MONTE DE LEITURAS: blog do Alfredo Monte

30/07/2011

Sobre a obra de Marguerite Yourcenar

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O CENTENÁRIO DE YOURCENAR

(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 10 de junho de 2003)

Nascida a 8 de junho de 1903 na Bélgica (e tendo vivido boa parte da sua existência nos EUA), Marguerite Yourcenar confirma o chavão “a língua é minha pátria”: tornou-se um dos principais nomes da literatura francesa do século XX.

No Brasil, ganhou notoriedade com a tradução, em 1980, do seu livro mais famoso, Memórias de Adriano (1951), um inusitado best seller, que coincidiu com sua eleição como a primeira mulher da Academia Francesa de letras (tão ridícula e grotesca quanto a nossa). Sorte de quem, como eu, estava na adolescência: em muitíssimo boa hora (para utilizar uma expressão que lhe era peculiar: de très bonne heure) pôde conhecer uma série de livros essenciais que a Nova Fronteira lançou regularmente (arrefecendo no início dos anos 90), além da inigualável reconstituição da mentalidade do imperador romano do século II.

Assim, tivemos sua obra-prima suprema, A obra em negro (1968), que aborda ao mesmo tempo o muno do Renascimento, como também a fronteira entre o ser e o não-ser; o seu romance mais desencantado (pelo menos na segunda versão, publicada em 1959, a partir de um original de 1934), Denário do sonho, igualmente fundamental, onde encontramos todos os seus defeitos e qualidades como escritora (o estilo às vezes vacila e fica meio afetado, porém o efeito geral é poderoso e cada revisão confirma isso): a Roma de Mussolini continua a “cidade eterna” na qual podemos encontrar o Mito em meio à insustentável leveza do ser do dia-a-dia (dois capítulos particularmente extraordinários são os que mais persistem na memória anos depois: o que aborda a vida da vendedora de círios, a siciliana Rosalia di Credo, antes do seu suicídio, e aquele em que sua irmã, Angiola, está incógnita num cinema vendo a si mesmo como atriz na tela e embarcando num incidente sexual como Alessandro, marido da protagonista do romance, Marcella, que comete um atentado contra o “Duce”).

Tivemos, também, o belo Golpe de Misericórdia (1939), que marcou o final de sua primeira fase como escritora, antes da mudança para os EUA e o retorno triunfal com a publicação de Adriano. Mesmo os que não gostam de Yourcenar como escritora (e são muitos) geralmente apreciam esse romance, muito mal adaptado para o cinema por Volker Schlondorff (um contumaz assassino de obras literárias), ao contrário de A obra em negro.

Ainda podem ser citado entre os destaques da sua obra, os textos mitológico-passionais de Fogos (1936), um dos raros da primeira fase em que ela aparentemente não mexeu, e que ganha muito se lido com Denário do sonho. Alguns dos Contos Orientais (1938) são memoráveis, como “O último amor do príncipe Genji” ou “Como Wang Fô foi salvo” (outros, nem tanto).

De Como a água que corre, que é de 1981, mas a partir de um outro livro de 1934 (La mort conduit l´attelage-A morte conduz a carroça) temos os dois magníficos textos-testamentos tardios de Yourcenar, que transcorrem no século XVII, Um homem obscuro e Uma bela matinê (cujo protagonista, Lazare, filho do “homem obscuro”, Nathanael, aos 12 anos, sonha toda a sua vida futura, interpretando personagens de Shakespeare, ao se incorporar numa compahia teatral; a história de Nathanael, por sua vez, mostra que qualquer homem que se indaga sobre o mundo e as coisas—e deixa a água correr—pode realizar em si a meta que a filosofia se propôs).

Obrigatória seria, também, a leitura de O labirinto do mundo, trilogia sobre a história da família da autora, da qual destaco especialmente o primeiro volume, que tem o belíssimo título original de Souvenirs Pieux (1974), vertido insossamente para Recordações de família; para mim, marcou um novo patamar na minha admiração pela obra de Yourcenar, ao contrário de quase todo o restante da crítica, que exalta o tumultuoso e cansativo segundo volume, Arquivos do Norte (1976). O último, A eternidade, o que é, ficou incompleto e foi lançado postumamente (ela morreu em 1987).

E também a leitura de alguns ensaios de Sous bénéfice d´inventaire, outro belo título, que virou um reles Notas à margem do tempo (aquele sobre Thomas Mann, por exemplo, ou aquele sobre Piranesi), e de O tempo, esse grande escultor, além de A visão do vazio, sobre Mishima (o único não publicado pela Nova Fronteira entre os textos citados aqui, mas que tem edição pela Guanabara).

E, para fechar, um livro muito querido e infinitamente lido nos anos 80, De olhos abertos (o título é uma alusão à frase final de Memórias de Adriano), suas entrevistas com Mathieu Galey, as quais delineavam uma mulher admirável (e de fato ela o era, mas de outro modo). Infelizmente, era uma imagem esculpida, inventada, retocada, uma persona.

A biografia de Josyane Savigneau, A invenção de uma vida, uma das melhores no gênero, desmistifica cruelmente De olhos abertos e Marguerite Yourcenar, sem, no entanto, fazer cair o interesse nem por um nem por outro. Nem sempre a grande escritora francesa caminhou de olhos abertos. Atire a primeira pedra quem nunca fechou os seus também.

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O AUGE DOS MANDARINS- Os intelectuais e o século XX

I

Em 1935, o grande escritor Roger Martin du Gard anotava em seu diário: “O caso Dreyfus é um fenômeno eterno”. Ele se referia à cisão recorrente entre a intelectualidade francesa desde o célebre julgamento do militar judeu, acusado de traição, que sacudiu a França na passagem do século XIX para o seguinte, e que é o ponto de partida de O SÉCULO DOS INTELECTUAIS (”Le siècle des intellectuels”, França-1999, traduzido por Eloá Jacobina), fascinante ensaio histórico de Michel /Winock.

Winock divide o século em três fases intelectuais, quando então um mandarim (para utilizar a mesma expressão do título do romance de Simone de Beauvoir) ocupa posição de proa: temos os anos Barrès, os anos Gide e os anos Sartre.

Os anos Barrès começam justamente a propósito do caso Dreyfus. Este sofrera um processo de execração pública que culminou na sua condenação sumária e injusta (provas haviam sido forjadas). Emile Zola, autor de poderosos romances naturalistas, escreve o memorável Eu acuso, no qual extravasa toda a sua indignação na primeira página do jornal por esse crime do Estado e da opinião pública. É um momento incomparável [1] não só da reivindicação ética quanto da utilização humana da palavra escrita. É um momento em que escrever se transforma em ação efetiva.

Através de O SÉCULO DOS INTELECTUAIS, mesmo o leitor dos nossos dias, tão distante dos eventos, pode sentir a convulsão social causada pelo posicionamento assumido por Zola (que foi julgado, correu o risco de ser linchado pela multidão e teve de se exilar na Inglaterra por algum tempo).

