

I
Em 1935, o grande escritor Roger Martin du Gard anotava em seu diário: “O caso Dreyfus é um fenômeno eterno”. Ele se referia à cisão recorrente entre a intelectualidade francesa desde o célebre julgamento do militar judeu, acusado de traição, que sacudiu a França na passagem do século XIX para o seguinte, e que é o ponto de partida de O SÉCULO DOS INTELECTUAIS (”Le siècle des intellectuels”, França-1999, traduzido por Eloá Jacobina), fascinante ensaio histórico de Michel /Winock.
Winock divide o século em três fases intelectuais, quando então um mandarim (para utilizar a mesma expressão do título do romance de Simone de Beauvoir) ocupa posição de proa: temos os anos Barrès, os anos Gide e os anos Sartre.
Os anos Barrès começam justamente a propósito do caso Dreyfus. Este sofrera um processo de execração pública que culminou na sua condenação sumária e injusta (provas haviam sido forjadas). Emile Zola, autor de poderosos romances naturalistas, escreve o memorável Eu acuso, no qual extravasa toda a sua indignação na primeira página do jornal por esse crime do Estado e da opinião pública. É um momento incomparável [1] não só da reivindicação ética quanto da utilização humana da palavra escrita. É um momento em que escrever se transforma em ação efetiva.



Através de O SÉCULO DOS INTELECTUAIS, mesmo o leitor dos nossos dias, tão distante dos eventos, pode sentir a convulsão social causada pelo posicionamento assumido por Zola (que foi julgado, correu o risco de ser linchado pela multidão e teve de se exilar na Inglaterra por algum tempo).
Durante o processo de revisão do julgamento de Dreyfus são cunhadas (ou pelo menos começam a ser amplamente empregadas) duas palavras, com grande impacto na época, e que depois se banalizaram: intelectuais e nacionalismo. Elas marcam duas atitudes antípodas a respeito do ato de escrever e de pensar: por um lado, o universalismo, a idéia democrática de igualdade, um amplo conceito de humanidade (os intelectuais); pelo outro, o apego ao particular, o nacional visto como absoluto, como uma essência, mesmo que racista e anti-democrático (Barrès dizia que infelizmente não havia raça francesa, mas que se devia lutar ferrenhamente pela pátria francesa, contra os elementos cancerosos que se alastravam no tecido social: judeus, franco-maçons e protestantes, por exemplo). Para os nacionalistas, e Maurice Barrès será o de maior peso e influência, intelectual= traidor.
Ao delinear minuciosamente o posicionamento ideológico dos principais escritores da época (além de Zola e Barrès, temos Anatole France, Péguy, Maurras e um vasto etc) começam os problemas de O SÉCULO DOS INTELECTUAIS, apesar da sua enorme importância. O livro tenta uma impossível síntese das principais correntes da época, opondo os dreyfusards (os defensores do injustiçado) e os anti-dreyfusards; como, porém, todos escreveram muito e muitos são escritores de alto quilate, o leitor se vê exposto a uma babel de tomadas de posição extremamente articuladas e até persuasivas, de trajetórias as mais diversas, num ritmo atordoante e emburrecedor. São republicanos, monarquistas, judeus, anti-semitas, socialistas, católicos, protestantes, provincianos, mundanos de salões parisienses, todos escrevendo, todos fundando revistas para defender suas idéias, todos com diários pessoais, onde registram a evolução dos acontecimentos e sua própria evolução…


Enfim, um cipoal que o autor tentou aclarar etiquetando a época como anos Barrès. Serão mesmo? Maurice Barrès, embora esquecido atualmente, é realmente um escritor essencial para a compreensão daquele período (Marguerite Yourcenar, no livro de entrevistas De olhos abertos, afirma que ele era o homem da época). Contribuiu muito (infelizmente) para o desenvolvimento da xenofobia na França, com suas ladainhas sobre a tradição, o culto à terra, ao sangue e aos mortos, que fazem de cada um de nós um ser enraizado ao nacional (e é por isso que os intelectuais déracinés, desenraizados, são nocivos, do seu ponto de vista).
Minha questão é: não poderiam ser, com mais pertinência, “anos Zola”, já que foi ele quem colocou em questão a sociedade francesa e obrigou cada escritor a assumir uma postura diante do caso Dreyfus e da própria visão de mundo, dando origem ao “século dos intelectuais”? E não poderiam ser igualmente “anos Péguy” ou “anos Maurras”, já que ambos tiveram uma influência ainda mais duradoura, estendendo-se até a Segunda Grande Guerra, em plenos anos Gide? Ou ainda “anos /France”, uma vez que, no campo oposto ao de Barrès, Anatole France também foi o homem da época?
Quando se diz anos Sartre temos qualquer coisa de indiscutível. Sendo-se aliado ou inimigo do autor de O ser e o nada, toda uma época orbitou à sua volta [2]. Ao escolher Barrès para o mesmo papel titular, ainda mais por ele representar apenas um lado da dicotomia analisada pelo livro, Winock revelou-se um tanto arbitrário, e o panorama traçado pelo texto confirma essa impressão.
Mas isso é um detalhe contingente com relação a um livro que mostra a importância (mesmo com todos os equívocos, frivolidades e vaidades pessoais) do debate de idéias numa sociedade. Diante da apatia assustadora de hoje, onde passividade e superficialidade são palavras de ordem, O SÉCULO DOS INTELECTUAIS é mais do que um panorama histórico: é quase um alerta.
(resenha publicada em “A Tribuna/’ de Santos em 16 de janeiro de 2001)



