (da Parte 8- A Verdade sobre a Aurora).

O resumo do capítulo:

“Em que Ah Quee, pondo as mãos sobre as curvas cheias de metal do corpete de Anna, faz uma curiosa descoberta, cujo significado preciso ele não vai imaginar até  oito dias mais tarde, quando a alternância entre os quatro vestidos de musselina de Anna  dão-lhe uma estimativa mental da dimensão das riquezas que contêm, excluindo, é evidente , o pó contido no vestido de seda laranja, o qual Anna nunca usa em Kaniere”.

O capítulo:

“Anna jazia perfeitamente imóvel, os olhos fechados, enquanto Ah Quee corria as mãos sobre seu vestido.  Ele tateou cada parte de seu espartilho com os dedos, delineou cada folho, pegou a pesada bainha e derramou o tecido nas mãos. Seu toque metódico pareceu  ancorá-lo no tempo e no espaço; ela sentiu que era imperativo  que ele tocasse  cada parte do vestido antes de tocá-la, e essa convicção  encheu-a de uma calma lúcida e poderosa.  Quando ele escorregou  o braço debaixo de seus ombros para virá-la, ela aquiesceu sem emitir som algum, levando à boca as mãos moles, como um bebê, e virando o rosto em direção ao seu peito.”

[6] Dessa forma, por exemplo, ficará explicada a “sorte” atribuída a Emery Staines antes de seu misterioso desaparecimento, à Edwin Drood, e ela ganhará uma aura cruelmente irônica.

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23/09/2014

O círculo vicioso do ex-menino de propaganda nazista: as “histórias” de Alan Pauls

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Em todos e em cada um dos dias de sua vida foi enviado ao mundo da sensibilidade, ao campo de batalha da sensibilidade, onde tudo é “proximidade”, “pele”, “emoção”, “compartilhar”, “pranto”, e em todos e em cada um de seus dias, soldadinho obediente, ele regressou, e a algaravia com que seu pai o recebeu a cada vez, algaravia dupla se o viu voltar sem uma perna, tripla se voltou sem um olho e uma mão a menos, foi menos um prêmio do que um incentivo, o suborno necessário para garantir que no dia seguinte acordará cedo, vestirá o uniforme, partirá outra vez. Embarcam na viagem seu pai e, sobretudo, o véu úmido que lhe embaça os olhos toda vez que o vê voltar, com butim ou sem ele, do campo de batalha da sensibilidade que parece adensar-se nos cantos dos olhos e quando está para se coagular, quando está prestes a tornar-se lágrimas, zás, evapora—o mesmo véu de umidade, aliás, que seu pai, com o passar do tempo, faz brilhar como num passe de mágica em seus olhos, toda vez que ele está prestes a fazer alguma objeção, ir a fundo num problema que prefere esquecer, pôr em evidência o que sua estupidez o impede de ver, e que de repente embaça seus olhos—“embaça”, palavra que passa a detestar, ligada que está ao “café”, ao “calor” de um café no inverno, aos “apaixonados” que “desenham” um “coração” no “vidro embaçado” do “café”, ou seja, a repulsiva galáxia onde continua reinando o cantor de protesto-e, além de protegê-los, amansando-a, desativa no ato a ofensiva que o ameaça.  (Alan Pauls, História do pranto)

(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 23 de setembro de 2014)

Em A vida descalço (2006), passeio ensaístico-memorialístico pelo imaginário praiano, pode-se ler: “Se eu tivesse de odiar a praia, acho que usaria para odiá-la o mesmo ódio com que odeio minha pele, minha brancura de ex-menino de propaganda nazista, minhas sardas, minhas pintas, meus rubores terríveis, que posso tolerar quando delatam pudor e que me assustam quando interpreto que anunciam algum surto de psoríase… Como não odiar o estúpido círculo vicioso de que sou feito?”[1]

Para sondar os círculos viciosos da autoimagem em sua conflituosa relação com o mundo, os afetos, a geração a qual pertence, Alan Pauls se lançou a um dos mais belos empreendimentos literários deste século, uma trilogia de Histórias (numa paródia do estudo das mentalidades que renovou a historiografia): História do pranto (2007), História do cabelo (2010), História do dinheiro (2013). E olhe que ele já havia publicado, em 2003, O passado, uma das obras de ficção fundamentais do nosso tempo.

