MONTE DE LEITURAS: blog do Alfredo Monte

27/09/2011

Parede e muro: O médico e o mutismo do monstro

Aproveito para colocar aqui no blog o texto-irmão de O MÉDICO E O MONSTRO LOQUAZ (https://armonte.wordpress.com/2012/03/18/autodiagnosticos-febris-o-medico-diante-do-monstro-loquaz/); escrevi ambos para a segunda aula do curso de maio-junho de 2008, AS MARGENS DERRADEIRAS– alerto que, como os demais textos que coloquei dessa safra, toda a linha argumentativa é extraída de uma interpretação freudiana da obra condutora do curso, O ESTRANHO CASO DO DR.JEKYLL  E DO SR. HYDE

 

“A burguesia, cortando-nos os laços com os nossos contemporâneos, encerra-nos no casulo da vida privada e define-nos, às tesouradas, como indivíduos. O que significa: como moléculas sem história que se arrastam de um instante para o outro. Pela contingência do nosso ancoramento na Natureza e na História, isto é, pela aventura temporal que nós somos no interior da aventura humana, descobrimo-nos singulares. Assim, a história nos faz universais na medida exata em que a fazemos particular.”

(Jean-Paul Sartre, “Merleau Ponty”, 1961)

Bartleby, o escriturário [1] foi publicado em 1856 (o ano do nascimento de Freud, em seis de maio) na coletânea The Piazza Tales. Já era a fase em que os escritos de Herman Melville não despertavam qualquer interesse, contrariando a expectativa comercial (e, para os padrões da época, artísticas) dos seus primeiros livros, enquadrados como “exóticos”, relatos aventurescos de mares distantes (tais como os  relatos similares de Robert Louis Stevenson décadas mais tarde): Typee (1846) e Omoo (1847)[2] .

Tendo como subtítulo “Uma história de Wall Street” (detalhe nem um pouco irrelevante, como veremos), Bartleby é narrado pelo patrão do personagem-título, muitos anos depois dos acontecimentos. Esse narrador, já de “certa idade, acaba de sofrer um golpe em sua carreira, que talvez tenha lhe dado o lazer e a motivação para remexer num episódio tão ínfimo, falando de um indivíduo insignificante de quem tem informações “escassas” e “vagas”: “Pouco antes da época em que esta pequena história começa, minhas ocupações haviam aumentado consideravelmente. O antigo e rendoso cargo —ora extinto no estado de Nova Iorque— de Conselheiro do Tribunal da Chancelaria, tinha-me sido conferido. Esse cargo, sem ser muito árduo, era no entanto perfeitamente compensador. Eu raramente perco a calma; muito mais raro ainda é eu me entregar a perigosas indignações perante erros e ofensas; mas permitam que aqui me deixe arrebatar declarando que considero a súbita e violenta extinção daquele cargo, decretada pela nova Constituição, como um ato…prematuro! tanto mais que eu contava com rendimentos vitalícios e, assim, só recebi proventos de uns breves anos. Mas falei disto só de passagem.”

Gostaria que não se perdesse esse trecho de vista, uma vez que ele será alavanca para nos ajudar a entender o narrador, tal como acontece com o Sr. Utterson em Jekyll & Hyde. Por enquanto, registremos apenas a matreirice do autor, “falei disto só de passagem”, como se numa narrativa curta e cerrada (não há divisão em capítulos ou segmentos) como Bartleby algo pudesse ser só de passagem.

Pois bem, o narrador tinha um escritório meio tabelionato meio advocatícioem Wall Street.Aprincípio se valia de três funcionários: dois mais graduados (Mr. Turkey ou Sr. Peru e Mr. Nippers ou Sr. Alicate) que se alternam em produtividade e atitudes extravagantes, isto é, um é sóbrio, comedido e eficiente pela manhã (Turkey) enquanto o outro parece vítima de indigestão e mau-humor, continuamente irrequieto e insatisfeito com os apetrechos e móveis  (Nippers), enquanto à tarde, um se torna falastrão e meio inconveniente, além de relaxado (Turkey), contrabalançado pela atitude mais calma e suave do colega (Nippers), mantendo-se assim o equilíbrio; também há um aprendiz e contínuo, guri, Ginger Nut, “Noz de Gengibre” (na versão de Irene Hirsch, Pão-de-Mel), o qual adquiriu tal nome devido à sua infatigável disposição de comprar para os outros funcionários bolinhos de gengibre.

Num dado momento (justamente quando o narrador é investido do cargo cuja extinção lhe é tão revoltante), é preciso contratar mais um escriturário (ou copista, é bom lembrar que é ainda uma época de cópias feitas à mão, antes mesmo das máquinas de escrever) e então… Bartleby: Em resposta a um anúncio, apareceu certa manhã no meu escritório um jovem… Ainda me parece estar vendo essa figura: um lívido perfil, tristemente respeitável, incuravelmente perdido!” Para o narrador, é um alívio contratar um jovem tão apagado, diante da fogosidade e arrebatamento alternados dos seus dois funcionários veteranos.

O escritório é dividido por portas de vaivém, patrão num cômodo, empregados no outro. Bartleby é instalado na parte do patrão, com um biombo para separá-los, ficando, como se diz no relato, “ao alcance da voz”. Isso fornece ao novo funcionário a seguinte vista: “Coloquei a sua escrivaninha junto de uma pequena janela lateral que originalmente proporcionava uma vista meio de lado para uns pátios sombrios, de tijolo, mas que agora, devido a subseqüentes construções, não dava para vista nenhuma, embora filtrasse algumas réstias de luz. A três pés das vidraças, erguia-se uma parede, e a luz descia do alto entre dois prédios altos, como de uma pequena abertura numa cúpula. Portanto, Bartleby vai se instalar  de uma forma no coração de Wall Street que parece tornar literal o significado do nome, “Rua da Parede” e que nos faz avaliar bem as perspectivas de sua existência como insignificante peça burocrática, que está ali à mão, “ao alcance do ouvido”. Justamente nessa condição, um dia o patrão o convoca para conferirem juntos um documento original e sua cópia (para verificar sua exatidão): “…sentei-me logo à escrivaninha com a cabeça inclinada para o original e estendendo impacientemente a mão direita para o lado com a cópia, de maneira que Bartleby, mal saísse do seu retiro, pudesse pegá-la e começar a tarefa sem mais demora.”  Todavia, ele ouve uma resposta inacreditável (e uma das frases mais célebres da ficção): I would prefer not to”, “Prefiro não fazer” [3]. O que impede o empregador de despedi-lo na hora; de, como diz, escorraçá-lo sem mais delongas do escritório? O fato de não sentir “inquietação, raiva, impaciência” ou, mais importante, “impertinência”: “O que fazer?  Mas o trabalho era urgente e resolvi deixar por isso mesmo o incidente, reservando-o para horas vagas”. Começa então a estranha relutância desse édipo em enfrentar o enigma da esfinge, ou pelo menos agir. Se Bartleby “prefere” não agir, o seu patrão não se decide a agir. Em poucos dias, acontece novo incidente e a mesma frase, desta vez testemunhados pelos outros três assalariados: “Com qualquer outro que não ele, eu teria ficado imediatamente irado, e, sem mais explicações o teria ignominiosamente banido da minha presença. Mas havia em Bartleby algo que na apenas me desarmava estranhamente, mas que, de certa forma, me tocava e me desconcertava. E o leitor? Creio que se o leitor contemporâneo se exaspera, imagine o da época, que nunca encontrara pela frente personagem desse tipo. Mas deixemos para depois de repassar o texto essa questão que me parece importante, a da reação do leitor. Por sua vez, o tipo de reação quase passiva de Bartleby (e nada irrita tanto uma pessoa série quanto uma resistência passiva), apesar da enormidade do seu “preferia não fazer”, é evidenciado pelo trecho seguinte:

Narrador: É como sempre se faz. Todo copista deve conferir sua cópia, não é assim? Não quer falar? Responda!

    (…) Tive a impressão de que, enquanto lhe falava, ele pesava cuidadosamente as minhas ponderações e que ele apreendia plenamente seu significado mas, ao mesmo tempo, uma soberana consideração o forçava  a responder daquele jeito.

Narrador: Então está decidido  a não fazer o que lhe peço? Mesmo sendo o meu pedido de acordo com a praxe e o bom senso?

    Em breves balbucios, ele me deu a entender que, nesse ponto, o meu raciocínio era correto. Sim: mas sua decisão era irrevogável!”

E é justamente a praxe e o bom senso que são colocados em xeque, já que a decisão irrevogável de Bartleby “desautomatiza” o quotidiano, obriga patrão e colegas a conviverem com algo completamente inusitado. E um outro efeito colateral: a atitude de Bartleby (Entrementes, permanecia sentado no seu canto, alheio a tudo que não fosse seu próprio e peculiar trabalho ali) força seu patrão a prestar atenção nele: “Sua última conduta memorável levou-me  a observar de perto sua atividade. Constatei que nunca saía para comer; que, aliás, nunca ia a parte alguma. Também não me lembro de tomar conhecimento de sua vida fora de meu escritório. Ele era uma sentinela perpétua naquele canto.” Embora se ocupe intimamente do “problema” que surgiu em sua vida, o narrador chega à conclusão provisória de que as excentricidades do empregado são involuntárias e de que ele lhe é útil, ainda assim. E sua auto-gratificação se compraz em manter Bartleby, auxiliá-lo mesmo, “agradá-lo em sua estranha obstinação”, o que custaria nada ou muito pouco: “Se eu demiti-lo, ele pode acabar com algum empregador menos indulgente, sendo tratado de forma rude, e talvez miseravelmente levado a passar fome”. Apesar dessa predisposição tão indulgente e boa para a auto-estima, a atitude de Bartleby o espicaça por dentro e ele procura criar situações, num “impulso diabólico”, um desiderato meio inexplicável, que levem o estranho funcionário a responder-lhe da mesma forma: Eu ardia por ser contrariado novamente”. Assim como o Sr. Utterson de Jekyll & Hyde, o narrador é um pouco nosso representante na trama e nos identificamos com seus sentimentos. Mas é preciso ser um leitor daquela época, ainda não treinado pela suspeita pós-nietzschiniana e freudiana, para não ver nesse ardente desejo de ser contrariado o impulso de Thânatos presente no id de ver tudo se desmantelar, de mandar às favas o edifício laboriosamente construído pelo esforço quotidiano, a meada cinzenta se desenrolando em frente a uma parede. Tudo bem que o superego afague o ego com idéias de bondade, generosidade e indulgência.

Há regras no jogo entre eles: Bartleby nunca aparece na primeira invocação do seu nome (“Como um fantasma, submetido às leis da invocação mágica, ao terceiro chamado ele apareceu à entrada de seu eremitério, lemos numa cena em que ele se recusa a ir à sala contígua chamar o colega Nippers). E o resultado do jogo: “…em pouco tempo se tornara fato concreto em meu escritório que um jovem escriturário pálido, que atendia pelo nome de Bartleby, tinha uma mesa lá; que ele fazia cópias para mim pela tarifa habitual de quatro cents por página (cem palavras), mas que ele estava permanentemente isento de conferir o trabalho feito por ele… além disso, o dito Bartleby em hipótese alguma era enviado em qualquer tipo de serviço trivial fora do escritório; e que mesmo que se lhe solicitasse fazer algo do gênero, normalmente ficava claro que ele preferia não fazer; em outras palavras, que ele simplesmente se recusava a fazer”. Vocês devem notar a ênfase constante do que é habitual (a tarifa habitualmente paga de 4 cents, conferir as cópias com o original) como argumento de qual deveria ser a atitude “normal”, isto é, ancorada no hábito, de Bartleby, e que ele contraria. Um dos encantos da narrativa é a necessidade contínua de racionalização (afinal, estamos em pleno coração de Wall Street, um lugar não muito afeito a fantasmagorias) da tolerância à peculiaridade bartlebyana: Sua constância, seu comedimento, sua produtividade incessante (exceto quando, de pé, atrás do biombo ele preferia sonhar acordado), seu absoluto silêncio e seu comportamento inalterável faziam dele uma aquisição valiosa. O mais importante de tudo era o seguinte: ele estava sempre lá.”

E é esse “ele estava sempre lá” (ou seja, era o primeiro a chegar, o último a sair), tão inocente e aparentemente tão importante no cômputo geral positivo, que levará o relato à sua próxima volta do parafuso, como se o primeiro ato tivesse terminado. Desse primeiro ato, que eu arbitrariamente delineei numa narrativa fortemente cerrada, uma palavra se destaca, em retrospecto: concessão. Foram feitas concessões inusitadas a um mero empregado. O motivo básico e inconteste: a produtividade em copiar, não importando a recusa em circunstâncias mais intermitentes. Bartleby é esquisito, porém é uma peça que funciona na engrenagem. Por ora.

Então, numa manhã de domingo as coisas mudam de figura: o narrador quer ouvir um pregador famoso na Trinity Church e, estando um pouco adiantado, resolve dar um pulo ao “seu” escritório. Anteriormente, ele nos explicara que havia algumas cópias das chaves: uma, com ele; outra, com Turkey, funcionário mais graduado; outra, com a faxineira; a quarta… ele não sabia com quem ficava. Vai descobrir: tenta colocar a sua na fechadura, notando que há resistência: “para minha consternação, uma chave girou do lado de dentro e segurando a porta entreaberta surgiu o rosto esquálido de Bartleby, o qual estava em mangas de camisa e num estranho e esfarrapado roupão, dizendo em voz baixa que sentia muito, mas estava muito ocupado naquele momento e preferia não permitir minha entrada, sugerindo-lhe que desse uma ou duas voltas pelo quarteirão, enquanto ele concluía os tais afazeres. O patrão obedece, e sua cabeça roda à procura de explicações (descartando as hipóteses mais imorais, pelo que conhece de Bartleby), até que volta ao escritório e o encontra desimpedido. Indícios revelam que o empregado se aloja ali como uma “alma penada”: “De pronto senti todo o drama: Que solidão e desamparo terríveis estão sendo revelados aqui! A sua pobreza é grande, mas a sua solidão… que horror! Pensem nisso. Num domingo, Wall Street é tão deserta quanto Petra, e todas as noites de todos os dias são um imenso vazio. E até este edifício, que nos dias de semana fervilha com vida e labor, à noite ecoa de tão absoluta inatividade e durante todo o dia dominical jaz abandonado. E é daqui que Bartleby faz seu lar…”  [4]Engraçada essa idéia de um lugar de alienação e mais valia parecer aconchegante nos dias de exploração do trabalho. Infelizmente, é um sentimento que todos nós temos: os lugares de atividade e agitação, abandonados, nos dão um sentimento intenso de desolação e de inóspito.  A superioridade indulgente do patrão sofre um profundo arranhão: “Pela primeira vez em minha vida, fui tomado por um sentimento de opressiva e doída melancolia. Eu não conhecera até então senão uma leve e nada desagradável tristeza. O laço comum da humanidade fez com que eu fosse golpeado por um irresistível desalento… Pois tanto eu quanto Bartleby éramos filhos de Adão.”

Do território da concessão, partimos agora para o reino da empatia. Ele relembra todos os indícios da pobreza (nunca o vira lendo nem um jornal, nunca ia a lugares para fazer uma refeição, nunca bebia cerveja, ou mesmo café ou chá) e da solidão (nunca soubera de um parente): “E acima de tudo, lembrei-me de uma certa expressão inconsciente de, como definir?, combalida altivez, pode-se dizer, ou uma certa reserva austera.

Só que a empatia é contraproducente e ao lembrar de todos esses indícios, instala-se (eu diria, reafirma-se) nesse outro filho de Caim o sentimento de prudência. Ele poderia ajudar Bartleby, realmente? “Eu poderia oferecer compaixão a seu corpo, mas não era seu corpo que lhe doía; era sua alma que sofria, e a sua alma eu não conseguia alcançar”. O médico está alienado de seu paciente, não há comunicação possível entre a margem de cá e a derradeira onde o outro se encontra. Um dos maiores encantos de Bartleby é a obstinada recusa de Melville em nos dar acesso à mente de seu personagem, e assim é fato: não conseguimos alcançar sua alma.

O narrador bem que tenta: faz perguntas a Bartleby a respeito de onde nasceu ou qualquer fato importante da sua vida. Prefiro não dizer, prefiro não contar, eis as respostas. Aliás, Bartleby prefere não responder. Irritado com tal ingratidão renitente, o impulso de demiti-lo é frustrado pela sensação de que seria impossível fazer mal ao mais infeliz dos seres humanos. Ele pede a Bartleby que seja razoável, pense com calma e adapte-se à rotina, como os outros. Resposta: “No momento, prefiro não ser um pouco mais razoável”. Aliás, a praga do verbo preferir pega no escritório e todos acabam  utilizando-o quase como um ato falho.

E Bartleby radicaliza (e nesse momento, creio que é a experiência comum, o leitor é levado à mesma exasperação sentida pelo narrador): No dia seguinte notei que Bartleby nada mais fez senão ficar de pé em frente de sua janela, no seu devaneio com a parede sinistra. Quando lhe perguntei por que, respondeu que decidira não escrever mais. Exclamei: O quê?! Mas o que é isso agora?! Não vai escrever mais? Ele: Não. Eu: E qual a razão? Ele: O senhor mesmo não vê a razão?” Esse trecho é importante porque se trata de um dos raros momentosem que Bartleby se manifesta diretamente. A arrepiante frase “o senhor mesmo não vê a razão?” parece levar o quotidiano a bater de cara naquela parede em frente, obsedante e determinante. É como se a razão estivesse ali materializada, à frente de ambos.

Prudentemente, o narrador deixa passar alguns dias para voltar à carga. Como Bartleby persiste em sua posição, ele lhe paga o salário, mais uma gratificação e diz: “Chegou a hora; precisa deixar este lugar. Lamento por você. Aqui tem dinheiro, mas trate de ir embora, já que é uma aberração no mundo prático e capitalista um funcionário que se recusa a trabalhar. Que preferia não trabalhar, melhor dizendo, e ao manifestar tal preferência concomitantemente a pratica. Resposta: “Prefiro não ir. O patrão insiste, lhe estende as notas de dinheiro e lhe saúda com um adeus: “Ele não retrucou sequer uma única palavra; tal como a derradeira coluna de um templo em ruínas, continuou de pé, mudo e solitário, no meio da sala deserta.”

E temos mais um jorro autocongratulatório do narrador por ter resolvido a situação com tanta elegância e discernimento: “…minha vaidade sobrepujou a minha compaixão. Não deixava de me congratular efusivamente pela forma magistral com que me livrara de Bartleby… A beleza do meu procedimento parecia consistir na sua perfeita tranqüilidade. Não houve a menor ameaça vulgar nem qualquer espécie de bravata…nem caminhadas exaltadas pela sala, berrando para Bartleby pegar seus cacarecos e ir embora com eles.” Ainda assim, ele fica apreensivo: irá realmente o escriturário embora? “Imaginei que toda a Broadway participava da minha ansiedade e discutia a questão comigo”. Ele vai mais cedo ao escritório e se depara com a presença de Bartleby, que não lhe permite a entrada, alegando estar ocupado. E o narrador mais uma vez obedece “ao poder assombroso que o inconcebível escriturário tinha sobre mim, poder do qual não conseguia escapar. É algo sem precedentes, como se o escriturário da triste figura tivesse obtido um triunfo sobre ele.

O que se poderia fazer? À pergunta: Você vai ou não vai me deixar? a inevitável, nevermoriana resposta será: “Prefiro não deixá-lo e se não fosse tão estranho dizer isso de tal personagem, parece haver uma ponta de malícia. Ou seria o mais absoluto desamparo? Revolta impotente do patrão: Mas que direito se arroga você para ficar aqui? Paga aluguel? Paga meus impostos? Ou será que este lugar lhe pertence?”

E assim Bartleby passa os dias no escritório, sem fazer nada, atrás do biombo, olhando a parede. O nirvana em Wall Street.Nummomento de auto-ironia, o narrador chega a dizer pra si mesmo: “… nunca me sinto tão à vontade como quando sei que você está aí. Pelo menos, eu sinto, vejo, penetro a razão-de-ser predestinada de minha vida. E fico contente. Outros terão papéis mais relevantes a desempenhar; quanto a mim, a minha missão no mundo, Bartleby, é a de lhe proporcionar um escritório para todo o tempo que desejar.” Ora, tal situação não poderia deixar de ter repercussão e se espalhar por Wall Street, o que desmoraliza o escritório e afasta alguns clientes, impressionados com o “fantasma que morava no meu escritório”, que não dá respostas e nem aceita tarefas, o que acaba por esgarçar a empatia do narrador. A meada cinzenta quer recuperar seus direitos… que nenhum fio fique solto: “Resolvi reunir todas as minhas energias e livrar-me de uma vez por todas daquela intolerável assombração” Mas há um lado Hamlet no narrador, que se atormenta: O que fazer? O que decidir? Ele então avisa Bartleby de que passou a achar inconveniente o local do escritório e pretende mudar-se. E que Bartleby não é convidado a acompanhá-lo na mudança: “No dia marcado, contratei carroças e carregadores, fui até o escritório e, como tinha poucos móveis, tudo foi retirado em poucas horas. Do começo ao fim da mudança o escriturário permaneceu de pé atrás do biombo, que eu determinara fosse a última coisa a ser removida… assim que o biombo foi retirado…ali ficou o imóvel ocupante na sala vazia. Demorei-me alguns instantes no vestíbulo para o observar, enquanto algo dentro de mim me censurava.” Mesmo assim ele se despede, “livrando-se” do peso morto, e podemos dizer que se encerra o segundo ato.

No novo escritório, por vários dias o narrador sente a inquietude e o temor de encontrar algum dia Bartleby ali instalado, ”cada ruído de passos no corredor deixava-me sobressaltado” … “mas esses medos eram desnecessários. Bartleby nunca me procurou.

Quem o procura é o novo locatário, que lhe comunica, angustiado, a permanência absurda de Bartleby e lhe diz: “o senhor é responsável pelo homem que lá deixou. Ele se recusa a fazer qualquer cópia, recusa-se a fazer qualquer coisa…recusa-se a deixar o local”. Nosso amigo argumenta que o desanimado fantasma: “não é nada meu.. não tem comigo qualquer relação nem é meu parente” e dias depois é novamente incomodado. Bartleby foi expulso do escritório e agora se recusa a sair do edifício: de dia  senta-se no corrimão das escadas  e de noite dorme no vestíbulo.  Todos estão se queixando. Clientes estão abandonando os escritórios…” E assim cabe ao narrador tomar providências, algo que ele preferia não fazer, com certeza, horrorizado com a idéia de se confrontar com Bartleby e sua própria má consciência.