Durante o processo de revisão do julgamento de Dreyfus são cunhadas (ou pelo menos começam a ser amplamente empregadas) duas palavras, com grande impacto na época, e que depois se banalizaram: intelectuais e nacionalismo. Elas marcam duas atitudes antípodas a respeito do ato de escrever e de pensar: por um lado, o universalismo, a idéia democrática de igualdade, um amplo conceito de humanidade (os intelectuais);  pelo outro, o apego ao particular, o nacional visto como absoluto, como uma essência, mesmo que racista e anti-democrático (Barrès dizia que infelizmente não havia raça  francesa, mas que se devia lutar ferrenhamente pela pátria francesa, contra os elementos cancerosos que se alastravam no tecido social: judeus, franco-maçons e protestantes, por exemplo). Para os nacionalistas, e Maurice Barrès será o de maior peso e influência, intelectual= traidor.

Ao delinear minuciosamente o posicionamento ideológico dos principais escritores da época (além de Zola e Barrès, temos Anatole France, Péguy, Maurras e um vasto etc) começam os problemas de O SÉCULO DOS INTELECTUAIS, apesar da sua enorme importância.  O livro tenta uma impossível síntese das principais correntes da época, opondo os dreyfusards (os defensores do injustiçado) e os anti-dreyfusards; como, porém, todos escreveram muito e muitos são escritores de alto quilate, o leitor se vê exposto a uma babel de tomadas de posição extremamente articuladas e até persuasivas, de trajetórias as mais diversas, num ritmo atordoante e emburrecedor. São republicanos, monarquistas, judeus, anti-semitas, socialistas, católicos, protestantes, provincianos, mundanos de salões parisienses, todos escrevendo, todos fundando revistas para defender suas idéias, todos com diários pessoais, onde registram a evolução dos acontecimentos e sua própria evolução…

Enfim, um cipoal que o autor tentou aclarar etiquetando a época como anos Barrès. Serão mesmo? Maurice Barrès, embora esquecido atualmente, é realmente um escritor essencial para a compreensão daquele período (Marguerite Yourcenar, no livro de entrevistas De olhos abertos, afirma que ele era o homem da época). Contribuiu muito (infelizmente) para o desenvolvimento da xenofobia na França, com suas ladainhas sobre a tradição, o culto à terra, ao sangue e aos mortos, que fazem de cada um de nós um ser enraizado ao nacional (e é por isso que os intelectuais déracinés, desenraizados, são nocivos, do seu ponto de vista).

Minha questão é: não poderiam ser, com mais pertinência, “anos Zola”, já que foi ele quem colocou em questão a sociedade francesa e obrigou cada escritor a assumir uma postura diante do caso Dreyfus e da própria visão de mundo, dando origem ao “século dos intelectuais”? E não poderiam ser igualmente “anos Péguy” ou “anos Maurras”, já que ambos tiveram uma influência ainda mais duradoura, estendendo-se até a Segunda Grande Guerra, em plenos anos Gide?  Ou ainda “anos /France”, uma vez que, no campo oposto ao de Barrès, Anatole France também foi o homem da época?

Quando se diz anos Sartre temos qualquer coisa de indiscutível. Sendo-se aliado ou inimigo do autor de O ser e o nada, toda uma época orbitou à sua volta [2]. Ao escolher Barrès para o mesmo papel titular, ainda mais por ele representar apenas um lado da dicotomia analisada pelo livro, Winock revelou-se um tanto arbitrário, e o panorama traçado pelo texto confirma essa impressão.

Mas isso é um detalhe contingente com relação a um livro que mostra a importância (mesmo com todos os equívocos, frivolidades e vaidades pessoais) do debate de idéias numa sociedade. Diante da apatia assustadora de hoje, onde passividade e superficialidade são palavras de ordem, O SÉCULO DOS INTELECTUAIS é mais do que um panorama histórico: é quase um alerta.

(resenha publicada em “A Tribuna/’ de Santos em 16 de janeiro de 2001)

 

II

“Os pensadores antigos refletiam muito mais do que liam. Por isso se ligavam tão estreitamente ao concreto… Nós lemos mais do que refletimos. Não temos filosofias, temos comentários… A tal ponto que um livro de filosofia que surgisse hoje sem se apoiar em alguma autoridade, citação, comentário etc não seria levado a sério.”

            (Albert Camus, Carnets)

Segundo a visão de Michel Winock em O SÉCULO DOS INTELECTUAIS uma figura-chave forneceu o perfil de um determinado período do século (Maurice Barrès, André Gide, Jean-Paul Sartre). Antes da Guerra de 1914, Barrès defendia os princípios do nacionalismo e do apego às tradições, contra o universalismo dos intelectuais que se posicionaram a favor do acusado no Caso Dreyfus.

Cada vez mais, depois de 1914, e indo num crescendo que se tornará imperativo durante a Guerra Fria, há o desejo do intelectual de participar ativamente, uma necessidade de ação (necessidade que seria consagrada com a expressão célebre, engajamento). Como nenhuma ação (assim como nenhum reflexão) é isenta de ideologia, é claro que essa necessidade passou pela peneira das opções partidárias, principalmente pelo namoro com o comunismo, que em boa parte do século XX seduziu os intelectuais como a Alternativa Suprema, tentando mesmo até uma parcela do pensamento católico (O SÉCULO DOS INTELECTUAIS rastreia amplamente a trajetória de dois grandes escritores católicos, Georges Bernanos e François Mauriac).

É a necessidade de se ligar ao concreto, de sair do mundo de referências e autoridades intelectuais. Winock sintetiza: “Uma dupla tentação domina o homem de pensamento. Permanecer no mundo da pureza ideal—que é o da linguagem—mas com risco de se isolar e perder o contato com o mundo; ou aceitar demasiadamente os imperativos do universo político, escolher seu  lado, tornar-se partidário…”

     André Gide, autor de obras-primas (Os subterrâneos do /Vaticano, Sinfonia Pastoral, Os falsos moedeiros) e de obras libertárias—no sentido da liberdade pessoal (Os frutos da terra, Corydon, O imoralista)—sofreu essa necessidade de participação política, primeiro denunciando o sistema colonialista francês, depois viajando para a URSS, para conhecer de perto a “pátria do socialismo”. É breve seu namoro com o Partido Comunista, mas emblemático. Pela sua autoridade moral e intelectual, ele expressa o zeitgeist (o espírito da época, a mentalidade): participar, combater, estar presente, sem isenções. É por isso que esses são os anos Gide, alguém que pôde conciliar um ideal literário muito alto e a necessidade combativa. Anos em que Gide será o mandarim da intelectualidade francesa e Malraux será o herói, combatendo diretamente nas guerras do momento (ele participou da Guerra Civil Espanhola) e trazendo a realidade do momento para uma literatura e uma filosofia saturadas pelas convenções.

Após a Segunda Guerra, Sartre radicalizará ainda mais o compromisso do intelectual com a participação política e sua adesão ao Partido Comunista causará uma ruptura com vários amigos, entre eles Camus. É importante ressaltar uma diferença: apesar das críticas de Gide, a URSS manteve uma espécie de prestígio romântico entre os intelectuais. A adesão de Sartre acontece no período da grande desilusão, quando as monstruosidades do stalinismo vêm à tona.

Para o autor de A Idade da Razão, entretanto, não havia mais os pudores de um Gide: danem-se os absolutos, o ideal literário, a ética burguesa. Para se construir a liberdade e servir à causa do povo era preciso ter as “mãos sujas”.

