I
A coleção “Melhores Contos” da editora Global vem possibilitando a redescoberta de alguns autores. É o caso de João Alphonsus (1901-1944), com quinze textos selecionado por seu sobrinho, Afonso Henriques Neto, no centenário de seu nascimento.
Amigo de Carlos Drummond de Andrade, com quem deu impulso ao modernismo mineiro, ao fundar “A Revista” em 1925, Alphonsus andava quase que totalmente esquecido. A leitura dos seus “Melhores Contos” revela, porém, um grandíssimo escritor.
Perturbador também, pois, ao retratar a vida besta que se tem de suportar, seja a das “cidadezinhas quaisquer” do interior de Minas, seja em Belo Horizonte, seja até no sul da Bahia (como em Pesca da Baleia), a angústia de ser uma “vidinha entre outras vidinhas” pode ser “solucionada”, por assim dizer, com suicídio (como no já referido Pesca da Baleia, Uma história de Judas ou em Foguetes ao longe), com assassinato coletivo (em O mensageiro) ou individual (em Oxianureto de Mercúrio), com perversidade maníaca (a mutilação ritual de um caracoleiro em Caracol) ou monstruosa (o que o dono faz com seu gato em Sardanapalo); ou ainda com aceitação resignada (como em O guarda-freios, Eis a noite e O imemorial apelo).
A visão do mundo de João Alphonsus é tão poderosa e o seu texto tão cativante que não incomodam nem mesmo certos cacoetes do Modernismo (perceptíveis particularmente em O homem na sombra ou a Sombra no homem, o conto mais irregular da coletânea), que poderiam deixar sua obra datada, interessante apenas sob o ponto de vista historiográfico.
E no caso específico da seleção de Afonso Henriques Neto, o leitor acompanha uma verdadeira evolução criadora. Os três contos selecionados de GALINHA CEGA (1931) já são muito bons. O conto-título, audacioso para a época, é a história de uma galinha que perde a visão (“era só ela, pobre, indefesa galinha, dentro do infinitamente preto, perdida dentro do inexistente, pois que o mundo desaparecera e só ela existia inexplicavelmente dentro da sombra do nada”), antecipando a emancipação literária dos bichos que Guimarães Rosa, Clarice Lispector e Lygia Fagundes Telles promoveriam na nossa ficção (esse aspecto aparece também no belo Mansinho, no amor de um padre de “região humilde e paupérrima” por seu burro).
Os cinco contos retirados de PESCA DA BALEIA (1941) são melhores ainda. Destaca-se, claro, o terrível Sardanapalo, que começa com um clima ameno, numa espécie de sátira aos pruridos parnasiano- simbolistas das primeiras décadas do século XX (“naquele tempo em que me tinha na conta de poeta e levava declaradamente uma vida de intelectual. Baudelaire e os gatos! Me convencera de que era espiritual ter um desses bichos no meu quarto de estudante…”); depois, ao assistir ao suplício a que o seu gato submete um rato, o narrador percebe que “a crueldade despertada em mim não estava satisfeita” e comete um dos atos mais horríveis já registrados pela literatura e que não se tem vontade de reler, embora não saia da cabeça por muito tempo. João Alphonsus consegue, aqui, um ponto-limite na apreensão da capacidade (quase diria a vocação) do ser humano para a crueldade, quando a ocasião se apresenta.
Outro destaque é O guarda-freios, no qual o narrador, já resignado com a sorte que lhe coube, uma espécie de não-ser na vida (“agora quase que vivo de observações e recordações”), durante uma viagem fica fascinado com o “galã ferroviário e sertanejo”, o guarda-freios conquistador e galante, sabendo posteriormente da sua morte (“Facadas. Uma questão de rabo de saio. Não tive a mínima surpresa: um homem como aquele não podia viver muito.”). Há um travo de inveja indisfarçável (além do latente homoerotismo) nessa observação de um “condenado a viver”.
Se os contos de GALINHA CEGA são muito bons e os de PESCA DA BALEIA melhores, entre os sete impecáveis escolhidos de EIS A NOITE (1943) há pelo menos quatro obras-primas, e é difícil dizer qual a mais admirável.
Seria, por exemplo, Foguetes ao longe? Quando Maria aceita casar com Eduardo e viver numa cidadezinha das montanhas, ele avisa: “é preciso ter paciência no começo, naquela vidinha”, e ela replica: “Que vidinha, se a vida vai ser nossa! Mesmo se fosse para ficar lá a vida inteira”… Para depois sentir-se num “pesadelo de cárcere perto das nuvens” e praticamente forçar o marido ao suicídio quando o confronta com seu desespero.