Ele vai até o edifício, leva Bartleby até o antigo escritório e lhe expõe os fatos. Reposta: No momento, prefiro não me mudar”. O narrador lhe faz ofertas de empregos. Ele recusa, embora deliciosamente acrescente: “Mas não sou exigente(outra de suas raras manifestações, além das recusas em fazer algo que todos acham ser de praxe, habitual, razoável ou de bom senso). Como última cartada (e revelando uma motivação psicológica surpreendente), o narrador o chama para ir morar na sua casa. O monstro: “Não, no momento prefiro não me mudar”.

O narrador se vai, quase fugindo, querendo se afastar daquele demônio de recusa. Chega até a viajar e, na volta, encontra uma carta com a notícia de que Bartleby foi recolhido à Prisão Municipal por vadiagem. Nosso amigo vai até lá: “Assegurei… que Bartleby era um homem perfeitamente honesto e, apesar de suas inexplicáveis excentricidades, digno da maior compaixão. Contei tudo o que sabia a seu respeito e terminei sugerindo que lhe tornassem a detenção tão branda quanto possível, até que algo menos severo se pudesse fazer—ainda que, na verdade, eu não soubesse bem o quê.” Ele pede autorização para vê-lo e o encontra “de pé, completamente só no pátio mais isolado, o rosto voltado para uma alta parede” (isto é, continuando sua existência no escritório em Wall Street). Ao ser interpelado elo antigo patrão, replica: Já o conheço, e nada tenho a lhe dizer”. É quase uma acusação, mas de quê? Será que é mesmo uma acusação? Será que o narrador é mero representante de uma humanidade da qual o escriturário se desligou, como o Homem Invisível de Wells, no veredicto do Dr. Kemp?

Bem, de todo jeito, o narrador procura mitigar a existência do antigo funcionário, dando propinas a funcionários do lugar para que protejam e alimentem o rapaz. Mas Bartleby prefere não jantar. Dias depois, ele volta e encontra Bartleby integrado definitivamente à condição que escolheu: “O pátio estava numa calmaria total… Estranhamente enroscado ao pé do muro, joelhos fletidos, deitado de lado e com a cabeça encostada às pedras frias, assim deparei com o definhado Bartleby. Não se movia. Parei, depois avancei e, debruçando-me sobre ele, vi que seus olhos nublados estavam abertos; parecia, no entanto, profundamente adormecido. Não sei o que me levou a tocá-lo. Peguei sua mão, e um calafrio agudíssimo subiu pelo meu braço, desceu-me pela espinha e estremeci da cabeça aos pés.” O homem “da bóia” da prisão se achega e reclama que Bartleby nunca come. Vive sem comer?” O narrador responde: “Vive sem comer”. O homem ainda pergunta: Ele está dormindo. Resposta do narrador: “Com reis e conselheiros.

O narrador tem ainda uma última palavra a dizer, embora um prosseguimento da história “seja desnecessário”. Trata-se de uma versão, ou de um boato que ouviu sobre a vida pregressa ao escritório do esquisito funcionário: “Bartleby teria exercido uma função subalterna na Seção de Cartas Extraviadas, em Washington, da qual fora repentinamente demitido por uma reforma administrativa. Quando penso sobre esse boato, nem sei exprimir de forma adequada as emoções que sinto. Cartas Extraviadas! Não soa a homens extraviados? Concebam um homem propenso, por natureza e sina, a uma pálida desesperança: haverá melhor posto para desesperá-lo do que o contínuo manuseio dessas cartas extraviadas, mortas, e com elas alimentar a fornalha? Porque são incineradas todos os anos, às carradas. Por vezes, dentre as folhas dobradas de uma carta, o pálido funcionário retirava uma anel, o dedo ao qual estivera destinado estava talvez apodrecendo no túmulo; uma cédula remetida com solícita caridade, e aquele a quem se destinava a socorrer já não come, já nem tem mais fome; perdão para aqueles que morreram no desespero; boas notícias para seres que morreram na desgraça. Com mensagens de vida, essas cartas corriam para a morte.”

O aspecto que mais chamou a minha atenção na releitura de Bartleby que fiz para o curso foi o de como somos, no fundo, burgueses domesticados, nós, os leitores. Afirmei mais atrás que o narrador é nosso representante como o Sr. Utterson o é na tessitura da trama e da narrativa do texto de Stevenson. Ora, por que ele nos parece tão “natural” e “humano” em contraste com o quase inumano escriturário que prefere não fazer coisas de forma cada vez mais radical? Uma parte é fruto da construção do foco narrativo, lógico: vemos os fatos através dos olhos do patrão de Bartleby; o problema, creio eu, encontra-se mais fundo: somos leitores treinados num mundo de perda de “valores”, um mundo de suspeita (fruto da psicanálise), ou seja, em que a “normalidade” é colocada em xeque, bem como a “ordem” e o “progresso” conquistados pela burguesia; nem por isso deixa de ser para nós exasperante e enervante o comportamento do pálido escriturário, ao se recusar a trabalhar, ou condescender a cumprir as tarefas mais triviais, ou depois, mais tarde, a se retirar do escritório, ou ser acolhido na casa do ex-patrão, ou alimentar-se na prisão… Não nos identificamos com isso, tal atitude nos impacienta e nos aliena dele, consegue a nossa “concessão” (por abrir uma brecha crítica no automatismo do quotidiano), todavia não a nossa adesão ou “empatia” (no sentido de dizermos, “eu também sou um Bartleby”).

E assim, de certa forma, damos nosso aval ao mundo da produtividade e da atividade, o mundo “Wall Street”, em que a vida de um Bartleby é absurda, por que uma pessoa que tivesse a atitude do escriturário como um nosso colega, um nosso assalariado, alguém que convivesse conosco, nos deixaria malucos. Ou não?  É só recapitular: até o “terceiro ato” e o dilema que a recusa de Bartleby em deixar o edifício é resolvido por seu recolhimento à prisão, sua atitude positivamente nos desconcerta, mesmo que tenha um lado comicamente sinistro, como apresentam também os textos de Kafka (não copiar mais, não deixar o patrão entrar no próprio escritório). Ainda é um teatro do absurdo. Só as páginas finais revelam, no fundo, uma atitude trágica, de uma pessoa que não tem mesmo lugar no mundo em que as cartas em que perdões, esperanças, auxílio, prendas, destinavam-se a pessoas vivas, e que, extraviadas, são como símbolos de assombração, da morte que paira sobre a existência, no (no)nada que é a vida pode ser, se olharmos muito a mesma parede, copiando (a 4 cents por palavra, cem delas por página) documentos atrozes por serem outras tantas paredes na vida: certidões, testamentos, procurações, e o mais que houver na burocracia.

Eu tenho para mim que a empatia do narrador para com seu estranho funcionário, é retrospectiva, advinda da perda do cargo importante, que também lhe deixou a sensação de ser um elemento “sem lugar” no mundo produtivo, apesar das boas opiniões a seu respeito (como o ilustre John Jacob Astor, que ele invoca). Por que não deixa de ser contraditório, para quem nos afirma que ele e Bartleby eram ambos, “filhos de Adão”[5] (e isso me lembra o Sr. Utterson, afirmando, como homem indulgente que era, sua “inclinação pela heresia de Caim”, deixando seus semelhantes procurarem sua danação pelas próprias pernas), ele nunca ter feito o menor gesto para tirar Bartleby da prisão, e, sobretudo, esse trecho esclarecedor, no qual o narrador expressa seus temores quanto à permanência do pálido escriturário em seu escritório ad aeternum: “…fui assaltado pelo pensamento de que ele poderia ter uma vida muito longa e continuar ocupando a minha sala e negando a minha autoridade, constrangendo  meus visitantes, manchando minha reputação profissional, projetando a sombra da melancolia e da desconfiança no ambiente, sendo capaz de manter a alma grudada ao corpo graças às suas economias… e no final talvez viver mais do que eu e reclamar a posse do meu escritório por direito de ocupação perpétua”. Um trecho de admirável egoísmo. Quem é o monstro, afinal? Não irei ao ponto de dizer que, no fundo, no fundo, ele queira ver Bartleby neutralizado (recolhido em casa ou na prisão) ou mesmo destruído. Mas já não temos uma visão tão bondosa assim do seu empregador. Porventura devemos compartilhar sua perplexidade, só que não podemos nos aliar a ele, que só pensou em Bartleby após perder seu precioso cargo, que parecia definir seu lugar no mundo, já que não conhecemos suas relações de espécie alguma. Será que só há vazio e desolação na infeliz vida do infortunado escriturário em meio ao deserto de Wall Street? E nunca podemos deixar de nos guiar pelos indícios, como Bartleby progressivamente vai rechaçando cada vez mais o narrador (se ele é o representante da sociedade, no sentido de uma “boa vontade” universal, ele também é de certa forma o responsável pela sua condição e destino, não?; no entanto, ele não o relega a um  vestíbulo, aos corrimãos das escadas, e no final a um muro de prisão): “Já o conheço e nada tenho a lhe dizer é a maneira como Bartleby recebe o narrador no seu destino final. O narrador se defende: “Não fui eu que o mandei para aqui… De resto, para você não pode ser aviltante um lugar destes. Nada de ultrajante lhe resultará por estar aqui. E veja, o lugar não é tão ruim como seria de esperar. Olha, lá onde está o céu e aqui a grama.”. E Bartleby tem uma resposta inesquecível, uma daquelas poucas e lacônicas que lhe cabem no relato, essa, porém, sendo de uma lucidez mortífera: Sei onde estou, respondeu ele; não falou mais nada e eu o deixei.”

         .Acho que não é preciso sublinhar a hipocrisia de consolar um homem preso como vadio, afirmando-se que ele tem o céu e a grama à disposição, e que o lugar não é tão ruim, e mais ainda que nada de ultrajante e aviltante pode se associar à sua estada ali, como se a estada ali já não fosse o aviltante e o ultrajante. É nesse sentido que Modesto Carone, no seu posfácio à edição da CosacNaify, “Bartleby, o escrivão fantasma”, inclui o nosso amigo na categoria de unrealiable narrator, “narrador não-confiável” (técnica desenvolvida por Henry James & Machado de Assis no final do século, na qual o foco narrativo nos é fornecido por um narrador cujo ponto-de-vista se revela tão restrito e parcial que começamos a duvidar de sua versão dos fatos) [6]: “É o caso deste advogado que conta uma história facciosa, na medida mesmo em que espalha as pistas para ser descoberta sua deliberada parcialidade”. Sentimos, afinal, que mesmo espalhando essas pistas, ele sempre procura conquistar a nossa boa opinião, como a que tinha o falecido John Jacob Astor.

E é por isso que fica inviável irmanar totalmente, embora ambos nasçam da mesma situação alienante, Bartleby e Akaki Akakiévitch (de O capote, de Gógol), já que a inconsciência deste último da sua condição se mantém até o fim (quando é praticamente condenado à morte pela descompostura de Sua Excelência) enquanto que, mesmo sem se manifestar abertamente, ou mesmo por causa dessa não-manifestação explícita, o personagem de Herman Melville parece ter o dom de ter a última palavra, de obrigar à lucidez de encarar que o horizonte do universo em que ele e os Akáki Akakiévitch (in)existem é uma parede.

E no final, as próprias palavras do narrador se voltam contra sua existência tanto quanto a do seu funcionário: “Com mensagens de vida, essas cartas corriam para a morte. Ah, Bartleby! Ah, humanidade! Além da melancolia e do desamparo que revelam (e olhe que ele nos afirmou, a certa altura, não ter conhecido na vida, antes da revelação dos infortúnios de Bartleby, “uma leve e nada  desagradável tristeza), projetam a sombra da melancolia e da desconfiança sobre uma existência dedicada a produzir documentos e papelório, todos correndo para a morte, enquanto fazem as transações da vida.


[1] O título original é Bartleby, the scribner. Há traduções em que aparece como Bartleby, o escrivão e temos o famoso “escrivão” da nossa literatura, Isaías Caminha, de Lima Barreto (1909). Como o escritório do narrador cumpre função de cartório não seria incorreto também o título Bartleby, o escrevente. Há magnífica versão de Luís de Lima (Rocco), mas existem várias outras. As que eu tenho:  a de Olívia Krähenbül na série “Melhores Contos” (Cultrix); a de Pinheiro de Lemos (tenho pela Record; foi, entretanto, reeditada recentemente pela José Olympio); a de Cássia Zanon (L&PM); a de Irene Hirsch (CosacNaify), que, sinceramente, não me agradou, explicarei  na discussão do texto por quê.

[2] O que torna Melville contemporâneo, em idade e carreira artística, de Dostoiévski. O norte-americano nasceu em 1819 (em primeiro de agosto); o russo, em 1821 (30 de outubro); como disse acima, Typee inicia a carreira de Melville em 1846; em 1845, Dostoiévski lança seu primeiro livro, Gente Humilde; Melville viverá até 1891 (morre em 28 de setembro); não custa lembrar que Nietzsche, o qual exerceu na Filosofia influência similar a de Dostoiévski na literatura, nasceu  na época (meados dos anos 40)  em que essas primeiras obras apareceram: em 15 de outubro de 1844; Dostoiévski morre em 28 de janeiro de 1881.

[3] Apesar de eu gostar muito da versão de Luís de Lima, Pinheiro de Lemos traduz de maneira bem eficaz: “Preferia não fazê-lo”. Confesso que não gosto da solução de Irene Hirsch: “Acho melhor não”, sem graça e no fundo pouco poética. Pois há poesia na recusa de Bartleby, pois é uma recusa dentro de uma formulação da Possibilidade: “prefiro” ou “preferia” não fazer, ou seja, há a possibilidade de fazer, mas abriu-se um pequeno e decisivo lapso: a “preferência”. Não é uma recusa propriamente dita: não vou fazer. É uma preferência que, manifesta, abole a possibilidade de fazer o que é solicitado. É minha opinião que tudo isso se perde no “acho melhor não”.

[4] Não é ocioso notar que essa é mais uma história onde há uma marcante ausência de mulheres, inclusive na vida do próspero patrão de Bartleby, sobre a qual não temos, por mínima que seja, a menor alusão a qualquer relacionamento amoroso.

[5] Contudo, ele mesmo se intitula a certa altura, de “velho Adão ressentido”.

[6] O que mostra que Bartleby, escrito por volta de 1853, é antecipador em muitos pontos. Ficou famosa a idéia de Borges (no prefácio da sua tradução ao texto, em 1944) de que ele seria um precursor de Kafka. É engraçado que Borges lança a idéia muito de leve, muito sucintamente, porém ela ganhou  amplitude e carreira na Wall Street das teorias literárias (e sem parede).

22/09/2011

Simia Sapens: “O planeta dos macacos”- A verdadeira origem

(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 13 de setembro de 2011)

“A macaca tirou uma caneta do bolso e escreveu várias linhas em seu caderno. Em seguida, levantando a cabeça e ainda se deparando com meu olhar ansioso, sorriu novamente. Isso me estimulou a tentar outra abordagem amistosa. Estendi-lhe um braço através da grade, com a mão aberta. Os gorilas sobressaltaram-se e esboçaram um movimento para interferir. Mas a macaca, cujo primeiro reflexo havia sido de toda forma recuar, recobrou-se, deteve-os com uma palavra e, sem parar de me fitar, também projetou seu braço peludo, um pouco trêmulo, na direção do meu. Não me mexi. Ela aproximou-se mais ainda e colocou sua mão com dedos descomunais sobre meu pulso. Senti-a estremecer a esse contato. Tentei não fazer nenhum movimento que pudesse assustá-la. Ela deu  um tapinha na minha mão, acariciou meu braço, depois voltou-se para  seus auxiliares com uma expressão de triunfo.

    Eu arfava de esperança, cada vez mais convencido de que ela começava a reconhecer  minha nobre essência. Quando se dirigiu imperiosamente a um dos gorilas, tive  a louca esperança de que fossem abrir minha jaula, com desculpas. Ai de mim! Não era nada disso!O guarda  vasculhava em seu bolso e sacou um pequeno objeto branco, que entregou à sua patroa.  Ela colocou-o pessoalmente em minha mão com um sorriso encantador. Era um torrão de açúcar.

    Um torrão de açúcar! Despenquei de tão alto, senti-me de repente tão desencorajado diante da humilhação daquela recompensa que quase atirei-a na cara dela.”

A exibição de O planeta dos macacos- a origem me deu vontade de conhecer a fonte original de uma saga que rendeu um clássico cinematográfico (o grande filme de 1968, dirigido por Franklin J. Schaffner[1]), quatro continuações, uma série de televisão, episódios em desenho animado (eu gostava muito deste cartoon), e neste novo século dois filmes (por enquanto).

O romance Le planète des singes do francês Pierre Boulle (o qual comento na tradução de André Telles para a Pocket Ouro da editora Agir) foi lançado em 1963[2]. Nele, um casal de namorados (que no final descobriremos serem símios, revelação que vai sendo antecipada por pequenas intervenções do casal na narrativa), num passeio espacial, recolhe uma garrafa que contém o relato de Ulysse Mérou. Este viajara (embora  jornalista e não astronauta!), no começo do século XXVI (e ainda se usam carabinas em 2.500!), com dois companheiros para a constelação de Órion.

São extravagantes os detalhes que Boulle fornece dos meios de locomoção espacialm, sem a menor preocupação com qualquer exatidão cxientífica. Ele segue nesse ponto a linha nitidamente fantasista de Verne & Wells. Quando os três viajantes pousam no planeta Soror, são espoliados de seus trajes, armas e provisões por um grupo de selvagens humanóides que parecem ter aversão a quaisquer artefatos fabricados e que parecem seres sem consciência ou alma. Não bastasse isso, são perseguidos como caça (vários são brutalmente eliminados) e depois capturados por macacos que apresentam o mesmo grau de evolução da espécie humana na Terra. Sem os seus companheiros (um deles foi morto e o outro reaparecerá mais tarde numa condição chocante), Ulysse é levado a um centro de pesquisas biológicas.

A civilização símia, ao contrário dos filmes (onde é mais rústica e com traços mais rurais), ostenta cidades, aviões, até arte impressionista e abstrata. Ganhando a confiança (e o amor e “comunhão espiritual”, atrapalhado pela aversão física[3] entre as “raças”—substituto revelador utilizado por Boulle no lugar de “espécies”—que descortina a sua intenção satírica [4]) da cientista Zira, Ulysse consegue sua libertação da condição de cobaia (“…começaram a me desferir varadas, a mim, Ulysse Mérou, um homem criado à imagem da divindade…”)  e é até assimilado à cultura de Soror. Contudo, escavações arqueológicas apontam para algo que Cornelius, noivo de Zira, já desconfiava: que os macacos herdaram a cultura dos humanos, que antigamente dominavam o planeta (no filme de Schaffner, o viajante estava na própria Terra sem o saber, o que era mais instigante). Como bons imitadores, os novos dominantes “macaquearam” as conquistas humanas, sem criar nada de novo (é por isso que eles estavam estagnados há séculos no mesmo estágio tecnológico), pelo menos no que se refere a gorilas e orangotangos; já os chimpanzés (como Zira e Cornelius) são mais criativos e capazes de iniciativa intelectual própria (“Quase todas as grandes descobertas foram feitas por chimpanzés”, afirma Zira) e são eles que revelam a verdadeira face da evolução da sua “raça”.

De qualquer forma, a descoberta leva à conclusão de que Ulysse, ainda mais depois que ele gera um filho, é uma ameaça. O ciclo pode se inverter. Zira e Cornelius resolvem ajudá-lo a fugir com sua família.

E aí então ele descobre o mesmo que Mark Walhberg descobre na Terra no (nada clássico, aliás não acrescentou nada ao  romance nem ao filme original, tirando uma impressionante interpretação de Tim Roth)  filme de Tim Burton.

Sobrevivendo a todos os seus “filhotes”, o livro de Boulle é engenhoso e ainda muito pertinente. Todos os seus temas encontram-se ainda na pauta do dia. A difícil convivência nos países do Primeiro Mundo entre seus “nativos” e os imigrantes (principalmente de outras “raças”) e os indecentes e inomináveis experimentos com cobaias revelam que somos tudo, menos o topo da evolução.


[1] Schaffner estava em grande fase, realizando filmes como O senhor da guerra, e olhe que com o antipático e (a meu ver) canastrão Charlton Heston. Depois de ganhar o Oscar com Patton, entretanto, ele se perdeu nas produções paquidérmicas e amorfas, tipo Nicholas e Alexandra, que esvaziaram seu impulso. O incrível é que O planeta dos macacos passou em branco nos principais Oscars, devido à nefasta tendência da Academia nos anos 60 de se manter autista com relação ao que estava acontecendo, privilegiando a forma musical  hiper-careta e super-produzida, que faz os filmes parecerem mais velhos do que os realizados décadas antes (caso de My fair lady, A noviça rebelde, Oliver, todos ganhadores do prêmio de melhor filme, o último no ano do filme de Schaffner e de 2001– sem comentários).

[2] Em seu currículo, Boulle também tem o livro que originou A ponte do rio Kwai, outro paquiderme superestimado. Por falar em superestimado, ninguém o é mais do que David Lean. Nunca entenderei por que ele é tão prestigiado.

[3]  “Eu gostava de ouvi-la rir… Eu partilhava o bom-humor da macaca. Na penumbra do vestíbulo, praticamente não discernia seus traços, mal via a ponta branca do focinho. Ela vestira, para sair, um tailleur elegante e um gorro de colegial que escondia suas orelhas. Esqueci por um instante sua condição símia e dei-lhe o braço.”

[4] Vejam se não lembra o ambiente  senhorial das colônias a seguinte passagem, que ocorre logo após a captura de Ulysse: “As damas gorilas estavam sentadas em círculo em poltronas e tagarelavam  à sombra de grandes árvores que lembravam palmeiras. De quando em quando uma delas bebericava outro copo, com a ajuda de um canudinho…”

19/09/2011

GOLDING VALE OURO: O centenário de um dos Senhores da ficção

    Quando William Golding foi premiado com o Nobel em 1983, foi a primeira vez que “vibrei” com um acontecimento desse tipo. Eu já era seu leitor e admirador, vejam só, graças a uma coleção onde figuravam dois títulos do grande escritor inglês1.

   Apesar de ter acarretado até uma polêmica interna na Academia Sueca (muitos ali não queriam lhe atribuir o prêmio e teve até um votante, cujo favorito era Claude Simon, que declarou não passar o autor de Homens de papel de “um pequeno fenômeno, sem maior importância”), pelo menos para mim na época (e ainda hoje), tratava-se de uma escolha indiscutível.

    Aqui no MONTE DE LEITURAS, durante algum tempo. mantive uma seção chamada “Senhores da ficção”. E é isso o que William Golding, cujo centenário de nascimento é comemorado neste 19 de setembro (sua morte ocorreu em 19 de junho de 1993) é: um Senhor da ficção.