E, então, na França dos anos 50, acontece um evento com uma força talvez ainda mais polarizadora do que o Caso Dreyfus: a Guerra da Argélia, que transforma os franceses em inimigos uns dos outros. É num momento desses que Simone de Beauvoir vai escrever que odeia seus compatriotas, cúmplices de assassinatos e tortura na colônia.

Após a Argélia, porém, e derivado das revoluções na mídia e dos movimentos estudantis, e principalmente da falência das grandes ideologias, surge um novo fenômeno: o “intelectual universal”, do qual Sartre foi o representante mais glorioso, à esquerda, e Raymond Aron o mais glorioso, à direita, começa a ceder espaço ao “intelectual pontual”, aquele cujo campo de ação é bem mais restrito, abarcando problemas mais específicos: defesa do meio ambiente, defesa das minorias, etc. Outro tipo diluidor é o “intelectual pop”, aquele que se define diretamente pelos meios de comunicação de massa, e do qual o maior exemplo, na França, é o espertíssimo Bernard-Henri Lévy, que, coincidentemente, tem um ensaio chamado Elogio dos intelectuais, cuja profundidade de piscina infantil, parece mais enterrar do que elogiar os intelectuais.

Como se vê, mesmo dois artigos só lograram ser, no máximo, um aperitivo para os temas e caminhos de um empreendimento vigoroso e absorvente. O SÉCULO DOS INTELECTUAIS é um dos melhores livros dos últimos anos.

(resenha publicada em “A Tribuna” de Santos, em 30 de janeiro de 2001)


[1] Estranhamente menosprezado por Hannah Arendt em Origens do Totalitarismo, onde ela destila um visível desdém  pela figura de Zola.

[2] Eu, pessoalmente, ainda peguei a irradiação desses anos Sartre e nunca serei o suficientemente grato por  essa dádiva.

BERGMAN: palavras e imagens

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 “Embora eu seja um neurótico, minha relação com o exercício da profissão tem sido sempre, surpreendentemente, não-neurótico. Tenho tido a capacidade de atrelar o carro de combate com os demônios à frente, forçando-os a serem úteis, isto ao mesmo tempo em que eles, a sós comigo, se comprazem em torturar e envergonhar. Como se sabe, o diretor de um circo de pulgas deixa que seus artistas lhe chupem o sangue”.  

     A morte de Ingmar Bergman propiciou a mim um relativo balanço existencial, já que seus filmes estão entranhados na minha alma desde quando comecei a me considerar um “cinéfilo” e vi primeiramente O Ovo da Serpente, Sonata de Outono e o fascinante Da Vida das Marionetes; este último, mais do que os outros dois, me fez ir ao cinema três vezes (início dos anos 1980, ainda um tempo sem vídeo ou DVD, tinha-se de guardar dentro de si as imagens de um filme, sua atmosfera, o que certamente explica a “aura” que muitos deles adquiriam, ao contrário de hoje, quando se pode assistir a um Bergman entre o Faustão e o Fantástico) e, embora tenha deixado a crítica da época indiferente, ajudou a revelar para mim o que era “o” cinema, apresentando um descarnamento, uma frieza cirúrgica –mesmo assim não isenta de dramaticidade, muito pelo contrário— extremamente atraente (se é possível utilizar um termo assim para a paulada na cabeça que é essa obra), numa indústria já então dominada por ênfases disciplinadas e direcionadas.

Depois vieram as grandes descobertas confirmatórias: O Sétimo Selo, O Rosto, Morangos Silvestres, Sorrisos de Uma Noite de Amor; um pouco mais tarde, A Hora do Lobo, Persona, e o maior de todos, Gritos e Sussurros (sobre os dois últimos trabalhos, ele lucidamente escreve: “Com Persona e, mais tarde, com Gritos e sussurros, fui o mais longe que pude quanto à técnica narrativa. Isto é, com total liberdade toco em segredos para os quais não existem palavras e que só a cinematografia pode patentear).

Quantos criadores deram origem a um adjetivo próprio (bergmaniano), o qual agrega toda uma gama específica de sentimentos e uma visão do mundo fundada na angústia?

Não bastasse isso, Bergman fascinava também pela palavra: seus roteiros foram publicados no Brasil pela Nórdica e tornaram-se tão cruciais para mim quanto qualquer grande autor literário, e às vezes funcionavam mais do que os filmes (caso de Face a Face, Cenas de Um Casamento ou A Hora do Amor). Por isso, nada mais justo do que uma despedida mediada pela palavra, no caso seu livro Imagens, publicado em 1990, no qual comenta sua extensa produção (iniciada em 1945) valendo-se de uma forma muito pessoal, caleidoscópica, recusando o critério da linearidade cronológica, aproximando filmes distantes por obsessões recorrentes.

As cinco seções (“Sonhos/sonhadores”, “Primeiros filmes”, “Farsas/farsantes”, “Crença/descrença”, “Comédias/divertimentos”, “Outros filmes”) são frutos de longas conversas com Lasse Bergström, o que justifica um pouco a forma descontraída, aparentemente descuidada, da prosa de Bergman, enriquecida e ampliada por anotações de agendas de trabalho e trechos de sua autobiografia, Lanterna Mágica.

 

“Quero que me tomem como pessoa adulta, mas surpreende-me continuamente que as pessoas me levem a sério (…) Não penso, é claro, que toda essa gente são crianças que representam o papel de adultos. A única diferença entre mim e eles é que já esqueceram ou nunca pensaram que, no fundo, continuam sendo crianças.”

E é muito belo esse vai e vem que, apesar de toda a pluralidade da produção bergmaniana (cerca de 50 trabalhos, entre obras-primas, experiências personalíssimas, filmes comerciais e de encomenda, comédias), dá uma tremenda idéia de unidade e ajuda a entender o brado de Peter Egerman, em Da Vida das Marionetes: “O espelho está partido, mas o que refletem os pedaços?” Um ponto alto nessa reunião dos pedaços é a discussão do processo de descrença crescente que culminará com a realização de Luz de Inverno (1963), logo após o desmascaramento do deus que Harriet Andersson encontra no papel de parede, em Através de Um espelho (afinal, esse mesmo homem conseguiu encarnar a morte num ator, em O Sétimo Selo, sem cair no ridículo). Nessa discussão metafísica não se perde o bom senso que lhe permite discutir sua carreira com os pés do chão. Em meio às dúvidas e tormentos do seu pastor sem fé, ele observa: é um filme sobre o homem sueco em termos da realidade sueca e, meteorologicamente falando, no período mais difícil do ano”. É o mesmo homem que afirma sobre suas comédias: era imprescindível que elas me dessem dinheiro. E não me envergonho de confessá-lo. A maior parte das coisas que acontecem no mundo do cinema acontecem devido a esse fator. Ou ainda: me sentia, com freqüência, envolvido numa prostituição profissional contínua, ainda que bastante divertida. Trata-se, evidentemente, de atrair público. Não era outra coisa senão show business de manhã à noite. E é o mesmo homem que se recrimina, por ter, em Sonata de outono, realizado um filme “à Bergman”.