Enquanto História do cabelo tem a dicção narrativa mais próxima daquele extenso e belíssimo romance (tão mal filmado por Hector Babenco), um espraiamento maior, ancorado numa certa linearidade do relato, História do pranto é uma experiência mais radical. Pauls até encontrou um signo gráfico, o […], para pontuar a narração, como que mapeando um arquipélago de momentos cronológicos não-lineares justapostos, girando em torno da oscilação do protagonista entre o polo da hipersensibilidade (que o faz chorar diante do pai quando criança de uma forma que define a relação entre eles)  e o polo da rejeição ao pranto — no sentido de chantagem existencial, de exploração de um nauseante território em que “bondade humana”, “ternura”, “extravasamento de emoções” mascaram inautenticidade, má-fé, coisa pré-fabricada.

O ângulo mais chamativo, do ponto de vista “temático” desse mergulho do personagem em diversos momentos da sua vida pontuados pela questão da “emoção” efetivada pelo pranto, é que eles em geral se referem a uma educação sentimental especificamente esquerdista (colocada contra o pano de fundo da ditadura militar argentina): é a rejeição da melosidade e sentimentalismo barato das canções de um famoso cantor de protesto, amigo do pai (cujas ligações “subversivas” são meio obscurecidas, apenas insinuadas, nas rememorações da sua figura — diga-se, de passagem, que ele e a mãe moram num bairro predominantemente militar, após a separação dos pais; a mãe, deprimida e distante, odeia voltar a ficar sob dependência financeira, e o avô provoca o neto, chamando-o de “mariquinhas”, o proverbial remédio patriarcal para exterminar tendências “sensíveis”); é, em contrapartida, a sensação de estar afastado da “vida real” das emoções, ao flagrar-se como mero espectador, sem emoção (pelo menos, a ratificada por lágrimas), via televisão, da derrubada do governo Allende, e seu cadáver sendo retirado do Palácio de La Moneda (em 11 de setembro de 1973), situação que leva ao choro inconsolável um amigo.

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O protagonista é um estudioso do marxismo, discute seus autores seminais mais agudamente que o amigo, admira profundamente as realizações socialistas do governo Allende, mas é incapaz não só de exteriorizar suas emoções, como até mesmo de “senti-las”. No entanto, a partir do fato, ele toma uma decisão friamente passional, se  posso me expressar assim: rompe o namoro com a menina chilena com a qual estava envolvido há meses (para admiração geral dos colegas), porque a família dela é de direita e deve estar exultante com o golpe.

Por outro lado, uma emoção próxima da náusea (física inclusive) ronda a recordação de um vizinho, militar, sob os cuidados de quem o menininho que o protagonista foi às vezes ficava, quando a mãe tinha de sair. Há uma vaga atmosfera de ambiguidade sexual, contudo os bloqueios da memória, que tornam tudo meio difuso, não permitem que ele localize exatamente que elementos podem comprovar essa percepção, ou mesmo porque persiste a nota pungente de emoção na recordação desse vizinho. O clímax de História do pranto será a revelação da sua identidade.

Chama a atenção também o fato de que o protagonista, apesar de precaver-se contra a chantagem sentimentalista, seja muitas vezes ouvinte do que chamamos de desabafos emocionais desde a tenra infância, e que muitas vezes isso represente uma espécie de violação simbólica: veja-se o episódio do jantar em que ele está todo orgulhoso de uma relação feliz com uma bela mulher, meio que se pavoneando, e um desconhecido senta ao seu lado e lhe sussurra: “Isso porque você nunca esteve amarrado a um estrado de metal enquanto dois sujeitos davam choques no seu saco”. [2]

O ângulo mais impressionante mesmo, feitas as contas, é que acompanhamos um texto em que o frase a frase é atordoante. Dá vontade de citar tudo. É a poesia da prosa em plenitude.  Possivelmente, apenas o chileno Alejandro Zambra conseguiu algo próximo da proeza de Pauls, em mesclar memória afetiva, geracional e política, com seu Formas de voltar para casa (2011).