   Às vezes parece que sua linguagem é pobre e meramente “narrativo-descritiva” (como em O Senhor das Moscas, Os Herdeiros ou O Deus Escorpião, por exemplo), que ele não tem “estilo”, um universo próprio identificável, já que a maior parte de seus livros são muito diferentes uns dos outros. Por outro lado, ele mesmo dizia que, como romancista tinha uma idéia e procurava um mito para corporificá-la, o que pode ser interpretado muito erroneamente como o procedimento daquele que usa a fábula, a ficção, com fins morais, didáticos, como meios para um fim.

   Deixem-me contar que minha trajetória de leitor (com escandalosas lacunas, é verdade) de William Golding já desbaratinou o parágrafo anterior: por alguns anos, acompanhei fielmente a coleção “A Prosa do Mundo” da Francisco Alves e foi nela que descobri meu primeiro Golding (e esse a gente nunca esquece): Visível Escuridão (Darkness Visible– 1979, em tradução de João Guilherme Linke), onde seu estilo era mais opulento, requintado, irônico, feroz. Nada de linguagem pobre, aqui. Quando Matty, o personagem principal, emerge dos bombardeios de Londres, como o órfão milagrosamente achado e salvo, mas desfigurado pelas queimaduras e causando incidentes cada vez mais calamitosos à sua volta, entramos numa mistura de Dickens com Dante. Oliver Twist perambula, mutilado, pelo Inferno e pelo Purgatório.

     Ainda antes do Nobel, li O Senhor das Moscas , O Deus Escorpião e Ritos de Passagem, nessa ordem. E para mim, configurou-se um Senhor da Ficção, um fabulador supremo,  que não apenas procurava um mito para corporificar uma idéia, mas um destilador, um tecedor de mitos que se imbricavam à própria coisa destilada, à própria tessitura, de forma que a fábula se tornava um “pedaço da realidade”. Só tive a mesma sensação de encontrar um fabulador inato ao ler John Irving, e mesmo assim…

      No entanto, mesmo descontando-se o constrangimento que cercou sua nobelização, Golding foi vítima da síndrome-do-primeiro-livro-que-se-torna-mítico2. Em 1954, apareceu Lord of the Flies (gosto da versão portuguesa do título, O Deus das Moscas) e a carreira dele começou-terminou, em certo sentido. Daí para sempre, ele foi meramente o autor de O Senhor das Moscas (que já teve duas versões cinematográficas, uma delas muito marcante, de Peter Brook).

    Que fique claro: trata-se de um livro genial, paradigmático, inesquecível: ao lembrar seu cinqüentenário, no jornal em que tenho uma coluna semanal, A TRIBUNA de Santos, escrevi: “[o] título vem do Belzebu do Evangelho (10;25) de Mateus (…) um grupo de meninos fica perdido numa ilha, dividindo-se entre dois líderes: Ralph representa o apego a hábitos civilizatórios (e ficará isolado por isso), cada vez mais impalpáveis; Jack, por sua vez, é o apelo cada vez mais sedutor da barbárie, do irracional. Poucos momentos são mais devastadores do que aquele em que dois irmãos gêmeos são seviciados para que aceitem fazer da tribo de Jack, que irá caçar Ralph pela ilha”.

    Na minha opinião, O Senhor das Moscas foi se tornando mais e mais  atual. Nossos jovens estão seguindo sua trilha, quase como se tivéssemos uma ilustração etnográfica de um modelo estrutural de Lévi-Strauss. Por isso, ao selecionar para A TRIBUNA os 100 melhores romances do século XX (não riam, por favor), incluí o livro. Mas colocando o seguinte: “Embora Os herdeiros e Ritos de passagem sejam até melhores, essa história de garotos que revertem à barbárie e à selvageria conseguiu ser a profecia sombria e poderosa do que está acontecendo agora com nossa juventude globalizada”.

    E é isso aí. Se eu tivesse de escolher o livro de William Golding que levaria para a ilha deserta (sem Jack ou Matty, como possíveis Sexta-Feiras, de preferência), ficaria em dúvida entre The Inheritors-Os herdeiros (1955) e Rites of Passage-Ritos de passagem (1980)— este, aliás, o primeiro de uma trilogia, da qual só li o segundo, Close Quarters-Confinados (1987), já depois do Nobel, assim como The paper men-Homens de papel(1984)3.

      Escolheria talvez o primeiro pelo seu poder fabulatório, que já apontei como uma característica absolutamente peculiar de Golding. Ao colocar lado a lado, numa pré-história intensamente verossímil para o leitor (apesar de fugir totalmente do figurino do “romancista histórico”, que evidentemente fez pesquisas), dois estágios da evolução humana, ele foi ainda mais longe do que no livro anterior na intuição dos mecanismos atávicos de violência, crueldade e conquista de poder, que regem os agrupamentos humanos, essa “visível escuridão” no centro do nosso processo civilizatório: “Se as coisas se moviam sobre a superfície, havia algo a fazer. Por exemplo, havia regras explícitas de conduta se um homem se contaminasse. Mas, e se a coisa que se move sob a superfície não pode ser definida, mas está lá, uma imposição sem nenhuma regra?”4.

     Não há nada nem remotamente parecido com Os herdeiros e apesar de gostar muito de todos os livros dele que li, acho que é o que representa de forma lapidar seu universo e sua originalidade.

      Ou talvez escolhesse Ritos de passagem por sua inclusão numa linha narrativa ousada e aventureira que podemos remontar a Sterne (ou a Cervantes, ou a Diderot), e da qual temos um representante genial (Machado), uma linha maliciosa, sinuosa, requintada, em que nada é o que parece, as brincadeiras com o leitor multiplicam-se e a ficção se torna o campo lúdico da inteligência par excellence guardando numa caixa—no entanto—a já propalada “visível escuridão”. Ela está lá, só que velada, muito bem camuflada. É o clima de dança de salão antes que entre a morte com a máscara vermelha.

    Gore Vidal, de quem não esperamos normalmente esse tipo de generosidade, habituados mais a comentários cáusticos, disse uma coisa linda a respeito do autor de O Deus Escorpião, logo depois de afirmar “existe apenas um escritor vivo [isso foi em 1974] da língua inglesa que admiro sem restrições: William Golding”: “… seu trabalho é intensamente vívido. Ele o segura linha por linha, imagem por imagem. Em The Spire você vê a igreja que está sendo construída, sente o cheiro da poeira. Você está presente num evento que existe apenas na imaginação dele. Muito poucos escritores tiveram esse poder. Quando o padre revela suas feridas, você as vê, sente a dor. Não sei como ele consegue”.

     Bravo, Vidal. Quem dera seus livros fossem assim também! Agora: seria tão bom que alguém do calibre de uma Denise Bottmann pegasse The Spire (ou Free Fall, ou Pincher Martin, ou The Pyramid, todos inéditos) e fizesse o leitor brasileiro, com seu talento e seu zelo em verter o melhor possível para nossa língua o original, ver a igreja sendo construída, sentir a dor do padre.

    Pois não se sabe como, mas o fato é que o admirável Golding conseguia.

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 1E graças também a edições—meio antigas—da Nova Fronteira, que publicara O Senhor das Moscas & O Deus Escorpião, em traduções de Geraldo Galvão Ferraz e Luiza Lobo, respectivamente. Posteriormente ao Nobel, a tradução de Ferraz teria várias reedições.

Quando iniciei minhas atividades de leitor voraz e que também acompanhava resenhas, críticas, lançamentos etc, houve a premiação de Elias Canetti (em 81) e a de Gabriel Garcia Márquez (em 82), contudo só os li mais tarde, e aliás levei muito tempo para admirá-los, em especial o colombiano. Apesar de tardiamente me tornar um leitor mais entusiasmado de García Márquez, sempre achei que Borges, Onetti ou Rulfo deveriam ter sido premiados em seu lugar (e Vargas Llosa merecia o prêmio antes). Quanto a Canetti, trata-se de um extraordinário ensaísta e memorialista, porém tropecei de cara em Auto-de-fé, que—a meu ver—é uma idéia genial que renderia um romance mais curto, o qual se converteu num paquiderme, digno de consideração, mas que faz sonhar com “algo que poderia ter sido”. A bem da verdade, na época (1983), eu já achava que Doris Lessing merecia mais o prêmio que Golding, o que não deixou menos agradável a surpresa do anúncio do seu nome.

Talvez tenha sido justamente a premiação de Golding, um autor que conhecia e apreciava, que fez com a partir daí eu encarasse com menos má vontade e insatisfação o “saldo Nobel”, normalmente tido como aquém dos maiores autores. Com as duas exceções importantes e chocantes (a de Toni Morrison e Dario Fo—já conhecia romances da primeira e assistira a peças do segundo—cujas premiações considero absurdas e bizarras), gostei muito de várias premiações e todos aqueles que não conhecia e que li depois do Nobel me agradaram muito (por exemplo, o egípcio Naguib Mahfuz, ou a romena Herta Müller,ou o húngaro Imre Kertész, para não falar de um autor que passei a adorar, o francês Claude Simon).

Então, embora a idéia de um prêmio “mundial” seja um tantinho cômica, pelo menos nos últimos 30 anos o “saldo Nobel” foi mais positivo do que negativo.

2Há casos de livros que não foram os primeiros do autor e que dominam sua reputação de forma avassaladora, mesmo não sendo o melhor que produziram. É o caso de Cem anos de solidão.

Porém, o caso de Golding, como o de outros, é mais frustrante, porque nada do que produziram depois ofusca o primeiro sucesso, que é sempre a referência. Lembro aqui do caso de Günter Grass e O Tambor, um romance maravilhoso, mas ele fez coisa muito melhor em Anos de cão e O linguado; tem também Umberto Eco, que parece ter escrito como romance apenas O Nome da Rosa; e também temos o caso de Salinger e O apanhador no campo de centeio; e por aí vai…

3Os títulos até aqui citados são os únicos traduzidos no Brasil. Há mais em versões portuguesas, todavia é a oportunidade para lamentar a falta de interesse dos editores e leitores brasileiros.

A Nova Alexandria, por exemplo, reeditou a tradução de Ritos de passagem (que, como já dito, fora lançada pela Francisco Alves), mas não se deu ao trabalho de completar a trilogia To The Ends of the Earth. E a Companhia das Letras que gosta tanto do Nobel, por que não inclui Golding em seus lançamentos?

 4 Essa citação é de Visível escuridão

18/09/2011

OS HERDEIROS e a genialidade de William Golding

(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 10 de agosto de 1999)

Ao conceber Os HERDEIROS (The Inheritors, Inglaterra-1955, em tradução de Ana Luiza Ventura Vieira Pereira, editora Nova Alexandria), um dos romances mais extraordinários do século XX, William Golding teve uma idéia genialmente simples: colocar lado a lado dois estágios de evolução da Humanidade, numa narrativa ambientada na pré-história.

O protagonista de OS HERDEIROS é Lok, jovem homem-macaco que, com seu clã (mais sete indivíduos), procura a segurança de uma plataforma rochosa, após o inverno. Inesperadamente são atacados por criaturas diferentes, que se vestem com peles e que mantêm estranhos rituais. Lok é um dos poucos sobreviventes dos ataques e, observando os costumes do “povo novo”, vai desenvolvendo um misto de fascínio e de terror diante de seus  procederes quotidianos. O que Lok não imagina é que para o “povo novo” ele é um demônio, uma ameaça.

Podemos ler, então, a obra-prima de Golding como uma parábola a respeito das estruturas instintivas e emocionais através das quais se constituiu a própria Humanidade, e também a respeito da incapacidade dessa mesma Humanidade em compreender a alteridade, a existência do Outro.

Nesse sentido, é bem esclarecedor o clímax da história, após uma hecatombe da natureza que provoca a fuga do “povo novo” (levando um bebê do clã de Lok). O herói sobrevive, irremediavelmente solitário (é um momento tão desolador que sempre me tira a vontade de reler o romance). Na última imagem que temos dele, quando o autor despoja-o cruelmente até do seu nome—mencionando-o como “a criatura”—, como se o estivesse deixando para trás no passado, ele está lado a lado com a “figura” que dele fez um membro do “povo novo”. Portanto, temos lado a lado uma imagem, uma das formas da Humanidade de representar sua mente, de dar forma ao conteúdo dela, de racionalizá-la, em seus medos, suas visões e sua fantasias (e que também é um meio de anular—ou pelo menos neutralizar—o outro ser, prendendo-o numa representação), e o próprio ser representado, em sua realidade irredutível.

O pessimismo de Golding é tal que, no capítulo seguinte, o último, ele mostra Tuami, membro do “povo novo”, sonhando em utilizar a faca que está fazendo num companheiro de grupo. Como já mostrara no seu primeiro e mais famoso romance, O senhor das moscas (e mostrará em textos posteriores como O Deus Escorpião, Visível Escuridão e Ritos de Passagem), para ele os impulsos primordiais do ser humano são a crueldade e a destruição mútua.

O que sempre impressiona em Golding é que ele é um dos raros grandes autores contemporâneos que se atêm à narrativa. Seu estilo parece até pobre, às vezes, pois ele procura expressar tudo através da ação e da reação dos personagens e da descrição intensa do ambiente físico. Não há discursos, digressões, moral da história ou reflexões por parte do narrador[1].

Ele também escapa totalmente do estereótipo do escritor “que faz pesquisas”. OS HERDEIROS é um livro ambientado na pré-história, mas não há nenhuma tentativa de criar verossimilhança histórica ou “clima de época” (e mesmo assim não é que o danado consegue?).

O autor de Homens de Papel descreve mecanismos de ação do ser humano, diante da natureza, dos outros seres, dos próprios sentimentos e percepções. Isso, por si só, já cria um poderoso efeito convincente para a história de Lok, do seu clã e do “povo novo”,e se o livro nada tem de “histórico”, também não cai no tom fácil da “fábula”, do universozinho inventado para provar algo.

O que significa, somando tudo, que William Golding escreve textos extremamente originais. Tão originais que causaram celeuma na própria Academia Sueca, quando lhe foi outorgado o seu merecido Nobel em 1983. Foi uma das poucas polêmicas internas (muitos ali não queriam lhe atribuir o prêmio) que vieram a público  com relação a uma escolha.

Curiosamente, foi uma das escolhas mais acertadas. O que não deixa de ser muito engraçado, no final das contas.  Entretanto, a visão do mundo proposta pelo autor de OS HERDEIROS não é nada engraçada, como se pode constatar no trecho seguinte—no qual vemos o homem já pensante que foge da sua ancestralidade: “Não tardaria muito, pensou Tuami, agora que tinham saído da terra dos demônios da floresta[2] e estavam a salvo, para se atrever a usar o punhal de ponta de marfim. Olhar o rosto de Marlan e pensar em matá-lo era assustador”.

Neste ano de 1999, só se lançarem de fato a prometida tradução integral de Finnegans Wake, de James Joyce, OS HERDEIROS deixará de ser a tradução mais importante.


[1]  Nota de 2011: Sei (como sabia em 1999, quando escrevi o texto acima) que com essas afirmações vou de encontro à própria auto-caracterização de Golding como escritor:  alguém que tem uma idéia e procura um mito para corporificá-la. Mas continuo achando a mesma coisa, ou melhor, tendo a mesma percepção da sua obra, pelo menos na primeira fase (os últimos textos já têm um rebuscamento retórico mais pronunciado, penso especialmente em Visível Escuridão).

[2] Leia-se Lok  e seu clã.

17/09/2011

DEMASIADO PRÓXIMOS: William Golding e os ritos iniciáticos

(resenha publicada originalmente em  A TRIBUNA de Santos, em 21 de janeiro de 2003)

  Em Close Quarters- Confinados (1987), um dos últimos livros de William Golding (falecido em 1993), o narrador-protagonista—Edmund Talbot—que está viajando para a Austrália no início do século XIX, diz a um companheiro de navio: “Vou passar alguns anos, alguns poucos anos, na administração da colônia… estou convencido de que neste século as nações civilizadas cada vez mais assumirão a administração das regiões retrógradas do mundo”. Fica evidente a arrogância do homem branco europeu, assim como fica bem localizado o momento histórico no romance: o período final das guerras napoleônicas, já estando próxima a derrocada do imperador francês, visto como um tirano (“O estado do mundo estava muito modificado pelas catástrofes… o estado da França, a ruína de suas grandes famílias, uma geração exposta primeiro à sedução de uma liberdade e uma igualdade impossíveis, em seguida às durezas impostas pela tirania…”[1]).

    Portanto, em Close Quarters, Golding deixa muito mais claras as coisas para o  leitor do que no grande romance (de 1980) do qual ele é a seqüência: Ritos de Passagem. A tradução de Elsa Martins ganhou nova edição pela Nova Alexandria vinte anos depois da pioneira edição da Francisco Alves, lançada por aqui antes mesmo que o notável escritor inglês ganhasse o Nobel (em 1993), numa premiação polêmica.

    Em Ritos de Passagem tudo é mais cifrado, momento histórico e características do narrador, o qual embarca e imediatamente começa a escrever um diário, tendo como destinatário o padrinho. Parece um personagem meio ingênuo, bom sujeito, curioso, inteligente e que, conforme indicado pelo título, deve submeter-se voluntariamente a experiências que irão amadurecê-lo.

    São muitos os aspectos que poderiam ser abordados num livro do quilate de Ritos de Passagem (entre eles, a presença maciça de elementos e metáforas teatrais). A este artigo, contudo, caberá ressaltar que Golding se irmana ao Machado de Assis de Brás Cubas & Dom Casmurro ao nos propor um narrador não-confiável, bem menos simpático do que parecia a princípio. O que ele diz de si mesmo e o que temos de ler nas entrelinhas são coisas conflitantes, quase diametralmente opostas.

    O que lemos nas entrelinhas da narrativa de Talbot configura o sujeito arrogante e muito consciente das diferenças de classe que emerge sem disfarce em Close Quarters. Porque Ritos de Passagem é um livro sobre castas sociais e sobre seus párias, mesmo que “aparentemente” não o sejam. Dois deles se destacam: Summers, um dos oficiais da embarcação, a quem Talbot toma por um “cavalheiro”, no sentido inglês da palavra, que determina nascimento, quando sua origem é bem humilde (e por isso nosso herói anota em seu diário: “… discuti, de uma forma que temo que ele possa ter achado ofensiva, a conveniência de que os homens fossem elevados acima de sua primitiva condição”), e o Reverendo Colley, que morre após o grande incidente da viagem: tentando se fazer respeitar pelo capitão do navio, que o despreza e humilha repetidamente, ele acaba por se embriagar, num espetáculo de degradação que culmina num escândalo sexual (Colleu pratica sexo oral com um dos marinheiros, praticamente em público).

    É uma carta do Reverendo Colley, em poder de Talbot, que nos permite entrever o avesso do diário que estávamos acompanhando, as ambigüidades dos ritos iniciáticos, colocando os acontecimentos a bordo sob outra luz, ou sombreando-os, melhor dizendo.

    Enquanto isso, Golding também brinca com a linearidade narrativa. Talbot começa por enumerar cada dia (1, 2,3, 4, 5), depois perde a seqüência e coloca um X, pula para o 12, depois para o 17, coloca um ? perplexo,mais adiante um Y, depois um ZETA grego, e no capítulo posterior à carta do malfadado Colley, não coloca nada, de tal forma o Reverendo bagunçou o coreto, virando do avesso toda a sua complacência e autoconfiança, colocando-o diante de assuntos e inquietações “que estão me deixando meio louco, como todos os homens do mar que vivem demasiados próximos uns dos outros e, conseqüentemente, demasiado próximos de tudo quanto é monstruoso, sob o sol e sua a lua” (nesse sentido, somos então todos homens do mar).

   A viagem pelo mundo e seus ritos se mostra bem mais resistente à simplicidade e linearidade do que a contagem numérica.


[1] Nota de 2011: utilizo a tradução de Terezinha Batista dos Santos, lançada pela Francisco Alves na sua inesquecível coleção “A Prosa do Mundo”, em 1989. Há um terceiro livro, formando uma trilogia (que tem o título To The Ends of the Earth)  , e que ainda não foi traduzido (como a maior parte da obra de Golding): Fire Down Below, de 1989

15/09/2011

Quando nem o Monstro amedronta: Contos de fadas às avessas

(o texto abaixo foi escrito em 2008 como anotação inicial para um novo curso após “Margens Derradeiras- textos do limite”, desta vez enfocando as obras de Tchekhov e Pirandello—curso que acabou não acontecendo; essas anotações tentam fazer uma ponte entre os dois cursos, daí o texto ter parentesco com os que escrevi sobre O horla, O clube dos suicidas, O altar dos mortos, A tumba dos ancestrais, A causa secreta, Os fatos do caso do Sr. Valdemar)

“Sei que você fez os seus castelos

Que sonhou ser salva do dragão…

Desilusão, meu bem!”

      (Erasmo Carlos, Mesmo que esse homem seja eu, 1981)

“Assim, nos primitivos, pode claramente observar-se que o cair da noite revoluciona a sua concepção das coisas. Durante o dia, toda a sua atenção está voltada para o mundo exterior e concreto, mas com a obscuridade tudo se torna mágico e cheio de espíritos, porque o pôr do sol é acompanhado, no primitivo, da extinção da consciência diurna. Desde que a luz desapareça, reaparece o mundo interior, nessa altura tão real e concreto para o primitivo como o mundo exterior… Portanto, no primitivo, o interior é projetado para o exterior e manifesta-se sempre durante a noite. O mesmo não sucede a nós, para quem tudo isso se tornou obscuro e para quem a periodicidade diurna-noturna se desvaneceu.”

      (Carl Gustav Jung, O homem à descoberta da sua alma, 1934)

        Também será através de um dos temas recorrentes do século XIX, as fissuras na instituição do casamento que abordaremos O medo, de Pirandello (aliás, o casamento é alvo de dois romances revolucionários da passagem entre os séculos, devido à ambigüidade e a relatividade com que abordam o tema: Dom Casmurro, de Machado, de 1899; A taça dourada, de Henry James, de 1904).

         Pirandello, o “grande poeta das pequenas circunstâncias”, afirmou Mario Apollonio) nasceu poucos anos depois de Tchekhov (em 16 de junho de 1867), em Agrigento, na Sicília, e morreu muitos anos depois (em 10 de abril de 1936), em Roma.

         O medo é realmente um conto, com cerca de oito páginas, apresentando aquela característica central do gênero segundo Júlio Cortazar: “no romance o autor deve ganhar por pontos; no conto, por nocaute”. Além disso, dá para ver a verve teatral de Pirandello já a caminho de se definir, pois ele é todo construído por meio do diálogo, com pouquíssimas interferências narrativas. Uma delas é o parágrafo inicial: “Retirou-se da janela com um gesto e uma exclamação de surpresa; pousou sobre a mesinha o trabalho de crochê que tinha nas mãos e foi fechar depressa, mas com cuidado, a porta que comunicava com aquele quarto com os outros; depois esperou meio escondida pela cortina da outra porta de entrada” [1]; ora, aqui poderiam ser as “deixas” ou instruções para a movimentação de uma atriz que  ganhasse o papel para uma peça de um ato. Sabemos que se trata de uma personagem feminina pela indicação do trabalho de crochê, e toda o cenário doméstico.

