MONTE DE LEITURAS: blog do Alfredo Monte

31/08/2013

TRÊS MINEIROS e a “sensibilidade nostálgica” (João Alphonsus, Godofredo Rangel, Cyro dos Anjos)

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I

A coleção “Melhores Contos” da editora Global vem possibilitando a redescoberta de alguns autores. É o caso de João Alphonsus (1901-1944), com quinze textos selecionado por seu sobrinho, Afonso Henriques Neto, no centenário de seu nascimento.

Amigo de Carlos Drummond de Andrade, com quem deu impulso ao modernismo mineiro, ao fundar “A Revista” em 1925, Alphonsus andava quase que totalmente esquecido. A leitura dos seus “Melhores Contos” revela, porém, um grandíssimo escritor.

Perturbador também, pois, ao retratar a vida besta que se tem de suportar, seja a das “cidadezinhas quaisquer” do interior de Minas, seja em Belo Horizonte, seja até no sul da Bahia (como em Pesca da Baleia), a angústia de ser uma “vidinha entre outras vidinhas” pode ser “solucionada”, por assim dizer, com suicídio (como no já referido Pesca da Baleia, Uma história de Judas ou em Foguetes ao longe), com assassinato coletivo (em O mensageiro) ou individual (em Oxianureto de Mercúrio), com perversidade maníaca (a mutilação ritual de um caracoleiro em Caracol) ou monstruosa (o que o dono faz com seu gato em Sardanapalo); ou ainda com aceitação resignada (como em O guarda-freios, Eis a noite e O imemorial apelo).

A visão do mundo de João Alphonsus é tão poderosa e o seu texto tão cativante que não incomodam nem mesmo certos cacoetes do Modernismo (perceptíveis particularmente em O homem na sombra ou a Sombra no homem, o conto mais irregular da coletânea), que poderiam deixar sua obra datada, interessante apenas sob o ponto de vista historiográfico.

E no caso específico da seleção de Afonso Henriques Neto, o leitor acompanha uma verdadeira evolução criadora. Os três contos selecionados de GALINHA CEGA (1931) já são muito bons. O conto-título, audacioso para a época, é a história de uma galinha que perde a visão (“era só ela, pobre, indefesa galinha, dentro do infinitamente preto, perdida dentro do inexistente, pois que o mundo desaparecera e só ela existia inexplicavelmente dentro da sombra do nada”), antecipando a emancipação literária dos bichos que Guimarães Rosa, Clarice Lispector e Lygia Fagundes Telles promoveriam na nossa ficção (esse aspecto aparece também no belo Mansinho, no amor de um padre de “região humilde e paupérrima” por seu burro).

Os cinco contos retirados de PESCA DA BALEIA (1941) são melhores ainda. Destaca-se, claro, o terrível Sardanapalo, que começa com um clima ameno, numa espécie de sátira aos pruridos parnasiano- simbolistas das primeiras décadas do século XX (“naquele tempo em que me tinha na conta de poeta e levava declaradamente uma vida de intelectual. Baudelaire e os gatos! Me convencera de que era espiritual ter um desses bichos no meu quarto de estudante…”); depois, ao assistir ao suplício a que o seu gato submete um rato, o narrador percebe que “a crueldade despertada em mim não estava satisfeita” e comete um dos atos mais horríveis já registrados pela literatura e que não se tem vontade de reler, embora não saia da cabeça por muito tempo. João Alphonsus consegue, aqui, um ponto-limite na apreensão da capacidade (quase diria a vocação) do ser humano para a crueldade, quando a ocasião se apresenta.

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Outro destaque é O guarda-freios, no qual o narrador, já resignado com a sorte que lhe coube, uma espécie de não-ser na vida (“agora quase que vivo de observações e recordações”), durante uma viagem fica fascinado com o “galã ferroviário e sertanejo”, o guarda-freios conquistador e galante, sabendo posteriormente da sua morte (“Facadas. Uma questão de rabo de saio. Não tive a mínima surpresa: um homem como aquele não podia viver muito.”). Há um travo de inveja indisfarçável (além do latente homoerotismo) nessa observação de um “condenado a viver”.

Se os contos de GALINHA CEGA são muito bons e os de PESCA DA BALEIA melhores, entre os sete impecáveis escolhidos de EIS A NOITE (1943) há pelo menos quatro obras-primas, e é difícil dizer qual a mais admirável.

Seria, por exemplo, Foguetes ao longe? Quando Maria aceita casar com Eduardo e viver numa cidadezinha das montanhas, ele avisa: “é preciso ter paciência no começo, naquela vidinha”, e ela replica: “Que vidinha, se a vida vai ser nossa! Mesmo se fosse para ficar lá a vida inteira”… Para depois sentir-se num “pesadelo de cárcere perto das nuvens” e praticamente forçar o marido ao suicídio quando o confronta com seu desespero.

Ou seria O mensageiro? Na monótona vida da pensão de dona Antônia, em Belo Horizonte, Felisberto tenta estancar “sua insatisfação de errático, na ânsia de remediar o que fosse remediável, naquelas existências reunidas em torno de dona Antônia, ânsia que já lhe acontecera em outras oportunidades e que acabava decaindo numa prostração desiludida, numa necessidade de mudar de ambiente, de espetáculo…” Tentando dar um final feliz a esse espetáculo de vidinhas, Felisberto opta pelo assassinato de todos na pensão, após um regabofe.

Ou seria Caracol? Péricles é preterido na escolha para chefe de seção e, ao fazer uma visita ao desconhecido nomeado em seu lugar, recebe dele uma muda de trepadeira, e esta como que invade a sua casa e coloca pelo avesso seus valores e expectativas de vida.

Ou seria então Ordem final? O solteirão e baixinho Joaquim, obcecado—de forma maníaca—a determinar como os homens baixinhos dominaram a história, recolhe a viúva de um amigo e seus diversos filhos, que se encontram na miséria, mas impõe um regime repressivo de silêncio e disciplina, numa “casa verdadeiramente isolada no meio da cidade”.

E embora o conto, como um todo, não seja tão brilhante quanto os quatro acima citados, como esquecer o início de A noite do Conselheiro, com sua descrição mortífera: “…os livros se enfileiravam sem perplexidade alguma… todos de semelhante aspecto e colocados em ordem de tamanho, com um certo cuidado para que não se lhes notasse a diferença da estatura, igualdade e fraternidade de numerosíssimas obras em que o espírito humano se tem debatido, contradito, construído, derruído, esperado, desesperado. Ali, no marasmo luxuoso…livros de todas as línguas e de todas as épocas se reuniam identicamente revestidos, como se o objetivo fosse mesmo igualar, fraternizar, nivelar e, por esse meio, neutralizar a todos eles, para se adquirir a tranquilidade… a certeza de que nunca desceriam das estantes para fazer mal ao pobre ente humano”.

Uma vez por mês, um criado “pulverizava longamente por cima dos volumes um líquido mata-traças especial, perfumado e penetrante, que talvez ao dono parecesse mais penetrante do que muitos dos espíritos ali encerrados”.

(a resenha acima foi publicada em A TRIBUNA de Santos, em 21 de outubro de 2001)

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II

Além de João Alphonsus, dois outros mineiros da primeira metade do século XX ressurgiram das sombras do olvido nestes últimos tempos: Godofredo Rangel & Cyro dos Anjos.

O primeiro romance de Rangel, Vida Ociosa (1920) foi relançado numa co-edição da Casa da Palavra com a Fundação Rui Barbosa, e na surpreendente loteria dos livros para o Vestibular foi incluído O amanuense Belmiro (1937). Se é correta a frase de Camus, “o romance é um exercício da inteligência nostálgica ou revoltada”, ambos se alinham no escaninho da “sensibilidade nostálgica”.

III

O narrador de VIDA OCIOSA é um juiz quarentão e solteirão que atua numa cidadezinha do interior de Minas, durante a Primeira Guerra, e que foge do tédio que sente pela sua profissão na expectativa (inexplicável, para o leitor moderno) de passar horas numa fazenda decadente (“é um cadáver de casa… com esse ar de morte e abandono”), com um casal velhíssimo e paupérrimo (Próspero e Marciana) e seu filho esquisito (Américo). Noventa por cento da narrativa é dedicada a mostrar essas horas ociosas, que servem de fuga da “atmosfera de petições e arrazoados” e que compensam uma vocação de escritor que parece não se realizar: “Tenho viajado muito; mas em tanto correr terras não colhi uma anedota, uma observação rara”.

Além disso, ele não parece gostar muito de si, considera seu passado “um mau romance truncado”, um “rol de misérias cujo cruciar, quando o evoco, lateja sempre atual. Não se que ímã me constitui o núcleo da alma, que só atrai,limalha imprestável, impressões sabendo a fel e pranto”.

Uma razão para o interesse que poderia suscitar Vida Ociosa em 2001, que não fosse ver nele um par brasileiro para as Confissões de Lúcio, é dada por Enéias Athanázio: “Lugares que os tempos de progresso desfiguraram irremediavelmente estão fixadas para sempre nos quadros coloridos que Rangel pintou com tanta sensibilidade”. Outra razão é o estilo impecável e “trabalhado” que lhe imputam.

Mas nenhuma dessas razões seduz o leitor. Vida Ociosa desperta bocejos e provoca enfado. Só uma certa tendência atual de redescobrir “mestres” esquecidos e algumas “obras-primas” obsoletas é que explica o seu dispensável resgate (que talvez sirva também para quem , como é o meu caso,  goste muito da obra de Autran Dourado, que tem em Rangel uma influência decisiva, e que queira saber em que bases se constitui essa ascendência sobre o grande autor de Ópera dos Mortos. Estamos, aqui, longe do vigor e força de João Alphonsus. A impressão que se tem é que o estilo de  Godofredo Rangel já era antigo quando ele escrevia. Nã é ruim, apenas anacrônico em demasia.

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IV

O AMANUENSE BELMIRO, por sua vez, resistiu bem ao tempo. Belmiro Borba é o pequeno burocrata em Belo Horizonte que começa a escrever um diário para tentar resgatar seu passado na cidadezinha de Vila Caraíbas: “Minha vida parou, e desde muito me volto para o passado, perseguindo imagens fugitivas de um tempo que se foi”.

Belmiro se sente o fruto decadente da sua gente. É como se houvesse um processo de desvirilização, muito presente em vários autores dessa época. “Sou um fruto chocho do ramo vigoroso dos Borbas, que teve seu brilho rural”.Até seus interesses românticos são vagos, indefinidos, despersonificando a suposta amada e lançando-a no território do mito irrealizável, como uma tal Carmélia, que ele conhece num bloco de Carnaval.

Até aí, o livro de Cyro dos Anjos não se distinguiria de diversos outros. O charme inusitado do romance é que, ao embarcar na aventura do registro diário, aos poucos o quotidiano presente vai se impondo a Belmiro e, apesar de tudo, ele “vive”, sua vida não parou de fato, embora seja aquela vida “besta” que domina a ficção e a poesia do modernismo mineiro.

A grande arte de O amanuense Belmiro é conseguir dar encanto a essa vida besta, através de um dos estilos mais saborosos da nossa ficção às vezes tão sensaborosa. Apesar do sentimento de vida estagnada (que persiste até o final), é um grande exercício de leveza e um registro brilhante da feição urbana bem provinciana do Brasil na década de 1930.

Acompanhamos a inadaptação à cidade das suas irmãs agregadas, Emília e Francisquinha, assim como os embates na roda de amigos, que aos poucos dissolve-se por diferenças políticas e intelectuais, além das picuinhas pessoais que antes eram suavizadas pelas rodadas de chope: “as discussões vêm azedando nossa pequena roda e vejo que ela não tardará a dissolver-se, pois há forças de repulsão, mais do que afinidades, entre estes inquietos companheiros”.

Destacam-se entre os “inquietos companheiros”: Redelvim, preso durante a repressão policial à Intentona Comunista de 1935 (episódio que ganha um inesperado espaço no relato); Jandira, que leva a frustrante existência da mulher intelectualizada, que não consegue se sentir à vontade nem com seus amigos porque há sempre a sombra do assédio (“Da roda, fui o único que não tentou conquistá-la. Já lhe disse que, infelizmente, nisto não andou virtude, e sim timidez. Dias houve em que ela me perturbava profundamente, e por pouco não lhe teria dito as palavras do desejo, que são as mesmas em todas as línguas e em todas as épocas”), ainda mais num meio tão reprimido e limitado; Silviano, o intelectual que despreza as massas e em cujo diário Belmiro lê um diagnóstico para seu problema vital: “O problema: –O eterno, o Fáustico—O amor (vida) estrangulado pelo conhecimento”; Glicério, companheiro de seção de Belmiro, que se interessa pela mesma moça e o espicaça com notícias dela (inclusive seu casamento marcado com outro).