E que bonito esse grande homem nunca chegar a um acordo consigo mesmo. Pois é capaz de afirmar sobre a “magia do teatro da ilusão” propiciada pela Flauta mágica: “Nada é. Tudo está representado. No momento em que o pano sobe, faz-se um acordo entre o palco e o salão: agora vamos soltar a fantasia!”; e em outro passo, “isto de criar uma ilusão, de representar! Os atores representam comédias e eu os incito a isso. Por vias tortuosas tentamos conseguir impulsos emocionais que o público irá toma por sentimentos, até por verdades. Ora, isso começa a ser difícil. Sinto uma aversão crescente perante o próprio milagre da interpretação teatral.

Essa oscilação impregna a tessitura de Imagens: trata-se de uma vida reconstruída com palavras de antes e de agora. O velho e bom Henry James já escrevera: “Trabalhamos no escuro, fazemos o que podemos, damos o que temos. Nossa dúvida é nossa paixão e nossa paixão é nosso dever. O resto é a loucura da arte.” O velho e bom Ingmar Bergman, esse pedaço importante do meu próprio espelho quebrado: Nós caminhamos passo a passo em direção às trevas. A única verdade existente é esse movimento”. E quem assistiu a uma de suas obras-primas, que em 2007 torna-se cinqüentenária (apesar de ser mais jovem que todo o cinema atual), Morangos Silvestres, sabe como isso é verdadeiro.

(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA em  11 de agosto de 2007)

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28/07/2011

O gato verdadeiro e o sapo falso ou O poeta do simulacro

(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 31 de agosto de 2004, e aqui ligeiramente modificada, com acréscimos de notas de rodapé)

   Dois acontecimentos destes últimos dias dizem respeito ao já clássico O caçador de andróides (Do androids dream of eletric sheep?, 1968, traduzido por Ruy Jungman para a Francisco Alves[1]): uma enquete entre cientistas elegeu  como melhor filme de ficção científica Blade runner[2] (um exagero, quando se pensa em 2001 e Solaris), versão consideravelmente modificada da história criada por Philip K. Dick [1928-1982] (até o título é tirado de outro livro); além disso, roubaram a tela O grito, de Munch, que funciona como elemento-chave na trama.

    É difícil,  para quem viu o filme, esquecer da cena na qual, após encontrá-la numa espelunca de strip-tease, o caçador executa uma replicante em meio a uma sucessão de vitrines quebradas. Pois bem, no romance, a andróide em questão é uma cantora de ópera, Luba Luft, “aposentada” (é o termo utilizado) num museu quando admirava uma exposição de Munch. Dois quadros ganham destaque em cena: o já referido O grito e Puberdade. E a morte da cantora-andróide como que representa a agonia do primeiro quadro (“A criatura, homem ou  mulher, o que quer que fosse, estava contida em seu próprio uivo… separada, ou a despeito, da explosão do seu grito”), levando Deckard a questionar seu trabalho, enquanto uma cena de sexo (entre o caçador e Rachel, a mais ambígua dos andróides) terá o clima do segundo.

   Ópera, museu. A alta cultura em agonia e seus restos (num texto em que a palavra “entulho” é reiterada). Um mundo pós-guerra, coberto pela poeira, em que só seres humanos geneticamente imperfeitos continuam, em que quase não há animais, substituídos por contrafações “elétricas” (a certa altura, um gato morre e o solitário Isidore, que abriga alguns andróides, pensando tratar-se de um substituto artificial, leva-o para seu chefe, a fim de consertá-lo, e então descobre que era um gato de verdade: “Eu pensei que fosse um trabalho realmente bem feito. Tão bem feito que me enganou”). Estamos no coração do universo de Philip K. Dick, a confusão entre real e simulacro.[3]

   Nesse livro, que tem muito do clima de Farenheit 451, de Ray Bradbury, o problema dominante para o grupo de andróides caçados não é o da finitude[4], como no filme (o que os levava a um confronto esclarecedor com seu criador, e fazia o espectador identificar-se com eles), e mais o da identidade e da empatia. Num mundo abandonado, empoeirado[5] e entrópico, é possível a empatia ou só sobrou a frieza alucinante (sem a capacidade do sentimento de conexão com o Outro e, portanto, sem a menor possibilidade de compaixão) de seres continuamente aperfeiçoados pela tecnologia?

    Enquanto isso, a impostura geral alavanca a auto-ilusão. Deckard se depara com um sapo[6], que julga autêntico. Em casa, descobre seu logro. Mesmo com esse final desolador, há uma passagem maravilhosa anti-O grito, por causa desse lampejo da vida real: “seus olhos brilharam como os de um menino. Ele parece, pensou sua esposa, como se tivesse estado brincando e chegou o momento de voltar para casa. Descansar, tomar um banho e contar tudo sobre os milagres do dia”.


[1]  Nota de 2011- Há uma tradução mais recente, lançada pela Rocco em  2008, e realizada por Ryta Vinagre.

[2] Dirigida em 1982 por Ridley Scott, possivelmente seu último grande filme, depois foi apenas uma carreira de artesão às vezes digna (Thelma e Louise; Perigo na noite, 1492), muitas vezes indigna (Hannibal, Falcão negro em perigo), sem falar no requentado Gladiador, que só não é um desperdício por causa do talento de Russell Crowe.

   Mas não há dúvida de que Blade runner já se incorporou ao imaginário contemporâneo de forma definitiva.

[3]  Numa outra resenha, de 15 de março de 2008 (a respeito dos 40 anos do livro e seu relançamento pela Rocco), escrevi que Dick é “o supremo autor dos simulacros, das vidas virtuais que se transformam em pesadelos” e também que o argumento do texto original  “é o mesmo da requintada produção de Ridley Scott: andróides absolutamente idênticos a seres humanos encontram-se foragidos e são perseguidos por um especialista, Deckard. Só que o original é bem mais sombrio.”

[4] Os replicantes só viviam pouquíssimos anos, apesar de seus poderes, talento e personalidade.

[5] Não há nem aquela chuva que se fazia onipresente no filme.

[6]  Numa  cena alucinatória, que só podia ter sido escrita por alguém que mergulhou fundo no ambiente lisérgico dos anos 60.

27/07/2011

O centenário de McLuhan

(publicado em  A TRIBUNA de Santos em 26 de julho de 2011)

“O crítico tende a preferir hierarquicamente os valores de uma época precedente que foram erodidos pelos novos desenvolvimentos. O crítico é como o contador que calcula lucros e perdas”.

No dia 21de julho, o autor das palavras acima, Marshall McLuhan, completaria 100 anos. Falecido em 1980, está mais vivo que nunca: cunhou um termo que passou a fazer parte do nosso vocabulário (e imaginário): aldeia global, e pioneiramente analisou como as mídias e inovações tecnológicas interferem na criação, percepção e fruição da arte. Suas obras mais conhecidas, A Galáxia de Gutenberg, O Meio sãoas Massagens (trocadilho com sua própria máxima, também célebre: “o meio é a mensagem”), Guerra e Paz na Aldeia Global, nos anos 60, anteciparam fenômenos da nossa época, mas embora se tornasse uma celebridade, aparecendo até num filme emblemático da década de 70, Annie Hall (ou Noivo Neurótico, Noiva Nervosa), de Woody Allen, não era respeitado como pensador: por  exemplo, ao se referir a ele no seu aguerrido A Era dos Extremos, o historiador-mor do nosso tempo, Eric Hobsbawn o qualificou desdenhosamente como “guru”.