         Lillina Fabris tem logo a seguir sua primeira fala: “Já está aqui?” pergunta (em voz baixa, num tom de contentamento) ao recém-chegado Antonio Serra, a quem tenta abraçar e se fazer beijar (mas com o seguinte acréscimo a essa marcação corporal: “para receber logo o habitual beijo furtivo”, e vemos então que não pode ser o marido o homem a quem está recebendo). Serra se esquiva, Lillina (recompondo-se rapidamente) pergunta-lhe: “Onde deixou Andréa?”

         Serra lhe diz que voltou antes, após ter inventado uma desculpa. E ela quer saber o que está havendo. Serra acha que o marido suspeita deles. Melhor ainda, não acha, teme. Com um espanto cheio de terror, Lillina quer saber se ele, Serra, se traiu de alguma forma. Ele evoca a noite da partida: “Andréa desceu na minha frente, lembra? Com a valise. Você estava com a lamparina na portão, não é? E eu, ao passar…Tive a impressão de que ele se virou quando descia…”

         Lillina apenas pergunta: Ele nos viu?” e como nada é explicado ou detalhado, ficamos nos perguntando que troca de intimidade houve para ser surpreendida: um olhar, um aperto de mão furtivo, um rápido beijo? E, no meio disso, ficamos sabendo que Serra “nunca intuíra a grandeza da alma e do amor” da amante. Aliás, o que o preocupa está bem claro: Deve estar para chegar… E nós, nesta incerteza, suspensos assim, à beira do abismo?”, diz após olhar o relógio, “empalidecendo”.

         Lillina quer saber tudo, vasculhar todos os detalhes e o amante retruca: O que você quer que eu diga? Nesta situação, as coisas mais insignificantes parecem alusões; cada olhar, uma insinuação. De qualquer forma, uma frase de Andrea,  já o inquietou antes mesmo da viagem: Deixar-se à luz de vela, numa escada”. Tocada, Lillina quer saber como o marido disse essa frase. Serra conta que ele a disse com naturalidade, e que depois falou do amor da mulher aos filhos.

         E nisso, entra a criada. Quando ficam a sós novamente ela insiste: “Mas me diga alguma coisa! Não conseguiu confirmar mais nada? Será possível que ele, violento como é e com essa forte suspeita, tenha conseguido fingir tão bem para você?”. Poderíamos imaginar Capitu e Escobar tendo esse mesmo diálogo.

         Serra: “Várias vezes tive a impressão de ler algo nas palavras dele. Mas no instante seguinte me dizia, para me acalmar: Não, é só o medo!” Lillina o interrompe, escandalizada: “Medo, você?” O sonho de um amante galante começa a sofrer um processo de desencanto. Ele continua e tem a primeira “fala” longa do texto: “Examinei e observei todos os movimentos dele, como me olhava, como falava comigo. Você sabe que ele não costuma falar muito… no entanto, nesses três dias, se você visse! Porém ele se fechava freqüentemente num silêncio longo e inquieto; mas toda vez saía do mutismo e tornava a falar de seus negócios. E eu me perguntava: Está preocupado com isso ou com outra coisa? Talvez agora só esteja falando para dissimular a suspeita. Uma vez até me pareceu que ele não queria apertar minha mão. E ele percebeu que eu a estendi; fingiu-se distraído, era realmente um tanto estranho, foi no dia seguinte à nossa partida. Depois de dar dois passos, voltou atrás… disse: Oh, desculpe, me esqueci de cumprimentá-lo… Mas tive a impressão de que ele evitava me olhar de frente… E, enquanto falava de assuntos aleatórios, de repente, achava um jeito de voltar a falar de você ou das crianças, bruscamente, fixando-me nos olhos e emendando algumas perguntas… Será que queria me pegar de surpresa? E ria, mas com uma felicidade feia no olhar”. E assim ele conta a Lillina como ficou “de pé atrás”, e ela o reprova dizendo que o marido deve ter, desse modo, percebido sua desconfiança: Mas se ele já suspeitava!, rebateu ele, sacudindo os ombros largos. Nesses detalhes é que vemos como os autores da época não deixavam escapar nada. Resposta estúpida, ombros largos (força, virilidade, figura masculina atraente; percebe-se por onde ele a seduziu, já nas primeiras linhas citou-se seu “peito hercúleo).

         “E depois? Nada mais?”, continua a argüir a amante. Um curiosamente “humilhado” Serra retoma seu relato: “no hotel… quis pegar um quarto só, com duas camas. Já estávamos deitados fazia um tempo, ele percebeu que eu não estava dormindo, isto é, percebeu, não: estávamos no escuro! Mas supôs. E veja… imagine! Eu nem me mexia. Ali, de noite… no mesmo quarto com ele, e com a suspeita de que ele sabia… imagine! Eu estava com os olhos arregalados no escuro, à espreita… quem sabe!” Note-se que há motivo para o adjetivo humilhado, já que Serra se mostra num papel curiosamente passivo em todo o relato, e aliás toda a sua atitude com relação ao marido de Lillina é meio subalterna. E um homem “com peito hercúleo”, de “ombros largos” ficar numa cama de “olhos arregalados”, numa tremenda expectativa que parece mais medrosa do que outra coisa… convenhamos! E é Andrea quem determina que ficarão no mesmo quarto de hotel. O mesmo Andrea que a certa altura lhe diz: “Você não está dormindo.  Pelo relato do amante, não foi uma pergunta de insone, foi uma afirmação de quem sabia que o outro estava acordado, que não podia dormir. E Serra conta que não respondeu, que fingiu estar dormindo. Ou pelo menos foi o que me pareceu”. E depois diz que não pregou os olhos por duas noites. Lillina: “Só isso?” Ela conclui tratar-se de fantasia, de cisma, principalmente pela incapacidade de domínio do marido: Você não o conhece… Dominar-se a esse ponto, sem deixar vazar nada… O que é que você sabe? Nada! Mas vamos admitir que ele tenha nos visto, enquanto você passava e se inclinava sobre mim…Não, ouça, não: não é possível! Você teve medo, só isso! Medo, você, Antonio!… ele não imaginou nada ruim. Não tem razão para suspeitar de nós”.

         E Serra só insiste, embora se sinta “apaziguado internamente pela inesperada confiança demonstrada pela mulher, pelo prazer de ser ainda mais tranqüilizado por ela” [2]. Lillina diz a frase-chavão: é preciso ter cuidado. Ele se irrita: mas agora? “Ela o olha com desdém: E agora você me acusa? Ele diz que não a está acusando, mas que sempre lhe chamou a atenção para que tomasse cuidado. E aí entramos num outro terreno, percebam pelo uso dos adjetivos: Sim, sim, confirmou ela, como nauseada”. Mais adiante, enquanto ele continua recriminando-a: Sim, fez ela, erguendo-se com um gritinho sarcástico, o medo!” Sem perceber, o amante perora: Medo… acha que não penso também em você? O medo… estávamos muito confiantes, aí está! Sim, e agora todas as nossas imprudências, todas as nossas loucuras me saltam aos olhos, e me pergunto como ele não suspeitou de nada até hoje…” Frases que não são as mais indicadas para as madames Bovarys da vida, que acham delicioso justamente esse “elemento de susto e perigo”.

         E na revolta “febril” de Lillina contra o bom senso (ou covardia e pusilanimidade) do amante, o leitor fica sabendo de detalhes do seu casamento com Andrea: “Você pode acrescentar que fugi com ele da minha casa, e que quase o forcei a fugir[3] ; eu, porque o amava, sim; depois o traí com você! É justo que agora você me condene, mais que justo! Mas ouça: fugi com ele porque o amava, e não para conseguir todo este sossego aqui, o conforto de uma nova casa; eu tinha a minha; não teria ido embora com ele. Mas ele, como se sabe, devia se desculpar perante os outros da leviandade a que se deixara levar, ele, homem sério, equilibrado…. Ah, mas a loucura já fora cometida: agora era preciso remediar, reparar logo! E como? Entregando-se inteiro ao trabalho, construindo para mim uma casa rica, cheia de ócio… Assim, trabalhou feito um estivador, não pensou senão em trabalhar, sempre, sem desejar mais nada de mim senão os elogios por sua operosidade, por sua honestidade, e também a minha gratidão! Tudo isso para mim, que o esperava impaciente, feliz quando voltava. Chegava em casa cansado, quebrado, contente com seu dia de trabalho, já preocupado com os afazeres do dia seguinte…. Pois bem, no final também me cansei de ter que arrastar esse homem para que me amasse, para que forçosamente correspondesse ao meu amor [o id romanesco quer lá saber do superego realista e burguês?]… O apreço, a confiança, a amizade do marido certas vezes parecem um insulto à natureza E você se aproveitou disso, você, que agora me acusa do amor e da traição, agora que o perigo bate à porta, e está com medo, bem vejo, tem medo! Mas o que você perde?”

         Eles discutem amargamente, nessa velha briga imemorial de amantes, quando um é casado, e o compromisso é tênue, e então ele diz “mais chocado do que comovido”: “Agora você vai chorar, vou embora”. E recebe uma réplica despreziva e vingativa: é claro, você não tem mais nada a fazer aqui”. Ele tenta dourar a pílula e dizer que nada acabou. Ela diz que não é mais possível a essa altura continuar, que é melhor terminar (é lógico que ela não quer isso, e sim que ele vocifere, rebata, suplique, enfim, o repertório “romanesco”; mas, como, se ele tem… medo?). E recebe um simples: “Como quiser”. Aí se revela a sua fúria medeiana: “Aí está o seu amor!”  Freud já não se perguntava: mas o que quer a mulher? Serra responde pelos homens: Você quer me enlouquecer”.

         E aí Lillina revela o que pelo menos ela quer: ela quer o drama, o palco, todas as emoções melodramáticos que uma fuga e depois um adultério não conseguiram lhe trazer: “A partir de agora não importa o que possa acontecer. Entre nós tudo acabou. E escute: seria melhor que ele soubesse de tudo. Melhor, sim, melhor! Que espécie de vida é a minha? Você imagina? Não tenho mais o direito de amar ninguém! Nem sequer os meus filhos… Quando me inclino para dar um beijo neles, tenho a impressão de que a sombra da minha culpa se projeta sobre suas frontes imaculadas! Não, não… Acabar com a minha vida! Faço isso, se ele não o fizer… Já não me resta mais nada” . E todo esse discurso de Medéia Bovary é ouvido por um “plácido e duro Antonio Serra.

         Então, ela começa a enxotá-lo. Que Andrea não o encontre ali. Ele pergunta se não é melhor que fique. Ela diz que não, não, que volte depois: “Devemos continuar usando a máscara juntos. Volte logo e tranqüilo, indiferente.  E aí vem uma série de falas entrecortadas e meio balbuciantes em que ele hesita e quer ficar e ela o manda embora, lhe diz adeus (e não é um adeus de educação, é uma cerimônia de adeus do adultério, que pode até continuar, mas como rotina paralela à rotina do casamento): Vá embora, ela o atalhou súbito, com aspereza. Serra sai prometendo que volta logo e então o narrador interfere mais longamente, depois de deixar que suas personagens falassem por si, a não ser pelas preciosas e precisas indicações que emolduram o diálogo : “Ela ficou no meio do quarto, com os olhos enviesados, como num pensamento atroz, que assumisse uma forma real diante dela. Depois balançou a cabeça e exalou a agonia interna num suspiro de desolado cansaço. Esfregou a testa com força, mas não conseguiu expulsar o pensamento dominante. Andou um pouco, inquieta, pelo aposento; parou diante de um espelho pendurado no fundo, perto da saída; a própria imagem refletida no espelho a distraiu, e ela se afastou. Foi sentar em frente à mesinha de trabalho, inclinando-se sobre ela, com o rosto oculto entre os braços; pouco depois reergueu a cabeça e murmurou [revelando o significado desses movimentos todos, que eram uma expressão de esperança e tênue expectativa]: “Será que ele não voltaria a subir a escada? Com uma desculpa…Balançou de novo, com desprezo e náusea no rosto, e acrescentou: Se não fosse o medo. Tem tanto medo! Ah, mas agora acabou… Acabou… Meus Deus, obrigada! Meus meninos… meus meninos… Pobre Andrea!” Veja-se a hipocrisia dessas palavras finais, quando ela ainda fica pra lá e pra cá no “palco” na esperança de que Antonio se arrependa e suba a escada com uma “desculpa” que volte a colocar todo o moinho romanescoem movimento… E ela se lembra dos “meus meninos” só depois que se consuma a cerimônia da covardia do amante.

         Isso nos leva a um ponto que não abordamos no nosso curso: em todos os nossos textos os personagens que vivem situações-limite são homens, à exceção da preceptora de A volta do parafuso, a qual, de todo modo, está afastada da condição comum das mulheres. Qual eram as derradeiras experiências das mulheres na ficção oitocentista, procurem puxar na memória: as que iam mais longe eram as aventureiras do amor e do sexo fora do casamento. Entregar-se aos amores, é o máximo que o quixotismo de Emma Bovary ou de Anna Kariênina pode esperar, elas que são as heroínas arquetípicas da ficção realista. E a ficção de cunho fantástico, ou “derradeiro”, como eu denominei aqui, não têm muitas representantes do sexo feminino, que possam ascender a uma condição “proibida” pelos limites sociais e físicos (uma Sra. Hyde, uma mulher invisível, um superego feminino despregado do id de uma William Wilson de saias, uma capitã de navio, Sra. Marlow que descobrisse uma negociante de marfim, Sra. Kurtz, que tivesse enlouquecido na selva, e assim por diante); portanto, no pórtico da ficção modernista, como é o caso da Lillina de Pirandello o máximo que a mulher pode fazer ainda é desesperar-se pela falta de coragem do amante: mesmo na aventura do adultério, a mulher não sai dos limites do seu lar, que a cerca como um palco ao qual estivesse condenada (a não ser no teatro de Ibsen ou Strindberg, os derradeiros em se tratando de teatro, e que ressuscitarão as mulheres-Medéias que vão até o fim, solapando maternidade e devoção familiar, caso de uma Hedda Gabler, ou da Nora, de Casa de Bonecas,  por exemplo).

         Já que não estamos no mundo dos grandes dramaturgos escandinavos (Ibsen influenciou muito James Joyce), vamos examinar outro casamento pirandelliano, dessa vez num meio mais explicitamente rural e siciliano (O medo deixa a situação social numa espécie de limbo, embora possamos captar os seus indícios, concentrando-se no cerne da questão; mas evidentemente se passa num meio próspero e mais para o urbano), e nas classes populares: alguns anos depois do entrevero truncado entre Lillina e Andrea, Pirandello escreveu Mal da Lua.

         Dessa vez não são os diálogos que dominam a narrativa e sim o chamado “narrador onisciente”, que no entanto já nos apresenta o relato em plena ação, apresentando-nos um casal: “Batá estava sentado, enrolado sobre si mesmo, num feixe de palha no centro da eira. Sidora, sua mulher, de vez em quando se virava para olhá-lo, preocupada, da soleira da porta em que estava sentada, com a cabeça apoiada no umbral e com os olhos semicerrados” [4]. Até este ponto, podemos até achar que se trata de uma briga doméstica, ou de alguma coisa corriqueira, apesar do marido estar enrolado sobre si mesmo, no centro da eira, e da mulher olhá-lo preocupada. Só sabemos que algo deve ter ocorrido. Logo depois sabemos que o calor é intenso, insuportável (é um momento próximo ao pôr-d0-sol): Tamanho era o calorão que, sobre a palha que permanecera na eira após a debulha, via-se tremer o ar, como um hálito de brasa”. Através do calor, ficamos informados de que estamos no meio rural. Batá, o marido, permanece taciturno e absorto olhando o chão. Seu único gesto, vão, mas reiterado, é bater uma palhinha nos seus sapatos: Havia no fulgor sombrio e imóvel do ar tórrido uma opressão tão sufocante que o gesto vão do marido, obstinadamente repetido, criava em Sidora uma aflição insuportável. Na verdade, cada ação daquele homem, e até mesmo sua simples presença, provocavam-lhe aquela aflição a cada vez dominada com maior dificuldade. É literalmente uma visão infernal do casamento, uma instituição à mercê de um ar tórrido. E não é exagero meu, veja-se o seguinte trecho: “Casada com ele havia apenas vinte dias, Sidora já se sentia vencida, destruída. Notava dentro e ao redor de si um vácuo estranho, pesado e atroz. E quase não acreditava que em tão pouco tempo tivesse sido levada para lá, para aquela velha roba [habitação rural] isolada, ao mesmo tempo estábulo e casa, no deserto daqueles restolhos, sem nenhuma árvore ao redor, sem um fio de sombra. É como um conto-de-fadas em que a princesa é aprisionada num lugar sombrio (a Bela, encastelada com a Fera, por exemplo). Só que essa é a realidade de Sidora, é o que ela conhece depois do “e foram felizes para sempre”. Ao invés de uma atmosfera “encantada”, que algo vai desfazer, trazendo a felicidade permanente, o “encanto” é na verdade o desencanto, ao lado de um homem taciturno, vinte anos mais velho do que ela e “sobre o qual parecia pairar agora uma tristeza mais desesperada do que a sua”.

         A grande diferença com relação às situações “encantadas” (no fundo, muito ambíguas) dos contos de fada, é que somos informados de  “sufocando o pranto e a repulsa, havia vinte dias não fizera outra coisa a não ser abandonar seu corpo àquele homem taciturno (o que a diferencia de Lillina, que teve um arroubo romanesco pelo marido Andrea, com o qual fugiu; a acomodação burguesa dele é que a desiludiu). Por que Sidora se casou com Batá? Por imposição da mãe, a qual, apesar dos avisos das vizinhas (que ela supunha invejosos), deu o consentimento, após ele pedir a mão da filha (imagine, Batá para a condição social dela, “era abastado” ), ainda que não se soubesse bem como ele de fato vivia, “atirado sempre lá longe, naquele seu pedaço de terra… estava sempre só, como um bicho com os seus bichos, duas mulas, uma burra e o cão de guarda [portanto, parece que Batá ficou à parte do processo civilizatório: é um primitivo]; e, é claro, possuía um ar estranho, sinistro e às vezes insensato”.

         Outro motivo pesou na balança da mãe: as atenções de Saro, um sobrinho apaixonado pela prima (a aparência dele: dois lábios frescos, vivos e vermelhos como duas pétalas de cravo, abertos num sorriso que fazia tremer e arder todo o seu sangue nas veias”), só que em seu “amor” não soubera encontrar a força de recuperar o juízo, de libertar-se da companhia dos tristes amigos, para retirar à mãe qualquer pretexto para opor-se ao casamento de ambos”. Assim como Lillina com relação à Antonio Serra, Sidora alterna atração física com desdém. Sabe que Saro seria um péssimo marido, vagabundo e indolente como era. “Mas que marido era aquele agora? As dificuldades que sem dúvida o outro lhe teria trazido não seriam talvez preferíveis à angústia, à aversão, ao medo que este lhe incutia? Na verdade, o angustiante, o verdadeiramente asfixiante, é não haver outros horizontes.

         Após a evocação das razões do matrimônio, Batá levanta-se com dificuldade da palha, tem dificuldade de se manter em pé e solta um ganido “quase raivoso”. Quando Sidora acorre, ele a detém com um sinal, mas não consegue falar, devido a um fluxo de saliva incontrolável. Depois de muita luta, “com os olhos embaçados e velados, vendo-se neles, atrás da loucura, um medo quase infantil, ele consegue instruir a mulher para que se feche dentro da casa: Se eu bater, se eu sacudir a porta e se a arranhar e gritar, não se assuste, não abra. Ele indica com o braço o céu e berra: “A lua!” E enquanto corre para casa Sidora realmente vê uma enorme lua cheia dominando o céu.

         Entrincheirada na casa, ela se apavora com os uivos que o marido lança lá fora, fazendo justamente o que avisara: batendo cabeça, pés, mãos, o corpo todo na porta, sacudindo, arranhando, “presa do mal horrendo que lhe vinha da lua”.  É a assustadora experiência da fronteira (ultrapassada ou oscilante) entre o humano e o animalesco. E assustador é a idéia que ocorre a Sidora: “Ah, se pudesse matá-lo” , e se tivesse uma arma à mão talvez o fizesse. Como disse Elizabeth Roudinesco na sua história da perversidade, Freud nunca foi um leitor de Sade, mas partilhava com ele, sem o saber, a idéia segundo a qual a existência humana caracteriza-se menos por uma aspiração ao bem e à virtude que pela busca de um permanente gozo do mal: pulsão de morte, desejo de crueldade, amor ao ódio, aspiração ao infortúnio e ao sofrimento”. Nada de heroína romântica, presa a um casamento insensato. Vítima do medo, mas também uma potencial assassina, sem interesse pela origem do sofrimento do marido, e do seu estranho estado, apenas pensando em se livrar dele.

         A certa altura, vendo a lua subindo ao céu “totalmente inundado de plácido alvor” (e é curioso que aqui temos uma associação com toda a simbologia que cerca a noiva no casamento tradicional), Sidora desmaia. É como se o mal da lua fosse a violação representada pelo casamento, desnudando a farsa do “branco” que cerca a noiva, a “felizarda”.

         Quando volta a si, um profundo silêncio. Aguçando o ouvido perto da porta trancada, tem a impressão de ouvir um suspiro. Aí então, após certificar-se de que tudo está calmo e quieto, ela retira as escoras da porta, levanta o ferrolho e a tranca, abre um batente e espreita: “Batá estava lá.Jazia como um animal morto, de bruços, entre a baba, escuro, intumescido, de braços abertos. Seu cão, acuado não muito longe, montava guarda sob a lua”.

         E Sidora então se escafede dali, pelo campo afora, em direção à vila, na noite ainda alta, toda banhada pelo luar. Chega ao casebre da mãe (escuro como um antro, no fundo de um beco estreito… iluminado apenas por uma lamparina de azeite), perto do amanhecer, e já a encontra acordada, para quem se lamenta, chora, arranca os cabelos, fingindo nem poder falar “para melhor fazer com que a mãe e as vizinhas compreendessem e medissem a enormidade do fato que lhe acontecera, do medo que tivera”. Ou seja, o mal da lua, toda aquela angústia, virou teatro, pantomima, commedia dell arte. As vizinhas lembram que avisaram à mãe de que Aquele homem não era natural, que aquele homem devia esconder em si algum grande defeito… Ladrava, hein? Uivava como um lobo? Arranhava a porta? Jesus, que terror!”, e quase vemos as vizinhas deleitando-se com a descrição do terror.