V

Vida Ociosa & O amanuense Belmiro (assim como certos contos de João Alphonsus) ajudam a entender como o espectro da carreira burocrática perseguiu o intelectual brasileiro e é um dos ritos de passagem do rural para o urbano no processo histórico brasileiro. Como já dizia o poeta: “Tive ouro, tive gado, tive fazendas/ Hoje sou funcionário público”.

(a resenha acima foi publicada em A TRIBUNA de Santos, em 30 de outubro de 2001)

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29/08/2013

” A Ladeira da Memória” merecia o esquecimento?

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(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 14 de outubro de 2003)

A editora Planeta lançou em capa dura um famoso romance brasileiro há muito (desde 1977, salvo engano) fora de circulação:  A LADEIRA DA MEMÓRIA.Na época de sua publicação original (1950), José Geraldo Vieira (1897-1977) era bastante conhecido como romancista, além de ser um dos nossos mais solicitados e prestigiados tradutores. A primeira edição,  pela Coleção Saraiva, foi —em termos  de tiragem (45 mil exemplares)— um acontecimento editorial.

Sabe-se que não poucas vezes é injusto o esquecimento de um autor ou de uma obra. No caso do romance em questão, talvez tenha sido um caso de seleção natural. A LADEIRA DA MEMÓRIA é uma leitura intragável. Eu já tinha sido derrotado inúmeras vezes por outro catatau de Vieira, A quadragésima porta (1943). Nem reunindo todas as forças como leitor aplicado, consegui chegar ao fim daquele que é considerado “o mais cosmopolita dos grandes romances da língua portuguesa”!

A história de amor entre o médico radiologista Jorge e Renata, sua amada casada (ao tirar uma radiografia com ele, ela descobre estar tuberculosa) não é tão ilegível, deu para levar até a última página, mas foi um osso duro de roer. Vieira tinha material, tinha uma mirada de escritor legítimo sobre a vida, tinha sobretudo uma ambição romanesca invejável. A maneira como ele estruturou a narrativa, utilizando o título de forma literal geograficamente (a ladeira com esse nome em São Paulo) e simbólica (pois o livro é um exercício de memória por parte de Jorge) é bastante sofisticado. O trabalho com os tempos verbais (alternância do presente com o pretérito tanto perfeito quanto imperfeito) é requintado. O que aconteceu então?

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O que estraga A LADEIRA DA MEMÓRIA é que suas personagens falam entre si numa linguagem inaceitável, ora pernóstica e chatíssima, ora de forma cafona e subliterária. Já no início, o leitor tem de aturar o insuportável tio do narrador  fazendo longas e pedantíssimas  reflexões e lançando-se num indigesto “apólogo”, utilizando a dupla feição da ladeira-título, que servirá de mote ao narrador e que quase faz com que se desista da leitura. Mas não, pensei com meus botões, se estaquei frente à quadragésima porta, não hei de temer subir a ladeira.

Depois, entra em cena o grande amor de Jorge, a falecida Renata, que se revela tão acaciana e cacete quanto tio Rangel. É a mais consumada “preciosa ridícula” da ficção brasileira. E é um alívio quando sai de cena. Infelizmente, permanece no palco a tia dela e ainda surge outra chata de galocha como candidata ao coração do médico (no penúltimo capítulo do romance, o qual foi bastante modificado com relação ao texto original de 1950;  Vieira não só alterou quase tudo, como introduziu anacronismos como referências a acontecimentos posteriores ao ano da edição princeps e aos anos em que transcorre a trama, basicamente os da Segunda Guerra, tornando toda a parte final ainda mais estranha e inconvincente)[1].

Só para o leitor ter uma ideia do tipo de linguagem utilizada no livro, basta recolher dois exemplos de Tia Noêmia. Ao saber da relação adúltera da sobrinha: “Se  tal caso existe deve ser sublime, porque eu, dr. Jorge, eu sei que criatura, que alma é Renata” !!!!!???? Sobre a doença: “Eu não sei se ela tem uma caverna em formação ou esvaziada no pulmão; lá isso sabe o senhor que é médico. Mas que tem um rombo na alma, isso eu sei”!!!!!!!!!?????

É uma pena que o rombo na alma de Renata seja tão irritante que acabe ofuscando aspectos periféricos mais interessantes, como a descrição da Alta Paulista (a cidade de Marília aparece com o nome de Hacrera) e seu rápido desenvolvimentos urbano nos anos 1940, contrastada ao lirismo com que é retratado o Rio de Janeiro, cenário central do amor do casal; ou ainda, a desconfiança com relação aos japoneses durante o período pós-Pearl Harbor.

Existem escritores de livros difíceis e no entanto paradoxalmente prazerosos (Guimarães Rosa, Cornélio Penna, Osman Lins, a primeira Clarice Lispector); e outros, que são difíceis porque obrigam a leituras laboriosas em que se sente mais o esforço do que o talento (Mário de Andrade, Lúcio Cardoso, Nélida Piñon, Antonio Callado). A conclusão que se pode tirar é que, sendo uma leitura do segundo tipo, A LADEIRA DA MEMÓRIA permanecerá como um desses livros frustrantes, porém nunca inteiramente descartáveis e dignos do completo esquecimento.


[1]  Nota de 2013:  Naquele momento da leitura, me dei ao trabalho de comparar três edições: 1) a da Planeta; 2) a original, da Coleção Saraiva; 3) a do Círculo do Livro, cujo texto foi preparado pelo autor no final da vida, e que ficou como a “versão final”.

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27/08/2013

Destaque do Blog: DIGAM A SATÃ QUE O RECADO FOI ENTENDIDO, de Daniel Pellizzari

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(uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 27 de agosto de 2013)

Para o leitor que, como eu, tenha forte prevenção contra a moda recente de projetos editoriais nos quais um escritor passa algum tempo em um determinado lugar do nosso mundo dito “globalizado”, publicando um livro a partir dessa fugaz experiência, Digam a Satã que o recado foi entendido (que faz parte da série Amores Expressos—a Daniel Pellizzari coube Dublin) revela-se uma exceção de peso.

A capital irlandesa que aparece no romance se vale, em certa medida, das imagens tradicionais e estereotipadas que circulam sobre ela (os habitantes briguentos, beberrões, chauvinistas e extravagantes; os “dublinenses” como personagens joyceanos[1]) e, mais ainda, de núcleos dramáticos bizarros e farsescos que reviram aquelas imagens-clichês pelo avesso e fornecem uma legítima atmosfera de humanidade, para além da “ambientação”, empurrando para um papel decididamente secundário a questão da “localização espacial”.

O que está em cena é a Ficção, no que tem de melhor e mais exuberante. Não sei como Pellizzari conseguiu, talvez seja mesmo o caso de nos rendermos ao que um talento tem de único, ainda que num trabalho de encomenda, e que lhe permite brilhar onde outros participantes do mesmo projeto sucumbiram ao falso, modernoso e literariamente pobre, utilizando um material que se prestava totalmente  ao pastiche, e que (sem perder as possibilidades de humor e paródia) ele trabalha de uma forma tão inteligente.

São muitos os narradores dessa Dublin pellizzariana. Há os que exploram a credulidade turística, oferecendo passeios enganosos a partes mal assombradas da cidade, como o maior candidato a protagonista na estória, Magnus Factor, homem “de lugar nenhum”[2] (“Eu teria voltado para casa, se soubesse onde ficava. Mas como eu não tinha mais certeza sobre coisa nenhuma, resolvi ficar parado no mesmo lugar para ver se minha casa acabava me encontrando”), envolvido com duas mulheres: Stefanija, eslovena escorregadia, e a nativa Laura, que faz parte de um grupo universitário de “terroristas poéticos”; ou como o maravilhoso personagem que é o dono do negócio, Barry O´Shaugnessy (sua intervenção como narrador é um dos pontos altos do relato), cujo “tom”, um achado de mestre, é o do cara tosco arquetípico que pode viver em qualquer rincão do globo: politicamente incorreto, trata afrontosamente outros membros da trupe turística e mora de favor no sobrado de Stuart, este último perigosamente enredado com traficantes gregos, vivendo do dinheiro que uma tia mantém muito bem escondido.

E há aqueles como a pré-adolescente Patricia (a narrativa nos reserva surpresas sobre ela), que foge de casa após a morte de um avô pra lá de exótico e acaba associando-se aos seguidores de Demetrius Vindaloo, guru do culto dos Ofídios Gnósticos, inimigos da imperialista Confederação Galáctica, cujo domínio sobre nosso planeta seria quase absoluto não fossem esses iluminados, que esperam a Arrebatação a partir do sacrifício de uma virgem (no caso, a própria Patricia). Parece ridículo? Não, não é, em razão da atordoante capacidade de Pellizzari em entrar na mente e no discurso peculiar de cada um de seus narradores, de forma que eles soam críveis dentro da sua própria lógica de percepção (“Essas pessoas acreditam mesmo nessa história toda, e eu também quero acreditar pelo menos um pouco. Ou pelo menos deixar que exista essa possibilidade. Estou falando da chance de eu talvez decidir acreditar nessas coisas, não de elas serem mesmo verdade).[3]

E há também um capítulo composto pelo diálogo entre dois membros—Rod e Marcel—dos  “terroristas poéticos”, com marcação em 3ª. pessoa.

Dizer que um livro é muito divertido sempre pode dar ensejo ao  equívoco comum que coloca a diversão como fator preponderante de uma obra menor. Eu ri muito ao longo da leitura de Digam a Satã que o recado foi entendido porque ali o estapafúrdio não se faz de rogado (por exemplo, a maneira como Barry causa a morte da tia de Stuart devido ao hábito do escocês de tentar despertá-lo, após festas dignas de épicas ressacas, com baldes de água suja[4]). Ao mesmo tempo, o livro trata de problemas tão sérios e portentosos, até mesmo sombrios (a inserção da Irlanda na comunidade européia, a subcultura de diversos “losers”, a solidão e incompletude essenciais que residem em nós, as mitologias e fetiches particulares—pode ser até o mundo dos “games”—que criamos na falta de uma Grande Crença a costurar a civilização)[5] que só podemos admirar a mão leve de Pellizzari, sem cair no frívolo ou no besteirol (mesmo porque todos os núcleos se concatenam à perfeição, no final, mesmo que as desordens pessoais prossigam ao infinito)[6], fazendo com que acreditemos piamente nessa gente toda que ele cria para a sua Dublin nada turística, mas tão animada. Certamente, um dos melhores livros do ano.

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TRECHOS SELECIONADOS (amostras dos narradores de Digam a Satã que o recado foi entendido)

Magnus: “De novo em diante me alimentei somente de espigas de milho, pipoca, tacos sem recheio, Doritos e Jack Daniels, tentando convencer Chicomecoatl a me levar embora de uma vez. A derrocada do meu império pessoal teve início com meu último encontro com Laura, uns dez dias depois da explosão que não aconteceu em Temple Bar. Eu estava sentado meio corcunda no balcão do Hairy Lemon, mastigando devagar as últimas batatas do meu ´coddle´, quando ela apareceu.

__ Sabia que você ia estar aqui—disse com aquela  risada que não causava mais efeito nenhum em mim. Restava apenas um buraco onde antes havia uma resposta fisiológica que um dia eu tinha imaginado ser alguma coisa além disso.”

Patricia: “Não é porque eu vou fazer treze anos daqui a dois meses que sei menos coisas que o meu pai, por exemplo. Estou de mal com ele faz mais de um ano. Ele não entende nada. Nadinha. Mas eu também não. é outra coisa que aprendi bem cedo. Ser humano é estar confuso. Não. Ser humano e medíocre é fingir que não existe confusão nenhuma (…) Meu avô era legal. Pai da minha mão. Ninguém sabe de onde ele veio, só que tinha catorze anos e chegou na Irlanda de navio, sozinho, numa época em que todo mundo estava indo embora porque faltava tudo por aqui. Agora é que ninguém vai ficar sabendo de onde ele veio, mesmo. Sempre que ficava sozinho ele cantava umas musiquinhas que pareciam meio árabes. Ou judaicas, sei lá. Confundo (…) Ele tinha cheiro de lustra-móveis, mas cheiros são que nem idades. Não querem dizer nada.”