A citação que abre meu texto pertence a outro livro importante (menos conhecido): Do Clichê ao Arquétipo (1971)[1], e é bem característica do estilo mcluhasiano: provocativa, meio desmoralizante, e com um fundo de verdade inegável. Aliás, o volume é um registro contundente da originalidade do autor canadense, tão menosprezada pelo mundo acadêmico: é constituído por 29 textos aforismáticos, fragmentários, em que uma enxurrada de citações colide (é o único verbo que me ocorre) com opiniões e afirmações que não formam um conjunto sistemático, mas pipocam, pululam, dando ao conjunto o efeito de um pensamento em curto-circuito, em faíscas, muitas delas sensacionais, verdadeiramente “inflamáveis”.

Para McLuhan, somos estimulados o tempo todo por clichês “ambientais”, que são sondagens e ajustes das nossas percepções às técnicas do momento[2]. Portanto, a visão de clichê, aqui, é potencialmente positiva, no estágio tribalista em que estamos. O arquétipo seria a tentativa nostálgica de resgate dos clichês de um estágio já ultrapassado.

Esgueirando-se em meio a essa elétrica tensão entre clichê e arquétipo, o maravilhoso “guru” (que me desculpe o grande Hobsbawm) examina o teatro do absurdo (o livro abre com considerações sobre A Cantora Careca de Ionesco), as contribuições de Joyce e T.S. Eliot para um “método mítico” na literatura, as emoções, a dúvida, a consciência, os gêneros, o humor, a paródia (um ponto alto; diga-se de passagem, não são poucos os momentos em que ele inova todos esses temas com suas leituras surpreendentes), o olhar, o ouvir, o paradoxo, tendo como guia virgiliano nesse mundo dantesco das manifestações do mal estar da civilização, os versos de Yeats, nos quais  o poeta diz:

“Aquelas imagens poderosas, porque plenas

Na pura mente nascidas, mas de que geradas?

Um monte de lixo ou varredura das ruas,

Velhas chaleiras, velhas garrafas, lata amassada,

Ferro velho, velhos ossos, velhos trapos, a puta delirante

Guarda a caixa. E com minha escada desaparecida,

Devo deitar-me onde começam todas as escadas,

Na suja loja de quinquilharias do coração”. [3]

Joyce, Eliot e Yeats à parte, gosto mesmo é das anedotas mais próximas ao cotidiano, como a seguinte em que um aluno lê uma frase que redigiu para a professora (O menino voltou para casa com um clichê na cara), espantando-a. A explicação: “No dicionário clichê é definido como uma expressão esgotada”.


[1] Há uma antiga tradução de  Ivan Pedro de Martins publicada pela Record. O livro tem a colaboração de Wilfred Watson.

[2] “Todos os meios de comunicação são clichês que servem para o homem aumentar a extensão de sua ação, seus padrões de associação e sua consciência”,

[3] “A emoção como uma sonda-clichê desenterra muitos clichês antigos da loja de coisas usadas”.

22/07/2011

Em busca do “eu” russo perdido: Um divisor de águas na obra de Nabokov

VER TAMBÉM NO BLOG:

https://armonte.wordpress.com/2011/07/22/arrebatamento-e-exasperacao-em-dois-movimentos/

https://armonte.wordpress.com/2011/07/22/lolita-e-a-moralidade-saudavel/

https://armonte.wordpress.com/2011/07/22/o-professor-aloprado/

https://armonte.wordpress.com/2011/07/22/alcapoes-invisiveis-de-onde-surge-a-borboleta-esquecida-da-revelacao/

(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos em 28 de junho de 2011)

Jorge Semprun,  morto no início deste mês, representava um determinado e notável segmento de autores que—em alguns poucos casos deliberadamente, porém o mais das vezes compelidos por circunstâncias adversas, como o autor espanhol—tiveram de escrever em outra língua que não a natal. Além de Semprun, podemos citar Joseph Conrad, Samuel Beckett, Milan Kundera, sem contar a terrível situação de Isaac Bashevis Singer, que se resignou a publicar “em tradução” seus originais em iídiche  (na verdade, o próprio Kundera era um escritor basicamente “traduzido”, já que proibido no seu país e escrevendo numa língua minoritária, caso de uma boa parte dos dissidentes do bloco “socialista”).

Apesar de ter uma parte da sua produção em russo, esse foi o caso de Vladimir Nabokov (1899-1977): sua fama é fundamentalmente como escritor da língua inglesa, na qual escreveu suas obras mais admiradas (Lolita, Fogo Pálido, Ada) e para a qual verteu seus primeiros textos em novas versões.

A estréia nabokoviana oficial em inglês se deu em 1941, com A verdadeira vida de Sebastian Knight (The real life of Sebastian Knight),  que de uma forma belíssima retrata a situação dramática configurada acima.

Vinte anos depois, em 1961, saiu uma tradução brasileira (Sebastian virou Sebastião) pela Civilização Brasileira, realizada pelo grande Brenno Silveira.

Vinte anos depois, em 1981, essa mesma tradução (com Sebastian ainda Sebastião) foi relançada pela Francisco Alves, numa coleção que fez história na minha vida pessoal, “A prosa do Mundo”.

E agora, decorridos mais vinte anos, é lançada, pela Alfaguara, nova tradução, realizada por outro craque: José Rubens Siqueira. Já era hora. As duas são tão eficientes que me dei ao luxo de misturá-las nas citações desta minha resenha.

O narrador do romance, V., logo após a morte do escritor Sebastian Knight, revoltado com a biografia grotesca e oportunista do ex-secretário do meio-irmão (as diatribes contra o espúrio biógrafo e os trechos citados estão entre os pontos altos da prosa nabokoviana; após arrasá-lo, ele nos diz: “acho que seria melhor pararmos por aqui. Do contrário, talvez o Sr. Goodman corresse o risco de converter-se numa centopéia. Deixemos que continue quadrúpede”), lança-se numa investigação pessoal para traçar um retrato mais acurado, embora eles—após a fuga da Rússia tornada bolchevista—tenham se afastado (Sebastian foi viver na Inglaterra, tornando-se um requintado e original escritor inglês e V. viveu obscuramente—temos poucos e sombrios relances da sua existência cotidiana—em Paris). São fiapos de informações, indícios, pistas falsas e fugidias: “O que eu sabia de fato sobre Sebastian? Posso dedicar alguns capítulos ao pouco que me lembro de sua infância e juventude—mas e depois? Enquanto planejava meu livro, ficou evidente que eu teria de fazer uma quantidade imensa de pesquisa, encontrando sua vida pedaço por pedaço e soldando os fragmentos com meu conhecimento íntimo de sua personalidade…”

Esse proclamado e suspeito “conhecimento íntimo de sua personalidade”, tendo em vista as reiteradas confissões de distanciamento entre os dois e as lacunas abissais nas relações entre ambos, poderia nos levar à hipótese de que estamos diante de um exercício brilhante da “narrativa não-confiável”, à la Dom Casmurro, em que precisamos desconfiar do que nos é contado. Sem descartar essa interpretação, acho que ganharemos mais vendo na relação entre os irmãos uma alegoria da situação de Nabokov como escritor, tendo de cindir sua bagagem pessoal do exercício da linguagem: ao tornar-se um escritor da língua inglesa, como Sebastian, ele teve de “deixar para trás”, por assim dizer, a sua sombra, seu “eu” russo, o que foi a fonte dos fascinantes exercícios de duplicidade e despistamento da sua obra posterior (na verdade, já presentes–a julgar pelas versões inglesas–na sua primeira fase).