         Quem aparece por ali no final do dia, “humilhado, abatido, atordoado” é o pobre Batá, trazendo pelo cabresto parte da sua fortuna (suas duas mulas). Quando as vizinhas percebem que se trata dele, colocam a cabeça para fora de seus casebres para “espiarem e se comunicarem com os olhos”. Sidora fica escondida num canto da casa, enquanto a mãe escorraça o genro amaldiçoado, acusando-o de “estragar a filha”: Batá escutou com a cabeça baixa, as ameaças e os insultos. Ele os merecia: era culpado, escondera o seu mal. Escondera-o porque nenhuma mulher o teria aceitado se o tivesse confessado antes”.

         A sogra bate-lhe a porta no rosto e tranca a casa. Ele fica ali por um tempo de cabeça baixa, e as vizinhas curiosas se apiedam, oferecem-lhe uma cadeira, e o rodeiam. E assim ouvem sua história: que ficara exposto uma noite inteira à lua (a mãe saíra para “colher espigas” e dormira fora), e “ele, pobre inocente, brincara com a bela lua, agitando as perninhas e os bracinhos. E a lua o “encantara”, o que acabara se manifestando há pouco tempo: Mas era um mal somente para ele, bastava que os outros se abstivessem; e podiam abster-se perfeitamente porque acontecia em períodos fixos e ele sentia sua chegada e o indicava com antecedência; durava apenas uma noite e depois acabava”. Note-se que Pirandello retira qualquer halo sobrenatural ou fantástico (lobisomem, etc), deixando só o aspecto supersticioso e psicológico. Seu umheimlich é baseado no atavismo e na ignorância.

         Para Batá, a solução do casamento era simples: a cada lua cheia Sidora poderia vir para a casa da mãe ou esta poderia fazer companhia à filha na “roba” (na roubada, diríamos). Nesse momento, irrompe Sidora, morta de raiva, escancarando sua porta (atrás da qual estivera escutando” ). O quê ? Levar a mãe? Para ela morrer de medo também?  Aí a mãe também sai da casa, “afastando a filha com o cotovelo e mandando que permanecesse calada e quieta dentro da casa”. Começarão, portanto, as negociações práticas. Sidora os observa, “pondo-se de acordo”: “…zangada e consternada, acompanhava os gestos da mãe e do marido; e como lhe pareceu que ele lhe fizesse com muita animação algumas promessas que a mãe acolhia com evidente prazer, pôs a gritar… As mulheres da vizinhança fizeram-lhe sinais insistentes para que se calasse, para que esperasse que a conversa terminasse”. Ao final do colóquio, Batá cumprimenta a solerte sogra e lhe entrega uma das mulas (isso é que é tirar vantagem de um “mal”; entretanto, não há males que vêm para bem?). E assim Sidora parte na manhã seguinte para viver novamente com o marido, com a promessa da mãe de se juntar a ela na lua cheia, acompanhada por Saro (temos por acaso outro homem além dele em nossa parentela? É o único que nos pode dar ajuda e conforto”), ou seja, removeram-se (uma vez que a filha está legalmente casada e o marido é tão compreensivo, dado o seu “problema”) os obstáculos de aproximação entre os primos. A prova do cinismo dessa querida senhora é o seguinte trecho: “E, baixando os olhos para esconder o sorriso, fingiu enxugar a boca desdentada com a ponta do lenço que tinha na cabeça, amarrado no queixo. Que matreira!

         Sidora não pensa em outra coisa durante o mês que transcorre. Observando a lua, teria querido, com o desejo, apressar suas fases minguantes” (vejam que ela também sofre de um “mal da lua”, regulando-se por suas fases). Batá procura tranqüilizá-la.

         Finalmente chega a noite tão temida, tão aguardada. E a mãe chega com Saro. A essa altura, Batá já está enrolado na eira, porém sem beira. A mãe determina: Você é homem, disse a Saro, e você já sabe como é, disse à filha. Eu sou velha, de todos sou a que mais tem medo e ficarei aqui entocada, totalmente calada e só. Fico bem encerrada e ele que vá bancar o lobo lá fora”.  Enquanto esperam o “mal da lua”, Sidora lança olhares  “cada vez mais ardentes e provocantes” para o primo. “Mas Saro, embora fosse geralmente tão vivo, alegre, brincalhão, sentia-se pelo contrário esmorecer pouco a pouco, sentia o riso endurecer em seus lábios e a língua seca… de vez em quando dava uma olhada naquele homem lá, à espera que o mal o atacasse; esticava também o pescoço para ver se atrás da elevação da Crocca não despontava o rosto assustador da lua” (é a lua que vem trazer algo mítico e ritual a essa narrativa de tempos degradados e materialistas). Sidora não desiste de provocá-lo, de atiçá-lo. É um pouco Lillina com relação a Antonio Serra (no início de O medo, antes que ele a desaponte). E só consegue fazer o primo sentir horror e terror dos olhares impudentes, tanto quanto do olhar daquele homem enrolado lá, à espera. E foi o primeiro a pular como um carneiro para dentro da roba mal Batá lançou um ganido anunciador… Ah, com que fúria começou a colocar escoras e mais escoras, enquanto a velha se entocava no quartinho e  Sidora, irritada, desiludida, repetia-lhe em tom irônico: … Verá que não é nada”.

         E assim chegamos por outras vias à mesma desilusão da heroína anterior de Pirandello (e de Emma Bovary com seus amantes, e de Anna Kariênina com Vronski, enfim…): “Não era nada? Ah, não era nada? Com os cabelos arrepiados na testa, aos primeiros uivos do marido, às primeiras cabeçadas… Saro, totalmente banhado de suor frio, com as costas cortadas pelos calafrios, com os olhos arregalados, tremia como vara verde. Não era nada! Deus meu! Como? Aquela mulher era louca? (percebam que o simplório Saro é o único a perceber a enormidade do fato, que Sidora anunciara, porém esquecera, pois ela, crente de que ia se desforrar do seu casamento com o primo, e a mãe, contente de ser “recompensada” com os bens do genro pelos transtornos da sua condição, logo colocaram o mal da lua nos trilhos da rotina e da normalidade, como uma bebedeira ou um surto qualquer; tais são os poderes da cobiça e da concupiscência: o que não era natural se naturaliza rapidinho). Enquanto o marido lá fora fazia aquela tempestade na porta, aí estava ela, rindo, sentada na cama, mexendo as pernas, estendendo-lhe os braços, chamando-o: Saro! Saro! Ah, é assim? Irado, indignado, Saro, com um pulo, saltou no quartinho da velha, agarrou-a pelo braço, atirou-a sentada na cama ao lado da filha: Esta mulher é louca! E ao retirar-se em direção à porta, percebeu ele também, através da grade da janelinha alta na parede fronteira, a lua, que se do outro lado fazia tanto mal ao marido, do lado de cá parecia rir, feliz e impertinente, da fracassada vingança da mulher”.

         A vingança fica por conta do lado noturno, lunar, da nossa existência.


[1] Utilizo a tradução de Mauricio Santana Dias, tradutor contumaz de Pirandello, na antologia 40 novelas de Luigi Pirandello (Companhia das Letras).

[2] Bentinho e os ciumentos de Proust se deliciaram com o seguinte trecho: “… a suspeita pode nascer de um momento a outro. E aí… mil pequenos fatos mal percebidos, nem sequer levados em conta, ganham nova cor de repente; cada aceno indeterminado se torna uma prova; depois a dúvida e a certeza…”

[3] Ou seja, ela o obrigou a uma atitude romanesca, e por ter se aburguesado, ela o traiu por outra situação romanesca e assim se vai de círculo vicioso em círculo vicioso.

[4] Utilizo a versão de Fulvia M. L. Moretto (a mais prestigiada tradutora de Madame Bovary), na coletânea Kaos e outros contos sicilianos (Nova Alexandria), aproveitando o título do maravilhoso filme dos irmãos Taviani, Kaos (1984), realizado a partir de cinco contos (aliás, essa seleção  traz outro conto, A viagem, que virou um filme, em 1974, A viagem proibida, dirigido por Vittorio de Sica, mas do qual não tenho boas lembranças). Kaos tem um sentido toponímico, não metafórico, segundo as palavras do próprio Pirandello: “Sou filho do Caos, e não alegoricamente, uma vez que nasci numa nossa região que se encontra perto de um emaranhado bosque chamado Cávusu pelos habitantes de Girgenti [atualmente, Agrigento], corruptela dialetal do genuíno e antigo vocábulo grego Kaos; de fato, onde Pirandello nasceu tinha muitas ruínas de antigos templos gregos. Nada mais propício para quem se dedicou ao teatro.

11/09/2011

O outono do império americano segundo Paul Auster

“…existem umas 130 réplicas da Estátua da Liberdade em escala reduzida, em lugares públicos por toda a América… Ao contrário da bandeira, que tende tanto a dividir as pessoas como a uni-las, a Estátua é um símbolo que não  suscita nenhuma controvérsia. Se muitos americanos têm orgulho da sua bandeira, há muitos outros que sentem vergonha dela, e para cada pessoa que a encara como um objeto sagrado, existe outra que gostaria de cuspir nela, ou queimá-la, ou arrastá-la  na lama. A Estátua da Liberdade é imune a esses conflitos. No decorrer dos últimos 100 anos, ela transcendeu a política e a ideologia, plantada na porta de entrada do nosso país como um emblema de tudo o que é bom em nós. Representa antes a esperança do que a realidade, antes a fé do que os fatos, e seria quase impossível encontrar uma única pessoa disposta a condenar as coisas que ela simboliza: democracia, liberdade, igualdade perante a lei… É o melhor que a América tem a oferecer para o mundo, e por mais decepcionada que a pessoa se sinta com a incompetência da América para se comportar à altura desses iideais, os ideais propriamente ditos não são postos em questão.”

Como se pode ver pelo trecho acima, é bem oportuno (após os atentados de onze de setembro) que uma nova tradução de Leviatã  (1992) esteja em circulação. Pois o personagem principal do extraordinário romance de Paul Auster, Benjamin Sachs, se torna um terrorista, o Fantasma da Liberdade, dedicando-se a explodir réplicas da icônica Estátua da Liberdade pela América afora, no objetivo de que a nação “voltasse os olhos para si mesma e se regenerasse”.

Escritor que começa a ficar  “por fora”, out, da América pós-Reagan (Leviatã percorre um período que vai de 1975 a 1990), Sachs descobre que há “uma justificação moral para certas formas de violência política. O terrorismo tinha seu lugar na luta, digamos. Se usado corretamente, ele poderia ser uma ferramenta eficaz para exprimir de forma dramática as questões em jogo, para esclarecer o público quanto à natureza do poder institucional” (saliente-se que ele procura não ferir ninguém ao realizar seus atentados).

Leviatã é uma discreta e notável reflexão sobre a política, sobre as relações entre o indivíduo e o estado, sobre a desobediência civil e o conformismo (essa associação estado-monstro bíblico foi inicialmente feita pelo filósofo Thomas Hobbes, no seu livro homônimo e fundamental , de 1651), além de fixar definitivamente as obsessões ficcionais de Auster. Na Trilogia de Nova York (1986), já encontrávamos: “nada é real a não ser o acaso”. O livro anterior a Leviatã chamava-se A música do acaso (1990). Peter Aaron, amigo de Sachs, igualmente escritor, luta contra o acaso, contra os “fragmentos e cacos, uns poucos fatos evanescentes” e procura instaurar o poder ordenador da narrativa, no qual Sachs (abandonando a literatura) já não acredita. O destino do amigo se torna um desafio para a existência de Aaron, para as suas escolhas de vida: “Não era mais o meu amigo desaparecido, era um sintoma de minha ignorância acerca de tudo, um emblema do próprio desconhecido”.

Essa é uma das inúmeras ironias reversivas de Leviatã, pois toda a pirmeira parte da narrativa foi utilizada para mostrar como Aaron venceu as dificuldades financeiras até se firmar na “carreira” de escritor, constituindo família e adquirindo “estabilidade”. Quando Sachs abandona o livro que está escrevendo (justamente chamado Leviatã), é a opção de Aaron (“toda a minha vida adulta foi consumida em escrever histórias”) que é colocada em xeque. Por isso, numa história onde acontecem tantos fatos violentos e bizarros, não causa estranheza que ele afirme: “De todas as tragédias que o meu pobre amigo engendrou para si mesmo, deixar esse livro inacabado vem a ser a mais difícil de suportar”.

Apesar das tentativas de Aaron de impor um senso narrativo aos fatos aleatórios, o acaso impera: Benjamin Sachs assassina um desconhecido num entrevero de estrada e, ao discutir o fato com sua amiga Maria Turner, acaba descobrindo que sua vítima (talvez um terrorista) é o marido da melhor amiga dela, Lillian Stern, que o conheceu porque Maria descobriu “por acaso” uma agenda de telefones na rua. Maria (que é caracterizada por Aaron, a certa altura da história, como  “espírito soberano do acaso, a deusa do imprevisível”) é quem nos fornece a senha para entender a trama: “O acaso a havia conduzido à agenda, mas agora que ela estava em suas mãos, Maria a tratava como um instrumento do destino”.

A morte do marido de Lillian é o instrumento do acaso-destino para que Sachs abandone a vida pregressa e vá em seu encalço, no outro lado do país, iniciando uma relação intensa e neurótica que o levará a conhecer também  um pouco dos segredos do homem que assassinou e assumir  seu avatar final como terrorista a pregar a purgação moral da América através da destruição substitutiva e simbólica do seu símbolo-mor.

É altamente provável  que, nos próximos anos, Leviatã seja reconhecido como uma das grandes obras literárias do nosso tempo. Há, no entanto, algo que incomoda nesse romance brilhante, algo com o qual o próprio Auster brinca, ao fazer  Aaron criticar o estilo de Sachs, o qual, aliás, depois se faz passar pelo amigo, autografando seus livros pelo país: “há momentos em que o romance dava a sensação de ser demasiado construído, demasiado mecânico na sua orquestração dos fatos”.

Quanto às duas traduções, ambas têm momentos mais ou menos felizes na comparação, com apenas uma discrepância assinalável: enquanto que na de Thelma Médice Nóbrega (editora Best Seller), Maria Turner e Sachs mantinham encontros todas as quintas-feiras,  na de Rubens Figueiredo (Companhia das Letras) esses encontros acontecem às terças-feiras (há também um erro de data na dele: na página 286, onde se lê 1912 deve-se ler 1921). Agora: que capa mais sem imaginação essa que a Companhia das Letras deu ao livro. Cem por cento de obviedade, zero de instigação.

(resenha publicada originalmente em 25 de setembro de 2001,  em A TRIBUNA de Santos)

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08/09/2011

Um “id” à solta pelo mundo

(este é mais um texto de 2008, do meu curso AS MARGENS DERRADEIRAS sobre textos-limite do século XIX)

“Contra o meu gosto, nada me parece conveniente e justo”

“Eu era senhor de todos, e a todo pedia desforra

(Calderón de La Barca, A vida é sonho, 1635)

Em 1897, em meio ao seu surto de criatividade genial, H. G. Wells[1], que nascera em 1866, e portanto estava com 31 anos, publicou O homem invisível[2], o qual continua a linha do Fausto e do livro de Stevenson ao abordar a incapacidade de um cientista de manter o discernimento moral, anuviado pela cobiça de um poder sobre a natureza e sobre os outros.

O Homem Invisível, Griffin, ao perder sua identidade de ser visível, também parece perder a unidade (mesmo que conflituosa) do ego humano, e apresenta-se como puro “id”, como um Hyde sem Jekyll. Entretanto, como é nosso hábito aqui, repassemos a história, mesmo porque o livro de Wells, assim como o de Stevenson, o de Bram Stoker, o de Mary Shelley e tantos outros, nas suas inúmeras versões e adaptações nunca é muito respeitado (mesmo a esplêndida versão dos anos 30 modifica bastante o final [3] ).

O romance apresenta 28 capítulos e um epílogo. Tem um começo maravilhoso com a chegada, no meio do inverno, na cidadezinha de Iping, do “estranho” (Griffin), todo coberto (Estava agasalhado da cabeça aos pés e a aba do chapéu de feltro macio ocultava-lhe cada centímetro do rosto; a neve tinha se acumulado em seus ombros e peito, acrescentando uma orla branca ao peso que carregava[4], irascível, com respostas cortantes, que irritam a dona da estalagem onde ele deseja se hospedar com o máximo de privacidade, a Sra. Hall, que se apazigua devido ao pronto (e generoso) pagamento (um par de soberanos jogados sobre a mesa”). É uma delícia acompanhar a interesseira e intrometida senhoria tentando forçar a intimidade com o insólito e incômodo hóspede (ao mesmo tempo, Wells traça já um retrato sombrio e negativo de Griffin, ser humano pouco agradável; e um retrato satírico e demolidor do senso comum, das pessoas que só querem viver sua vidinha). A maior curiosidade dela é saber se ele está deformado ou desfigurado por algum acidente. Nas tentativas de entra-e-sai dela, sempre mal recebidas pelo hóspede, o narrador em 3ª. pessoa aproveita para ampliar o âmbito de sua descrição da incomum aparência do protagonista: “Segurava um pano branco diante da porção inferior do rosto, de forma a encobrir a boca e maxilar, o que explica a voz surda. Mas não fora isso o que espantara a Sra. Hall e sim o fato de que toda a testa, acima dos óculos azuis, estava envolta em uma atadura branca, e outra lhe encobria as orelhas, sem deixar nem um pedaço de rosto à mostra, a não ser o nariz rosado e pontiagudo. Este era de um rosa claro e brilhante…” Ele anuncia que é um “pesquisador” e “faz experiências” e que está aguardando seus equipamentos: “Meu motivo para vir para Iping foi o desejo de solidão. Não quero ser interrompido em meu trabalho”. Todos que tentam entabular assunto ou se aproximar são rechaçados. E a sensata Sra. Hall não quer saber de falatórios a respeito dele, conquanto a conta seja paga em soberanos. Mas a bagagem dele, que chega depois, realmente a exaspera (“Havia, de fato, um par de malas como seriam necessárias a qualquer homem racional, mas além disso havia uma caixa de livros, grandes e grossos, alguns dos quais em uma escrita incompreensível, e talvez mais de uma dúzia de engradados, caixotes e embrulhos, contendo objetos acondicionados em palha que pareceram ao Sr. Hall garrafas de vidro”). A chegada desse equipamento proporciona o primeiro incidente (embora como se possa deduzir, o tom da narrativa ainda seja brejeiro e pitoresco). O estranho sai para apressar a entrega e um cachorro o morde. O Sr. Hall afana-se para ajudá-lo (ele correu para os seus aposentos) e ao entrar vê “algo extremamente esquisito, o que parecia um braço sem mão acenando em sua direção. Ele é rechaçado, como de hábito, e o incidente se perde no ramerrão, perturbado apenas pelas crises do hóspede durante suas pesquisas, com barulhos de garrafas sendo violentamente atiradas no chão.

O quarto capítulo começa assim: “Contei as circunstâncias da chegada do estranho a Iping com certa profusão de detalhes para que o leitor compreenda a curiosa impressão que causou . Aí, as coisas começam a acelerar. As escaramuças com a Sra. Hall aumentam, após alguns meses, pois o dinheiro começa a rarear, e ela perde a paciência, a boa mulher. Ter alguém esquisito, mandão, e que não paga ainda por cima, é demais para uma singela alma de comerciante! O estranho também vira tópico de conversas e de especulações por toda a pequena e provinciana Iping (quase uma aldeia): é um criminoso foragido, um anarquista, um preparador de explosivos, uma aberração física ou um maluco inofensivo? Ele caminha pela aldeia (sempre na penumbra) e a garotada zomba dele. E há os pequenos incidentes de alguém achar que “não” viu alguma parte dele. Tudo se precipita num feriado de Pentecostes, quando o presbitério é assaltado. O pároco e sua esposa vasculham a casa, pois ouvem barulho e movimento, e embora constatem o roubo não acham ninguém. A coisa mais palpável é um ou outro espirro ocasional. Nesse mesmo dia, ao se desincumbir de uma tarefa dada pela mulher, o Sr. Hall encontra o quarto do seu hóspede deserto, mas as roupas que ele usa ali estão (Que estará fazendo sem roupas?”). Ele chama a mulher, os dois sobem, e pensam ter ouvido a porta da estalagem abrir-se e fechar-se, só que não deram maior importância ao fato. Além disso, ouviam-se espirros (lembrem-se, mal acabou o inverno, e imagine andar nu pela úmida Inglaterra [5]). A Sra. Hall começa a verificar o quarto e subitamente móveis e roupas enlouquecem e começam a se mexer sozinhos:a cadeira…rindo secamente com uma voz muito parecida com a dele, virou para cima, com as quatro pernas para o ar; por um momento pareceu fazer pontaria na direção da Sra. Hall e precipitou-se para ela. Gritando, ela virou-se e as pernas da cadeira tocaram-lhe as costas, sem brutalidade, mas com firmeza, e empurraram-na, juntamente com Hall, para fora do quarto. A porta fechou-se violentamente e foi trancada. Durante algum tempo a cadeira e a cama pareceram estar executando uma dança triunfal e depois, abruptamente, tudo cessou” [6].

A Sra. Hall, apoplética, quer proibir a entrada do hóspede: Deixem-no do lado de fora. Não permitam que entre outra vez. Bem que desconfiei…Devia saber. Com os olhos esbugalhados e a cabeça enfaixada e nunca indo à igreja aos domingos. E todas aquelas garrafas, muito mais do que qualquer um tem o direito de ter.”

Resolvem chamar o ferreiro para arrombar a porta, arma-se um debate sobre o assunto e, zapt, a porta do quarto abre e o estranho hóspede desce as escadas, mais sombrio, carrancudo e autoritário do que nunca. Ele entra na sala de estar e se tranca. O marido da estalajadeira, incitado pelos outros, tenta falar-lhe e recebe um Vá para o inferno!”.

         Lá fora acontecem os festejos do feriado e na estalagem aquela estranha situação, com o hóspede sitiado na sala de estar, rasgando papéis e quebrando garrafas. Depois de horas, ele sai e reclama das refeições não servidas. Ela reclama das contas não pagas e mostra, afinal, suas garras de comerciante ultrajada pisando nos saltos dos “seus direitos”. Ele afirma que tem algum dinheiro, ela quer saber como o arranjou, já que alegara antes estar esperando uma remessa, e começa a interrogá-lo, com vários “quero saber”: “De repente, o estranho ergueu as mãos enluvadas e cerradas, bateu com os pés no chão e gritou: Pare! com tal violência que a silenciou instantaneamente. A senhora não sabe quem sou e o que sou. Vou lhe mostrar, por Deus, vou lhe mostrar. Colocou então a mão espalmada sobre o rosto e retirou-a. O centro de seu rosto tornou-se uma cavidade negra. Tome, disse. Adiantou-se e entregou à Sra. Hall algo que ela, de olhos fixo no rosto metamorfoseado, aceitou automaticamente. Quando viu o que era, deu um berro agudo, deixou-o cair e recuou, cambaleando. O nariz, era o nariz do estranho! rosado e brilhante.Rolou para o chão.”

