

(uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 30 de junho de 2015)
«… no fundo, eu queria sair daquele enredo e logo chegar em casa, abrir imediatamente o aplicativo do celular, que não parava de piscar e apitar, e dar um jeito de mergulhar em outras tantas aventuras[…] Ele se despediu e eu retornei ao meu mundo virtual.
O próximo, pensei sorrindo…»
A leitura mais evidente das histórias narradas em Amores, Truques e Outras Versões, de Alex Andrade, é vê-las como fixação, no registro homoafetivo, de “amores líquidos”, no sentido de uma pós-modernidade baumaniana[1] em que afetos e laços são voláteis, o princípio do consumo norteando até a intimidade, sem falar no fetichismo tecnológico: «Às vezes é assim mesmo, bastou um simples toque ou mesmo me sentar no sofá com o aparelho por perto e o laptop no colo e o mundo se abre como um passe de mágica […] estão entregues as chaves, os documentos e a porta do paraíso estão escancarados aos nossos pés, a poucos metros de distância de nós, como indica o GPS que sempre está em ação».
Dividido, de forma matreira e inteligente, em três partes, na primeira (Truques), o narrador utiliza um aplicativo para encontros com vários homens (há algumas abordagens fortuitas, por exemplo, no metrô), que emergem «da multidão de bíceps, bundas, sungas, muitas caras, apresentando contornos de membros avantajados, sorrisos blindados no photoshop e perfis desconexos…». Sempre fornece um nome falso, mal se lembra do nome do parceiro[2], mas isso já é normal num universo em que «A sacanagem é um fast food […] Posso pensar no que quiser, posso ser quem eu quiser»; na segunda (Outras Versões), temos o ponto-de-vista desses homens com os quais ele conversou virtualmente ou foi às vias de fato, multiplicando a cadeia de liquidez e descartabilidade, como espelhos infinitos; enfim, na terceira (Amores), reencontramos o narrador inicial, e o autor carioca frustra qualquer expectativa-clichê (especialmente se atentarmos para o título) e nos oferece o ponto alto do seu livro, um belo momento do conto brasileiro atual.
Essa terceira parte também me deixou convicto de que, tirando todo o aparato tecnológico, roupagem mais recente das relações humanas, o mais interessante em AMORES, TRUQUES E OUTRAS VERSÕES[3] é a revitalização de um arquétipo essencial, representante de um mundo em que as aventuras (no sentido antigo, de feitos heroicos[4]) foram cedendo campo à domesticidade e uniformidade. O narrador nos fala do «homem que cisma com o orifício alheio…». Hetero, bi ou homo, é Don Juan, aquele que busca na quantidade de experiências sensuais saciar uma fome que nunca será satisfeita, mas que sempre está sendo açulado por um contorno de lábio, por aquela pequena diferença que lhe encanta na multidão.

O que faz da atualização do mito, esse donjuanismo de aplicativos, algo terrível e pungente, é que na sociedade do século XXI estamos morrendo mais velhos. E o corpo (como instrumento de conquista) se torna mais problemático porque ainda não inventaram nada que realmente drible o tempo, a não ser os “truques” (photoshop, cirurgias, malhação). E numa oferta de corpos em abundância, é fácil ser descartado, ficar “fora do mercado”, por não corresponder às exigências dessa demanda.
Don Juan está em apuros. Mesmo porque, com a proliferação de “chaves do paraíso” (laptops, celulares e mais o quê mesmo?), a imaginação corporal e erótico-afetiva da humanidade não se expandiu tanto assim, diria antes o contrário. E é nesse sentido que entendo uma frase do texto: «A danada da liberdade nos traiu»[5]. Pois a autoconsciência faz parte do jogo[6], embora seja uma carta que não nos possibilite vitória alguma: a ciranda (ou roda-viva) petrifica-se e a boca da fonte, como no poema de Rilke, fica a dizer a mesma água, inesgotavelmente: «Daí acionei o botão, liguei o aparelho e disparei com os dedos feito uma locomotiva. Logo foram surgindo as carinhas, contornos, silhuetas, mensagens e mais mensagens. Na verdade, as mesmas imagens de sempre…».