Siobhán: “… é um momento difícil  e então convido todos  para cantarem e começo a cantar o hino dos Ofídios Gnósticos  que fala sobre a luta contra a Confederação Galáctica  e a vitória final no dia da Arrebatação  e eles me olham sem dizer nada   e ficam assim até o final do hino  e depois eu saio da cozinha  e me sento em uma cadeira  na sala de costas para a janela. Fico imóvel e curvada  como uma das gárgulas da igreja grande ali subindo a rua, amanhã bem cedinho quero levar a menina nova até lá para ver,  acho que ela vai gostar porque ouvi ela dizendo que nasceu  e morou a vida inteira em Dublin e nunca tinha vindo para Howth e então sei que nunca viu as gárgulas. Elas ficam do lado de fora do templo com aqueles rostos congelados em caretas de ameaça e o corpo todo transformado em pedra e rígido para sempre por amor ao dever de assustar as coisas ruins e os demônios e  a imundície e impedir que entrem dentro do espaço sagrado…”

Demetrius: “A memória serve para que você se esqueça de quem é, Demetrius. É um artefato do Inimigo. Quanto mais você se lembra, mais se esquece do que é natural e antigo e verdadeiro. E o olho com o qual a criança enxerga os Ofídios é o mesmo olho com que os Ofídios enxergam a criança. O olho puro e solitário de Crom Cruach. Mas sem demora esse olho é recoberto por memórias. E com as memórias vêm as opiniões. E com as opiniões, as preferências. E com elas, as abstrações. E por fim a chamada personalidade, a forma rígida dentro da qual a Confederação aprisiona os incontáveis seres que foram criados livres, mas que estão aprisionados em grilhões…”

Barry: “Larguei dela, dos meus velhos,dos meus parcêro, da minha cidade, da vida que eu tinha em Cork. Subi pra Dublin e fiquei livre pra não fazer porra nenhuma. Não que eu odiasse essa coisa toda. Nem é por aí. A assistente social tinha um peitão classe especial e chupava que nem uma sanguessuga, engargantava tudo. Meus velho eram uns inútil sem educação nenhuma, mas sempre fizeram de tudo pra mim. Meus parcêro eram um monte de bêbado gente boa. Minha cidade é o melhor lugar do universo e tinha cerveja barata em qualquer pub. Minha vida era só moleza. O ruim é que essas coisas toda me atrapalhavam. Pra falar a verdade, de vez em quando eu sentia uma vontade imbecil de fazer algo de útil com a minha vidinha, e isso é péssimo pra caralho. Aí cortei o mal pela raiz. Eu sou irlandês, porra. Sou um cara que tenho meus princípio…”

Zbigniew: “Mas não adianta, eu sei que agora o medo vai chegar a qualquer momento. E quando o medo vem  é intenso, piorando muito à noite ou em meio à multidões.  Luzes, ruídos e pessoas ficam cada vez mais velozes e se revelam forças agressivas, sinistras.  Quando alguém ri, está rindo de mim. Se gargalha, está me enfiando uma faca. Olhou, quer me matar. Até os gatos de rua estão planejando tocaias. Os ruídos do mundo tramam crescer em proporção geométrica até me envolverem por completo como um oceano de gelatina e me deixarem suspenso ali dentro para que as luzes cheguem muito rápidas e agudas e me perfurem o corpo inteiro, causando uma dor física sem adjetivos e permitindo que minha consciência escape pelas feridas abertas…”

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[1] Uma das características mais louváveis do livro é justamente se furtar a essa fácil apropriação do imaginário joyceano, uma tentação e tanto.

[2] E no entanto lemos:

“…ali estava eu no início da noite de Halloween, perdido no coração daquele bairro detestável, vestido com minha tradicional fantasia de brasileiro (camisa amarela da seleção de futebol com detalhes em verde, colar de contas coloridas com pingente de folha de maconha, calça azul de tactel, tênis de corrida escandalosos e muito gel no cabelo). E rumo ao Oliver St. John  Gogarty, ainda por cima. O pub mais cenográfico de todos, menos genuinamente irlandês que todos os pubs  supostamente irlandeses  que infestam cidades ao redor de todo o planeta,.”

[3] A alternância de vozes e  a falta de complacência de Pellizzari possibilitam que ele escape a cacoetes de uma certa “literatura de macho”, movida a testosterona (que era o que eu temia quando comecei a ler o livro e suas primeiras páginas), que permearia frases do tipo “Por que eu tinha me metido com essa gente, mesmo? Ah, claro. Minha vida inteira é uma história de decisões catastróficas tomadas pela cabeça do meu pau” (Magnus) ou “E assim levo adiante os meus dias, entre pensamentos circulares e obsessivos sobre sexo e suicídio” (o polonês Zbigniew, outro funcionário dos tours mal assombrados)

[4] Esse mesmo segmento, que narra uma das festas da casa de Stuart tem uma sequência de cenas escatológicas, em que o vômito é a tônica dominante, e mesmo assim o danado do Pellizzari hipnotiza a empatia do seu leitor.  Outro momento difícil de ser narrado, em sua comicidade potencial (e também a involuntária) e maravilhoso em sua realização, é a do sacrifício de Patricia por Demetrius.

[5] E com a presença (virtual ou efetivada) da violência física.

[6] Porque o tom do livro é a apropriação paródica (e não o pastiche) dos discursos dessas pessoas “dançadas”.

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24/08/2013

As canções da inocência e da experiência de Michel Laub: A MAÇàENVENENADA

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“O que sei é o que aconteceu comigo” (Michel Laub, A maçã envenenada)

“…porque não é possível voltar a ser ingênuo depois que você deixa de ser”  (idem)

“O tom irônico do início do namoro ou o tom que passados vinte anos soa premonitório?” (idem)

“A história do sujeito é tomada como modo de invocar o passado e reparar o eu. Assim, a nostalgia desloca o sentido de projeto para o futuro, e a questão de como a vida foi vivida vem à tona, ganhando proeminência.” (José Luiz Passos, Doces monstros modernos)

LONDRES

Nas ruas por que passo, escrituradas,

Onde o Tâmisa corre, escriturado,

Vou reparando as faces maceradas,

Que a aflição e a moléstia têm marcado.

 

Em cada grito de Homem ou no grito

Do Infante que de medo se lamente,

Em cada voz ou em cada interdito,

Ouço os grilhões forjados pela mente. (Das Canções da Inocência e da Experiência, de William Blake, em tradução de Renato Suttana)

(uma versão da resenha abaixo foi publicada na FOLHA DE SÃO PAULO, de 24 de agosto de 2013, ver http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrada/125500-fiel-a-seus-temas-michel-laub-reflete-sobre-acaso-e-destino.shtml):

Li A maçã envenenada sem saber que era a segunda parte de uma trilogia (iniciada com o excelente Diário da Queda, 2011). Fez diferença? Em certo aspecto, não. Pois Michel Laub é um autor fiel aos seus temas: no novo romance, assim como no anterior ou em Longe da Água (2004), a narração evolui em volutas retomando  um ponto fortuito da juventude, que se revestiu, na dinâmica da trajetória de vida, como signo de desvio, de “queda”, cristalizando a irrevogabilidade do acaso e prefigurando um destino: são as passagens que “em quarenta anos de vida analisada” permanecem numa “zona de sombras”. Agregam-se a esse “instante inflexivo”, continuamente exumado, as amizades e lealdades escorregadias e a reflexão geracional.

A maçã envenenada evoca, já pelo título, o Nirvana  (pois refere-se a um verso da canção Drain You), e aquela concepção romântica  que a morte precoce de um artista carrega, de não conseguir lidar com uma realidade corrompida (“como ele incorporou o espírito de uma época esmagada pelo fim das utopias”). Ao rememorar o suicídio de Kurt Cobain[1], em 1994, revive também o namoro tumultuado com a intensa e destrutiva Valéria, à época do show do cantor e sua banda aqui no Brasil, no ano anterior (a ida ao show é um elemento narrativo da maior importância, muito bem trabalhado): “…um cantor famoso e viciado de Aberdeen que seria só um cantor famoso e viciado de Aberdeen se em 1993 não tivesse a história unida a alguém de Porto Alegre que entendeu errado aquilo tudo”.

O gancho para esse recuo aos anos 1990 é a entrevista com Immaculée Ilibagiza, sobrevivente daquele memorável genocídio em Ruanda (também em 1994), cuja vontade de viver mesmo tendo passado por horrores funciona como a “sombra” desse drama afinal tão burguês.[2]

Equacionando Cobain, o primeiro amor, a sobrevivência, o talentoso autor gaúcho nos oferece suas “canções de inocência e experiência” (não fosse Blake uma referência “romântica” incontornável), ou seja, “aquilo tudo”, contra um pano de fundo basicamente irônico, quando não cínico como foi o da geração sobre a qual se debruça: “…até hoje não sei se os versos no postal eram apenas citações ingênuas de uma música ingênua do Nirvana ou um recado. Eu não sei se era o tom do início do namoro ou dos últimos tempos, a ironia que soava inocente quando eu não conhecia Valéria direito ou o registro perturbado de agora”.

Quando canta a inocência, ou algo muito parecido com ela, apesar da contenção e parcimônia do narrador, o relato é incisivo[3]. Faz falta um aprofundamento da “experiência”[4] e a pergunta no seu bojo: “Uma pergunta que também era: por que eu não consigo agir de outro modo?”.

De fato, sempre elogiada por inserir na narrativa um veio ensaístico, esse é o ponto onde, conforme amadurece e requinta sua fabulação, a prosa laubiana se mostra mais frágil. Raramente sai da zona de conforto, da moldura que adotou como base, eximindo-se de aprofundar os temas perturbadores e dramáticos que suas histórias nos oferecem, contentando-se com afirmações genéricas e alusivas, o que me parece estranho numa obra onde as questões morais são importantes.

Por exemplo, ao falar da sobrevivente de Ruanda: “Adianta esta mulher ter passado por uma experiência tão radical, Valéria, se ao término tudo o que ela faz é dar uma lição aguada de breguice…” Como ele não vai muito adiante na reflexão, fica parecendo a opinião fútil de alguém comodamente refestelado na sua melancolia pós-moderna.[5] O que é injusto, claro, pois duvido que Laub seja tão superficial e errático como vem mostrando na maior parte de suas crônicas (publicadas sexta sim, sexta não, na Ilustrada da Folha), que, por relativizar tudo, e quase não se comprometerem com nada, a não ser um vago liberalismo estético (ressumando no ético) soam quase anódinas. O que ele, como autor, não pode, ou não deveria, é continuar mantendo a mesma parcimônia de seus personagens e suas meias-vidas (“…essa sensação quase absoluta, que às vezes me assustava porque é só estender a liberdade e de um instante para outro você não tem mais passado, nem sente falta de nada porque é como se nada tivesse acontecido, ou só as coisas que você escolheu, as lembranças boas e inofensivas, e nada do que você disse ou fez a uma pessoa tem conseqüências porque nunca mais precisará encontrá-la, nem pensar nela, nem imaginar e confrontar o que foi feito dela em outro tempo e outro continente numa vida que às vezes nem parece ter sido a sua”).

E aí, a afirmação de que saber que A maçã envenenada é o livro do meio de uma trilogia faz diferença, se tivermos a expectativa de um aprofundamento e um adensamento com relação ao primeiro volume do projeto (lemos que se trata de uma trilogia sobre “os efeitos individuais de catástrofes históricas”), e isso não se dá.

Quarenta anos de vida analisada já dão matéria para cantar também a pós-inocência. Pois Laub tem muito a dizer.

VER TAMBÉM NO BLOG:

https://armonte.wordpress.com/2012/11/08/auschwitz-alzheimer-alcoolismo-amizade-e-quebrando-o-circulo-natalidade-diario-da-queda-de-michel-laub/

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TRECHO SELECIONADO

“No direito existe o dolo eventual , o ato de conscientemente assumir o risco de cometer um crime por meio de uma conduta de imprudência, negligência ou imperícia. É o caso de quem dirige bêbado, e fico pensando se o motorista também não faz uma espécie de pacto na primeira dose de caipirinha ou se pensa apenas no limão e no açúcar e na leveza e depois euforia tão raro num ano em que tudo deu errado desde o início. Duas décadas depois, com as memórias embaralhadas pela consciência do que aconteceu, a culpa e o alívio de ser tudo apenas um capítulo do passado, a vaidade de querer integrar uma trama heróica de sobrevivência, na qual se podem incluir as drogas e os esportes perigosos e as viagens para lugares ermos onde pode haver um animal selvagem ou um psicopata, o assalto que se pode sofrer e as doenças possíveis quando você fuma e come gordura e trepa sem camisinha, e eu poderia garantir que era nisso que pensava ou era isso que pretendia ou era essa a possibilidade que estava no horizonte ao pedir a segunda dose e a terceira e a quarta e a quinta e a sexta?