E conforme V. vai perseguindo os passos do irmão, A verdadeira vida de Sebastian Knight vai se tornando mais e mais o livro que Fernando Pessoa escreveria se fosse romancista. Após um momento extraordinário (quando o narrador nos conta sua desesperada tentativa de alcançar Sebastian antes que morresse, uma viagem angustiante, que termina com ele num quarto às escuras velando o meio-irmão e fazendo um pacto unilateral de comunhão fraterna, para depois constatar que foi ludibriado por um destino irônico), lemos aquele que talvez seja o parágrafo mais bonito da ficção contemporânea: “Qualquer que fosse o segredo dele, eu descobri um segredo também, a saber: que qualquer alma pode ser a nossa, se descobrirmos e seguirmos suas ondulações. O Além pode ser a plena habilidade de viver conscientemente em qualquer alma escolhida, em qualquer número de almas, todas elas inconscientes de seu fardo intercambiável. Assim—eu sou Sebastian Knight. Sinto como se estivesse representando seu papel num palco iluminado, com as pessoas que ele conheceu a entrar e a sair de cena… E então a mascarada se encerra…Fim, fim.Eles todos voltam a suas vidas cotidianas (e Clare volta para seu túmulo)—mas o herói permanece, pois, por mais que eu tente, não consigo sair do meu papel: a máscara de Sebastian cola-se ao meu rosto, a semelhança não se dissipa. Sou Sebastian, ou Sebastian não é outro senão eu, ou talvez nós dois sejamos alguém que nenhum de nós conhece”

O PROFESSOR ALOPRADO

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(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 15 de julho de 1997)

Cético e mordaz como era, com relação à cultura contemporânea, Vladimir Nabokov (1899-1977) certamente teria se deliciado com os primários erros de informação do artigo sobre seu romance PNIN (em tradução de Jorio Dauster), assinado por Antônio Querino Neto e publicado pela Isto É da semana passada. Para começar, ele informa que o livro foi publicado em 1953, o que tornaria Pnin um livro futurista, já que contém fatos de anos posteriores. Na verdade, foi publicado em 1957, entre duas obras-primas mais famosas, Lolita (1955) e Fogo Pálido (1962)—neste último, inclusive, aparece um certo professor Pnin. Depois, o cuidadoso articulista informa que só agora o livro chega ao leitor brasileiro através da Companhia das Letras. Então, seria uma alucinação minha (oh! Santo Daime) o exemplar que julgava ter de Pnin traduzido por Pinheiro de Lemos para a Record e que li na minha adolescência, no começo dos anos 80? Uma alucinação tanto mais grave porque extraí duas terríveis certezas da leitura desse exemplar lisérgico, que a vida só fez confirmar, de lá para cá: a primeira, de que a erudição que se encastela num nicho de conhecimento especializado e que tem medo das experiências, das pessoas e dos acontecimentos, não serve para nada; e a segunda, de que por mais que se tente, as diferenças de nacionalidade e cultura acabam por ser um abismo intransponível para a compreensão entre as pessoas, e só a crescente uniformização global é que dá uma ilusão de que os países do mundo podem “entender-se” de fato (uniformidade e nivelamento por baixo não significa concórdia e compreensão).

O personagem-título é, como vários outros, um emigrado da Europa, fugindo ou do mundo stalinista ou do nazismo, ou dos dois, e que incorporou-se como professor de uma universidade provinciana nos EUA dos anos 40 e 50. E, como vários outros emigrados eruditos, não tem o menor respeito pela educação ou cultura norte-americanas. Mas o professor Timofey Pnin talvez seja o mais inadaptado dos emigrados, e o mais ridicularizado.

O livro nos oferece um retrato completo de sua personalidade, desde a sua espantosa erudição, sua ligação obsessiva com a infância na Rússia pré-soviética (os personagens de Nabokov, como o Bentinho de Dom Casmurro estão sempre tentando “atar as duas pontas da vida”), seus acessos de angústia, até os seus aspectos mais ridículos e grotescos, sua infantilidade, sua incapacidade de lidar com as pessoas, sua necessidade de ordenar o mundo à sua imagem, ou como o diz o  narrador (amigo ou inimigo de Pnin? Como saber?), pninizar a realidade.

A incrível capacidade de Pnin, com toda a sua meticulosa bagagem intelectual, de se deixar enredar pelas situações mais aviltantes, antecipa as agruras dos intelectuais dos livros do grande Saul Bellow, como Herzog (1964) e O legado de Humboldt (1975). E todos os cuidados maníacos do professor russo para assegurar sua tranqüilidade e seu encastelamento encontram eco recente nos personagens irritantemente cautelosos de Anne Tyler, por exemplo, o protagonista de O turista acidental (1985).

Além da figura do professor Pnin, Nabokov banha na soda cáustica da sua mordacidade, o mundo universitário, com seus oportunistas que se aproveitam das confortáveis carreiras acadêmicas: o chefe do Departamento de Francês, Blorenge, por exemplo, não sabe francês, e o reitor da Universidade, num discurso, fala da contribuição de homens importantes da Rússia, como Raskolnikóv (que não é outro senão o assassino de Crime e Castigo de Dostoiévski); com suas onerosas pesquisas inúteis, com seus estudantes deslumbrados com palavras da moda; ou então, com seus pilares eruditos em querelas enfadonhas e minúcias inúteis (ficar horas discutindo qual o dia exato em que começa a trama de Anna Karênina de Tolstói, por exemplo).

A mordacidade do autor de Somos todos arlequins vem sempre imersa num banho de estilo. Hoje em dia só a canadense Margaret Atwood obtenha a mesma conjunção graça-ironia, veneno retórico-desdobramento maníaco dos personagens, em livros como Madame Oráculo & Olho de gato.