TRECHO SELECIONADO
«Ei, tô pertinho de vc, dá para vc aparecer? Eu estou de camisa preta, calça jeans surrada, óculos escuros pendurados na gola da camisa, óculos de grau no rosto, cabelo preto, estou rodeando uma praça, é perto de vc? A praça tem um monumento, perae, me deixa ver que porra de monumento é esse (…) Pronto, entrei na praça, é um pouco fedida, tem cheiro de morrinha de mendigo, cheia de gatos. A estátua é de um carinha miudinho, feio pra cacete, empunhando uma espada, cacete, arrancaram a placa informativa, desce se vc estiver em algum prédio, aparece na janela pelo menos. Ele nem responde. Mas vejo que está online. Na verdade estou mesmo com raiva daqueles engravatados andando em fileira e tomando conta da calçada. Oi, estou sentado perto do monumento, tá me vendo? (…) Tem um cara vindo na minha direção, deve ser ele, não. Perae. O senhor tem como me ajudar com dois reais para pagar a minha passagem?, é que eu fui assaltado e me levaram tudo, eu consegui no bar esses dois reais, mas eu moro longe e está me faltando mais dois. O cara literalmente parou na minha frente. No banco da praça tem uma mendiga coçando a cabeça, com o cabelo pintado de louro e toda descabelada. O sujeito não sai da minha frente: amigo, não tenho dinheiro. Ponho as mãos nos bolsos, puta que o pariu, saí do Centro Cultural sem a minha bolsa e sem os documentos. Olha aqui, meu camarada, só tenho esse celular que vc tá vendo na minha mão, entendeu? A mendiga começa a catar coisas do chão, vc tá vendo isso? Sou eu quem está perto dela, se vc está aqui por perto, se aproxima. Cadê o cara que queria dois reais?, filho de uma égua, ah lá vai ele atrás dos engravatados, olha isso, um deles é aquele carinha que se empanturrou de croissant de queijo catupiry no bistrô comigo, veado! Ai, meu Deus, a mulher tá comendo areia! Olha aqui… como é mesmo o seu nome?
Desculpa, o meu é Felipe. Não, Bruno…. não. O meu nome, o que eu falo pra ele?»

NOTAS
[1] VER AQUI NO BLOG: https://armonte.wordpress.com/2012/07/29/o-signo-de-bauman-um-aperitivo-de-%C2%B4modernidade-liquieda/
No livro de Alex Andrade, lemos: «… não importa mais nada, senão o momento presente […] Está tudo tão fácil de conseguir, então conseguimos, usamos, no outro dia não nos cabe mais, adquirimos outro com uma facilidade extrema, não nos bastamos, nem a ninguém, nem a nós mesmos. Não se criam vínculos, nem história, nem nada…»
[2] «… não respondi a respeito do meu nome, porque não sabia ao certo o nome que tinha digitado no celular enquanto combinávamos o encontro»
[3] Em tempo: editado pela Confraria do Vento. A capa é sensacional.

[4] Provavelmente por esse motivo me veio fortemente à lembrança, no embalo da leitura do livro, uma fala de Tróilo e Cressida (que cito na tradução de F. Carlos de Almeida Cunha Medeiros & Oscar Mendes), embora a peça de Shakespeare trate de outra época, outros valores:
«ULISSES: Há um traço da natureza que torna todos os homens parentes e este traço é que todos, unanimemente, elogiam as frivolidades recém-nascidas ainda que sejam formadas e moldadas pelas coisas passadas e dão ao pó, embora seja este pó ligeiramente dourado, mais elogios do que ao ouro coberto de pó. Os olhos presentes admiram o objeto presente. Não vos espanteis, Aquiles, homem grande e perfeito, de que todos os gregos comecem a adorar Ájax, visto que as coisas em movimento atraem muito melhor que as imóveis. A aclamação, outrora, era dirigida a vós e ainda poderia dirigir-se a vós, e poderá novamente, se não vos enterrásseis vivo e se não guardásseis vossa reputação debaixo de vossa tenda…»
[5] «A danada da liberdade nos traiu, nos aprisionou no vazio, sozinhos, entre quatro paredes e com um aparelho celular entre os dedos…»
[6] A princípio, fiquei um pouco incomodado por essa “moral da história” (por exemplo: «Preciso de histórias, bem sei. Todos nós precisamos com a ausência de acontecimentos, a rapidez das horas e a globalização, o mundo anda numa aceleração contínua, a vida não nos dá tréguas, então vivemos nos reinventando a cada dia»), por assim dizer, ser dada tão de bandeja, ser tão explícita, mas dei-me conta de que esse automoralismo, consciente o tempo todo do esvaziamento das experiências e do enquadramento em padrões de mercado, já é um lastro do ser humano “líquido”, cuja interioridade não tem força para se preservar diante dos assédios (fugazes), o dionisíaco eternamente prometido, a “falsa liberdade”.
Dito isto, creio que o ponto fraco de Amores, Truques e Outras Versões (do qual ele se redime na terceira parte) seja uma impregnação do tom da crônica. O autor que fique esperto com relação a isso.