    Nos vinte anos posteriores a 1993 eu eventualmente detestei o trabalho, os relacionamentos que não deram certo, e poderia listar dez ou vinte ou noventa situações em que é tentador pensar que tudo acabou  por antecipação, portanto não há mais dor e problemas e estamos apenas cumprindo os últimos atos de uma pantomima comandada por um titereiro que gosta de brincar. É verdade que nem todo mundo nasce com o gene defeituoso que permite ir além desse instante de devaneio, e na sequência você termina o expediente ou o namoro ou o que for preciso, uma pessoa como qualquer outra, achando bom caminhar depois da chuva e vestir o cheiro de grama e tomar sopa e dormir bem quentinho debaixo de um cobertor no dia do aniversário, mas o fato é que esse instante existe ele pode ser decisivo para a sorte de quem nasce destinado a se confrontar com ele, e é por isso que em quarenta anos de vida analisada a única passagem que permanece numa zona de sombras é o período próximo do show do Nirvana.”

A ROSA DOENTE  

Rosa, estás doente!

O verme invisível

Que voa, inclemente,

Na noite terrível

Encontrou teu leito

De róseo prazer:

Seu amor secreto

Destrói teu viver.

 

MINHA BELA ROSEIRA

Uma flor me foi ofertada

Que maio jamais viu tão bela;

Eu disse: “Já tenho Roseira” –

E assim desdenhei recebê-la.

De minha Roseira tão bela

Cuidei, dia e noite, zeloso;

Porém minha Rosa deixou-me:

Seus espinhos foram meu gozo

(Das Canções da Inocência e da Experiência, de William Blake, em tradução de Renato Suttana)

CANÇÕES DE EXPERIÊNCIA


[1] Seria interessante uma leitura comparativa do romance de Laub com outra reflexão ficcional recente (e memorável) sobre o suicídio (“a morte de alguém que foi tão importante na sua vida”), O céu dos suicidas (2012), de Ricardo Lísias.

[2] A sincronicidade temporal que quase se revela perversa entre as várias esferas (Valéria e o narrador, Kurt Cobain, o genocídio) me lembrou uma reflexão similar (mas bem mais aprofundada e detalhada) de William Styron em A Escolha de Sofia (1979).

[3] Acho lindo, por exemplo, quando ele narra a iniciação sexual: “Dizem que ninguém esquece esse momento, a intensidade e o alívio e a gratidão de perceber que é tão simples…” (e logo depois, ele entra com o leitmotiv do título, o cerne do livro, os versos de Drain You relacionados à sua relação com Valéria).

[4] “Como evitar que a memória se misture com a culpa, a autopiedade e a autoindulgência nos anos e décadas que seguem um evento assim?”, ele se pergunta diante de Immaculée.

[5] Por exemplo, parar para pensar que, depois de uma experiência tão radical, talvez não tenha muita importância para Immaculée Ilibagiza expressar-se através de um discurso mais “refinado” e afinado com padrões estéticos “exigentes”. Talvez esses padrões sejam muito pequenos, acanhados, para ela, e tanto faz que os cultuadores dos padrões não bregas, a ouçam e lidem com ela com um respeito condescendente e envergonhado.

Em todo caso, o livro faz um paralelo bem interessante entre Immaculée e o Tenente Pires (o narrador estava servindo o exército à época dos acontecimentos cruciais de A maçã envenenada), um entusiasta da conversão evangélica, também com um discurso brega, mas que de alguma forma parece “autêntico”, apesar dos sub-tons “irônicos” (ah, a ironia, sempre ela). Os dois são os antípodas da desistência: representam a sobrevivência e a persistência.

Novo colunista da Ilustrada, o escritor Michel Laub, 39, autor de "Di·rio da Queda".1146932_10201817428062445_663829105_o

23/08/2013

HISTÓRIAS DE DESENCONTRO ENTRE LYGIA FAGUNDES TELLES E SEUS CONTOS

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https://armonte.wordpress.com/2013/04/19/o-teatro-da-inocencia/

https://armonte.wordpress.com/2013/04/19/ines-nao-e-morta-muito-pelo-contrario/

https://armonte.wordpress.com/2013/04/19/um-classico-do-romance-brasileiro-ciranda-de-pedra/

https://armonte.wordpress.com/2013/04/19/a-tapecaria-e-suas-dimensoes/

https://armonte.wordpress.com/2013/04/19/uma-prosa-toda-feita-de-delicadezas-perigosas-lygia-fagundes-telles/

https://armonte.wordpress.com/2013/04/19/a-poetica-do-sorrateiro-as-meninas-de-lygia-fagundes-telles/

“Lygia Fagundes Telles, de certo modo, cria um dicionário ficcional de símbolos, o seu mundo simbólico particular, minuciosamente escolhido. Ela constrói suas narrativas como se estivesse numa partida de xadrez,  construindo o mundo ficcional a cada um de seus lances—prevendo reações, provocando-as. Ela nos chama para um jogo.”

(Nilton Resende, Ar-te-sa-ni-as: modos do alegórico em contos de Lygia Fagundes Telles)

I

De 1944 até o começo dos anos 1980, grosso modo, Lygia Fagundes Telles apresenta uma produção quantitativamente (da qualidade, nem é preciso falar) expressiva de contos, embora não exageradamente prolífica (pelos meus cálculos, caso exatos, são 76 contos publicados, de Praia viva a Mistérios).

Cinco são as coletâneas originais dessa fase: Praia viva (1944), O cacto vermelho (1949), Histórias do desencontro (1958), O jardim selvagem (1965) e Seminário dos ratos (1977). Apenas a última delas foi reeditada nas mudanças de casa editorial (para a Nova Fronteira, para a Rocco e para a Companhia das Letras). E, salvo engano, nenhum dos 10 contos de Praia Viva até hoje reapareceu, assim como boa parte dos 12 de O cacto vermelho e alguns poucos de Histórias do desencontro. A única coletânea em que todos os contos ainda reaparecem, embora dispersos em publicações diferentes, é O jardim selvagem.

A curiosa contrapartida desse movimento supressor de títulos é a das “antologias de si mesma” preparadas pela autora. Um ponto a se destacar é que TODAS ELAS apresentam sempre contos ainda não-publicados em livros de sua própria autoria. Quando publicou Histórias escolhidas (1964), uma espécie de “saldão” pré-O jardim selvagem, incluiu dois contos (As cerejas; O noivo); quando fez de Antes do baile verde (1970) uma grande triagem da sua produção, e um título que passou a ser uma espécie de obra-referência da sua contística, um “portable Lygia” (principalmente depois da sua versão de 1971, pela José Olympio), publicou cinco textos dispersos (a chama Trilogia da confissão- Apenas um saxofone, Helga, O moço do saxofone; Os objetos e Verde lagarto amarelo).

Na escolha de seus Filhos pródigos, em 1978 (o título original, muito mais feliz, da seleção posteriormente republicada em 1991, com a poda de um conto, como A estrutura da bolha de sabão[1]), ela incluiu textos que ainda não tinham aparecido em nenhum de suas coletâneas, como o próprio A estrutura da bolha de sabão e sua versão para Missa do galo. E, ao lançar, a coletânea de suas “histórias extraordinárias”, dos seus contos do grotesco e do arabesco, Mistérios (1981), que—a meu ver–  fecha essa grande fase, também foram publicados três textos até então não-reunidos: Emanuel, Negra jogada amarela, O muro.

Ao lançar Mistérios, Lygia Fagundes Telles encontrava-se publicada pela Nova Fronteira e a década de 1980, após aquele título, no tocante ao conto (em 1989, ela lançou seu quarto romance, As horas nuas), foi uma década que passou “em branco”. Aliás, com a exceção dos filhos pródigos rebatizados como A estrutura da bolha de sabão, essa situação se manteve até 1995, com o último lançamento pela Nova Fronteira, A noite escura mais eu, que marca uma nova fase produtiva, após um hiato de 15 anos pelo menos, pois todos os textos da coletânea (a única, à exceção de Histórias do desencontro, sem um conto-título[2]) são inéditos.

Meu amigo, Nilton Resende, grande conhecedor da obra de Lygia[3] e que muito me ajudou para os dados deste meu texto (sem que tenha responsabilidade por qualquer informação errônea ou inexata), tem marcada predileção por esse livro, e sou obrigado (prazerosamente, é verdade) a concordar: é obra de mestre.

Pois bem, ao chegar a esse ponto, da sua produção de livros de contos sobraram:

Antes do baile verde (20 contos)

Seminário dos ratos (14 contos)

A estrutura da bolha de sabão (ex-Filhos pródigos)- 8 contos

Mistérios (19 contos)

e mais A noite escura e mais eu (9 contos)

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II

A transferência para a editora Rocco foi auspiciosa, a princípio. Numa nova demonstração de vitalidade criativa, de vigor, surgiu mais uma coletânea totalmente inédita (com 15 textos), Invenção e Memória (2000). Aqui não temos nada da complacência, simpática decerto, mas morna sobretudo, de livros-miscelâneas que pouco acrescentam à sua obra tão incrível (o anterior, ainda pela Nova Fronteira, A disciplina do amor, os posteriores Durante aquele estranho chá e Conspiração de nuvens).

A predileção que Nilton Resende nutre por A noite escura e mais eu, por mais que eu admire esse livro,  reservo mais para Invenção e Memória: tenho a impressão que ali ela se renovou de fato, arejou a casa, implodiu a solenidade de “grande dama da literatura”, aquela coisa petrificada que ameaça todo escritor da gema, conseguindo alguns textos de raro calibre, entre os melhores de sua obra, e inclusive fazendo uma alquimia perfeita entre o cunho memorialístico e o prazer da ficção.

Mas aí, a mesma escritora que sempre alegou não republicar seus títulos mais “juvenis” e imaturos (para não falar do “ginasiano” Porão e sobrado, de 1938, do qual nunca encontrei vestígio)  e que nunca pensou em pelo menos reeditar a seleção impecável de O jardim selvagem, na sua feição original de 1965, talvez por questões contratuais e mercantis desairosas, aparece com contrafações do tipo Meus contos preferidos, Meus contos esquecidos, Histórias de mistério  !!!!??????

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III

A produtividade tardia, no sentido da maestria absoluta (A noite escura mais eu, que me lembra a produção mais tardia de Henry James no texto curto, com sua densidade) ou no da verve e vitalidade (Invenção e Memória) se esgotou e, no novo milênio em curso, Lygia Fagundes Telles chega aos 90 anos com sua obra editada por outra casa, a Companhia das Letras, que unificou as capas numa série de notável bom-gosto, que se diga de saída.

Esperava-se que, aí, a série livros-para-o-chá-das-cinco (com o silêncio opressivo do jardim selvagem por trás) e também as auto-antologizações mais derrisórias (do tipo Meus contos…) cessassem. Ledo engano. Após republicar as obras que formam o cânone estabelecido pela própria autora, a Companhia passou a apelar também para os “novos títulos”: A disciplina do amor, Durante aquele estranho chá e Conspiração de nuvens têm agora a companhia de Passaporte para a China. E surge mais um volume de “filhos pródigos” (ufa, que prole indisciplinada e difícil!), ou de “meus contos esquecidos” ou de coisa-que-o-valha: Um coração ardente, que reúne Um coração ardente (de Histórias do desencontro), Dezembro no bairro (de O jardim selvagem, a primeira versão, de 1965, e não—como se informa erroneamente— a  segunda, de 1974, versão misteriosa[4]—que merecia um texto à parte), O dedo  (da segunda versão de O jardim selvagem, de 1974, e que reapareceu em Mistérios), Biruta (de Histórias do desencontro), Emanuel (de Mistérios), As cartas (de Histórias do desencontro), A estrela branca  (de O cacto vermelho, e não originalmente em Mistérios, como consta erroneamente na edição), O encontro (de Histórias do desencontro); a rigor, dois contos (que apareceram pela primeira vez em Histórias escolhidas e não na versão 1974 de Jardim selvagem como consta erroneamente na edição) é que justificariam esse “novo” título, O noivo e As cerejas , os quais que ficaram muito tempo “perdidos” no labirinto das publicações lygianas.

Mas não é assim com todos, ao fim e ao cabo?

Não contente, a Companhia das Letras ainda lançou (com o pretexto de atrair o leitor mais jovem), O segredo e outras histórias de descoberta. Há muito tempo um livro da Ática vem cumprindo essa função sem tanta pirotecnia editorial: a coletânea com o título Venha ver o pôr-do-sol, que ainda se encontra em catálogo, e foi lançada nos anos 1970, foi a porta de entrada para mim, e certamente para muitos outros, junto com o volume a ela dedicado na coleção Literatura Comentada (1980), e onde aparece As cerejas.

nota de agosto de 2013- Nilton Resende me informou que “O segredo”, de A noite escura e mais eu já havia sido publicado, numa versão anterior, no ESTADÃO, em 1961. Portanto, o conto não é um trabalho novo, mas uma nova versão de um texto mais antigo.

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ANEXOLista da produção contística de Lygia Fagundes Telles com a contribuição de cada título:

Praia viva (1944)

Além da estrada larga

Comício

Delírio

Flor de laranjeira

Há um grilo sob a janela

O avô

Paredes de vidro

Ponto número seis

Praia viva

Táxi, cavalheiro?