Se o Nobel resolvesse corrigir a persistente e notória injustiça com a literatura argentina (repleta de autores avassaladores), o ex-menino de propaganda nazista seria um nome a se pensar seriamente, rubores terríveis à parte. Pois ele — aos 55 anos — é, sem dúvida, um dos maiores autores vivos.

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VER AQUI NO BLOG

https://armonte.wordpress.com/2012/08/01/a-repulsiva-galaxia-da-emocao-barata-e-a-movedica-poesia-da-prosa-historia-do-pranto/

NOTAS

[1] Utilizo a tradução de Josely Vianna Baptista (Cosacnaify, 2013) para La vida descalzo.

[2] Utilizo a tradução de Josely Vianna Baptista (Cosacnaify, 2010) para Historia del llanto.

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16/09/2014

A MAIOR TRAVESSURA DA MENINA MÁ: Elvira Vigna do cáustico ao agônico em “Por Escrito”

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“De antemão, decido. Vou tentar botar isso aqui no passado, com os verbos no passado. Não sei se vou conseguir.  Já tentei antes, mas não consigo deixar essas coisas no passado, aliás nem sei se existe isso, o passado. Acho mesmo que é como se eu estivesse num espaço assim, meio sem contorno marcado, em que as coisas entram e saem, em que os tempos convivem, Molly dança com um cara grande e quando ela dança, ela também, ao sentir a pressão do pau dele contra seu corpo, haverá de lembrar de outro pau, mais fino, mais ardido, ela também presa, dessa vez não pelas mãos grandes que a enlaçam, mas pela trama de uma colcha de rendão nas suas costas e aquele outro cara também vai estar lá, no espaço que também é meu e não só dela, todos juntos, os tempos todos juntos”.

(uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente em  A TRIBUNA de Santos, em 16 de setembro de 2014)

No café, em João Pessoa, depois da apresentação do seu novo livro, Por escrito, e de um sanduíche, Elvira Vigna espera os chuviscos passarem e espia pra ver o que vai acontecer ainda… Chega uma senhora e pergunta:

__ Então, está satisfeita?

__ Satisfeita, eu, não! Nunca!

__ Mas por quê?

__ Acho que é porque eu quero demais da vida.

__ E o que é que você quer agora?

__ Tempo, acho que a gente sempre precisa de mais tempo.

A senhora foi embora… depois informaram à Elvira: era a dona do

Café! Queria saber se ela gostara do sanduíche.

No dia seguinte, nem abriu o jornal para não ver a manchete inevitável: “Proprietária de café se suicida em João Pessoa” [1].

Rigorosamente verídico, o diálogo acima é um típico-Elvira (para usar uma expressão cunhada por ela mesma) ao vivo!  Poderia estar em qualquer um de seus romances.

A heroína do episódio vem construindo uma marcante obra como romancista desde o final dos anos 1980, um universo áspero e cáustico, no interior do qual as protagonistas reinventam-se socialmente, acumulando autoenganos e armadilhas, e nem assim se furtando à lucidez (daí o uso feroz de uma primeira pessoa muito peculiar, inconfundível, na narrativa).

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Ela argamassou os fundamentos desse mundo ficcional com os notáveis O assassinato de Bebê Martê (1997) [2] e Às seis em ponto (1998), chegando à maestria dos mais recentes Nada a dizer (2010) e O que deu para fazer em matéria de história de amor (2012). Apreciei deveras este último, porém confesso que fiquei um tanto preocupado, perguntando-me se as travessuras da menina má da nossa literatura não tinham chegado a um impasse perigoso.

Tal ressabio entrou no modo alarme quando descobri que o seu novo livro tinha 300 páginas, mais que o dobro da maior parte dos títulos precedentes (O que deu para fazer em matéria de história de amor já era mais longo que o habitual). Prolixidade e Elvira Vigna não pareciam uma combinação concebível nem desejável.

Vão temor. Por escrito representa um salto quântico, apresentando um fôlego maior, uma amplitude e verticalização mais pronunciadas, mesmo levando em conta a agudez e acuidade dos anteriores, enfim, uma envergadura romanesca que se ombreia com o que de melhor o gênero pode proporcionar (penso nos livros de Don Delillo, por exemplo).