Para se ter uma idéia do estilo em que Pnin é escrito, basta citar um trecho cruel como o momento em que o professor Pnin é obrigado a arrancar todos os seus dentes apodrecidos: “Surpreendeu-o verificar o quanto era afeiçoado a seus dentes. A língua, aquela foca gorda e lustrosa, costumava deixar-se cair com um baque e deslizar alegre entre os rochedos familiares, conferindo os contornos de um reino ameaçado mas ainda seguro, mergulhando da grota na angra, encontrando um pedaço de alga doce na mesma fenda de sempre; mas agora não restava nenhuma das antigas marcas do terreno, tudo o que existia era apenas uma grande fenda sombria, numa terra incógnita de gengivas…”

Ou, no outro extremo, o momento em que Pnin relembra uma antiga e doce paixão, morta em um campo de concentração (o que mostra o descompasso entre o comportamento folclórico e a vida interior do professor russo): “Pnin se ensinara durante os últimos dez anos a jamais lembrar-se de Mira, não porque, em si própria, a recordação de um caso de amor juvenil, banal e fugaz, ameaçasse sua paz, mas porque, se alguém quisesse realmente ser sincero consigo próprio, não podia esperar que a consciência—e, portanto, a autoconsciência—subsistisse num mundo onde coisas tais como a morte de Mira eram possíveis. Cumpria esquecer, porque não se podia viver com o pensamento de que aquela jovem mulher graciosa, frágil e terna, com aqueles olhos, aquele sorriso, tendo ao fundo aqueles jardins  e campos nevados, houvesse sido levada num vagão de transporte de gado para um campo de concentração… E, como não havia registro da forma exata como fora morta, Mira continuava a morrer muitas mortes na mente dele, ressuscitando a cada vez para morrer de novo, e de novo, levada por uma enfermeira para que lhe inoculassem algo sujo, bacilos de tétano, vidro moído, para ser asfixiada com ácido prússico onde imaginava que ia tomar um banho de chuveiro, para ser queimada viva numa fossa…”

   Talvez só o James Ivory de Vestígios do dia poderia traduzir cinematograficamente essa história melancólica e grotesca de alguém que pertence a um tempo destruído e morto historicamente, e que continua numa sobrevida onde tudo parece desperdício e vazio, onde tudo assume o ar paródico e sinistramente farsesco.

Só falaria, talvez, o peculiar humor nabokoviano. Só ele, aliás, permitiria ao genial autor russo compreender os medonhos projetos de capa que a Companhia das Letras insiste em colocar nas edições que vem lançando das suas obras. Com tais capas, fica parecendo que são obras de um tantã.

Porém, num mundo onde se mata gente das formas como provavelmente mataram a namorada de Pnin, qual a importãncia disso? Talvez a mesma que tenha a data exata em que começa a trama de Anna Karênina.

Lolita e a moralidade saudável

I

Lô. Lola. Dolly. Dolores. Lolita. Variações de um nome obsedante. A portadora do nome deve ser fascinante. Qual o quê! Uma vulgar pré-adolescente norte-americana de cidade interiorana dos anos 40.

Acontece, porém, que o refinado europeu Humbert Humbert se desgraça porque descobre em Dolores Haze a encarnação perfeita da ninfeta, ou seja, como ele nos explica, um demônio sedutor “entre os limites de idade de 9 a 14 anos”. Casa-se com a mãe dela, que providencialmente morre atropelada, e inicia uma louca viagem com a enteada (a partir de certo ponto, amante) “através da colcha de retalhos de 48 estados”. Depois, para manter as aparências (e finanças) fixam-se em outra cidade interiorana, Beardsley, onde Humbert Humbert encontrará num autor teatral, Clare Quilty, seu grande rival.

Lô. Lola. Dolly. Dolores. Lolita. Há livros que, além de geniais, têm uma linguagem tão peculiar, tão própria, tão exuberantemente única (no Brasil, o exemplo óbvio é Grande sertão: veredas) que deixam qualquer empreendimento similar com cara de pastiche, e imitação barata. É o caso de LOLITA, de Vladimir Nabokov, o russo que passou a escrever em inglês e que nessa língua fez coisas que até Deus duvida.

Seus livros são todos inconfundíveis (além da história de Humbert Humbert, vale destacar, entre os traduzidos no Brasil, Fogo pálido, A verdadeira vida de Sebastian Knight, Gargalhada na escuridão, Pnin,  Somos todos arlequins, A defesa), mas ele se superou em Lolita, sua criação mais poderosa.  Bem antes de ter virado um clichê (o livro foi publicado em 1955), como um Hopper das palavras, descortinou o mundo kitsch e desabonador dos motéis, lanchonetes, postos de gasolina e drugstores, entre pequenas cidades e diversões programadas, que caracterizam a vida e a paisagem norte-americanas: “Grande usuária dos banheiros de beira da estrada, minha pouco exigente Lô se encantava com os letreiros que ia encontrando: Eles-Elas, João-Maria, Cavalheiros-Damas e até papai-mamãe; absorto num sonho de artista, eu ficava contemplando o brilho honesto do equpamento dos postos de gasolina contra o pano-de-fundo do verde esplêndido dos carvalhos ou de alguma longínqua colina…resistindo ao oceano agrícola que tentava tragá-la”.

Não se pense com isso que Lolita limita-se a caricaturizar a América. Nabokov não poupa ridículo ou patético para o europeu Humbert (produto de uma miscelânea de nacionalidades, como é comum na sua obra). De fato, em Lolita (ô nome obsedante), nada tem mão única. A narrativa do homem de 38 anos enfeitiçado sexualmente pela garota de 12 atravessa maisque os 48 estados: atravessa o coração da promiscuidade da nossa época, que se contrapõe ironicamente ao delírio maníaco do narrador, impregnado pelo próprio “veneno retórico”, como Nabokov caracterizou no prefácio de um romance da sua primeira fase como escritor, Desespero.

Há, pois, uma miraculosa encruzilhada artística nessas estradas, juntando observação satírica, verve e veneno que torna Humbert Humbert, que não consegue dominar Lô, um mestre das palavras, que usa e abusa para poetizar e racionalizar sua obsessão.

Os leitores brasileiros já puderam se apaixonar há muitos anos por Lolita através da inspirada tradução de Brenno Silveira. Bem-vinda, contudo, a nova e esplêndida versão de Jorio Dauster (tradutor do também extraordinário Fogo Pálido, o único título na obra nabokoviana que pode rivalizar com a história da ninfeta paradigmática). Pena que a Companhia das Letras tenha colocado uma capa pouco feliz, como fizeram sempre com o livro aqui no Brasil, à exceção de uma edição da Abril Cultural que reproduzia o quadro O velho jardim, de Graham Ovenden. Também a orelha do superestimado Ivan Lessa não é boa, saiu fútil em demasia.

O tempo confirmou que a doença, fonte da pedofilia, encontra eco na permissividade de um mundo onde todos se oferecem como objetos e acabam marionetes de um teatro de sombras, os nomes sendo mera palavras-fetiche desdobrando-se incessantemente (Lô.Lola. Dolly. Dolores. Lolita) no vácuo da nossa cultura.

(resenha publicada originalmente, em A TRIBUNA de Santos,  em 23 de agosto de 1994)

II

Vladimir Nabokov afirmava, a respeito de sua obra prima LOLITA (1955), que um livro só tem valor se nos oferecer “volúpia estética”: não procuremos extrair lições morais de uma obra literária. Mesmo concordando com o autor russo, é impossível deixar de apreciar a ironia do tempo, pois LOLITA prefigurou o grande pesadelo moral do fim do século: o culto da pedofilia.