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O cacto vermelho (1949)

Confissões de Leontina

A estrela branca

A recompensa

Correspondência

Felicidade

Madrugada grotesca

Migra

O cacto vermelho

Olho de vidro

O menino

Os mortos

O suicídio de Leocádia

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Histórias do Desencontro (1958)

A ceia

A fuga

As cartas

A sonata

As pérolas

A testemunha

A viagem

Biruta

Eu era mudo e só

Ho-Ho

Natal na barca

O encontro

Um coração ardente

Venha ver o pôr-do-sol

Histórias escolhidas (1964)

As cerejas

O noivo

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O Jardim Selvagem (1965)

A caçada

A chave

A janela

A medalha

Antes do baile verde

Dezembro no bairro

Meia-noite em Xangai

O espartilho

O jardim selvagem

O tesouro

Uma história de amor

Um chá bem forte e três xícaras

Antes do baile verde (1971)

Apenas um saxofone

Helga

O moço do saxofone

Os objetos

Verde lagarto amarelo

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Gaby

O dedo

Seminário dos Ratos (1977)

A consulta

A mão no ombro

A presença

A sauna

As formigas

Herbarium

Lua crescente em Amsterdã

Noturno amarelo

O X do problema

Pomba enamorada ou Uma história de amor

Seminário dos ratos

Senhor Diretor

Tigrela

WM

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Filhos pródigos (1978)

A estrutura da bolha de sabão

Missa do galo

Mistérios (1981)

Emanuel

Negra jogada amarela

O muro

A noite escura e mais eu (1995)

Anão de jardim

A rosa verde

Boa noite, Maria

Dolly

O crachá nos dentes

O segredo

Papoulas em feltro negro

Uma branca sombra pálida

Você não acha que esfriou?

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Invenção e Memória (2000)

A chave na porta

A dança com o anjo

Dia de dizer não

Cinema Gato Preto

Heffman

História de passarinho

Nada de novo na frente ocidental

O Cristo da Bahia

O menino e o velho

Potyra

Que número faz favor

Que se chama solidão

Rua Sabará, 2000

Se és capaz

Suicídio na granja

Nota 1-  Em Histórias de mistério (2002) e O segredo e outras histórias de descoberta  (2012) aparecem dois textos não-arrolados acima, O gorro do pintor e Onde estiveste de noit

Nota 2- A lista acima foi elaborada com a ajuda valiosa do livro de Vera Tietzmann, Dispersos e inéditos: estudos sobre Lygia Fagundes Telles, do qual Nilton Resende gentilmente escaneou algumas páginas.

(escrito especialmente para o blog, em abril de 2013, em função dos 90 anos de Lygia Fagundes Telles, em 19 de abril)

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[1] Aliás, sempre é bom lembrar que na supressão das coletâneas mais antigas, perdemos belos títulos como Histórias do desencontro e O jardim selvagem.

[2] Para o meu leitor não ficar perdido, lembro que dividi as publicações de Lygia Fagundes Telles em duas categorias:

–as coletâneas realmente inéditas

__as antologias de si mesma (nesse sentido, Filhos pródigos & Mistérios não tinham um conto-título).

[3] E que, além disso, conseguiu estudá-la por vários anos, sem que isso comprometesse sua própria “voz” como autor, como provam os belos contos de seu livro Diabolô (2011).

[4] Nela, foram publicados:

A MEDALHA

-AS CEREJAS

-GABY

-O ENCONTRO

-DEZEMBRO NO BAIRRO

-O DEDO

-O NOIVO

-VENHA VER O PÔR-DO-SOL

-O JARDIM SELVAGEM

-A CAÇADA

-A CEIA

-O TESOURO

Na edição original de Jardim Selvagem, temos:

A MEDALHA

UM CHÁ BEM FORTE E TRÊS XÍCARAS

O ESPARTILHO

A JANELA

ANTES DO BAILE VERDE

A CAÇADA

A CHAVE

DEZEMBRO NO BAIRRO

UMA HISTÓRIA DE AMOR

O TESOURO

MEIA-NOITE EM PONTO EM XANGAI

O JARDIM SELVAGEM

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20/08/2013

Aos 50: a singularidade e maestria da ficção de João Anzanello Carrascoza

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(uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 20 de agosto de 2013)

Em Aquela Água Toda, coletânea que, com justiça,  ganhou o prêmio APCA 2012 (outorgado pela associação de críticos paulistas), encontramos o curto e maravilhoso Grandes Feitos, no qual é narrado o despertar, num sábado, de uma família (um casal e seu filho). Nada acontece de especial (“foram fazer essas coisas que todos fazemos enquanto estamos vivos”), mas tudo parece ganhar o cunho do recém-criado: “Era a mesma cena, cotidiana, mas a mulher a mirava com olhos demorados, e assim as coisas ganhavam uma nova aura—ou a aura podia agora ser vista”.

Aí reside singularidade de João Anzanello Carrascoza. Se Baudelaire era o lírico no auge do capitalismo, como queria Walter Benjamin, o autor do recém-lançado Aos 7 e aos 40 (seu primeiro romance “adulto”) é o lírico no cerne do capitalismo pós-industrial. Nas duas sequências narrativas alternadas do novo livro (em primeira pessoa, aos 7; numa terceira pessoa cuja dicção lembra a dos poemas modernistas de teor fortemente narrativo, aos 40; de fato, se há um autor com o qual se pode fazer uma aproximação é com Manuel Bandeira[1]), pouco acontece que chame a atenção: o menino cresce, tem uma paixonite pela prima visitante, deseja um passarinho que cante como os do vizinho, adora o pai, treina salto em altura, se encanta e se desilude com a leitura do mundo e das pessoas; o homem feito, na metrópole, vive para a família (a mulher e o filho), mas algo desanda no seu casamento, eles se separam, e os momentos de encantamento do seu cotidiano estão nos fins de semana que passa com o menino, com o qual resolve viajar para rever as paisagens interioranas da sua própria infância…

Como se vê, nada de mais corriqueiro (e como amiúde no universo carrascoziano, o enfoque fixa-se nas relações primordiais, nos laços elementares de parentesco; os personagens frequentemente nem são nomeados). E, no entanto, verifica-se o “milagre que o universo produzia pra acontecer, entre um homem e seu filho, uns atos banais”.

Quando se fala em lirismo, pode vir à mente algo sentimental, no mau sentido, ou um embelezamento da banalidade da vida, dos seus aspectos contingentes, além de uma romantização excessiva do olhar da infância sobre uma problemática “realidade” concreta e inescapável[2] (até porque Carrascoza é exímio autor infanto-juvenil também, e essas duas facetas da sua produção se espelham com rara felicidade). Tal equívoco acontece em um livro muito badalado e premiado (nem por isso menos discutível), Vermelho Amargo, de Bartolomeu Campos de Queirós, que evoca uma formação similar (embora com conflitos e rupturas familiares mais dramáticos e evidentes). Ali tudo era tão “bonito”, tão “poético” (até o sofrimento e a opressão) que beirava o kitsch, o falso. Um pouco como acontece também com certa feição da obra de Manoel de Barros, de nefasta influência.

Não que Carrascoza seja imune a esse perigo (como se verifica em algumas escorregadas nos contos de Dias Raros, de 2004, por exemplo), entretanto na sua já extensa carreira ele me parece um caso único, quase espantoso, de um lírico na prosa, que a mantém afiada e cortante, equilibrando-se  habilmente na corda bamba de um fortíssimo apego ao registro afetivo, ao amor entre as pessoas de uma família, que praticamente desaparecera do território da ficção.

Creio que os momentos mais fortes de Aos 7 e aos 40 estão na faixa dos 40. Há capítulos extraordinários, como aquele na rodoviária, quando marido e esposa percebem que chegaram ao fim do casamento, ou aquele em que o pai visita de forma inesperada o antigo apartamento, ou ainda aquele em que o filho passa o fim de semana com o pai, após uma ausência mais longa.

Os capítulos da faixa dos 7 se mantém nos trilhos das obras anteriores[3] (tanto que em Aquela Água Toda ficamos conhecendo a menina que ocupará o lugar no coração do menino do romance, após a gastura toda com a partida da prima, no conto Cristina). Estará enganado, no entanto, quem achar que eles repetem uma fórmula. O romance, a meu ver, pode ser lido como um todo independente e muito coeso, e pode ser visto, por paradoxal que pareça, da maneira como foi trabalhado, com capítulos quase móbiles, como parte de uma sequência em andamento—através de vários títulos—de “moments of being”, “momentos do ser”, na acepção de Virginia Woolf, peças individualmente memoráveis e que ganham ainda maior força fazendo parte de um conjunto, graças à fidelidade obsessiva de um autor reiterativo por excelência, exposto de forma nua e crua num inspirado romance para crianças, O homem que lia as pessoas (2007), que trata, claro, da relação de um filho com seu pai[4].

Ali, o pai diz: “Você tem boa memória! O que nem sempre é vantagem…” O filho pergunta por quê. Resposta: “Porque depois é difícil esquecer as coisas”. O agora cinquentão (nasceu em 1962) João Anzanello Carrascoza se dispôs a não esquecer as coisas. E ao forjar seu jeito especialíssimo de evocá-las e recriá-las, ele cria o seguinte efeito, vazado numa fórmula lapidar: “Contar histórias é um jeito de nos trazermos para as pessoas”.

Nunca ele “se” trouxe tanto, como em Aos 7 e aos 40. De qualquer forma, sempre será bem-vindo, com seus grandes feitos a partir de quase nada.

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TRECHOS SELECIONADOS

O pai se sentou perto do tio, quase a lhe estorvar com o garfo e a faca, informando assim, com seu corpo, o quanto queria estar junto do irmão; e o tio, à cabeceira da mesa aceitou aquela sólida proximidade e começou a comer vagarosamente. Pra minha surpresa, eles se puseram a falar dos negócios  do pai, Começo do ano é assim, ninguém tem dinheiro, da vida que se vivia naquela cidade, com suas ruas sujas de terra vermelha e bagaço de cana. É a safra, não tem jeito, do calor que vinha fazendo, Parece que vai chover, É bom mesmo, pra refrescar um pouco, e aí o tio brincou comigo e perguntou se eu tinha namorada, eu pensei na prima Teresa, mas respondi, Não, com a cabeça, e ele, Então arranja uma logo, e riu e o pai veio em meu socorro, A hora dele vai chegar, e o tio, E o futebol, você ainda joga no gol?, e eu, Não, agora eu treino salto em altura, e pra mim era um mistério que falassem o que falavam à mesa—o que mais podiam falar?–, a vida era o inesperado, o que vinha vindo fora (e acima da minha percepção). Mas logo chegaria a hora alta, e eu temia ser incapaz de ultrapassá-la, como o sarrafo no salto em altura…  [aos 7]

Encontrou o menino comendo na cozinha, compenetrado.

Oi, filho,

Oi, pai.

A mulher disse,

Senta,

e começou a lavar a louça,

enquanto os dois se abraçavam.

Vieram as perguntas, diárias, que ele fazia ao menino, pelo telefone,

a primeira,

Você está bem?,

e a segunda,

Já tomou banho?,

e, ali, nem precisavam ser feitas: no rosto do filho se

via que ele estava bem; seu corpo cheirando a

sabonete e seus cabelos úmidos revelavam que

saíra há pouco do banho.

Perguntou-lhe sobre a escola, e,

à medida que o menino respondia,

contando-lhe os gols que fizera nas aulas de educação física,

ele sentiu,

sob a camada grossa de seu próprio silêncio,

uma inesperada alegria,

como se, até então,

vivesse na pré-história desse sentimento,

e, agora, experimentasse a sua estreia.

Se o menino era um rio, ele, pai, colocava só a ponta

dos pés em suas águas, e queria, de novo o mergulho,

queria se resgatar nas suas profundezas.

E já que vivia à sua beira, era melhor se entregar ao

nada daqueles rápidos encontros,

os mínimos episódios cotidianos (e aparentemente

esquecíveis),

como fazer juntos a refeição, ou assistir a que o outro

a fizesse,

como agora.

Continuaram a conversar, coisas banais para o

mundo, mas não para os dois (nem para a mãe que

os ouvia), e o homem, curioso para saber mais do

menino, ia dispondo na mesa como travessas de

comida, outras perguntas… [aos 40]

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[1] Embora Bandeira seja a aproximação mais consequente que me ocorre, na ficção “universal”, por assim dizer, há o caso de Hermann Hesse, cuja obra em prosa é impregnada de um lirismo muito particular e bem mais instigante que o da sua poesia propriamente dita, bem mais convencional.

