MONTE DE LEITURAS: blog do Alfredo Monte

27/12/2016

Destaque do Blog: “Falso Trajeto”, de Fabio Weintraub

(Uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente, em A TRIBUNA de Santos em 27 de dezembro de 2016)

falso fabio

“Contraditório, e daí?/as pessoas mudam/os tempos mudam//não sou neurótico de guerra/pra ficar defendendo/territórios já anexados//o ostracismo cansa: se voltei ao mainstream/é porque estou vivo//tenho cinquenta anos/não vou posar de herói/quero que se foda/a coerência do criador/é a obra que importa//não vou bancar o mártir//o Brasil está desse jeito/por ser católico, culpado e de esquerda/vamos ser ricos, não coitados//não se se tem jabá: cala a boca/ouça a música (pessoas jurídicas não odeiam).

Há um mistério na poesia de Fabio Weintraub, que fica evidente na antologia FALSO TRAJETO (Editora Patuá): Ela parece opaca (muitos diriam: sem atrativos), misturando temas triviais, especulações metafisicas, poemas sobre partes do corpo (mãos, mão e perna), poemas sobre quedas e muitos poemas onde o “eu lírico” é quase um narrador. Há uma profusão de títulos já carregados de simbolismos, os quais parecem não ter muita relação com os versos do autor. E mais: são poemas sem imagens fortes, boas para citações, quase destituídos de figuras de linguagem.

No entanto, o leitor fica hipnotizado com cada poema, relendo e relendo, constatando o brilho profundo desse poeta ímpar.

Northrop Frye (um crítico genial) utilizava o termo sparagmós para descrever situações de despedaçamento, de fragmentação do indivíduo e sua busca de sentido e unidade. Veja-se o poema mão e perna: “tua perna adormeceu/o que ela sonha? //que salta a corda lançada/ao chão perto do patíbulo/que é cruzada sem calcinha/sobre o joelho macio/que molha a canela no sangue/antes de entrar no gesso/que despede o cachorro/atracado à panturrilha/que ajoelhada no milho/é deixada atrás da porta/que se arruína em trombose/e avacalha dois cortejos://de núpcias/de exéquias”.

Enfim, o trajeto existencial pode ser falso, errático e sujeito a acidentes, mesmo numa condição letárgica (Aliás, Fábio Weintraub é o grande lírico da letargia). Porém, o grande poeta paulista escreve certo por linhas tortas, onde o chão é o limite: “qual britadeira/bate a bengala/contra o chão/como se quisesse/vingar-se da infirmeza/dando ao pavimento/a irregularidade/em que/os demais/também/tropeçarão”.

 

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20/12/2016

SUGESTÕES DE LIVROS PARA O NATAL

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(Uma versão da resenha abaixo, foi publicado originalmente em A TRIBUNA de Santos em 20 de dezembro de 2016)

AS HORAS, Alex Andrade, Penalux: Personagem tentando enfrentar a solidão e o abandono, numa coletânea de contos que mostra a evolução do autor carioca;
LITURGIA DO FIM, Marilia Arnaud, Tordsilhas: Um confronto com o passado resulta num dos romances mais lindos dos últimos tempos, em linguagem e densidade;

PASSOS AO REDOR DO TEU CANTO, Maria Carolina de Bonis, Patuá: A poesia atual em pleno vigor, como, de resto todos os gêneros;

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A UTÓPICA TERESEVILE, André Jorge Catalan Casagrande, Garimpo: Romance que revela um episódio histórico praticamente desconhecido;

O INSTANTE-QUASE, Juliana Diniz, 7Letras: O melhor livro de contos de 2016, simplesmente brilhante;

ESTAÇÃO DAS CLÍNICAS, Iacyr Anderson Freitas, Escrituras: O leitor ri e chora com as mazelas do corpo em relação ao “espírito”;

ROTEIROS PARA UMA VIDA CURTA, Cristina Judar, Reformatório: Uma Alice pós-moderna nos levando para uma assustadora hiper-realidade;

A VISTA PARTICULAR, Ricardo Lísias, Alfaguara: A exuberância criativa do autor, transforma um artista “distraído” num arauto da sociedade do espetáculo. Genial;