Temos mais uma protagonista (Izildinha/Valderez) que se “faz”, ou melhor, refaz na vida, social e profissionalmente, para minar essa reinvenção (para a qual ela não tem a menor convicção, movimentando-se desalentadoramente pelo mundo corporativo) ao longo da narrativa, escrita (daí o título do romance, tão enganosamente anódino) para —e contra— o complacente companheiro de muitos anos, só que dessa vez os diques todos parecem ter se rompido, arrostando a reinvenção do próprio Brasil das últimas décadas, o relato adquirindo uma feição radicalmente agônica, para além do cáustico. Por escrito é dolorosamente “humano”, com páginas progressivamente emocionantes, que nos deixam embargados.

Valderez viaja muito, por conta do trabalho (ligado ao ramo do café) e das “pedras” da sua vida interior. Chegando sempre antes (horas, às vezes) aos compromissos, ela se sente à vontade numa espécie de limbo em não-lugares (quartos de hotéis, aeroportos, metrô). Essa rota nebulosa começou muitos anos antes, quando uma menina quilombola deixou-se seduzir por um fazendeiro, no Nordeste, e afastada para bem longe—vai para o Rio—teve uma filha. Mais tarde, haverá um meio-irmão, uma escada (o primeiro limbo?) num edifício, a qual servirá como improvável, nunca substituído espaço de proximidade, e cujo encanto vai se quebrar com a queda de um corpo, uma das “pedras” carregadas pela autoinventada Valderez (deixando para trás—para os outros, é claro—a origem, o nome, os corpos-vítimas), bem a filha de uma autoinventada Molly, a menina seduzida que vai se desfazendo das migalhas de pão no rastro do passado, sempre em novos avatares.

Empurrando com a barriga, como se costuma dizer, a relação com o destinatário de sua escrita, Valderez decreta, no início do romance, o fim de suas viagens profissionais. No entanto, leva o leitor para círculos cada vez mais enrodilhados e densos de uma viagem por sua biografia, sempre a um passo de se desfazer/ocultar em versões e camadas (para utilizar esse termo tão em voga), vide a epígrafe acima. Então, vislumbramos o rosto implacável de um país que se modernizou e avançou, tentando ocultar/rebocar a desfaçatez e a renitência de suas forças sociais mais vorazes. O aeroporto-igual-a-todos-do-planeta[3] e o quilombo, pontos de fuga de um dos textos mais reveladores da nossa “contemporaneidade”, tão insólita:

“À nossa frente, avisam as placas, vai acontecer o seguinte, haverá uma retenção. E, depois, tornam a nos avisar, vai acontecer outra coisa. Até o fim desse caminho, se o mantivermos, saberemos o que vai acontecer. E só vai acontecer o que está nas placas. Pressurosos, atenciosos, nos repetem: sabe aquilo que já avisamos? Pois então, atenção, faltam apenas tantos metros para que aquilo que avisamos que ia acontecer aconteça de fato.

    O caminho de um aeroporto para um centro urbano. Uma das linhas retas mais absurdas que conheço e as tenho, muitas (…)

    Tirando o mundo real, o resto continuava direitinho. E nos avisavam o que ia acontecer à frente, e tudo o que não tinha sido avisado estava proibido de acontecer. Tirando o mundo real, o acaso, a gravidez de adolescentes, a chegada inesperada de quem viaja, a queda em janelas ou a mudança climática anunciando que todos os cafezais do mundo inteiro estão indo para o brejo, não são permitidos imprevistos de nenhum outro tipo nesse caminho que, resolutos, seguimos”.

Nesse sentido, tanto pela abertura quase alegórica, quanto por um quê de cru, de não lapidado (felizmente), no relato, com suas reiterações, sua obsessividade, sua insistência em não “fechar” harmonicamente, parece-me que a grandíssima escritora carioca meio que mandou às favas a “maestria” e foi às suas fontes, ao seu primeiro (e já acima da média) romance, Sete anos e um dia (1987), cuja reedição é muito necessária, um painel simbólico dos anos de “abertura” entre a ditadura e o governo Sarney[4].