Ele não se limita a tirar o nariz: Estavam preparados para cicatrizes, deformidades, horrores tangíveis, mas para o nada!” Pânico geral, correria, atropelo, boataria, quem conta um conto aumenta um ponto e por aí vai.  O oficial de justiça Jaffers vocifera: “Com cabeça ou sem cabeça tenho que prendê-lo…” Surpreendem o estranho devorando um pedaço de pão com queijo (lembrem-se de que estava faminto quando abordou a Sra. Hall). Isso dá margem a um diálogo nonsense, a partir da situação incongruente de se ter sacado um par de algemas:

Huxter- Vejam! Isso não é um homem. São apenas roupas vazias… Poderia enfiar o braço…

Griffin- Na verdade, estou todo aqui; cabeça, mãos, pernas e o resto, mas acontece que sou invisível. É muito inconveniente, mas sou. Isso não é razão para que seja apalpado até ficar em pedaços por cada campônio idiota de Iping.

Huxter- Invisível, hein? Onde já se viu isso?

Griffin- Talvez seja fora do comum, mas não é crime. Por que fui agredido dessa forma por um policial?

Jaffers- Ah, isso é diferente! Sem dúvida o senhor é um tanto difícil de ver nesta luz, mas tenho um mandado e tudo legal. Não estou atrás de invisibilidade, é de um roubo. Arrombaram uma casa e tiraram dinheiro.

Aproveitando-se de um descuido, Griffin se desembaraça das roupas, sucede-se uma cena de pastelão, e não se consegue impedir a fuga do Homem Invisível que, ainda por cima, deixa o policial prostrado no chão, com um golpe.

O capítulo seguinte consiste de um pequeno parágrafo é quase machadiano devido ao tom adotado pelo narrador: “O oitavo capítulo é extremamente breve…” e só está ali para mostrar que o naturalista amador da região, Gibbins, que de nada sabia, ouviu espirros e uma voz vinda não sabia de onde resmungando e blasfemando em meio às colinas que circundam Iping: o fenômeno fora tão estranho e perturbador que sua tranqüilidade filosófica desaparecera.

O nono capítulo relata o encontro do fugitivo com um vagabundo, Thomas Marvel, a quem ele expõe as desvantagens físicas da sua condição, e meio que obriga com ameaças a ser seu “seguidor”:

Thomas Marvel- E de que pode precisar, em matéria de ajuda?

Griffin – Quero que me ajude a arranjar roupas e abrigo e depois, outras coisas… Tem que ser meu ajudante. Ajude-me e farei grandes coisas por você. Um Homem Invisível é um homem que tem poder… Mas, se me trair, se deixar de fazer o que mandar…

         Fez uma pausa e bateu com força no ombro do Sr. Marvel. Ao sentir o toque, o Sr. Marvel deu um guincho de terror.

O tom da narrativa começa sutilmente a se alterar. Até então, “víamos”, se é possível falar assim, o Homem Invisível “de fora”. Agora começaremos a vê-lo por dentro. De perto

E assim a narrativa volta a Iping, o delicioso lugarejo que permite a Wells uma sátira à mediocridade humana. Ainda estamos no feriado, e o vagabundo Marvel, orientado por Griffin, e“i vigiado pelo desconfiado Huxter, que ficara com a pulga atrás da orelha com esse outro “forasteiro”, “imaginando que estava sendo testemunha de algum furto”, pega uma misteriosa trouxa pela janela de estalagem. Huxter grita “pega ladrão” e começa novo corre-corre. O que acontecera: o Homem Invisível se imiscuíra novamente na estalagem, surpreendendo alguns dignos cidadãos de Iping xeretando nos seus pertences, especialmente seus livros de anotações, com diagramas cifrados. Indignado, ele os ameaça com um atiçador: Quando entrei nesta sala não esperava encontrá-la ocupada e queria, além de meus livros de anotações, uma muda de roupa. Onde está? Não, não se levantem. Já vi que não está aqui. Nesse exato momento, embora os dias sejam bastante quentes para que um homem invisível possa andar por aí, as noites são frias. Quero roupas, e mais algumas coisas, e também preciso de livros.”

Machadianamente[7], corta-se o capítulo e, no começo do outro, lemos, Neste ponto torna-se impossível deixar de interromper outra vez a narrativa, por uma certa razão muito penosa que não tardará a se tornar evidente.” Enquanto Huxter está vigiando os movimentos do suspeito Marvel lá fora, enquanto o Homem Invisível ameaça os cidadãos de Iping que remexiam nas suas coisas na sala de estar da estalagem, os sons e vozes que dali vêm, começam a inquietar o taberneiro (nosso já conhecido Sr. Hall), o que irrita sua diligente esposa: Por que está aí escutando, Hall? Não tem mais nada a fazer em um dia atarefado como este? (deve-se notar que, apesar de ter recebido de um homem invisível o seu suposto nariz, e afora o insólito de toda a coisa, ela não demorou a voltar à sua rotina e aos seus afazeres com a máxima prontidão).

Mas fica impossível ignorar que algo está acontecendo. De repente, se ouve o grito de “pega ladrão” (lançado por Huxter) e o barulho da janela na sala de estar: “…todos os ocupantes humanos do bar precipitaram-se para a rua, na maior confusão. Viram alguém dobrar a esquina que dava para a estrada nas colinas, e o Sr. Huxter executando um complicado salto no ar e caindo de cara no chão. Pela rua, as pessoas tinham se detido, pasmas, ou corriam para ele.” A única a não sair é a Sra. Hall (“que havia aprendido com os anos de experiência, e ficou no bar, junto ao caixa”). Os ocupantes da sala, nus (pois haviam sido obrigados a ceder suas roupas a Griffin) saem e dão o alarme de que o Homem Invisível está novamente em Iping, e furibundo, louco: “Imagine-se a rua, cheia de gente que corria, de portas que batiam e de brigas por lugares seguros… E então todo o tumulto passou e as ruas de Iping, com seus enfeites e bandeiras, ficaram desertas, a não ser pelo Desconhecido ainda furioso… por toda parte, ouvia-se o som de janelas fechando-se e de trancas sendo colocadas, e o único sinal visível de um ser humano era, ocasionalmente, um olhar furtivo sob uma sobrancelha erguida, no canto do painel de uma janela. O homem invisível ainda se divertiu um pouco quebrando todas as janelas da estalagem da Sra. Hall…Também deve ter sido ele quem cortou os fios do telégrafo… E depois de tudo isso… ficou fora do alcance da percepção humana e não foi mais visto, ouvido nem pressentido em Iping…Passaram-se no entanto quase duas horas antes que qualquer ser humano se aventurasse a sair novamente para a desolação da Iping Mean Street.”

E está na hora de conhecer outro personagem importante, também cientista, como Jekyll e Griffin: o Dr. Kemp, que aparece pela primeira vez na narrativa em seu escritório, em outro lugarejo, Burdock: Era um pequeno aposento agradável, com três janelas que davam para o norte, oeste e sul, estantes cheias de livros e publicações científicas, uma grande escrivaninha e, sob a janela que abria para o norte, um microscópio, lâminas de vidro, pequenos instrumentos, algumas culturas e vidros espalhados de reagentes”. Dr. Kemp é ambicioso: “o trabalho de que se ocupava lhe daria, segundo esperava, o título de membro da Royal Society” [8]. Num final de tarde, enquanto os jornais espalham notícias tão vagas que parecem boatos sobre um “homem invisível”, ele vê uma pessoa (Marvel) fugindo colina abaixo, presa de um “terror abjeto” e carregando algumas coisas. Desse modo, o fugitivo chega a Burdock, gritando que “o Homem Invisível esta chegando!” Ele se refugia  num pub, o Jolly Cricketers, e suplica que tranquem portas e janelas. O pub é atacado. Policiais e populares enfrentam o atacante e acabam ferindo-o (um americano “de barba negra” usa uma espingarda e dispara cinco tiros), mesmo sem apanhá-lo, enquanto Marvel consegue escapulir do seu perseguidor.

Às duas da manhã, o Dr. Kemp, após horas de trabalho científico, desce até a sala de jantar para pegar uísque e um sifão. Ele percebe manchas de sangue pela sua casa e no seu quarto descobre a colcha encharcada de sangue e o lençol todo rasgado. Uma voz diz: “Deus do céu! Kemp!” Até então, ele acha tudo fruto da sua imaginação (lembrem-se, é um espírito cientifico, a ciência era o Deus da 2ª. metade do século XIX), embora o narrador  nos alerte de que todos os homens, por mais instruídos que sejam, retêm alguns vestígios de superstição. Também não é para menos: De repente, com um sobressalto, divisou uma atadura feita de um pedaço de linho, enrolada e manchada de sangue, pendendo no ar...” E ouve uma voz que o chama. Demonstrando relutância em se manter ali [9],  Kemp é dominado pelo Homem Invisível, que, como sempre, perde as estribeiras, não compreendendo porque o mundo não se dobra aos seus desejos (como bom id à solta que ele é, no fundo): Se gritar, rebento sua cara… Sou realmente um homem invisível. E quero sua ajuda. Não pretendo machucar você, mas se se comportar como um labrego apavorado, terei de fazê-lo”.

Eles foram contemporâneos de universidade. Griffin se apresenta como um estudante mais moço, quase albino, de perto de um metro e noventa, forte, com um rosto cor-de-rosa e olhos vermelhos, aquele que ganhou uma medalha em química. Essa primeira descrição da aparência pré-invisibilidade de Griffin nos dá preciosas pistas: aparência disfuncional e esquisita (quase albino, rosto-cor-de-rosa, olhos vermelhos, altura desmesurada), certo indício de insociabilidade e a idéia de perseguir méritos e ser reconhecido (a medalha em química), que sugerem um controle do superego, àquela altura, apesar das desvantagens físicas. Esse apelo a um remoto coleguismo acaba por “acalmar” Kemp e Griffin revela estar ferido, faminto e sedento, com desejo de fumar. E extremamente cansado, já que não consegue dormir há dias (como disse antes, os aspectos fisiológicos, embora não à moda naturalista, são um ponto forte do romance de Wells). Kemp pede a ele que conte como chegou a esse estado: “Mas a história não foi contada aquela noite. O pulso do Homem Invisível estava ficando doloroso, sentia-se febril, exausto e sua mente fixou-se na perseguição colina abaixo e na luta dentro da estalagem. Falando em Marvel intermitentemente, passou a fumar mais depressa e a voz foi ficando colérica. Kemp tentava entender o que era possível.”. Em meio ao cansaço, uma tirada importante: “Fiz uma descoberta. Pretendia guardá-la só para mim. Mas não posso. Tenho que ter um sócio. E você… Há tanta coisa que podemos fazer, ou seja, na sua falta de discernimento moral, ele não pensou em resultados úteis ou produtivos à sua descoberta: pretendia guardá-la para si, dominar os outros, ter poder sobre eles, através da intimidação e das imunidades da sua condição.

Afinal Griffin “apaga”, como se diz, e Kemp, lendo as recentes notícias dos jornais, fica horrorizado com a verdade que vislumbra: “Ele não é apenas invisível, é louco…Homicida!”  É interessante notar que, vindo de um cientista, o termo tem a força de um diagnóstico, e é a primeira vez que ocorre ao leitor (principalmente deveria ser a primeira vez que ocorria ao leitor da época) que está acompanhando a trajetória de um louco homicida tanto quanto um ser de bizarra condição. O termo “monstro” é inevitável (pensemos no que o dicionário diz da palavra: ser de conformação extravagante…pessoa cruel, desnaturada ou horrenda”, e retenhamos o termo desnaturado, algo que distorceu o natural, e teremos um medo tipicamente vitoriano, ou até mesmo, num sentido mais lato, burguês, que paira sobre nossas narrativas derradeiras,): “Ele é invisível. E parece que sua raiva está se tornando maníaca. As coisas que pode fazer! As coisas que pode fazer! E está lá em cima, livre como o ar. Como devo agir?”

Kemp resolve mandar um bilhete para o Coronel Adye, da polícia de Burdock, pedindo auxílio. E o Homem Invisível desperta, iniciando uma série de capítulos retrospectivos, nos quais conta a Kemp como tudo começou, depois de comentarem que “o mundo tomou consciência de seu cidadão invisível”, ou seja, o ego social deu-se conta de que o reprimido rompeu os diques da repressão, “desnaturando-se”, e assim fugindo do controle do superego. Griffin conta seu fascínio pela luz, o que o levou às experiências com a física, aos 22 anos, seis anos antes de sua chegada a Iping, e à descoberta, um pouco por acaso, dos segredos da invisibilidade (no que ajudou sua peculiaridade pigmental como albino): “Contemplei, sem a sombra da dúvida, uma visão magnífica do que poderia significar a invisibilidade para um homem: o mistério, o poder, a liberdade… E eu, um instrutor mal vestido, pobre e enclausurado, ensinando asnos numa universidade provinciana, poderia me tornar,da noite para o dia, isso. Faltava só uma coisa: dinheiro. Então ele rouba o próprio pai, e como se apropria de dinheiro dos outros, que estava sob confiança com o pai, este se suicida (“não tive nem um pouco de pena de meu pai. Parecia-me que fora vítima do próprio sentimentalismo tolo”, e eu imagino o pai como um Sr. Utterson (de Jekyll e Hyde), íntegro e inabalável em suas convicções de homem honrado). Griffin utiliza o dinheiro para fazer de um amplo quarto nos arredores de Londres um laboratório. Sua primeira experiência com um ser vivo é com um gato [10], cujo “sumiço” atrai a desconfiança e a hostilidade das pessoas da pensão. Pressionado pela falta de dinheiro, pela bisbilhotice alheia e por sua misantropia cada vez mais aprofundada, ele realiza em si mesmo a experiência, longa e dolorosa: “Nunca esquecerei daquela madrugada, do estranho terror de ver que minhas mãos pareciam feitas de vidro opaco ao observá-las enquanto iam ficando cada vez mais límpidas e transparentes… Braços e pernas foram ficando vítreos, os ossos e artérias tornaram-se imprecisos e desapareceram e os pequenos nervos esbranquiçados foram os últimos a sumir”.

O senhorio tenta invadir o quarto com uma ordem de despejo e quando consegue fica espantado de encontrá-lo “vazio”.  Para eliminar pistas, não permitir que ninguém adivinhe seus objetivos, e também por rancor e raiva anti-sociais, ele incendeia a hospedaria: Abri cuidadosamente os trincos da porta da frente e saí para a rua. Estava invisível e apenas começava a compreender a enorme vantagem que a invisibilidade me dava. Minha cabeça já estava fervilhando de todas as coisas loucas e maravilhosas que poderia fazer impunemente (parece o Dr. Jekyll ao se imaginar vagando por Londres como Hyde).

Aí começa um seqüência de maravilhosos instantâneos urbanos e cosmopolitas, já que o Homem Invisível vaga por uma Londres fervilhante e descobre que o Princípio de Realidade não desapareceu com um passe de mágica só porque ele se sente regido apenas pelo Princípio do Prazer: totalmente nu, ele é abalroado pelos transeuntes, pisado nos calcanhares, quase atropelado, morre de frio no janeiro londrino, o chão é gelado, o calçamento machuca seus pés (por mais tolo que me pareça agora, não tinha pensado que, transparente ou não, ainda estava sujeito ao clima”), os cachorros o farejam e saem correndo para mordê-lo. Além disso, seus pés vão se sujando e deixando marcas pelo chão, o que começa a ser notado. Logo apanha um resfriado e passa a espirrar sem parar, os pés doem muito e um pequeno corte em um deles o faz coxear. Que onipotência! Como vimos com Hyde, tira-se a casca narcisista e se tem a criança assustada e agressiva. E assim “comecei essa vida nova à qual estou condenado.

Com medo de que caia neve e ela o denuncie,  resolve então entrar numa loja de departamentos, a Omniuns, enorme labirinto de lojas numa só”. Ele queria alimentação e roupas para se disfarçar. E até um refúgio, pois adormece ali. A idéia parece luminosa, mas se revela um desastre, com suas mil trapalhadas que o fazem ser notado e perseguido (o que parece um deliberado percurso cíclico/reiterativo da narrativa, de forma a acentuar o isolamento do Homem Invisível). Ele diagnostica o maior inconveniente da sua situação: caso não se disfarce direito e se dissimule numa visibilidade aceitável, tudo o que fizer o denunciará: Vestir-me seria abrir mão de toda minha vantagem, tornar-me algo estranho e terrível; estava em jejum, pois comer, encher-me de matéria não assimilada, seria tornar-me grotescamente visível de novo…Além disso, quando saí, no ar de Londres, juntava sujeira em meus tornozelos e manchas flutuantes de fuligem e poeira na minha pele”. Passando por cima de detalhes do texto, ele a certa altura subjuga, amarra e amordaça o dono de uma loja de fantasias solitário e corcunda (nesse ponto do relato, Kemp se escandaliza e Griffin retruca: Ora, Kemp, você não é suficientemente tolo para obedecer a velhas regras”), e se veste da maneira como chegou a Iping: “Passei alguns minutos ganhando coragem, depois abri a porta da loja e saí para a rua… Ninguém demonstrava muito interesse em mim”.

Ele revela sua intenção a Kemp: desfazer a experiência (para isso,  precisaria recuperar seus livros, ora em poder de Marvel). Porém, só depois de ter feito tudo o que pretende. E um de seus planos é o assassinato (para ele, punição justa) de Marvel: Kemp, você não sabe o que é raiva! Trabalhar durante anos, planejar, estudar e depois ter um idiota obtuso atrapalhando seus objetivos. Todos os tipos possíveis e imagináveis de seres tolos jamais criados foram escolhidos para me importunarem… Vou começar a esmagá-los”.  Mais adiante: “O que eu quero,Kemp, é um guardião, um ajudante e um lugar onde me esconder… Com um aliado, comida e descanso, tudo é exeqüível”. E adverte que sua invisibilidade é útil sobretudo para matar (o que, com o desenrolar dos acontecimentos, toma um tom sinistro de pressentimento): “Posso andar em volta de um homem, seja qual for sua arma, escolher meu alvo e golpear como quiser… E o que temos de fazer é matar… Não seriam mortes ao acaso, mas assassinatos lógicos…O Homem Invisível deve implantar um Reino de Terror…Devo apossar-me de uma cidade como a sua Burdock, apavorá-la e dominá-la. Darei ordens. Posso fazê-lo de mil formas, pedaços de papel enfiados por baixo das portas são suficientes. E matarei todos os que desobedeceram às minhas ordens e matarei todos os que defenderem os rebeldes”.

Aí chega a solicitada força policial. O mais que escaldado Griffin consegue escapar e a partir daí seu ódio volta-se contra o novo traidor: Kemp. Este explica a situação e propõe linhas de ação para caçar o Homem Invisível, baseando-se nas informações que recebeu: Ele é louco. Desumano. E de um egoísmo absoluto. Só pensa no que lhe convém, em sua própria segurança… Cortou os laços que o ligavam a seus semelhantes. Que seu sangue recaía sobre a própria cabeça”  [11]. As medidas que propõem são minuciosas e chegam a ser cruéis (esses cientistas!). Só para dar um exemplo: sua sugestão de que encham as estradas com vidro moído.

Griffin (“enraivecido e desesperado com seu intolerável destino… evidentemente contara com a cooperação de Kemp em seu sonho brutal de um mundo aterrorizado) não deixa por menos: levanta uma criancinha do chão, a atira longe violentamente, quebrando seu tornozelo; enquanto inúmeros homens executam as recomendações de Kemp, o Homem Invisível enfim comete um assassinato: com uma barra de ferro, ele mata o mordomo de Lord Burdock, o inofensivo Wicksteed (quebrou-lhe o braço, derrubou-o e reduziu-lhe a cabeça a uma massa informe[12] ). O pior é que foi um crime arbitrário, sem motivo.

Kemp recebe uma carta, condenando-o à morte, no dia um do ano um da nova era, a Era do Homem Invisível… Haverá uma execução no primeiro dia, para servir de exemplo, a de um homem chamado Kemp… Hoje Kemp vai morrer”.  Kemp evidentemente se entoca em casa e procura proteger-se. O coronel Adye reaparece. De repente, os vidros das janelas começam a ser quebrados. Adye se propõe a sair e buscar os cães (os quais têm uma particular implicância com o Homem Invisível). Ele leva um revólver. Perto dele, uma voz ordena que pare e volte para a casa. Adye tenta atirar, mas Griffin toma-lhe o revólver dizendo “Não tenho contas a ajustar com o senhor”. Adye tenta agarrar o revólver e leva um tiro. Kemp assiste à cena: “Adye jazia no gramado perto do portão. A casa começa a estremecer com pancadas brutais e estraçalhar de madeira. Ouve-se um ruído,  o clangor da destruição dos fechos de ferro dos postigos. O revólver começa a disparar contra ele: “Bateu e trancou a porta e do outro lado ouviu Griffin, gritando e rindo. Depois recomeçaram os golpes de machado , com seu acompanhamento de rachaduras e destruição. A polícia invade o local e o Dr. Kemp se escafede covardemente (a opinião do policial sobre Kemp foi breve e pitoresca”). O cientista (Kemp) e o vagabundo (Marvel) se irmanam, pois no último e memorável capítulo, o primeiro repete a trajetória de fuga do segundo.  Essa repetição não deixa de ser um eloqüente e sarcástico comentário do autor sobre o personagem [13].