GALVEIAS, José Luís Peixoto, Companhia de Letras: O grande escritor português e seu romance mais intrigante, sempre mostrando o “atraso” na vida rural de seu país;

AMORA, Natalia Borges Polesso, Não Editora: Premiada coletânea de contos que giram em torno do lesbianismo, porém vão muito além da temática;

OUTROS CANTOS, Maria Valéria Rezende, Alfaguara: Talvez a obra-prima da autora sobrepondo vários estágios da sua vida e do sertão;

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VÉSPERA DE LUA, Rosângela Vieira Rocha, Penalux: Romance de 1989, pioneiro de muitas práticas da atualidade;

O SOL VINHA DESCALÇO, Eduardo Rosal, Reformatório: O melhor livro de poemas de 2016;

COMO SE ESTIVÉSSEMOS em Palimpsesto de Putas, Elvira Vigna, Companhia de Letra: Simplesmente, o livro do ano, sem nenhuma chance para qualquer outro;

FALSO TRAJETO, Fabio Weintraub, Patuá: Uma poesia que parece opaca exigindo várias releituras, que a tornam fascinante;

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13/12/2016

OS NOVOS TRUQUES DA CARTOLA DE ALEX ANDRADE

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(Uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente no jornal A TRIBUNA de Santos em 13 de dezembro de 2016)

Em Amores, Truques e outras versões, Alex Andrade contava aventuras e uma procura incessante de amores baseado na quantidade e multiplicidade, ressaltando a mesma insatisfação. Gostei muito da coletânea, mas fiquei preocupado de que ele ficasse restrito ao universo homoafetivo.

AS HORAS (Penalux), então, aparece para dissipar qualquer dúvida sobre o seu talento, pois é um livro que vai em diversas direções. Lendo com atenção percebe-se uma linha contínua entre os contos: dessa vez, são casais nos quais um elemento é mais fraco e vulnerável que o outro; são homens e mulheres à espera do amado (a) chegando às raias da insanidade, da necrofilia mesmo uma velhinha quase octogenária ainda sonha em viver um grande amor: “A velha abriu a boca em xingamento e começou a chorar. E era um choro bobo, manso e inútil. Chorava feito criança. E fazia algum tempo que não chorava assim, e lembrou-se de que há muito tempo não fazia quase nada, não tinha sequer vontade de fazer alguma coisa. E percebeu que o tempo passara depressa. Mas ocorre que precisava urgentemente acreditar que poderia fazer tudo o que não pôde. E que mesmo com a idade que tinha necessitava perigosamente amar”. (“Tá vendo o dia lá fora?”).

Emblemático na coletânea é o seu texto mais longo e ambicioso “Eu não amava Rolling Stones à toa”, onde o abandono por parti da esposa espelha o da mãe do protagonista num fluxo incessante de nostalgia, alucinação, mal-estar físico e solicitações da realidade (a síndica do prédio). No momento brilhante!

Outro ponto alto é Poema, no qual a protagonista que dá o título é uma descendente legítima dá Macabea de Clarice Lispector (mas também me lembrou o mundo de José Luiz Peixoto, onde o personagem-título se chamava Livro) sem que o autor perca sua marca pessoal, e talvez tenha escrito um texto mais bonito de sua carreira até agora.

O único senão a pontar em AS HORAS são escorregadas vez em quando num tom de autoajuda ou de filosofia de botequim: por exemplo: “A velha trave testemunha de tantos gols, o grito dos meninos, Ruth cantando e arrastando a barra da saía ou do vestido, o que fosse, o menino que jamais conheceu, todas essas memórias, a solidão de ser quem jamais sonhou, o tempo, a incerteza de saber se seria infeliz ou se ainda poderia sonhar. E não há nada que se possa fazer. Eis a vida que escorre como se as comportas estivessem abertas para a água escapar. Transbordando tudo” (“Tempo”). Estivesse na primeira pessoa, seria perdoável e coerente, jamais na terceira pessoa.

Ainda assim, considero Alex Andrade um autor já plenamente maduro. Espero novos truques de sua cartola.

 

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