Portanto, nossa Elvira continua a indestronável rainha das trevas, com seu desassombro em inventariar mazelas. Só que os matizes e contornos dessas trevas nunca foram tão variados e surpreendentes. A meu ver, sua obra-prima. O que podemos esperar a seguir?

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TRECHO SELECIONADO

“E aí, sentada outra vez na cadeira pré-moldada, começo minha catalogação de aeroportos, as coisas que vi e guardei, formando na minha cabeça as frases através das quais eu contaria sobre essas coisas para você, e não contei. Porque ao chegar, desse ou de qualquer aeroporto, elas me pareceram bobas. E porque frases não podem contar como é ficar sentada com a bunda em cadeira pré-moldada de aeroportos vendo o mundo se tornar outro mundo e o mesmo, sem sentido, alices nós todos, sem notar. Ou porque, ao chegar, outros assuntos, os nossos, tomaram o lugar desses, os de aeroportos. E não contei porque os assuntos  que eram os nossos também não eram contados, ocupando nosso encontro com seu silêncio.

     Mas então é isso. Nada se mantém em aeroportos, hotéis, sarjetas em que às vezes me sento, sentava, cansada de tanto andar por cidades que não conheço, as melhores.  Então, minha catalogação , a que faço nesse dia, sentada no aeroporto esperando a volta para um São Paulo que seria, a partir da minha volta, outro São Paulo, e para um você que seria um outro você, minha catalogação também não se mantém, misturada que foi com as coisas que aconteciam ali na minha frente, sem que eu preste muita atenção,  sem que fizessem sentido algum, tão calmantes, sedutoras, no seu jeito de só passar, ali, na minha frente, um filme em que chegamos atrasados  e não entendemos, e que gostamos assim mesmo ou por causa disso mesmo.”

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NOTAS

[1] Está certo que a dona sentou-se incautamente numa cadeira vazia, ao lado da autora, sem se apresentar e tascou seu “Você está satisfeita?”, mal sabendo que estava à beira do abismo.

[2] Onde encontramos um momento típico-Elvira (quase prototípico), pelo menos na caracterização das suas protagonistas, que mesmo bem-sucedidas profissionalmente, estão sempre num corpo-a-corpo crispado com o mundo:

   “Mas nesse trem, lá pelas tantas, entrou um grupo de negros e o trem estava quase vazio naquela hora e eles se sentaram no meu vagão bem perto de mim e começaram a fumar. E eu sou meio sozinha, às vezes eu tenho vontade de falar com alguém, mesmo que seja para brigar.
Então eu disse que era proibido fumar.

    O cara ficou olhando para minha cara, sem acreditar, e disse what, e eu repeti que era proibido fumar. Um casal que também estava no vagão tentou me fazer uns sinais desesperados para eu não fazer aquilo e nesse momento veio o cobrador e ele viu a cena e também me falou bem baixo, quando passou por mim, para não me meter com aqueles caras. Mas o cara repetiu what mais uma vez e eu repeti mais uma vez que ele não podia fumar no trem. Ele disse que não sabia disso e eu disse, bem, agora sabe…”.

[3] Embora nos nossos, como ela mesma diz, haja o onipresente cheiro do pão-de-queijo.

Já aludi ao corpo-a-corpo crispado das heroínas vignescas com o mundo. Vejamos uma das cenas d aeroporto em Por escrito:

“Me espichei demais na cadeira. Foi isso. Foi isso que pensei, na hora, que era consequência da minha adaptação ao pré-moldado geral. Algum problema com a circulação sanguínea no meu cérebro. Porque, bem na altura de meu nariz, aparece um grupo que faz pouco sentido mesmo quando não em aeroportos e que, eu pelo menos, nunca tinha tido a experiência de ver em aeroportos. No meio da rua, sim, já vi. E nessas horas me encolho, busco cantos, portas abertas de lojas, quando as há, um medo, como se tem medo de bichos em manadas. Sã esses grupos em que todos têm cores iguais. Esse que aparece no aeroporto grita vaaaaasco. Bandeiras e camisas nos ombros, como se fossem a capa de super-homem que eles tantos desejam ser. E que acham mesmo que são, quando, como agora, estão em grupo. Olham desafiadores para todos, um por um, querendo que alguém diga meeeengo. Vasco é berrado com o < vas > em tom maior e o < co > em tom menor. Era para ser, suponho, brado de orgulho. Mas é um lamento. Lembro do < Lago dos cisnes > e do que Pedro falava. Que, se termina em tom maior, é porque o cisne não morre. E que a partitura, portanto, está errada. Chego à conclusão que o vaaaaasco é nosso < Lago dos cisnes >, o mesmo erro, só que ao contrário. Pois se é em tom menor, não pode ser brado de vitória. É lamento. Lamentam a perda de alguma coisa muito importante. Concordo. Falta algo de muito importante neles. Eu quase choro…
Estão roucos, a cara cansada. Vieram direto, emendando de um ontem que ainda não acabou. Welcome aboard. Os meus ontens também têm esse péssimo hábito…”

[4] E cujas primeiras páginas, sensacionais, já são mostra do típico-Elvira. Depois, apesar da qualidade do texto e da força das personagens (especialmente, as femininas—os homens em Elvira Vigna tendem ao fraco e ao amorfo), a irregularidade se instala. É o único livro da autora aqui referido não publicado pela Companhia das Letras (a edição é da José Olympio).

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09/09/2014

O MESTRE DA RECOLETA: Cem anos de Bioy Casares

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(a resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 09 de setembro de 2014)

(uma versão ampliada da resenha abaixo foi publicada no LETRAS IN.VERSO E RE.VERSO, em 03 de setembro de 2014, VER http://letrasinversoreverso.blogspot.com.br/2014/09/o-centenario-de-outro-mestre-argentino.html)

    Dois dos maiores escritores argentinos têm seus centenários comemorados em datas muito próximas: o de Julio Cortázar, em 26 de agosto; o de Adolfo Bioy Casares, no próximo dia 15. Coincidência do destino ou um plano celeste (título de um conto do segundo)?  Afinal, ambos exercitavam-se no domínio do fantástico, do insólito. A diferença está na linguagem: enquanto o estilo cortazáriano era mais experimental e exuberante, o do “mestre da Recoleta” (o famoso bairro “nobre” portenho) apresentava-se mais comedido e “clássico”.

     Gostaria muito de estar comentando, no embalo da efeméride, uma bem-vinda edição brasileira — que não há, salvo engano — de um dos admiráveis romances de Bioy, Plano de Fuga (1945). Na falta deste lançamento tão desejado, volto-me para a sua mais famosa obra no gênero (publicada em 1940, quando ele contava 26 anos!), cuja ambientação também se dá numa ilha longínqua: A Invenção de Morel (durante muitos A Máquina Fantástica no Brasil).

    A essa ilha chegou como fugitivo da lei o narrador. Ali podia viver anos, sossegado e solitário, escoltado pelo bando solícito dos ecos, multiplicadamente só”, como um Robinson Crusoé moderno. O leitor, todavia, é guiado para sendas e falésias mais perturbadoras. Pois não é que nesse ermo há uma piscina, um hotel (também uma espécie de museu) e uma capela? Sem falar no grupo de quinze “visitantes” (e seus criados). Sobretudo há, entre eles, uma mulher fascinante, Faustine.

     O fugitivo admira esses “heróis do esnobismo” que não se importam de manter seus prazeres, mesmo com o mau tempo local: “… sentados em bancos ou na grama, conversavam, ouviam música e dançavam em meio a uma tempestade de água e vento que ameaçava arrancar todas as árvores”; em contrapartida, é ostensivamente ignorado, sentindo-se invisível; chega a indagar, diante da frieza de Faustine, como Freud já o fizera, proverbial e genericamente, sobre as mulheres: “Mas que será que ela quer?”. 