Kemp corre para a cidade, vê um bonde, a delegacia de polícia. São passos o que ouve atrás dele? As pessoas começam a reparar nele. Tem a tentação de pular no bonde, mas opta pela delegacia: O condutor do carro e o cobrador, fascinados pela visão daquela pressa furiosa, ficaram olhando… Mais adiante, as expressões intrigadas dos operários de drenagem apareceram por sobre o cascalho acumulado”. E como Marvel, Kemp é arauto do Homem Invisível que adentra a cidade no esplendor da sua fúria, agora transformado em pura selvageria, instinto agressivo, pulsão de morte, thânatos. E Kemp não age diferente: se o outro está na margem do isolamento, ele pede socorro à horda, ao ajuntamento humano, à moderna massa: Subindo a rua havia outros que os seguiam, batendo e gritando. Na direção da cidade homens e mulheres também corriam e viu claramente um homem saindo da porta de uma loja, com uma bengala na mão. Espalhem-se, espalhem-se! gritou alguém. Kemp não tardou a perceber a mudança de situação na caçada.” O que fora um experimento científico vira uma luta corporal, logo uma carnificina, inflada pelas emoções da massa: um estranho que chegasse à estrada de repente poderia pensar que estava havendo uma partida de rúgbi excepcionalmente selvagem. E não se ouviu mais nada… apenas o som de socos, pontapés e uma respiração pesada… Subitamente um grito angustiado de piedade, piedade, que se transformou depressa em um som estrangulado”. Kemp recupera a lucidez e pede que a turba pare o linchamento e se afaste: Não está respirando. Não sinto o coração.” E de repente “todos viram, impreciso e transparente, o contorno de uma mão, mão flácida e caída, como se fosse de vidro, de forma que veias e artérias, ossos e nervos podiam ser distinguidos… E assim, lentamente, começando pelas mãos e pés e subindo pelos membros para os centros vitais daquele corpo, a estranha metamorfose continuou… Puderam ver então o peito esmagado, os ombros e o vago esboço de feições esbatidas e castigadas. Quando a multidão finalmente abriu espaço para que Kemp ficasse de pé, jazia no chão, nu e deplorável, o corpo maltratado e todo quebrado de um moço de perto de trinta anos. Tinha o cabelo e a barba brancos, não grisalhos por causa da idade, mas brancos com a brancura do albino, e seus olhos eram cor de granada. Tinha as mãos contraídas, os olhos abertos e sua expressão era de cólera e espanto.” E a última palavra dita a seu respeito é: Cubram o rosto dele! Pelo amor de Deus, cubram esse rosto”. Cubram esse rosto que é o dos nossos mais primitivos e básicos instintos: se apossar do mundo, assimilá-lo, tudo nos servindo, palco para os nossos prazeres. Esse rosto que traz a marca da ambigüidade da imaturidade e da incapacidade de lidar com o real: feições juvenis e traços grisalhos. A velhice inscrita precocemente numa eterna criança.

O epílogo é reservado a Marvel, que adquiriu uma estalagem com o dinheiro roubado pelo Homem Invisível e que guarda escondidos os seus livros, tentando decifrá-los para adquirir seu poder; só que para ele são feitiços e não fórmulas científicas. A estupidez sempre acaba por vencer.


[1] Herbert George

[2] Ele publicara um ano antes A máquina do tempo & A ilha do doutor Moreau; um ano depois publicará A guerra dos mundos.

[3] Só que essa versão é tão boa que causou um engano atéem Jorge Luis Borges. Como se sabe, H.G.Wells é um dos seus autores favoritos, todavia, ao recapitular o enredo do livro, ele afirmou num dos seus ensaios que o Homem Invisível era abatido a tiros por uma força policial, quando se refugia numa espécie de celeiro (está nevando e por isso suas pegadas ficam visíveis). Isso acontece no filme, não no romance original.

[4] Utilizo aqui a tradução de Elsa Martins (Francisco Alves), às vezes ligeiramente modificada..

[5] Os aspectos fisiológicos da “condição” do Homem Invisível são magistralmente explorados por Wells, como veremos.

[6] Imaginem a sensação de uma cena como essa na época, em que era pura novidade.

[7] Seria mais exato dizer sternianamente, pois, como Machado, Wells deve ter lido Laurence Sterne e seu maravilhoso A vida e as opiniões do cavalheiro Tristram Shandy, no qual o narrador vive interrompendo sua narrativa. Além disso, muitos grandes narradores ingleses (tais como Henry Fielding, autor de As aventuras de Tom Jones; William Thackeray, autor de A feira das vaidades, e mesmo o grande Dickens) são useiros e vezeiros desse tipo de “conversa com o leitor” e “informalidade narrativa”.

[8] O Dr. Jekyll era membro destacado da Royal Society.

[9] Um detalhe interessante, quando nos lembramos dos estudos de Freud, é que Kemp chega a acreditar que foi vítima de hipnotismo.

[10] Kemp: Você não está dizendo que existe um gato invisível por aí!

Griffin: Se não foi morto, por que não?”

[11] Aqui me parece que Wells equilibra os pratos da balança: Griffin renunciou à humanidade, decerto, mas também é uma humanidade para lá de renunciável. A crueldade está presente nos dois campos, como se vê na proclamação assinada pelo coronel Adye: Descrevia, sucinta e claramente, todas as condições da luta, a necessidade de não propiciar ao homem invisível alimento ou repouso, a necessidade de uma vigilância incessante e de atenção imediata para qualquer indício de sua movimentação.”

[12] O que dá certa simetria desse romance com Jekyll & Hyde, no qual também há a agressão a uma criancinha e um assassinato gratuito, de um homem mais velho.

[13] Diga-se de passagem, temos mais uma narrativa onde a ausência de mulheres (no sentido de interesse afetivo e erótico) é visível. Tanto Griffin quanto Kemp já são os típicos solteirões vitorianos.

03/09/2011

COM QUE ROUPA (vou para o além…)

Este é mais um texto escrito em 2008 como leitura anotada para meu curso sobre obras de ficção curtas do século XIX, AS MARGENS DERRADEIRAS)

 

Meu chapéu do Quartier Latin. Por Deus, devemos simplesmente trajar a personagem. Quero luvas castanho-arroxeadas.”     

                           (James Joyce, Ulisses, 1922)

 “Haldin fora enforcado às quatro horas.  Ao que parecia, entrara em sua existência futura com  botas de cano longo, gorro de pele de astracã e tudo o mais, até com o cinto de couro, Um tipo tremulante e evanescente de existência. Não fora sua alma, mas seu fantasma que Haldin deixara para trás nesta Terra…”

                      (Joseph Conrad, Sob os olhos do Ocidente, 1911)

       “As cadeias da humanidade torturada são feitas de papel de          escritório.”
      (Franz Kafka, citado em Conversas com Kafka, de Gustav Janouch)

 

         Não foi em Petersburgo que Nikolai Gógol nasceu (em 19 de março de 1809, mesmo ano de Edgar Alan Poe). Ele só foi para a capital em 1828, oriundo da Ucrânia. Segundo Solomon Volkov, acabou sendo o responsável pela dubiedade artística na apreensão da cidade: de visão paradisíaca e de grandeza (a de Pedro, o Grande, simbolizada na sua famosa estátua eqüestre, feita por Falconet e inaugurada em 1782) para o pólo infernal, degradado, os poetas e ficcionistas de Petersburgo oscilaram, pendendo muitas vezes para o segundo lado: Essa fatal transformação foi inspirada por Nikolai Gógol, para quem Petersburgo nada mais era que um reino dos mortos em potencial, úmido, plano, uniforme, pálido, cinza e nevoento. Gógol considerava a cidade palco do bacanal de entes demoníacos hostis, cujo chão, sempre movediço, ameaçava engolir os prédios majestosos, as repartições públicas destituídas de alma e as multidões de seus medíocres funcionários.”  [1] 

    E é justamente nessa atmosfera que se ambienta a mais famosa historia gogoliana, O Capote [2], a qual já se inicia com uma descrição mortífera da atmosfera da repartição pública e a mentalidade dos funcionários: No ministério de… Não, é melhor não dizer seu nome. Ninguém é mais suscetível do que funcionários, empregados de repartições e gente da esfera pública. Nos dias que correm, todo sujeito acredita que se nós atingimos a sua pessoa, toda a sociedade foi ofendida. Recentemente, é o que dizem, o chefe de polícia de não sei qual cidade produziu um Informe no qual diz sem meias palavras que o respeito às leis se perdeu e que seu sagrado nome foi pronunciado em vão… Assim, para evitar suscetibilidades, chamemos o ministério em questão simplesmente de um certo ministério.”

         Logo a seguir conhecemos um burocrata insignificante, de baixo escalão, um mero amanuense (essa figura do homem insignificante é um achado genial que repercutirá na obra de Dostoiévski, inclusive em Notas do Subterrâneo). Ele tem um nome infernal, Akaki Akakiévitch Bachmatchkin (e olhe que foi um tormento lhe dar um prenome, pois ao nascer, ao se consultar um almanaque, como era de praxe, as escolhas ficavam entre Moskia, Sosie, Cosdazat, Trifili, Dulas, Barachisi, Pausicaci e Bactici; a mãe, desesperada, acabou lhe dando o nome do pai).

         Como é a aparência de Akaki Bachmatchkin? “…pequeno, raquítico, ruivo, tinha a vista curta, a testa calva, rugas ao longo das bochechas e uma destas peles com uma tonalidade que só poderíamos chamar de hemorroidosa… Que se pode fazer, a culpa é do clima de Petersburgo!”  Ele é um desses funcionários que ninguém lembra quando entrou no serviço do ministério e quem o recomendara. Mudavam as chefias, ele estava sempre no mesmo posto: Ninguém lhe votava qualquer consideração. Longe de se erguerem à sua passagem, os porteiros prestavam menos atenção à sua aproximação do que ao vôo de uma mosca. Seus superiores o tratavam com uma frieza despótica… Seus jovens colegas gastavam com ele o arsenal de gozações correntes na repartição.” A única reação do veterano amanuense era, quando as brincadeiras ultrapassavam os limites, um miserável lamento: O que eu fiz para vocês?”

         O único traço memorável de Akaki Akakiévitch era sua dedicação ao trabalho de transcrição. Fora das suas cópias, nada mais parecia existir para ele”. Descuidado em sua aparência, havia sempre um fio, uma fitinha, um pedacinho de palha grudado ao seu paletó. Tinha a virtude de se encontrar debaixo de uma janela no momento preciso em que por ela eram atirados toda sorte de detritos. Como resultado, cascas de melão, de melancia e de outras tralhas do mesmo gênero ornavam continuamente seu chapéu” ; também era indiferente ao mundo externo: “Nem uma só vez em sua vida ele prestou atenção ao espetáculo quotidiano da rua… Supondo-se que Akaki Akakiévitch pousasse os olhos sobre um objeto qualquer, ele perceberia nele linhas escritas em sua caligrafia clara e fluente”.

         Como se vê, Gógol criou o homo burocraticus. Na sua casa, Akaki Akakiévitch nem se dá conta do que come, “engolia sem perceber que gosto tinha, juntamente com as moscas e todos os complementos que o bom Deus se dignara acrescentar conforme a estação”. Nas horas de folga, o que faz? Continua copiando documentos trazidos do ministério. Essa é a sua rotina “sob o céu cinzento de Petersburgo. Ao se deitar, sorri pensando no dia seguinte: que documentos a graça de Deus confiaria a ele para serem copiados?” e assim “nesta paz decorria a vida de um homem que com quatrocentos rublos de vencimentos se mostrava contente com a própria sorte”. Mas a fatalidade também espreita os amanuenses felizes: Akaki Akakiévitch possuía um inimigo: o clima da cidade. Aproxima-se o período de frio rigoroso, acompanhado pela neve incessante, e então o funcionário do ministério examina seu velho capote, o qual “alimentava também os sarcasmos de sua repartição. Uma vestimenta com aspecto muito estranho, pois a gola diminuía ano a ano, já que servia para remendar outros lugares. A primeira idéia do Akaki Akakiévitch é levar seu capote ao alfaiate Petrovitch: “A porta do alfaiate estava aberta, sua considerada esposa tendo, ao fritar não se sabe que tipo de peixe, deixado escapar uma fumaça tão espessa que não era possível distinguir nem mesmo as baratas”. Quando sóbrio, o alfaiate tem um gênio irascível e condena sem apelo o capote de Akaki Akakiévitch. O melhor seria mandar confeccionar um casaco novo: “A palavra novo quase cegou Akaki Akakiévitch. Todos os objetos se embaralharam bruscamente diante de seus olhos numa espécie de bruma…” Onde arranjaria o dinheiro? Ao fim e ao cabo, seriam 80 rublos. No entanto, ele se priva do que pode (ou seja, quase tudo), gasta todas as suas economias e gratificações, e dá o passo mais corajoso da sua vida… manda fazer o novo casaco: Foi em… Eu não saberia dizer, juro, exatamente a data em que Petrovitch entregou enfim o casaco. Akaki Akakiévitch não conheceu dia mais solene em toda a sua existência… Petrovitch parecia perfeitamente convencido de que realizara sua grande obra, estabelecendo de modo definitivo o abismo que separa um alfaiate de um remendão.” O casaco assenta com perfeição.No caminho para o trabalho, “Akaki Akakiévitch caminhava tomado pelo mais intenso júbilo. A sensação continuada do casaco novo sobre os ombros o mergulhava num devaneio que, por diversas vezes, arrancou dele pequenos sorrisos.”

         No ministério, o casaco causa sensação, chovem os cumprimentos. Um subchefe resolve oferecer uma festa em sua residência em homenagem… ao casaco. Como nunca vai a lugar nenhum, Akaki Akakiévitch pensa em recusar o convite, mas fazem-no sentir-se envergonhado em pensar numa hipótese tal, e além disso “entreviu, não sem prazer, que o evento lhe permitiria desfilar mais uma vez em seu belo casaco novo e, desta vez, sob as luzes.”

    Lamentamos não poder dizer com precisão onde residia o funcionário que o convidara. A memória começa a nos trair. As ruas e os edifícios de Petersburgo confundem-se de tal forma em nossa cabeça que já não conseguimos mais nos orientar nesse vasto labirinto. De todo jeito, é certo que o referido subchefe residia num dos mais belos bairros e, conseqüentemente, muito distante de Akaki Akakiévitch. Este precisou seguir de início algumas ruas sombrias e quase desertas, iluminadas mui parcimoniosamente. Mas, à medida que se aproximava de seu destino [isto é, em direção à prosperidade], a movimentação se tornava mais viva e a iluminação mais brilhante.”

         Na moradia do subchefe, comemoram bastante a sua chegada, ou melhor, a chegada do seu casaco, e depois ele fica se arrastando por ali, ignorado e insignificante como sempre, deslocado, “sem lugar no mundo” fora das suas cópias: não demorou para que fosse deixado de lado… A balbúrdia, o falatório, o grande número de pessoas, todas essas coisas desconhecidas mergulharam o pobre homem numa espécie de idiotia” .

         Ele se retira “à francesa”, meio alto devido a duas taças de champanhe e logo se estenderam à sua frente ruas solitárias… Somente a neve cintilava sobre a calçada onde não havia alma viva e ao longo da qual os casebres cochilando por detrás de suas venezianas fechadas resultavam em sinistras manchas negras. Por fim, surgiu um vasto espaço vazio, menos semelhante a uma praça do que a um horrível deserto. Os edifícios que contornavam seus limites mal eram divisados e, perdida nessa imensidão, o lampião de uma guarita parecia estar ardendo distante, quase no fim do mundo”.

         Três indivíduos o abordam e tomam seu casaco, depois de joelhadas em seus rins, fazendo com que ele role pela neve e perca a consciência. Procura a guarita e é tratado com desdém pelo guarda, que o manda falar com o Comissário no dia seguinte. Regressa à sua casa, após sua única aventura na vida, “num estado lastimável: os cabelos, quer dizer, os poucos tufos que ainda protegiam suas têmporas e sua nuca, desgrenhados, o peito, as ancas, as pernas inteiramente cobertas de neve.” Sua senhoria inicia a longa série de conselhos sobre qual autoridade procurar para obter o casaco de volta. Indo atrás da justiça, pela primeira vez Akaki Akakiévitch falta ao trabalho.

         No dia subseqüente, “a história do roubo emudeceu quase todos os colegas, ainda que uns gaiatos descobrissem no incidente nova matéria para zombaria”. Um deles dá o conselho fatal: procurar um “certo personagem influente”, que iniciaria o processo infalível de restituição do valioso bem (Akaki Akakiévitch voltou, enquanto isso, ao seu velho e lamentável casaco, no fundo sua alma gêmea em termos de condição existencial). Só que o tal “personagem influente” é uma Excelência: Ocorre que o título de Excelência dera uma reviravolta completa em sua cabeça. Desde que o obtivera, seu espírito desviou-se e ele perdeu todo controle de si mesmo. Com aqueles que tinham o mesmo nível que ele, ainda se conduzia com boa educação… mas se acaso se misturasse a seus interlocutores alguma pessoa inferior ao lugar que ele ocupava na hierarquia, nem que fosse um só grau, ele se tornava de imediato insuportável, esquecendo toda a cortesia…” [3]

         O desafortunado Akaki Akakiévitch o procura num momento inadequado (ele está em colóquio, e exibindo-se, com um antigo camarada) e ele considera as reivindicações do amanuense de uma “familiaridade excessiva”: “Meu senhor, exclamou ele no tom mais cortante, onde acredita estar? Desconhece a tal ponto os procedimentos adequados? O senhor deveria antes de mais nada apresentar sua demanda ao encarregado de serviço. Este deveria encaminhá-la na boa e devida forma ao chefe da repartição, o chefe da repartição ao chefe da divisão, o chefe da divisão ao meu secretário, o qual afinal a submeteria à minha apreciação” (e Akaki Akakiévitch o procurou por não confiar na polícia), “Sabe com quem o senhor está falando? Compreende diante de quem está? Vamos lá, eu estou perguntando! Ele lançou esta última frase batendo o pé e com uma voz estridente que faria com que sujeitos muito mais autoconfiantes do que Akaki Akakiévitch também perdessem a compostura. Akaki Akakiévitch sentiu-se prestes a desfalecer: seu corpo inteiro tremia, suas pernas vacilavam…se os contínuos não o houvessem segurado pelos braços, ele teria infalivelmente caído no chão. Foi carregado quase inconsciente”. Nisso tudo, Sua Excelência fica encantado de mostrar ao amigo (este, constrangido) seu poder esmagador.

         E é um literalmente esmagado (homem-inseto) Akaki Akakiévitch que vai para sua casa, com seu capote velho, vergastado pela neve, pelo vento que soprava em sua direção de todos os lados ao mesmo tempo, como parece ser regra em Petersburgo [4]. Pegou num piscar de olhos uma bela e boa infecção da garganta… Tais são muitas vezes as conseqüências de uma séria descompostura! Graças à generosa colaboração do clima de Petersburgo, a doença evoluiu muito mais rapidamente do que se poderia esperar…” Ele é desenganado pelo médico. E morre em delírio, com a mente girando confusamente em torno do capote roubado: “O morto foi levado, colocado na sepultura e Petersburgo ficou sem Akaki Akakiévitch”. Como se isso tivesse a menor importância.

         Mas Petersburgo não ficou muito tempo sem ele: Quem poderia ter acreditado que levaria no além-túmulo uma existência movimentada, capaz de conhecer aventuras ruidosas, sem dúvida para compensar o pouco brilho de sua vida terrena?” E a “modesta narrativa” flerta então com o fantástico, de uma forma galhofeira. O espectro do amanuense surge em todas as partes tomando o capote dos transeuntes de qualquer classe, sob pretexto de recuperar o seu, roubado”. A polícia (que não o ajudara) é colocada em seu encalço, após as queixas atingirem um volume insuportável: “Os guardas receberam ordem de agarrar o fantasma, morto ou vivo, e aplicar nele um severo corretivo que pudesse servir de exemplo aos demais”. O fantasma, entretanto, os assusta de tal forma que eles “passaram a evitar prender até mesmo os vivos”.

         O pior está reservado à Sua Excelência, o autor da descompostura fatal. Após uma noitada, ao invés de ir para seu lar, ordena ao cocheiro que o leve à casa de uma certa Karolina Ivánovna, senhora de origem alemã [5] , acho, pela qual ele cultivava sentimento inteiramente amigáveis. No caminho, rajadas fustigantes interrompiam a “doce quietude” da noite petersburguense. Súbito, uma mão vigorosa o agarra pela gola e vê seu lado o fantasma, vestido com velho uniforme puído, que lhe diz: É de teu casaco que preciso!” E assim Sua Excelência perde o casaco e a vontade de visitar Karolina Ivánovna, dando ordem ao cocheiro para levá-lo para casa, onde se arrasta até sua cama e passa uma noite agitada. E a partir daí ele se torna mais cuidadoso.

         A partir dessa noite, também, não há mais aparições nos logradouros mais distintos. “A peliça de Sua Excelência cumprira sem dúvida seu destino.” Porém, nos bairros mais distantes, há rumores sobre um fantasma, um espectro arrogante que diz “Que queres?” ao interpelante e que apresentava uma estatura mais alta e bigodes enormes, diferente da figura anterior de Akaki Akakiévitch. É um Fantasma-Excelência? Efeito da peliça? Nós o vemos pela última vez na narrativa, desaparecendo “completamente em meio às trevas noturnas”.

         É inegável que essa admirável narrativa teve grande efeito sobre Dostoiévski, que começará a escrever poucos anos depois. Em 1842, Herman Melville está nos mares do sul (em agosto, por exemplo, desembarca no Taiti). Só vai residir na Nova Iorque de Bartleby em 1847. Muitos anos depois, em 1866, e após muitas experiências ruins, esse escritor obscuro consegue, já a caminho dos 50 anos, um posto de inspetor da Alfândega (e aí se aposentará, 22 anos depois, ironizando a “dignidade do trabalho”, pura mistificação).

         Seu grande amigo e o outro membro do fenomenal trio de ficcionistas norte-americanos pré-Henry James (além dele e de Poe), Nathaniel Hawthorne [6], ao publicar A letra escarlate (em 1850), incluíra uma polêmica introdução (em que o narrador explica de que forma os documentos da história chegaram às suas mãos), a qual era uma descrição do funcionamento da Alfândega de Salem, da qual fora conferente por três anos (e, anos mais tarde, inspetor no porto). Ele foi afastado em 1849 (ano da morte de Poe), por motivos políticos: Em minha cidade natal de Salem, na extremidade da qual, meio século atrás, nos tempos do velho King Derby, se estendia um cais muito movimentado… ergue-se um espaçoso edifício de tijolos, de cujas janelas fronteiras se tem uma vista não muito encantadora… No ponto mais elevado do telhado, durante precisamente três horas e meia a cada manhã, flutua ou pende, consoante sopra o vento ou reina calmaria, a bandeira da República, com as treze listas em posição, não horizontal, mas vertical, a indicar que se encontra ali a sede de um posto civil, e não militar, do governo do Tio Sam” [7].

     As primeiras páginas repisam a sensação de abandono e declínio de um lugar outrora próspero e central: subindo a escadaria podia-se enxergar…uma fileira de figuras respeitáveis, sentadas em cadeiras de velho estilo, cujas pernas traseiras se encostavam à parede. Passavam a maior parte do tempo dormindo, mas uma vez ou outra era possível escutá-los falando entre si, com uma voz intermédia entre a fala e o ronco, e com aquela falta de energia característica dos que residem em asilos de velhos, abrigos de mendigos, e de todos os seres humanos que, no concernente à subsistência, dependem da caridade, do trabalho servil ou de qualquer outro expediente que não seja a independência do esforço pessoal. Esses idosos cavalheiros (sentados, como Mateus, junto ao balcão aduaneiro, mas não muito dispostos a serem convidados a sair dali, como ele, para se dedicarem a peregrinações apostólicas) eram os oficiais alfandegários.”

         Temos uma sala “forrada” com teias de aranha e pinturas antigas, apresentando um desleixo visível em toda a parte. Nem sinal do sexo feminino e seus “instrumentos mágicos”: vassoura e esfregão. Aí então, o narrador menciona um indivíduo que recebia as pessoas com extremos de amabilidade. Esse indivíduo, o inspetor “locofoco” [8], foi varrido dali por uma vassoura nada ausente, a da reforma administrativa motivada pelo revezamento de partidos no poder.