II
“Os pensadores antigos refletiam muito mais do que liam. Por isso se ligavam tão estreitamente ao concreto… Nós lemos mais do que refletimos. Não temos filosofias, temos comentários… A tal ponto que um livro de filosofia que surgisse hoje sem se apoiar em alguma autoridade, citação, comentário etc não seria levado a sério.”
(Albert Camus, Carnets)
Segundo a visão de Michel Winock em O SÉCULO DOS INTELECTUAIS uma figura-chave forneceu o perfil de um determinado período do século (Maurice Barrès, André Gide, Jean-Paul Sartre). Antes da Guerra de 1914, Barrès defendia os princípios do nacionalismo e do apego às tradições, contra o universalismo dos intelectuais que se posicionaram a favor do acusado no Caso Dreyfus.
Cada vez mais, depois de 1914, e indo num crescendo que se tornará imperativo durante a Guerra Fria, há o desejo do intelectual de participar ativamente, uma necessidade de ação (necessidade que seria consagrada com a expressão célebre, engajamento). Como nenhuma ação (assim como nenhum reflexão) é isenta de ideologia, é claro que essa necessidade passou pela peneira das opções partidárias, principalmente pelo namoro com o comunismo, que em boa parte do século XX seduziu os intelectuais como a Alternativa Suprema, tentando mesmo até uma parcela do pensamento católico (O SÉCULO DOS INTELECTUAIS rastreia amplamente a trajetória de dois grandes escritores católicos, Georges Bernanos e François Mauriac).

É a necessidade de se ligar ao concreto, de sair do mundo de referências e autoridades intelectuais. Winock sintetiza: “Uma dupla tentação domina o homem de pensamento. Permanecer no mundo da pureza ideal—que é o da linguagem—mas com risco de se isolar e perder o contato com o mundo; ou aceitar demasiadamente os imperativos do universo político, escolher seu lado, tornar-se partidário…”



André Gide, autor de obras-primas (Os subterrâneos do /Vaticano, Sinfonia Pastoral, Os falsos moedeiros) e de obras libertárias—no sentido da liberdade pessoal (Os frutos da terra, Corydon, O imoralista)—sofreu essa necessidade de participação política, primeiro denunciando o sistema colonialista francês, depois viajando para a URSS, para conhecer de perto a “pátria do socialismo”. É breve seu namoro com o Partido Comunista, mas emblemático. Pela sua autoridade moral e intelectual, ele expressa o zeitgeist (o espírito da época, a mentalidade): participar, combater, estar presente, sem isenções. É por isso que esses são os anos Gide, alguém que pôde conciliar um ideal literário muito alto e a necessidade combativa. Anos em que Gide será o mandarim da intelectualidade francesa e Malraux será o herói, combatendo diretamente nas guerras do momento (ele participou da Guerra Civil Espanhola) e trazendo a realidade do momento para uma literatura e uma filosofia saturadas pelas convenções.
Após a Segunda Guerra, Sartre radicalizará ainda mais o compromisso do intelectual com a participação política e sua adesão ao Partido Comunista causará uma ruptura com vários amigos, entre eles Camus. É importante ressaltar uma diferença: apesar das críticas de Gide, a URSS manteve uma espécie de prestígio romântico entre os intelectuais. A adesão de Sartre acontece no período da grande desilusão, quando as monstruosidades do stalinismo vêm à tona.
Para o autor de A Idade da Razão, entretanto, não havia mais os pudores de um Gide: danem-se os absolutos, o ideal literário, a ética burguesa. Para se construir a liberdade e servir à causa do povo era preciso ter as “mãos sujas”.
E, então, na França dos anos 50, acontece um evento com uma força talvez ainda mais polarizadora do que o Caso Dreyfus: a Guerra da Argélia, que transforma os franceses em inimigos uns dos outros. É num momento desses que Simone de Beauvoir vai escrever que odeia seus compatriotas, cúmplices de assassinatos e tortura na colônia.
Após a Argélia, porém, e derivado das revoluções na mídia e dos movimentos estudantis, e principalmente da falência das grandes ideologias, surge um novo fenômeno: o “intelectual universal”, do qual Sartre foi o representante mais glorioso, à esquerda, e Raymond Aron o mais glorioso, à direita, começa a ceder espaço ao “intelectual pontual”, aquele cujo campo de ação é bem mais restrito, abarcando problemas mais específicos: defesa do meio ambiente, defesa das minorias, etc. Outro tipo diluidor é o “intelectual pop”, aquele que se define diretamente pelos meios de comunicação de massa, e do qual o maior exemplo, na França, é o espertíssimo Bernard-Henri Lévy, que, coincidentemente, tem um ensaio chamado Elogio dos intelectuais, cuja profundidade de piscina infantil, parece mais enterrar do que elogiar os intelectuais.


Como se vê, mesmo dois artigos só lograram ser, no máximo, um aperitivo para os temas e caminhos de um empreendimento vigoroso e absorvente. O SÉCULO DOS INTELECTUAIS é um dos melhores livros dos últimos anos.
(resenha publicada em “A Tribuna” de Santos, em 30 de janeiro de 2001)
[1] Estranhamente menosprezado por Hannah Arendt em Origens do Totalitarismo, onde ela destila um visível desdém pela figura de Zola.