[2] Veja-se um belo trecho de Mundo justo (de Aquela Água Toda): “… e ele desgrudado desse nosso mundo, mundo que o pai dizia ser sólido igual barra de ferro, mas eu discordava dele, eu achava que o real não se pegava, tinha seus contornos definidos, a igreja ali na frente igreja, o canavial lá adiante canavial,  a pedra na mão pedra, mas às vezes, eu sentia que o mundo era miragem, como quando, de relance, eu mirava a cesta e atirava a bola, sabendo que não ia acertar, que o aro de metal estava nos meus olhos e não lá no alto, pregada na tabela, eu achava que a gente, todas as pessoas no nosso tempo maior, viam o mundo por uma neblina de sol, as coisas sem ser o que eram, de verdade, pra nós.”

Em Paz (do mesmo volume): “O dia não era mais o mesmo dia. O mundo, de repente, de outro jeito. A mãe recolheu do varal uma calça do pai, uma camisa, outra calça—era o simples ato de pressionar o prendedor e puxar a roupa como  noutras tardes, mas dessa vez ele podia perceber uma tensão nos dedos dela. Aprendera a captar essas mudanças, só não sabia como agir depois que ocorriam.

    Então, sem poder alterar a ordem das coisas, ele e a mãe ficaram no quintal, cada um, ainda que próximo ao outro, a zelar pela própria existência—e sendo ele um menino, só lhe restava voltar ao seu passatempo, mesmo sentindo que tudo, agora, era mais forte: o sol acima de sua cabeça; o silêncio, aéreo, ao redor.”

[3] Atente-se para o fato de que certos episódios são versões de textos anteriores. É o caso da cena em que o menino testemunhará uma humilhação sofrida pelo pai, num armazém de secos e molhados, já contada em Antes do almoço, último conto de O Vaso Azul (1998).

[4]“__ E o que tem a ver com essa história de ler as pessoas?, perguntei. Não tem palavra nenhuma escrita nelas!

__ Aí é que você se engana. As palavras estão na testa, nos olhos, nas mãos, no corpo inteiro da pessoa, disse meu pai.

__ Não vejo onde!, falei.

__ Mas elas estão lá, garantiu. Basta olhar direito pra você ver.

__ Acho que a mãe tem razão, eu disse. É maluquice sua.

__ Vou explicar de outra maneira. O olhar de uma pessoa, o jeito de pentear os cabelos, de andar, cada gesto dela, enfim, é uma letra. Você junta essas letras e forma palavras. Depois junta as palavras e terá a frase escrita na pessoa naquele momento.

__Ficou mais confuso ainda, falei.

__ Confuso nada!, garantiu ele. Está escrito na pessoa, é só ler.

__ Mas não está escrito com as letras a, b, c , d, e. Só sei ler com elas. É assim que estou aprendendo.

__ Pois é a mesma coisa. As letras estão penduradas na maneira de ser das pessoas.

    Meu pai me encarou por um instante.

__ Li você agora. E sei que não está entendendo.

__ Adivinhão, eu disse. É só olhar para a minha cara.

__ Está vendo?, continuou ele, animado. Sabe o que está escrito nela agora?

__ O quê?

__ `Me dá um exemplo.`

__ É, com um exemplo seria mais fácil entender, falei, disfarçando minha surpresa. Eu ia mesmo pedir a ele um exemplo.

__ Acabo de dar um, lendo você, mas vou dar outro. Li sua mãe há pouco, e sabge o que estava escrito nela?

__ Não!

__ Era um conselho pra você!

__ Mesmo?

__ O que você acha que era?, ele perguntou.

__ ´Não acredite no que seu pai vai dizer!´, arrisquei.

__Não, justamente o contrário, ele disse. Estava escrito: ´Pode acreditar , é verdade!´

__ Duvido. A mãe saiu brava da sala.

__Só pra confundir. Você não sabe ainda ler as pessoas. Com o tempo, vai aprender…”

   Um dos bonitos relatos de Aquela Água Toda, Vogal, retoma o tema da leitura (do mundo, das pessoas) numa variação engenhosa:

“Aí ela disse que o mundo era como o alfabeto, feito de vogais e consoantes. As vogais eram sons que nasciam quando o ar saía livremente pela boca. As consoantes não: os lábios, os dentes, a língua e o palato criam obstáculos à passagem do ar quando a gente as pronunciava.

   Eu era uma vogal e tentara passar livremente pelo portão, mas as meninas, consoantes, haviam me impedido. E se existissem apenas vogais, ou só consoantes, o mundo teria de ser escrito de outra maneira; o bonito era que podíamos fazer inúmeras combinações.

   Conforme tia Alda falava, comecei a pensar nas pessoas que eu conhecia, a comparar uma das garotas balofas com a letra B, o inspetor alto e magro que me socorrera com a letra I, a minha rechonchuda prima era a letra O, e, assim, fui me alegrando a cada vez que encontrava no alfabeto uma vogal ou consoante que lembrava algum conhecido.”

  Quanto à maciça presença da relação pai-filho na obra carrascoziana, não é ocioso lembrar que o conto de abertura (Caçador de Vidro) do seu primeiro livro “adulto”, Hotel Solidão (1994)  é sobre um percurso pela Rodovia dos Bandeirantes, num Voyage, de um pai com seu filho (“Bom que se diga logo, o filho ainda é menino, vai sair da infância em breve, nestes tempos criança de sete anos já se atordoa com as exigências do caminho, a vida já arde no estômago”).

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10-11-23 - João Carrascoza na Biblioteca Municipal (12)

18/08/2013

OS VALORES DA TRIBO: Edith Wharton, Scorsese e o cetim preto

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(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em primeiro de fevereiro de 1994)

“Pobre Ellen… o que se pode esperar de uma moça autorizada a usar cetim preto em seu baile de debutante?”

Era de se imaginar Martin Scorsese lidando com tais preocupações? Ou com um triângulo amoroso da alta (mas jeca) sociedade novaiorquina dos anos 1870? No entanto, foi ele quem se arriscou a adaptar cinematograficamente A Era da Inocência (The age of innocence, 1920, que comento na tradução de Sieni Maria Campos), de Edith Wharton. O filme ganhou o título nacional de A época da inocência.

Scorsese, no fundo, não está tão longe assim da sua temática habitual, que mostra códigos de sobrevivência e adaptação (ou falta de). Em suas obras-primas supremas, O touro indomável & Os bons companheiros, tais códigos eram revelados na periferia, no submundo, e através da extrema violência. A necessidade imediata e grosseira da sobrevivência ou as demonstrações fisiológicas da violência não aparecem em A Era da Inocência. Vemos, contudo, os valores da tribo tecendo impiedosamente o casulo em torno do protagonista, Newland (vivido no filme pelo até agora camaleônico Daniel Day Lewis), cuja postura quanto à etiqueta e vestuário é tão meticulosa quanto a de um novaiorquino posterior, Patrick Bateman, o “psicopata americano” criado por Bret Easton Ellis.

Bateman tem de se movimentar no mundo do politicamente correto. Os ricos de Edith Wharton podem se manter na “inocência”, podem mostrar-se politicamente incorretos porque os privilégios e códigos (provincianos que fossem) jamais eram discutidos, pareciam “fenômenos naturais”. Com toda a sua vida esquizofrênica, Newland fica ao ponto de surtar, interferindo na engrenagem social, ao apaixonar-se pela já referida Ellen, a do cetim preto, prima de May, sua noiva (e depois, esposa). Parece trivial. Não é. Parece Proust, pelo tratamento detalhista da etiqueta social. Mas Wharton  tem um outro belo texto, Ethan Frome, que se passa num meio completamente diferente, quase primitivo de tão agrário, e no entanto com problemas similares de renúncias e asfixias morais.

Quando nos mergulha no dilema de Newland, descortina criticamente a mentalidade que sustenta a preocupação com o cetim preto. Estamos longe de Jezebel, que girava em torno do uso de um vestido vermelho. No melodrama de William Wyler (com Bette Davis) não se chegava ao cerne das coisas, o vestido era um pretexto para situações carameladas e atitudes descabeladas. Nas intrigas em torno do cetim preto há sangue derramado (simbolicamente), e chegamos ao cerne das coisas.

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Edith Wharton criou um grande personagem masculino, porém as duas pontas femininas do triângulo são muito mais desafiadoras, principalmente numa transposição como é o caso da versão cinematográfica, e é ótimo terem sido entregues às mais-que-competentes Michelle Pfeiffer e Winona Ryder. Carisma e densidade incontestes de La Pfeiffer, mas Winona é uma escolha particularmente feliz (após ter brilhado em Drácula, digam o que quiserem), pois May é dificílima. Tem uma falsamente passiva participação no desenrolar dos acontecimentos e é quem consegue, subterraneamente, tecer o casulo que envolve e paralisa Newland, consumando a expulsão de Ellen. E sempre “inocente”. O termo vilã não lhe assenta, porém é uma admirável conspiradora e estrategista (e não estaria nada deslocada no mundo de Henry James). Todavia, é seu pai, mr. Welland, quem talvez melhor caracterize a “inocência” da elite novaiorquina de então, pedindo para ser poupado de tudo o que a existência tem de desagradável.

O cetim preto, então, é um motivo tão forte para a exclusão (quando não aniquilamento) de alguém, dentro de tão cerrado código, quanto uma delação ou outros motivos já explorados pelo universo scorsesariano. São signos diferentes que expressam uma mesma guerra social.

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14/08/2013

Notas sobre um jovem contista: O ESTOURO DA ARTÉRIA DE UM CAVALO HÚNGARO, de Thiago Roney

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“Minha literatura será o estouro da artéria de um cavalo húngaro jorrando sangue com vodca na cara dos meus contemporâneos”.

Este é o trecho que justifica porque O estouro da artéria de um cavalo húngaro é o texto-título da coletânea de estreia de Thiago Roney.

Antes de abordar o referido conto, comentarei outros (são 12 ao todo), mas quero chamar a atenção para a presença da violência estilizada (o sangue com vodca), a referência “exótica” (o cavalo húngaro) e a preocupação de tematizar a própria literatura, típicas (é quase uma obsessão, quando não se trata de simples modismo) nos escritores das últimas safras.

O projeto literário de Roney se mostra bem mais interessante do que essa vinculação geracional, ainda que a realização textual muitas vezes deixe a desejar. Para delineá-lo minimamente, efetuarei uma operação arbitrária,  dividindo o livro em três blocos de quatro.

O jovem autor de Manaus (nascido em 1985) deve ter percebido, claro, que os quatro primeiros representavam uma boa introdução à sua produção até aqui (o livro foi editado no finalzinho do ano passado), e a leitura em conjunto reforça um vínculo mais imediato entre três deles (o vínculo com o conto de abertura, cujo título já é um achado, A doença do mundo não é tão óbvio, mas é forte), apesar da disparidade dos resultados: Afetuosos teoremas de Martín, O caçador de made in´s, O dia que comi como o faz um rico. Neles, Roney se mostra um dos representantes promissores de um novo vigor do veio mais expressionista e focado no social em nossa jovem ficção, para além daquela tematização da literatura e da vida literária, e todos seus subprodutos já desgastados (a metalinguagem, o experimentalismo gráfico, a morte do Sujeito, a suspeição quanto à legitimidade do Narrador, etc etc etc), e coloca em foco um dos temas mais candentes da contemporaneidade: a submissão das relações familiares à lógica do mercado, os ritos de passagem entre gerações recodificados como a “inserção do jovem no mercado de trabalho”.

Assim, o caçador de made in´s se enforca, desgostoso com a possibilidade de que viver tenha como epitáfio (como vira num cemitério) “laborum meta”; assim, o conflito  com o pai, calcado na (nunca ultrapassada, infelizmente) questão sexual  do narrador (gay) de O dia que comi como o faz um rico, não se resolve pelo descompasso profissional entre as gerações (o pai, peixeiro; o filho, médico com doutorado nos EUA, embora se apaixone e tenha um relacionamento com um…peixeiro); assim, em Afetuosos teoremas de Martín (o leitor deve ter notado o capricho de Roney com os títulos), as figuras familiares se tornam presenças fantasmáticas, sombras, axiomas miasmáticos.

Pena que o resultado textual nem sempre siga esse vigor de ideias, de percepção do mundo atual. Afetuosos teoremas de Martín, principalmente, precisaria de uma revisão radical.[1]

Quanto ao conto A doença do mundo, ele me parece corresponder ao Zeitgeist convocado pelos outros três, essa interpenetração tão contemporânea de obrigação de produtividade (e até a alegria e a diversão se tornam uma espécie de produtividade neste nosso mundo) e de um desânimo corrosivo. Gostei do fato de que neste conto as referências culturais (no caso, especificamente Laranja Mecânica) se resolvem não como referência apenas, mas dentro do imaginário e movimento do próprio texto (ainda mais sabendo que Roney pode se valer de outros recursos, não apenas dessas referências, como acontece com tantos outros autores jovens). É a história de uma deprimida que começa a tomar uma substância misteriosa e volta a ser uma pessoa “animada”, “produtiva”, para espanto do seu companheiro. Deixo ao leitor descobrir o componente principal desse preparado tão eficiente.