     A extrema solidão: uma ilha povoada e nenhum contato. O isolamento completo em meio aos lânguidos lazeres das “aparições”. Sim, porque em determinado momento, se dá conta de que não é real o grupo, o qual repete os mesmos gestos, as mesmas falas. “Ocorreu-me que talvez se tratasse de seres de outra natureza, de outro planeta… Lembrei-me de que falavam em correto francês”: a língua francesa como idioma universal é uma impagável ironia, com aquele toque sutil devido ao qual tantos veneram, com razão, o amigo íntimo e colaborador de Jorge Luis Borges (escreveram juntos uma série de livros policiais paródicos, como Seis problemas para Dom Isidro Parodi e Um modelo para a morte; além disso, organizaram uma formidável Antologia da Literatura Fantástica), que, talvez esse motivo, não ficou eclipsado pelo mítico colega mais velho (Borges nasceu em 1899).

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    As aparições foram criadas por Morel. O inventor preservou numa máquina os momentos vividos pelo grupo na ilha: não conseguindo possuir a esquiva Faustine, por fim vampirizou-a, tornando-a imortal e irreal: “de Faustine não há senão esta imagem, para a qual eu não existo”. Só resta a loucura final: fingir-se de aparição, unir-se às imagens como se fizesse parte delas, de forma a enganar um eventual espectador desprevenido”.

     Depois das suas ilhas inquietantes, o autor de A Invenção de Morel ainda produziria belos romances, como O sonho dos heróis (1954) e Diário da guerra do porco (1969), estes felizmente já traduzidos. Da sua vasta e notável produção contística, o leitor brasileiro pode encontrar uma sumária entretanto expressiva seleção de catorze Histórias Fantásticas. Para se ter uma pequena ideia do humor de Bioy, basta citar um dos pontos altos do volume (como todos os já citados, editados pela COSACNAIFY), O calamar opta por sua tinta: um ET vem trazer a salvação a um mundo que pode ser destruído pela bomba atômica (estamos nos anos 1950), mas é frágil e necessita ser regado constantemente. Os moradores de uma cidadezinha argentina o acolhem com boa vontade, mas precisam do regador e querem manter sua rotina diária, e acabam deixando que morra.

    O charme desse texto está na maneira como é construído, todo em cima da curiosidade dos habitantes da cidade em saber por que o regador não está sendo utilizado de sua forma usual e o que está acontecendo no depósito do homem mais rico da região. Diante dessas absorventes questões, o destino da humanidade é coisa secundária.

VER TAMBÉM AQUI NO BLOG:

https://armonte.wordpress.com/2012/06/10/bioy-casares-e-a-multiplicacao-da-solidao/

https://armonte.wordpress.com/2012/06/10/o-henry-james-argentino/

 

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02/09/2014

A inteligência lírica: André Ricardo Aguiar

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(publicado originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 02 de setembro de 2014)

“E o que sei são os dons primordiais/que não explicam, e é amor” (versos de Estudo Corporal).

Como verificamos ao nosso redor, há quem tenha um raciocínio lógico entranhado, e é natural que isso acabe por moldar toda uma concepção da realidade. Também há diversos poetas no mundo (nem que seja por autoproclamação), parte deles com considerável talento. Mesmo entre os verdadeiros poetas, entretanto, André Ricardo Aguiar, 45 anos, revela-se uma raridade: poucas vezes vi inteligência lírica tão notável.

Não, não se trata de aplicar a racionalidade ao poema ou equacionar engenho-engenharia no exercício do gênero. Já tivemos nosso espécime quase quimérico nesse sentido, João Cabral de Melo Neto (1920-1999). Trata-se, no tocante ao escritor paraibano, de um lírico no mais intenso sentido da palavra, ainda que ele (como tantos na pós-modernidade) se valha da ironia, dos jogos com os significantes da palavra; ainda que tenha consciência aguda e da linguagem e de suas crises. Nos momentos mais plenos (e eles pululam) dos 73 poemas de A Idade das Chuvas, fica-se assombrado porque, com os meios mais comuns e corriqueiros do fazer poético, ao alcance de qualquer praticante fortuito ou dedicado — o ritmo e as figuras de linguagens básicas (a metáfora, o símile, a metonímia)— Aguiar consegue extrair imagens de cabal, quase aterradora, precisão, como um cirurgião operando na página, com um mínimo de recursos, mas resgatando relances e percepções moribundos para a vida.