Ou seria O mensageiro? Na monótona vida da pensão de dona Antônia, em Belo Horizonte, Felisberto tenta estancar “sua insatisfação de errático, na ânsia de remediar o que fosse remediável, naquelas existências reunidas em torno de dona Antônia, ânsia que já lhe acontecera em outras oportunidades e que acabava decaindo numa prostração desiludida, numa necessidade de mudar de ambiente, de espetáculo…” Tentando dar um final feliz a esse espetáculo de vidinhas, Felisberto opta pelo assassinato de todos na pensão, após um regabofe.
Ou seria Caracol? Péricles é preterido na escolha para chefe de seção e, ao fazer uma visita ao desconhecido nomeado em seu lugar, recebe dele uma muda de trepadeira, e esta como que invade a sua casa e coloca pelo avesso seus valores e expectativas de vida.
Ou seria então Ordem final? O solteirão e baixinho Joaquim, obcecado—de forma maníaca—a determinar como os homens baixinhos dominaram a história, recolhe a viúva de um amigo e seus diversos filhos, que se encontram na miséria, mas impõe um regime repressivo de silêncio e disciplina, numa “casa verdadeiramente isolada no meio da cidade”.
E embora o conto, como um todo, não seja tão brilhante quanto os quatro acima citados, como esquecer o início de A noite do Conselheiro, com sua descrição mortífera: “…os livros se enfileiravam sem perplexidade alguma… todos de semelhante aspecto e colocados em ordem de tamanho, com um certo cuidado para que não se lhes notasse a diferença da estatura, igualdade e fraternidade de numerosíssimas obras em que o espírito humano se tem debatido, contradito, construído, derruído, esperado, desesperado. Ali, no marasmo luxuoso…livros de todas as línguas e de todas as épocas se reuniam identicamente revestidos, como se o objetivo fosse mesmo igualar, fraternizar, nivelar e, por esse meio, neutralizar a todos eles, para se adquirir a tranquilidade… a certeza de que nunca desceriam das estantes para fazer mal ao pobre ente humano”.
Uma vez por mês, um criado “pulverizava longamente por cima dos volumes um líquido mata-traças especial, perfumado e penetrante, que talvez ao dono parecesse mais penetrante do que muitos dos espíritos ali encerrados”.
(a resenha acima foi publicada em A TRIBUNA de Santos, em 21 de outubro de 2001)
II
Além de João Alphonsus, dois outros mineiros da primeira metade do século XX ressurgiram das sombras do olvido nestes últimos tempos: Godofredo Rangel & Cyro dos Anjos.
O primeiro romance de Rangel, Vida Ociosa (1920) foi relançado numa co-edição da Casa da Palavra com a Fundação Rui Barbosa, e na surpreendente loteria dos livros para o Vestibular foi incluído O amanuense Belmiro (1937). Se é correta a frase de Camus, “o romance é um exercício da inteligência nostálgica ou revoltada”, ambos se alinham no escaninho da “sensibilidade nostálgica”.
III
O narrador de VIDA OCIOSA é um juiz quarentão e solteirão que atua numa cidadezinha do interior de Minas, durante a Primeira Guerra, e que foge do tédio que sente pela sua profissão na expectativa (inexplicável, para o leitor moderno) de passar horas numa fazenda decadente (“é um cadáver de casa… com esse ar de morte e abandono”), com um casal velhíssimo e paupérrimo (Próspero e Marciana) e seu filho esquisito (Américo). Noventa por cento da narrativa é dedicada a mostrar essas horas ociosas, que servem de fuga da “atmosfera de petições e arrazoados” e que compensam uma vocação de escritor que parece não se realizar: “Tenho viajado muito; mas em tanto correr terras não colhi uma anedota, uma observação rara”.
Além disso, ele não parece gostar muito de si, considera seu passado “um mau romance truncado”, um “rol de misérias cujo cruciar, quando o evoco, lateja sempre atual. Não se que ímã me constitui o núcleo da alma, que só atrai,limalha imprestável, impressões sabendo a fel e pranto”.
Uma razão para o interesse que poderia suscitar Vida Ociosa em 2001, que não fosse ver nele um par brasileiro para as Confissões de Lúcio, é dada por Enéias Athanázio: “Lugares que os tempos de progresso desfiguraram irremediavelmente estão fixadas para sempre nos quadros coloridos que Rangel pintou com tanta sensibilidade”. Outra razão é o estilo impecável e “trabalhado” que lhe imputam.