O segundo bloco de quatro, a meu ver, deveria encerrar a coletânea e assim ela ficaria como um registro sólido de um momento da vida de escritor de Thiago Roney. É a ele que pertence o conto-título, cujo contraste do tipo de atividade profissional (pipoqueiro) e de aspiração (escritor) renderia mais, sem frases de efeito (“O amor é um desintegrador da substância coletiva”). De qualquer forma, o relato evolui para uma situação bastante  engraçada, bizarra e interessante, aproveitando como “amada” um ser bastante presente no imaginário da leitura e destino dos livros. Só achei imperdoável e rebarbativa (e, em última instância, mostrando pouca confiança na inteligência e atenção do leitor) a última frase do texto, que destrói todo o efeito construído pelo autor.

O gozo sem vida de Joana é, a meu ver, um dos três melhores momentos do livro (junto com A doença do mundo  e O dia que comi como o faz um rico)—e  até poderia encerrá-lo; e prova de que um realismo mágico que não seja apenas “saramandaico” (ou seja, personagens esquisitos, sem nada por trás que justifique essa “esquisitice”) ainda é possível. Temos uma mulher que o marido não satisfaz, um amante tosco, borboletas,  orgasmos… e um belo final, como sempre se diz que um conto deve ter quando constrói passo a passo seu “efeito”. Aqui, vemos que Thiago Roney pode ainda ser imaturo em vários aspectos, mas tem o temperamento e a volúpia do escritor verdadeiro.

Também nesse compasso, O tabelião dela, onde ele procurou ajustar o tom narrativo a um personagem alienado do mundo, e que no entanto filtra para nós a realidade à sua revelia, é quase um personagem de Francisco J. C. Dantas em miniatura (só não convence muito, para um personagem autoproclamado antimoderno, que ele assista a filmes de Lynch ou Tarantino, esses são filmes a que o escritor Thiago Roney assiste, e ele precisa estar atento para esse tipo de interferência das próprias referências).

Óculos do vô Tico é uma experiência (inclusive na disposição tipográfica), que pode ser louvável para os rascunhos, esboços, projetos e tentativas, mas que devia ter ficado na gaveta.

O mesmo se pode dizer com narrativas do terceiro bloco, o qual enfraquece muito o conjunto, por conter os textos mais imaturos, mais mal-acabados, e que só estão fazendo número em O estouro da artéria de um cavalo húngaro.

Assim, eu também cortaria sem dó nem piedade 439 (nem tudo o que se escreve deve ser publicado, é uma lição preciosa e sempre desconsiderada), assim como O pintor. Nem vou me deter neles. Já  Vitamina C , no qual voltam os miasmas familiares, a presença dos “entes queridos” meio fantasmática e tênue, apesar de me parecer mais uma primeira versão, ainda tentativa, de conto, um esqueleto de texto, uma coisa meio esboçada, em termos de atmosfera é um dos mais interessantes do livro, com várias tensões aflorando, apontadas aqui e ali, de uma forma que se entremeia ao cotidiano familiar (e que o coloca ao lado daqueles do primeiro bloco).  Da maneira como está, dá para gostar do texto, mas creio que poderia ser um baita conto, se fosse mais trabalhado. E a vitamina C do título,que poderia representar um elemento de ironia dissolvente, acaba caindo de paraquedas no final da narrativa.

O último conto,  O Jogo ou Como cortar uma faca com outra faca é muito problemático, principalmente porque para marcar a diferença da “sedução” do escritor, em contraponto à sua figura real insatisfatória e “broxante” (“Mas como pode existir um gênio nas letras, do tipo que  escreve isto (…) E mesmo assim na vida ser um bundão?”), ele coloca trechos do sujeito, e eles são lamentáveis, quase insuportáveis. O texto me lembra as experiências de André de Leones, antes de Terra de Casas vazias, discursos narrativos meio curto-circuitados que não se resolvem muito bem e, ao contrário de A doença do mundo, aqui as referências (no caso, O jogo da amarelinha, de Cortázar) não funcionam muito bem.

Achei genial a frase “Porra, gosto de literatura pra caralho, mas gosto de pica também” (tem outra ótima,  “Deixou meu espírito molhadinho de novo”, lembrando que é o jogo de sedução entre autor e leitor) . E ficou  bacana a girada autorreferencial que “quase” termina o relato e o livro: Quem sabe não conheço o carinha que escreveu O estouro da artéria de um cavalo húngaro”.  Pena que é “quase”, não sei se é necessária a sequência (aliás, uma frase meio desajeitada): “Ah, e lógico que o filhadaputa não me broxe”. O problema central talvez seja a oscilação entre uma possível sátira aos próprios personagens e um possível erotismo de negaças e aproximações.

Contudo, como se pode constatar, temos de ficar de olho em Thiago Roney. Não acho que ele vá nos broxar no futuro.

(escrito especialmente para o blog, em agosto de 2013)

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[1] Mesmo nos outros, há problemas em certas frases mal ajambradas (“a dúvida arfava em minha cabeça”), em adjetivos mal escolhidos (“saltei insólita”), mesmo que se pense na “liberdade criativa”. Mas já apontei para o autor os problemas vocabulares e gramaticais, e eles não vêm ao caso aqui, onde o objetivo é dar uma ideia do livro ao meu leitor.

 

13/08/2013

A PELE QUE HABITO: o problemático “Divórcio” de Ricardo Lísias

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“De vez em quando, tenho necessidade de ficar muito quieto. Não naquele momento: eu chorava no meio da avenida Paulista para ver se alguém vinha me abraçar e assim me ajudava a conservar, pregada à carne viva do meu corpo, o restinho de pele que minha ex-mulher tinha deixado. Ninguém.” (Ricardo Lísias, Meus três Marcelos)

“Acho que o diário e o que minha ex-mulher fez no Festival de Cannes me feriram tanto porque, ao me descarnar, minha interioridade ficou completamente exposta.” (Ricardo Lísias, Divórcio)

 “Tenho curiosidade por saber o que vou escrever daqui a cinco anos”. (idem)

(uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 13 de agosto de 2013)

MEUS TRÊS RICARDOS

Em Divórcio o protagonista afirma: “meu corpo estava sem pele”, logo na primeira página.  Com a pele arrancada (que vai se recompondo conforme ele se recupera do trauma do seu sórdido divórcio e  fortalece sua técnica de corredor para participar da  São Silvestre de 2011, quando terminará sua provação pessoal e começará, com o ano novo, a escrita do romance intitulado Divórcio), ele, Ricardo Lísias, o personagem, se descola do próprio autor, embora ainda não se transforme de pronto no futuro narrador do livro, frente ao qual ele diz “Estou de fato dentro de um texto que escrevi”[1], e que repassará toda a  agônica experiência[2] de traição, separação e superação em quinze capítulos, que constituem como momentos de uma prova de pedestrianismo em que os três Ricardos se equacionam e se interpelam. Então, divórcio é também uma metáfora para a separação que se opera entre a própria pele e a dos caracteres que se cria num universo ficcional.

Este deveria ser o clímax da série de experimentos notáveis que Ricardo Lísias (o autor) encetou após a publicação de O Livro dos Mandarins (2009), com a chamada autoficção. Trata-se, aliás,  da extrapolação do conto Meus Três Marcelos (2011)[3]: o indiscretamente lido diário da esposa reduz Ricardo Lísias, o personagem, a um papel infantilizado e autista: ela (reproduzindo o comportamento de uma determinada faixa social que “se deu bem” no Brasil pós-FHC e Lula[4]) serve-se do seu status de escritor prestigiado, enquanto o trai sem culpa:

 “Por que eu disse sim? Acho que nem este livro vai me dizer. Poucas coisas são mais ridículas, e de novo clichês, que gente que subiu na vida trabalhando. Aceitei casar com uma pessoa que progrediu com o próprio suor…

    Os bem-sucedidos, que começaram a se tornar muito presentes nos anos do governo de Fernando Henrique Cardoso e se solidificaram com Lula, sempre foram alvo do meu desdém. De repene, eu estava no meio de pessoas que deram certo na vida. Uma galera que ganhou dinheiro trabalhando…”

Em contrapartida:

“Tenho 36 anos e uma renda, há algum tempo, que me permite figurar entre os privilegiados. Mesmo assim, nunca fiz nenhuma aplicação financeira. Não guardo dinheiro. Compro livros com tudo o que me sobra. Jamais quis ter um carro ou me preocupei em comprar uma casa. Já gostei de algumas mulheres e ainda vou encontrar um grande amor para ter filhos e passar o resto da vida.”[5]

Ao longo dessa fase “autoficcional”, na qual se destaca O Céu dos Suicidas (2012), Lísias confirmou-se como o grande nome da sua geração (ele nasceu em 1975), com belos marcos para comprovar sua “liderança” nessa “corrida” imaginária, a partir da estreia em 1999 (Cobertor de Estrelas, que já era ótimo), movimentando-se com destreza desde as mais estreitas vias do conto e da novela até as avenidas mais largas do romance, trilhadas com uma desenvoltura que resultou num romance tão esplêndido como O Livro dos Mandarins.

O novo romance, nessa trajetória, representa um tropeço, um passo em falso. Não só fica a dever a Meus Três Marcelos no impacto e eficácia da dramática e um pouco torpe situação aí evocada-simulada, como deixa a desejar num aspecto em que Lísias sempre se mostrou um craque: a adoção do tom exato para a sua narrativa, por mais que ela nos levasse pelos caminhos do caos e da desagregação da mente e da linguagem dos personagens (sequer seu gosto de desdobrar seus relatos e criar-rememorar incidentes que parecem nada ter a ver com o eixo central mostra-se bem calibrado desta vez).

Pode-se objetar que Divórcio é escrito num diapasão ainda mais experimental do que os anteriores, com sua releitura em espiral dos mesmos elementos, à medida que o personagem vai ficando mais fortalecido e passando o bastão para o narrador, e talvez então se trate de uma não-identificação minha com o texto enquanto leitor (mesmo sendo admirador contumaz dos textos de Lísias, há alguns anos um dos meus ficcionistas favoritos), de uma simples (e total) falta de empatia com esse pôr-se a nu (ou “ficar sem pele”, para ficar nos termos do relato), que me parece artificioso, no pior sentido da palavra. Há um momento em que o livro chega a  crescer, quando narra as reações hostis à utilização do diário da esposa por parte do personagem, a revolta contra o uso de eventos pessoais na “ficção”(“a situação mudou e os fofoqueiros passaram a achar um absurdo que tudo que me contaram fosse registrado. Um deles  disse que eu esta indo longe demais. Para que ser tão radical? (…) a fofoca precisa continuar apenas fofoca, já que as pessoas são assim mesmo, o Brasil funciona desse jeito e ´todo mundo tem a sua zona cinzenta´”)[6]; no geral, ele me deixou a impressão de “mais do mesmo”: o que despontava, na largada, como uma experiência ainda mais “radical”, na chegada aparece com todos os sintomas da diluição.

No entanto, é bom mesmo que se trace uma fronteira nítida entre autor e personagem/narrador. Pois não é possível que Lísias-autor tenha opiniões tão pueris, estreitas e mal formuladas sobre, por exemplo, o adultério (“Adultério é para gente vulgar. Sexo, depois da adolescência, só é bom se tiver afeto junto”)[7] ou a variação de pontos de vista na narrativa do século XX, relativizando a “verdade”[8],   ou ainda se permita descrições sexuais tão constrangedoras[9]. Aí, parece que o descolamento de pele foi total. E Divórcio se ressente de ela não ter se recomposto a contento nas transfusões entre os três Ricardos. De qualquer forma, é apenas um momento menor de um talento de quem nos habituamos a esperar o máximo. Também tenho a maior curiosidade por saber o que ele escreverá daqui a cinco anos.

VER TAMBÉM NO BLOG:

https://armonte.wordpress.com/2012/04/14/o-livro-dos-mandarins-satira-deliciosa-a-linguagem-da-globalizacao/

https://armonte.wordpress.com/2012/12/11/destaque-do-blog-duas-vezes-o-ceu-dos-suicidas/

e sobre Lísias e a autoficção:

https://armonte.wordpress.com/2012/11/27/destaque-do-blog-diario-de-um-medico-louco-de-edson-amancio/

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[1] “…lembrei do primeiro conto que escrevi na vida, há mais de dez anos, a personagem também repassava na cabeça uma série de coisas para tentar manter a lucidez. Estou de fato dentro de um texto que escrevi.”