Por falar em página, não há praticamente uma, nesse inspirado e invulgar A Idade das Chuvas, em que não encontremos o momento “vivo” que descortina a exatidão quase inacreditável do lirismo do seu autor. A pólvora do instante: afinal, “o lume do poema” está aí para ruminar a escuridão; uma bicicleta circula pelas ruas “até que uma esquina/engatilha o ciclista/ e dispara.

O lume do poema engatilha objetos, seres e palavras disparando significados que, por serem “líricos”, não são menos matematicamente (pelo menos, numa matemática insólita) definidos e definitivos: “este aquário tem um quê/de sonâmbulo noite adentro:/ os peixes varam as horas/ que não se pescam no tempo”. Se no dicionário, a palavra “entra nos teus brios/de represa”, ao ser manejada pelo exímio Dr. Aguiar, esse cirurgião de uma especialidade em que a perícia e a delicadeza têm que operar com os instrumentos do assombro tanto quanto com os desalinhos das contingências, vira, como o gato (o animal exato-fugidio eleito pelo nosso poeta, e como podia ser diferente?), “uma biblioteca esquiva de sinais: “De relance/qualquer realidade/é um folhear/inquietante”. Ou então: “dá para vestir/um poema/se uma imagem/souber o caminho/mais curto/entre a coisa em si/e o dizer espantado”.

Já me foi dito que resenhar livro de poema, costurando o texto com citações de versos esparsos, tal como estou fazendo, é um modo fácil e cômodo (quase como quem diz: preguiçoso), pouco revelador. Verdade seja dita, esta minha estratégia, neste caso específico, está mesmo fadada à inglória derrota, independentemente da validade ou não da reprimenda. Pois, embora seja também um supremo frasista, capaz de millôrmente nos dar todo o encanto da manipulação do senso comum (não constam de A Idade das Chuvas, mas servem de exemplo: “Não tenho medo de gastar meu latim. Já não é uma língua morta?”; Sempre que termino de ler um conto de fadas, ouço um farfalhar e um baque. Caiu mais um fruto de minha imaginação”), é até pecado extrair versos lapidares, pois eles são o que há de mais vistoso nessa disciplina da inteligência poética extrema, de forma que é o maior prazer é ver toda a preparação, em seu ruminar de escuridão, para o ponto de lume: “reter da palavra/ (mel embebido) /o sonho do/engenho://refinar-se”.

Uma poesia que espacializa seres e afetos: “As coisas crescem, quintais/e respiram verdes ou maduras”. A “voz varanda” da amada, quase um pátio de intenções. Até a memória se objetifica em espaço, no caminho mesmo do seu processo: “nasce/como um casulo que nos observa/ a pele da memória”. Pois é assim que somos, como ele também o é, uma “fábula de carne, espaço-ser (ou não-ser, ou um interstício entre ambos) que se debate na transitoriedade: “vivo com o tempo/como quem inaugura/ uma sombra: // essa que me acompanha/até a morte”.

Não saberia dizer a quantidade de seres e coisas que são redefinidos pelo justo cálculo verbal de Aguiar: fora os gatos (merecedores de passagens magníficas), caracóis, peixes, pirilampos, pássaros, o cupim; não menos, os gestos do amor e os jogos de sensualidade (mesmo que a cama seja “uma ilusão de náutica”): “esse gosto de amor que me repete/dentro de ti, que te penetra”.

Armazenei algo de mim/fora de mim”. Sim, o lirismo exato a nível quântico de A Idade das Chuvas mostra que tudo à nossa volta ainda está à espera de ser recodificado pelo poeta legítimo: “…o mundo lá fora/sempre  às vesperas/de ser novamente lido”.

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ANEXO

DAS IMPOSSIBILIDADES DARWINIANAS

Tubarão-martelo caçando macaco-prego.

(…)

Vovó dizia: cuidado com o mormaço. Eu não sabia que esse era o nome quando o chão ardia em febre.

(…)

a lâmpada envelhece

– quem sofre da vista
é a gente

(…)

PROMETEU

essa coisa louca
de tentar roubar o fogo
não é pro teu fígado

VER TAMBÉM AQUI NO BLOG (versão ampliada):

https://armonte.wordpress.com/2013/09/27/destaque-do-blog-a-idade-das-chuvas-de-andre-ricardo-aguiar/

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