Mas nenhuma dessas razões seduz o leitor. Vida Ociosa desperta bocejos e provoca enfado. Só uma certa tendência atual de redescobrir “mestres” esquecidos e algumas “obras-primas” obsoletas é que explica o seu dispensável resgate (que talvez sirva também para quem , como é o meu caso, goste muito da obra de Autran Dourado, que tem em Rangel uma influência decisiva, e que queira saber em que bases se constitui essa ascendência sobre o grande autor de Ópera dos Mortos. Estamos, aqui, longe do vigor e força de João Alphonsus. A impressão que se tem é que o estilo de Godofredo Rangel já era antigo quando ele escrevia. Nã é ruim, apenas anacrônico em demasia.
IV
O AMANUENSE BELMIRO, por sua vez, resistiu bem ao tempo. Belmiro Borba é o pequeno burocrata em Belo Horizonte que começa a escrever um diário para tentar resgatar seu passado na cidadezinha de Vila Caraíbas: “Minha vida parou, e desde muito me volto para o passado, perseguindo imagens fugitivas de um tempo que se foi”.
Belmiro se sente o fruto decadente da sua gente. É como se houvesse um processo de desvirilização, muito presente em vários autores dessa época. “Sou um fruto chocho do ramo vigoroso dos Borbas, que teve seu brilho rural”.Até seus interesses românticos são vagos, indefinidos, despersonificando a suposta amada e lançando-a no território do mito irrealizável, como uma tal Carmélia, que ele conhece num bloco de Carnaval.
Até aí, o livro de Cyro dos Anjos não se distinguiria de diversos outros. O charme inusitado do romance é que, ao embarcar na aventura do registro diário, aos poucos o quotidiano presente vai se impondo a Belmiro e, apesar de tudo, ele “vive”, sua vida não parou de fato, embora seja aquela vida “besta” que domina a ficção e a poesia do modernismo mineiro.
A grande arte de O amanuense Belmiro é conseguir dar encanto a essa vida besta, através de um dos estilos mais saborosos da nossa ficção às vezes tão sensaborosa. Apesar do sentimento de vida estagnada (que persiste até o final), é um grande exercício de leveza e um registro brilhante da feição urbana bem provinciana do Brasil na década de 1930.
Acompanhamos a inadaptação à cidade das suas irmãs agregadas, Emília e Francisquinha, assim como os embates na roda de amigos, que aos poucos dissolve-se por diferenças políticas e intelectuais, além das picuinhas pessoais que antes eram suavizadas pelas rodadas de chope: “as discussões vêm azedando nossa pequena roda e vejo que ela não tardará a dissolver-se, pois há forças de repulsão, mais do que afinidades, entre estes inquietos companheiros”.
Destacam-se entre os “inquietos companheiros”: Redelvim, preso durante a repressão policial à Intentona Comunista de 1935 (episódio que ganha um inesperado espaço no relato); Jandira, que leva a frustrante existência da mulher intelectualizada, que não consegue se sentir à vontade nem com seus amigos porque há sempre a sombra do assédio (“Da roda, fui o único que não tentou conquistá-la. Já lhe disse que, infelizmente, nisto não andou virtude, e sim timidez. Dias houve em que ela me perturbava profundamente, e por pouco não lhe teria dito as palavras do desejo, que são as mesmas em todas as línguas e em todas as épocas”), ainda mais num meio tão reprimido e limitado; Silviano, o intelectual que despreza as massas e em cujo diário Belmiro lê um diagnóstico para seu problema vital: “O problema: –O eterno, o Fáustico—O amor (vida) estrangulado pelo conhecimento”; Glicério, companheiro de seção de Belmiro, que se interessa pela mesma moça e o espicaça com notícias dela (inclusive seu casamento marcado com outro).
V
Vida Ociosa & O amanuense Belmiro (assim como certos contos de João Alphonsus) ajudam a entender como o espectro da carreira burocrática perseguiu o intelectual brasileiro e é um dos ritos de passagem do rural para o urbano no processo histórico brasileiro. Como já dizia o poeta: “Tive ouro, tive gado, tive fazendas/ Hoje sou funcionário público”.
(a resenha acima foi publicada em A TRIBUNA de Santos, em 30 de outubro de 2001)