[2] “Descarnado, o tempo inteiro eu esperava alguém se aproximar e me dar uma explicação. Um corpo sem pele não consegue achar nenhuma resposta (…) O mundo oferece muito pouco para as pessoas que estão muito vulneráveis.”

[3] Há um conto chamado Divórcio, publicado na PIAUÍ, mas eu não o li ainda.

[4] “Minha ex-mulher não existe: é personagem de um romance. O crescimento brasileiro dos últimos anos correu muita gente em troca de um apartamento próprio, um emprego com salário de dez mil reais e outros duzentos e cinquenta mil no banco.”

[5] O que me leva a especular que Adriano Schwartz em sua resenha do livro na Folha foi muito comedido ao indicar a presença de um “leve” tom panfletário.

VER http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2013/08/1320743-critica-tema-e-narrativa-evoluem-juntos-em-romance-divorcio-de-ricardo-lisias.shtml

[6] Esse assunto do aproveitamento do material da realidade sempre fascina, e me traz à memória o bafafá com o aparecimento dos primeiros (que depois acabaram sendo os únicos encontrados) capítulos de Preces atendidas, o indiscreto romance derradeiro de Truman Capote, que determinou seu ostracismo social no final da vida.

[7] Convenhamos, o próprio termo “adultério” já é um pouco risível e só na época de Bentinho poderia ser usado sem fazer alguém corar. E toda essa caracterização de “gente vulgar/” ou mais genericamente, “vulgaridade”, faz parte de um pacote panfletário que o discurso de Divórcio não absorve. Ele teria de ter um escopo mais radicalmente moralista (mesmo que não se concordasse com ele), ou pelo menos mais dissolvente (como o que Alexandre Dal Farra atinge em Manual da Destruição) para ser menos superficial.

[8] “Sempre me irritaram os romancistas que pretensamente ´retratariam o ponto de vista do outro´. Aqueles que dão espaço para posições contrárias apresentam vários pontos de vista e relativizam tudo. Parte da teoria literária os tomou como grandes artistas justamente por conta disso: eles não acreditam apenas no próprio ponto de vista e suas personagens e situações sempre mostram o outro lado da moeda. A disseminação desses chavões é normal até nos meios mais especializados. A desonestidade me parece evidente. Os vários pontos de vista são criados pelo mesmo autor e a leitura é determinada por ele. Os mais competentes simplesmente ocultam essa enorme manipulação”. Ora, ora, aqui está sendo confundindo um processo (ou melhor, um procedimento) técnico com um postulado ético. Não sei por qual motivo o foco narrativo variado teria de necessariamente indicar um relativismo moral por parte do autor (Faulkner que o diga). Parece-me que é uma conquista da técnica narrativa para evitar maniqueísmos psicológicos estritamente literários. Agora, seu uso por escritores de segunda e acadêmicos universitários, é outro assunto. Não tem muita serventia fazer declarações generalizantes, tanto quanto dizer que “No estágio atual da ficção, é preciso que o esqueleto de um romance esteja inteiramente à vista” !!!??? Ou ainda: “A transcendência quase sempre está na palavra não!!!??

[9] Em larga medida por causa da terminologia adotada, que aniquila inapelavelmente um texto literário. Ricardo ainda utiliza “pau”, mas temos de aguentar “vagina”, “ânus”, o rapaz foi “penetrado” e outras pérolas pudicas e formalistas que, faça-me o favor! Creio que em geral, mas especialmente num discurso rancoroso e íntimo, caberiam melhor “buceta”, “cu”, “enrabado”. Novamente creio que Alexandre Dal Farra foi muito mais feliz (apesar de toda a “negatividade” do discurso) em Manual da Destruição e creio que A fúria do corpo, de João Gilberto Noll, continua sendo o paradigma (pelo menos, na ficção brasileira) do registro literário de cunho sexual minimamente convincente e natural.

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10/08/2013

POUCO ANTES DO DILÚVIO: o universo de Isaac Bashevis Singer

 

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(resenha publicada originalmente  em 07 de dezembro de 2010, em A TRIBUNA de Santos, sem a citação inicial e as notas de rodapé):

“…quando finalmente resolvi atender o telefone, ouvi uma voz desconhecida que tossia e gaguejava como alguém que não sabe por onde começar. Dizia o sujeito:  Sou um leitor fiel seu. Comecei a ler suas narrativas muito antes de o senhor se tornar conhecido. Seria uma grande honra para mim se… O homem do outro lado da linha perdeu a fala.

   Convidei-o a subir a meu quarto e dez minutos depois ele estava batendo na porta…”

A moldura narrativa de O produtor cultural”, 11ª  das 20 narrativas de A morte de Matusalém e outros contos (The death of Methuselah and other stories, traduzido por  Alexandre Hubner), transcorre no Brasil e reitera um esquema que domina a maioria das situações do livro: alguém conta uma história para o autor, Isaac Bashevis Singer (1904-1991): em O produtor cultural e Uma vigia no portão são encontros com desconhecidos durante uma viagem; em A cilada e O contrabandista são pessoas que o visitam em seu apartamento; em O amigo da casaPresentesFugindo para lugar nenhum e A linha extraviada são conversas em cafeterias e clubes de escritores.

Neles todos, delineia-se o universo dos judeus poloneses que submergiu na Segunda Guerra, junto com a língua iídiche. Não se pode esquecer também de O denunciante e o denunciado, que é uma variação enviesada do esquema básico, pois trata-se de uma anedota envolvendo conhecidos do autor.

Geralmente são narrados infernos passionais, em meio a uma cultura sufocante em seus valores rígidos, quer nos rincões já remotos do leste europeu, quer nos lugares pós-imigração em massa devido ao antissemitismo europeu que resultou naqueles horrores que conhecemos{[1]}.  Particularmente notáveis são O amigo da casa, no qual se fala do amante que é tolerado e muitas vezes incentivado pelo marido (o que ganha uma variação brilhante em “A cilada”{[2]}) e Uma vigia no portão, em que Singer nos revela a patologia do ciúme machista: “quando me dava conta de que tinha duas filhas que estavam crescendo e que um dia seriam tão dissimuladas quanto as outras mulheres, tinha vontade de matá-las também…”

Também há as histórias em que tias pretéritas “fofocavam” nas reuniões de família, contando casos de paixões inusitadas, como a do gênio matemático que abandona um casamento triunfal, em Logaritmos, ou o nobre russo degredado que se apaixona por uma estúpida criada, a ponto de casar-se com ela, moribunda, após ser desfigurada por um incêndio, em Deslumbrado. Em outros momentos, há uma primeira situação que engendra a narrativa da situação principal, como a do trio de presos em Enterro no mar (no qual uma garota foge com dois homens, seus dois “maridos”), e o grupo de desocupados, em O recluso (outra história forte de machismo e possessividade).

Talvez, pelo exotismo, as narrativas “diretas” que chamem mais atenção sejam as que mostram fantasias sobrenaturais mergulhadas no imaginário judaico, como o curandeiro arrebatado por demônios, em O judeu da Babilônia {[3]}, os habitantes do inferno que apresentam suas reivindicações, em Shabat na Geena ou o personagem do conto-título, na véspera da sua morte aos 969 anos, que tem sua última tentação de luxúria. Eu, porém, sem desdenhar dessas narrativas, prefiro os maravilhosos contos mais pé-no-chão, como Disfarçado, a história de um marido que desaparece; quando a mulher cai no mundo para descobrir seu paradeiro, descobre que ele vive com outro homem, travestindo-se para enganar a comunidade onde se instalaram; A amarga verdade, na qual após uma separação de anos, por conta da guerra, o protagonista descobre que seu melhor amigo, um casto paspalhão, casou-se com uma das mais desavergonhadas prostitutas que ele freqüentara; e O hotel, em que a um velho negociante, que espera a morte em vida, aposentado em Miami,  é ofertada a chance de ainda se sentir vivo, tomado pela “força que tem a última palavra: o desejo, que nos faz amar, pecar, que nos consome, mas sem o qual não entendemos o que é viver.

 

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[1] “A própria criação do homem foi uma decepção para Deus. Ele teve de destruir sua obra-prima, que havia se corrompido. Segundo o Talmude e o Midrash, a corrupção era de ordem totalmente sexual. Pouco antes do dilúvio, até os animais tinham um comportamento sexual pervertido…”

[2] Este conto é todo ambientado nos EUA, embora os personagens sejam refugiados judeus da Europa.  A narradora (que está conversando com o autor), Regina Kozlov, conta que conheceu o marido quando era camareira de um hotel, “um dia eu era camareira e poucos dias depois estava noiva e prestes a tornar-me a senhora Kozlov”, condição que descobre não ser nada agradável: “Foi uma vida extremamente solitária desde o princípio. Boris acordava todos os dias às sete em ponto. Tomava sempre o mesmo café da manhã. Tinha úlcera, o médico o obrigara a seguir uma dieta, da qual não se desviava nem um milímetro. Deitava-se às dez da noite, nem um minuto a mais, nem um minuto a menos. Não trocou a cama de solteiro por uma de casal, pois queria esperar o momento de comprar uma casa. Vivíamos entre judeus. Tinha eclodido a guerra (…) Era um daqueles homens antiquados que achavam que a única finalidade do casamento era ter filhos. Como não podíamos tê-los, as relações sexuais eram supérfluas”. Um dia, ela solta um chiste, após o marido (que mexia com ações) afirmar que as ações das petroquímicas “chegaram ao fundo do poço”: “Não sei por quê, mas comentei: Então estão como eu”. Boris traz, então, o filho de uma irmã que vivia em Londres e que veio estudar nos EUA, para a casa deles: “Minha primeira reação ao saber das novidades foi de alegria. Não agüentava mais aquela solidão. Deus deve ter ouvido as minhas preces, pensei. Mas logo ficou claro para mim que o Boris tinha, à sua maneira conspiratória, arquitetado aquele plano todo. Homens como ele são por natureza impelidos a fazer planos com muita antecedência e a executá-los meticulosamente. Apesar das acusações que fazia a Stálin, chamando-o de asiático sanguinário, de Gêngis Khan do século XX, Boris sempre me pareceu ser ele próprio um Stálin. Nunca sabemos o que se passa pela cabeça de pessoas assim. Vivem urdindo intrigas vingativas…” E acontece o inevitável: a narradora e o sobrinho do marido, Douglas (14 anos), se tornam amantes, com a complacência do marido: “Um ou dois dias após a chegada de Douglas, Boris começou a ir para o escritório todas as manhãs, e eu sabia que não era por acaso. Às vezes tinha vontade de perguntar-lhe: Qual o sentido de tudo isso? Mas sabia que ele não me diria a verdade. Junto com o amor pelo rapaz, eu era acometida por um temor silencioso, o receio de cálculos frios e maquiavélicos. Tinham-me preparado uma cilada, e eu estava fadada a cair nela…”

    Ela nunca fica sabendo se os dois, tio e sobrinho, estavam mancomunados.  Douglas anuncia que foi aceito por uma faculdade não em Nova York, porém no Meio-Oeste, propõe a ela uma “noite de despedida” e ela se recusa (“A última noite a pessoa precisa passar consigo mesma”, diz a ele). Quando ele se vai, ela se atira do quarto andar: “Quebrei os braços. Quebrei as pernas. Fraturei o crânio, e os médicos tentaram colar os pedaços. Continuam tentando… Não vou viver mais muito tempo. Só vim para dizer ao senhor uma coisa: de todas as esperanças que um ser humano pode cultivar, a mais esplêndida é a morte. Senti o gosto dela, e quem quer que tenha experimentado esse êxtase não pode senão rir dos outros pseudoprazeres…” O interlocutor replica dizendo que é raro que alguém queira apressar o momento de desfrutar dessa “suprema alegria” que é a morte. E ela responde: “A espera faz parte da alegria”.  E Boris e Douglas: “Nunca mais tive notícias nem dele nem do sobrinho”.

 

[3] “Era evidente  que os maus espíritos o estavam dando em casamento a um demônio-fêmea. Aterrorizado, e reunindo o que restava de suas forças, ele conseguiu exclamar: Shadai, destrua Satã, Shadai!

       Tentou fugir, porém seus joelhos fraquejaram. Foi cingido por braços compridos, que o beliscavam, puxavam, faziam-lhe cócegas e o socavam como se ele fosse massa de padeiro. Agarravam-se a seu pescoço, beijavam-no, acariciavam-no, violentavam-no. Espetavam-no com seus chifres, lambiam-no, afogavam-no em baba e saliva. Uma giganta o estreitou contra seus seios nus, depositou todo o peso de seu corpo sobre ele e suplicou: Não me envergonhe, Kaddish, diga: Com este anel negro, caso-me contigo, segundo a blasfêmia de Satã e Asmodeu”

 

   

   

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