         O ex-inspetor fala das velhas raízes que o prendem a Salem, cidade cuja irregularidade topográfica não é “nem pitoresca nem fantasiosa, mas tão somente insípida, com sua longa e preguiçosa rua principal que se estira fastidiosamente ao longo da extensa península… sendo estas as feições de minha cidade natal, seria de todo razoável experimentar um apego sentimental a um desorganizado tabuleiro de xadrez?”

         Como há muitos antepassados seus inscritos na história da cidade, ele faz uma formulação belíssima (como gênio que é): Em parte, pois, o apego de que falo não passa de mera simpatia que o pó sente pelo pó”.  E revela que, assim como o porto de Salem, também é um produto decaído de uma velha e ilustre cepa: “Sem dúvida, alguns desses austeros e carrancudos puritanos devem ter pensado que seria mais que suficiente castigo de seus pecados que, com o rodar dos anos, o velho tronco da árvore familiar, coberto de respeitável camada de musgo, houvesse de produzir, na extremidade do seu ramo mais elevado, um vagabundo como eu. Nenhuma das aspirações,que eu tenha acariciado, eles a teriam reconhecidas como digna de louvor…” Portanto, um “rebento degenerado”, mas ainda apegado ao velho solo (não que ele reconheça tal coisa como saudável): “Foi principalmente esse estranho, indolente e enfadonho apego ao meu torrão natal que me levou a ocupar um lugar no edifício de tijolos do Tio Sam quando, afinal, eu podia, e talvez com vantagem, ter partido para outro cantão. Mas a força do destino pesava sobre mim…. como se Salem fosse, para mim, o centro do universo para onde me jogava a força da gravidade. Assim, certa manhã subi o lance de degraus de granito, levando no bolso o documento de minha nomeação assinado pelo Presidente da República, e fui apresentado à turma de cavalheiros que deviam ajudar-me a suportar o peso da responsabilidade, como diretor dos serviços executivos da Alfândega. Tenho minhas dúvidas (ou, antes, não duvido absolutamente de coisa alguma) se algum funcionário público dos Estados Unidos, civil ou militar, teve jamais uma corporação patriarcal de veteranos às suas ordens como eu… Embora de forma alguma fossem menos expostos do que seus semelhantes aos efeitos dos anos e às enfermidades, era óbvio que algum talismã ou coisa similar mantinha a morte à distância. Dois ou três entre eles, conforme me informaram, que sofriam de gota e reumatismo, e quiçá estavam cravados ao leito, nem sequer sonhavam em fazer ato de presença na Alfândega durante boa parte do ano; contudo, quando abrandavam os rigores do inverno, saíam a aquecer-se ao calor do sol de maio ou junho, depois dirigiam-se preguiçosamente àquilo que pomposamente denominavam o seu dever, para logo em seguida irem-se meter novamente na cama. Devo confessar-me réu de reduzir a respiração oficial de mais do que um desses veneráveis servidores da República. Por efeito da minha atuação, foi-lhes outorgado repousarem de seus árduos trabalhos, e logo a seguir alguns deles se retiraram para um mundo melhor, como se o único princípio de vida que os animava tivesse sido o zelo ao serviço de sua pátria.” Vejam a malícia terrível com que Hawthorne delineia esse pesadelo burocrático, arrematando com um: “e eu acredito plenamente que assim fosse”; um pouco mais adiante: Nem a entrada principal nem a das traseiras do edifício da Alfândega dão para a estrada que conduz ao Paraíso”.

         Imaginem o efeito desse texto na Salem de 1850, mesmo que ele tivesse sido levado na conta de vingança de ex-funcionário ressentido… e ainda por cima escritor, autor de uma histórias estranhas, até com um livro em que elas eram contadas duas vezes, vejam se é possível!

         Embora, ele tivesse surgido como Anjo Exterminador, principalmente para os afastados pela gota e reumatismo, não teve coragem suficiente para aposentar os que permaneciam na, digamos, ativa: “Sabiam eles, esses excelentes camaradas consumidos pelos anos, que, em virtude da lei estabelecida, tinham de ceder o lugar a outros mais novos… Eu também o sabia, todavia não havia maneira de em meu coração me resolver a agir em conformidade com a lei. Pelo que, muito merecidamente para meu descrédito e não menos consideravelmente para desassossego da minha consciência oficial, todos eles, durante o tempo da minha comissão, continuaram a arrastar-se tranqüilamente pelo cais e a subir e descer com toda a pachorra os degraus da escadaria da Alfândega. Boa parte do tempo consumiam-na também cochilando pelos cantos habituais, refestelados em suas cadeiras. Nem sempre. Despertavam uma ou duas vezes em cada expediente para se enfastiarem mutuamente com a repetição de velhas histórias do mar, contadas e recontadas centenas de vezes, e com as picantes, mas bolorentas anedotas que tinham acabado por se converter em senha e contra-senha entre eles…”

          Apesar de alertar de que nem todos eram tão velhos (“espécimes de senilidade”) ou faltos de vigor, para não parecer estar cometendo uma grave injustiça com aqueles excelentes e velhos amigos, ele insiste: “…no que se refere à maioria do meu corpo de veteranos, não falto à verdade, se os caracterizar de modo geral como uma turma de velhas almas fatigadas que de suas múltiplas e variadas experiências da vida nada recolheram digno de preservação. Dir-se-ia terem jogado para longe os grãos dourados da sabedoria prática, que eles tiveram tantas oportunidades de ceifar, e que se empenharam com sumo cuidado em armazenar na memória apenas as vagens.”

         Então começam alguns retratos individualizados. Para não ficar muito longo, e só para atiçar o gosto de ler A letra escarlate (e é apenas a introdução, nem chegamos ainda à história de Hester Prynne), vou me limitar a pinceladas do retrato do patriarca-mor dos oficiais aduaneiros, com a descuidada segurança de sua vida dentro da Alfândega, apoiada em rendimentos de vulto, perturbada apenas por leves e infreqüentes apreensões de ser afastado”; mais adiante: “poder de raciocínio era coisa que ele desconhecia… não era mais do que um aglomerado de instintos vulgares, que, servidos por uma prazenteira disposição de ânimo em absoluta consonância com seu bem-estar físico, cumpria regularmente sua obrigação, e a contento de todos”. O narrador confessa seu fascínio por esse “fenômeno raro”: a nulidade absoluta.

         Estamos chegando ao término da parte da introdução que nos interessa aqui, que é a do homem colocado como peça de uma engrenagem burocrática, não um homem insignificante como Akaki Akakiévitch[9], mas o que na literatura russa será chamado de homem supérfluo (e que aparece tanto em Turgueniév quanto em Dostoiévski), que seria, na definição de Maria Aparecida Botelho Pereira Soares, o intelectual cujo talento e inteligência não têm aplicação prática num determinado tipo de sociedade e, por falta de uma realização pessoal, acaba amargo e destrutivo: “Concorre grandemente para a euforia moral e intelectual de um homem entrar em camaradagem com indivíduos que lhe sejam dessemelhantes e alheios aos assuntos de que se ocupa, para apreciar os talentos e atividades dos quais necessita sair de si próprio. As vicissitudes de minha vida muitas vezes me proporcionaram semelhante vantagem, nunca porém com a amplitude e variedade da minha permanência na Alfândega.”

         Em suma, o que é a Alfândega, qual a “mola real” que mantém em funcionamento a engrenagem:numa instituição como essa…os funcionários são designados para atenderem a seus próprios proventos e conveniências, não se atendendo geralmente à competência ou incompetência para o desempenho das obrigações que lhe são confiadas”. 

         Quanto ao narrador, “Dentro de mim havia um dom, uma faculdade, em estado de inibição ou entorpecimento, se é que já não se esvaecera de todo. Em tudo isso haveria algo de triste ou sobremaneira melancólico, se eu não tivesse consciência de que em minhas mãos estava o evocar do que no passado houvera de valioso. É possível, de fato, que essa vida não pudesse impunemente prolongar-se por muito tempo… encarei-a sempre como fase transitória… Entrementes, aí estava eu, inspetor de impostos e rendas, e tanto quanto me é dado compreender, tão bom inspetor quanto era necessário… Os meus colegas de repartição… olhavam-me através desse prisma, nem provavelmente viram em mim outra personalidade…. É uma boa lição, embora por vezes dura, para um homem que sonhou com a fama literária e ambicionou conquistar por este meio um lugar de destaque entre as eminências mundiais, manter-se à margem do estreito círculo em que suas pretensões são conhecidas, e verificar como, fora dele, ninguém liga importância ao que ele faz e pretende…. É certo que em matéria de conversa literária, o oficial de marinha discutia, vez por outra, sobre alguns dos seus autores favoritos: Napoleão ou Shakespeare [eu também sou apaixonado pelas obras completas de Napoleão]… O apontador da Alfândega imprimia meu nome com tinta preta nos sacos de pimenta, nos fardos de cereais, nas caixas de charutos, e nas embalagens de toda sorte de mercadoria sujeita a direitos aduaneiros, em testemunho de que tais artigos haviam pagado o imposto e passado legalmente pela alfândega. Transportada neste original veículo de fama, a notícia de minha existência, na medida em que um nome a pode transportar, chegava aonde nunca antes tinha chegado e aonde, segundo espero, não voltará a chegar.”[10]

 

 


[1] Cf. São Petersburgo, uma história cultural, de Solomon Volkov (Record)

[2] Utilizarei a tradução de Roberto Gomes (L&PM), a única que tenho à mão no momento.

[3] Estamos num universo que será explorado aqui no Brasil por Lima Barreto.

[4] Esse papel onipresente da neve, associado à condição dos “humilhados e ofendidos” é muito presente também nos textos de Dostoiévski que veremos, O Duplo e Notas do Subterrâneo; neste último, na segunda parte, não por acaso intitulada “A propósito da neve derretida”, lemos: A neve úmida caía em flocos… Nas ruas desertas lampejavam lugubremente os lampiões através da bruma nevada, semelhantes a tochas de enterro. A neve penetrou dentro do meu capote, do meu paletó, da minha gravata, derretendo; não me cobri: tudo estava perdido mesmo!” Em Dostoiévski, a neve também se associa aos estados febris, à beira do delírio, dos seus protagonistas e/ou narradores.

[5] Nós vamos reencontrá-la quando falarmos de O Duplo, de Dostoiévski.

[6] Ele nasceu em quatro de julho de 1804 e morreu em 1864, ano da publicação de Notas do subterrâneo, deixando muito solitário seu amigo e autor de Moby Dick.Ambos se sentiam incompreendidos e isolados, todavia Hawthorne foi mais bem sucedido em sua carreira de escritor.

[7] Eu tenho três traduções: a de Sodré Viana (uma edição bem antiga da José Olympio), a de A.Pinto de Carvalho (que li na “Coleção Saraiva”, mas foi reeditada pela Ediouro); e uma mais recente, de Elaine Farhat Sírio (Círculo do Livro); a Martin Claret  editou recentemente essa grande obra-prima.

[8] Alusão à ala radical do Partido Democrata na época.

[9] Mesmo porque ele ocupa um cargo hierárquico superior. O que os aproxima é a sensação de “enterrado vivo” num lugar onde não há a “vida viva”, como diz o narrador de Notas do Subterrâneo, uma sensação que foi extremamente bem descrita por Lima Barreto ao mostrar o ressentimento dos colegas de repartição de Policarpo Quaresma quando este se torna notório (ridiculamente notório, coitado) ao propor seu requerimento de adotar o tupi-guarani como língua oficial da nação: É como se se visse no portador da superioridade da superioridade um traidor à mediocridade, ao anonimato papeleiro. Não há só uma questão de promoção, de interesse pecuniário; há uma questão de amor-próprio, de sentimentos feridos, vendo aquele galé como eles, sujeito aos regulamentos, aos caprichos dos chefes, às olhadelas superiores dos ministros, com mais títulos à consideração, com algum direito a infringir as regras e aos preceitos.” É evidente que Lima aqui projeta sua própria situação nos anos em que trabalhou como amanuense no Ministério da Guerra.

[10] E a seguir ele conta como encontrou a papelada referente à história de Hester Prynne.

01/09/2011

Portugal de Inês Pedrosa: de Adorno a Bauman

“…um médico representa sempre um deus lascivo para as mulheres, e ele não o ignora. Sobretudo um cirurgião… Também eu já me deixei fascinar pela idéia de fazer amor com um homem capaz de desenhar o meu corpo a bisturi, víscera a víscera, até os ossos. Cedi à erótica do desmembramento, que viceja como um contraponto insidioso da independência das mulheres. Os homens tendem a feminizar-se para acompanhar solidariamente a nossa tão esforçada emancipação: choram conosco, queimam-se nas frigideiras conosco, suam ao nosso lado nos espelhos dos ginásios. E nós acordamos a sonhar com um homem de olhos gelados, que nos trate como corpos desalmados, com todos os requintes proibidos…”

       (Inês Pedrosa, Nas tuas mãos)

(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 30 de agosto de 2011)

    A notável ficção portuguesa das últimas décadas rompeu o isolamento do país ibérico, pelo menos para os leitores brasileiros:  de repente vieram à cena vários autores—não eram exceção, e sim regra—legíveis e modernos (sim, pois antes, parecia mais difícil ler textos lusitanos do que  textos em francês ou espanhol, parecia uma outra e desagradável língua), alguns dos quais estão no primeiro plano da prosa contemporânea (Saramago, Lobo Antunes, Lídia Jorge, José Luís Peixoto, Gonçalo M.Tavares), e outros permanecem acima da média da produção na área do romance.  É o caso, por exemplo, de Miguel Sousa Tavares, Francisco José Viegas, Mário de Carvalho e de Inês Pedrosa. Desta última, a Alfaguara publicou em 2011 uma nova edição da sua segunda experiência no gênero, Nas tuas mãos (1997) [1].

   Ao estrear, em 1992, com A instrução dos amantes, ela já se revelara um grande talento, contando as peripécias de uma turma de adolescentes, com suas hierarquias, códigos, cirandas amorosas, formação de personalidades, de uma forma quase tão vigorosa quanto a de Vargas Llosa em Os chefes e Os filhotes, aos quais oferecia a contrapartida feminina. O que prejudicava deveras o resultado é que ela não sabia quando parar nas suas formulações poéticas, e resvalava muitas vezes no mau-gosto e na lengalenga. Momentos brilhantes conviviam em solução de continuidade com momentos de prosa morta e rebarbativa.

    Por exemplo:

“Eles riram-se. Eram cúmplices. Nunca falavam de amor. Só falavam dos amores  dos outros. A noite encontrava-os nos sítios mais estranhos. Os outros diziam que eles eram muito amigos. Eles não diziam nada. Nem sequer se tocavam, na vida real. Ninguém sabia que ela ficava horas a fio sentadas nos degraus à espera. Ninguém sabia nada. Apareciam em toda a parte para melhor se esconderem.Um dia, ele esteve quase a dizer-lhe que não podia passar sem os sentidos dela.

   Mas não disse. Dinis Marta entendia que o sublime cintila no centro da vulgaridade… Sempre vivera assim, em queda imóvel dentro do seu microscópio de sentimentos. Isabel gostava de o lembrar aos seis anos, a dizer a avó: Eu sei que o Pai Natal não existe. Mas não te esqueças de apagar a lareira antes de irmos dormir, que é para ele não se queimar quando vier. Dinis considerava que esta deixa não abonava as suas faculdades intelectuais e declarara-a infame mentira.

   O humor é um poderoso corrosivo dos hábitos de irmãos; neste particular, Dinis e Isabel não constituíam exceção. Isabel alimentava a secreta esperança de ver fenecer o amor de Cláudia. À força purgante do convívio. Mas Dinis orquestrava a sua privacidade com talentos felinos. Cláudia sugeria-lhe cinemas, praias, entrevistas sucessivas. Dinis acedia a um encontro que declinava o seguinte, de um modo doce e fluido que prescindia de qualquer negativa. Furtava-se às marcações, que mascarava de acasos. Quanto mais Isabel porfiava em doutriná-la acerca das fraquezas do irmão, maior se punha o interesse de Cláudia no rapaz. Que ele se fechasse no quarto dias a fio sem motivo aparente, ou que gritasse com a empregada porque as camisas estavam mal passadas, pareciam-lhe apenas singularidades de um ser mítico. Isabel  desfiava pormenores de terrena eloqüência; era o quarto cheio de roupa suja, as horas em frente ao espelho, o roubo constante da carteira da cozinha, as covardias e as demências minúsculas. Mas Cláudia continuava encostado à janela para o ver chegar.

    Dinis aterrorizou-se quando percebeu que o seu amor secreto trocava risos e confidências com a irmã. Passou do terror ao espanto e do espanto a uma sedução maior, porque nada fascina tanto os homens como a inabalável convivência das mulheres. Tinha a certeza de que Isabel  daria dele uma imagem pobre, se não ridícula, e não compreendia que a paixão de Cláudia pudesse sobreviver a essa devassa. Ora as paixões são fantasias e duram o tempo que souberem colher da morte que as inventa. Quanto mais real Dinis lhe surgia, mais Cláudia o recriava em delírios invulneráveis[2].

  Em Nas tuas mãos, Inês Pedrosa evolui consideravelmente como narradora, decerto porque soube separar com habilidade os registros, já não confundindo a intervenção autoral, as “considerações” de autor, com a fala, a “voz” do personagem. O resultado até pode ser mais convencional, sob  certo aspecto, entretanto adquire mais vigor e consistência narrativa. Agora temos as protagonistas e seu discurso dominando o palco. Mais ainda, são três vozes muito distintas e muito fortes, revelando-nos Portugal de 1935 a 1994.

    Na primeira parte, Jenny conta como, ao casar com António José, o amor da sua vida, consentiu numa farsa: o matrimônio nunca foi consumado e o marido vivia com o amante, Pedro, ambos dilapidando a fortuna da família dela, apostando em cassinos (ela, que permanece virgem, através de um buraco na parede, espia os jogos amorosos entre os dois homens). Ao longo do tempo, a Casa do Xadrez, onde moravam, se tornava abrigo de artistas e intelectuais—e todos estes ou se alinhavam contra ou eram cooptados pelo regime salazarista, que manteve o atraso português por meio século, com seu provincianismo tacanho e seu rígido apego aos mais esclerosados dogmas católicos.

    A narração de Jenny é tão bonita, é uma prosa recôndita tão luminosa, que parece difícil que nas partes seguintes a autora consiga superá-la. Além disso, ela prova para o leitor que o romanesco e até o folhetinesco podem ainda coexistir com a ficção mais exigente, sem precisar chafurdar na subliteratura, como aconteceu com Isabel Allende após A casa dos espíritos.

    No entanto, as outras duas partes conseguem ser ainda mais contundentes: na segunda, através das fotos que marcaram sua vida (ela justamente é uma profissional da área), Camila, filha de Pedro com uma judia que se refugiou por algum tempo em Portugal (e que morreu depois num campo de concentração)—uma das diversas e fugazes traições do amante de António José, fugindo ao jugo do amor veemente deste—, conta como foi torturada pelos agentes do regime, como apesar do isolamento ibérico, as mudanças de costumes (as relações entre os sexos, por exemplo) foram se insinuando no tecido social, e como após os anos 80, mesmo com as chamadas liberdades democráticas, algo desandou na nossa espécie por causa da transformação dos indivíduos em consumidores e fatias do Mercado. Pode-se dizer que nas duas primeiras partes, o livro segue o imperativo de Theodor W. Adorno (1903-1969): o romance era a luta do ser humano vivo contra as relações sociais petrificadas. Mas, e quando essas relações se tornam aparentemente líquidas e fluidas, ainda que sejam coercitivas mesmo assim? Como fica o ser humano vivo?

    As mulheres de Nas tuas mãos, e o próprio título indica isso, procuram o diálogo, o contato, o enleio com o homem (e isso explica a estrutura em espiral mais do que a aparente circularidade que torna as últimas páginas tão enganosamente incômodas, como se houvesse um retrocesso). Porém, algo sempre se opõe a esse desejo: no caso de Jenny, a opção sexual do amado; no caso de Camila, a fatalidade: os dois homens principais da sua vida são mortos brutalmente: Eduardo é fulminado por um raio e Xavier—guerrilheiro moçambicano—é executado e decapitado.

   De Xavier, Camila terá uma filha, a mulata Natália, a voz da terceira parte (através de cartas), que mostra de forma cabal o que a Europa ainda não entendeu em 2011, se nos fiarmos pelos conflitos ali latentes: que a miscigenação, a mistura, a mútua assimilação é o único caminho do futuro. Mesmo assim, a arquiteta Natália enfrenta um mundo ainda mais complicado do que a “avó” Jenny (que criou sua mãe) e Camila: ao invés do monolítico e ultrapassado universo salazarista, a era da pós-modernidade—porosa, anômica, relativista, onde ninguém se compromete com nada, e as atitudes mudam como roupas da estação.

  Nas tuas mãos é um belo exemplo da sutil transformação do mundo romanesco de Adorno para o mundo de Bauman. E mostra por que o romance como peculiar forma de contar histórias ainda é tão necessário.


[1] A responsável pelo lançamento das primeiras obras (inclusive Nas tuas mãos) dela no Brasil é a Planeta.

[2] Sublinhei os trechos que particularmente me desagradam. Aqui vou bater mais uma vez numa tecla na qual sempre insisto: no equívoco que é confundir a poesia da prosa com “prosa poética”. Nunca dá muito certo, especialmente em romances. Quando estava lendo A instrução dos amantes escrevi umas anotações que intitulei (para ecoar Lukács e seu clássico “Narrar ou descrever”) “Narrar ou discorrer”, porém cheguei á conclusão de que não se poda generalizar nada em matéria de romance (ou mesmo de qualquer outro gênero ou forma). Mas basicamente Inês Pedrosa larga de mão a narração e discorre sobre suas personagens, o que me dá a impressão de conversa fiada. Agora: mesmo autores gigantescos como Faulkner e Clarice Lispector têm esses momentos e nem por isso são menos gigantescos, mas aqui temos o imponderável da genialidade, como é o caso das páginas de A maçã no escuro. Não é o caso de A instrução dos amantes, evidentemente.

   Em As tuas mãos as formulações (tirando o fato de serem formuladas na voz da personagem) ganham em precisão e eficácia:

“Já não há crimes nobres pela simples razão de que a nobreza é, antes de mais, uma forma de orquestração do tempo. Ou era; entretanto, o tempo mudou de sexo e de ritmo e tornou-se pura velocidade. Aparentemente, também no mundo do crime deixou de haver lugar para o êxtase contemplativo ou para o jogo da estética. Mata-se como se vive: com sentido prático e rapidez…”

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