Humbert, o “mártir da combustão interna” (como ele mesmo se define), é o intelectual europeu tarado por ninfetas que passa a residir nos EUA. Na pequena Ramsdale hospeda-se na casa de Charlotte Haze e apaixona-se pela filha dela (de 12 anos). Casa-se com Charlotte, que morre atropelada, e inicia com a enteada uma viagem sem fim pelo país. Após um ano, eles fixam-se noutra cidadezinha, Beardsley, onde o ciumento Humbert tenta controlar a vida de Lolita, embora ela acabe sempre driblando a vigilância (o suficiente para conhecer Clare Quilty, que será assassinado pelo padrasto da ninfeta).

Humbert leva-a para outra viagem, na qual ela desaparece. Só irá reencontrá-la anos depois, quando ela já estiver casada com um providencial panacão. E então ela revela a Humbert a identidade do seu rival (Quilty).

Nabokov escreveu uma demolidora comédia sobre o modo de vida americano e também nesse aspecto mostrou-se um gênio profético, ao intuir  a grande mistura que caracteriza nossa época: vulgaridade e uniformidade.

Professores, donas de casa, adolescentes ginasianos, artistas, tarados, ninguém escapa do crivo venenoso de LOLITA, um livro sobre a perversidade, onde a linguagem também é perversa, porque a monstruosidade do ninfetômano Humbert é lúcida: “no curso de um só dia eu passava de um pólo de insanidade a outro –do pensamento de que por volta de 1950 teria de livrar-me sabe-se lá como de uma adolescente difícil, cuja mágica ninfescência se teria evaporado, ao pensamento de que, com sorte e paciência, eu poderia fazer com que ela eventualmente gerasse uma ninfeta que teria o meu sangue correndo em suas delicadas veias, a Lolita II, que teria uns oito ou nove anos em 1960; na verdade, a faculdade telescópica de minha mente, ou de minha demência, era tão forte que me permitia divisar, no horizonte do tempo, o excêntrico Dr. Humbert, carinhoso e salivante Dr. Humbert, praticando com a soberbamente adorável Lolita III a arte de ser avô”.

E a própria musa do poeta Humbert, a personagem-título? Pelo viés da narrativa, se é que não temos uma visão distorcida, como acontecia com Capitu, em Dom Casmurro, vemos como ela representa a permissividade pura, onde o sexo é negociado, é uma transação, que envolve um cinismo talvez pior do que a deformidade moral de Humbert.

Ele é um tarado; ela, o resultado de uma cultura toda permissiva e imoral, que se recobre de uma pseudomoral e permite que tudo seja possível. Por isso, nada mais escarninho, sarcástico e zombeteiro do que a cena em que a diretora “avançadinha” da escola onde Lolita estuda dá um sermão para o severo pai Humbert,o qual impede que sua filha mantenha relacionamentos “saudáveis” com rapazes, para o bem do seu desenvolvimento sexual.

Aliás, não faltam em LOLITA  cenas inesquecíveis. Basta lembrar da noite em claro que Humbert passa ao lado da enteada na cama, antes de eles se tornarem amantes. Poucas vezes a expectativa amorosa e sexual foi tão bem descrita.

É por isso que adotarei a atitude “não vi e não gostei” com relação ao filme realizado pelas temerárias mãos de Adrian Lyne. Depois de uma versão mais-que-perfeita de Kubrick, com James Mason irretocável (além da estupenda Shelley Winters como a mãe; só não gosto mesmo no filme do excessivamente histriônico Peter Sellers como Clare Quilty, acho que ele está over demais para o tamanho do seu personagem) por que ver Jeremy Irons em mais um papel de fissurado sexualmente (após Perdas & Danos, M.Butterfly e Beleza roubada)? Alguém ainda aguenta, apesar do grande ator que ele é, vê-lo babando por um objeto de desejo transgressor? LOLITA traduzido em imagens por Adrian Lyne é realmente o triunfo de tudo o que Nabokov satirizou num dos melhores romances do século XX.

(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 15 de setembro de 1998)

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ARREBATAMENTO E EXASPERAÇÃO EM DOIS MOVIMENTOS

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PRIMEIRO MOVIMENTO – EXASPERAÇÃO

Depois que lançou Fogo pálido (1962), uma das suas obras mais brilhantes, e certamente a mais original, Vladimir Nabokov dedicou-se a reescrever em inglês seus primeiros livros (de quando ainda era um emigrado russo na Alemanha), a publicar uma polêmica (e, ao cabo, muito mal-afamada) tradução do Eugene Oneguin,  de Puchkin (que causou o rompimento da sua amizade com o mais famoso crítico norte-americano, Edmund Wilson, numa verdadeira competição de vaidades), até que surgisse em 1969 seu romance mais extenso e ambicioso, Ada ou Ardor.

Nas últimas semanas foram comentados neste espaço dois textos cujos narradores são nonagenários: Memórias de minhas putas tristes e Malone morre. Coincidentemente, no livro de Nabokov que está sendo lançado no Brasil pela Companhia das Letras, numa esplêndida tradução de Jorio Dauster, (a anterior não era ruim, mas descuidada, ou editada com descuido), Van Veen é também um narrador nonagenário a nos evocar sua paixão incestuosa pela meia-irmã, Ada, desde os seus 15 anos (e ela 12). Uma paixão sob signo duplo, “mescla de arrebatamento e exasperação”, que pode caracterizar também a experiência de leitura de Ada.

Deixemos para a outra seção o arrebatamento (que torna o livro o maior lançamento de 2005). Comecemos com a exasperação. Há até pouco tempo, apesar de adorar a ficção nabokoviana pré e pós Ada (pois ele ainda publicou dois romances incríveis, e infinitamente menos pernósticos, Coisas transparentes e Look at the harlequins- Somos todos arlequins, antes de morrer em 1977), eu o achava um livro praticamente ilegível.

Entre outros motivos, porque a narrativa mostra uma visão de mundo esnobe, como se todo o mundo fosse uma fantasmagoria em torno de algumas poucas criaturas aristocráticas e sensíveis  (até então Nabokov tinha o cuidado de temperar seu elitismo implacável com uma visão crítica dos seus próprios protagonistas, seres intoxicados pela beleza, mas deveras lamentáveis). Além disso, ele a satura com mil trocadilhos, alusões, citações e  demonstrações do chamado schadenfreude (prazer malicioso com a desgraça ou a incompetência alheia), do qual Edmund Wilson o acusava (criticando seus “maus modos literários”).

Claudica-se num texto sobrecarregado por frases em francês e russo,  saturado por um clima de ficção científica: estamos na Antiterra (a Terra seria uma espécie de mito, um Além esotérico para os antiterráqueos), numa “geografia barroca”: um país que mistura as características da Rússia pré-soviética (ou seja, do século XIX), evocada com grande nostalgia, e dos EUA do século XX.  Vemos, então, grandes propriedades rurais ao modo de Tolstoi (seu Ana Karênina é parodiado logo de início) e uma tecnologia de tempos posteriores (apesar de ser um mundo onde a eletricidade foi banida, dando origem a estranhos aparelhos).

Isaiah Berlin matou um pouco a charada do aspecto exasperante, quase sufocante e intolerável, que reveste a leitura de Ada ao afirmar (sobre a tradução do poema de Puchkin): tem todos os defeitos de um virtuose auto-intoxicado com um vasto talento narcisístico”. Na mesma linha, e levando-se em conta de que se trata de um romance extraordinário e inovador, pode-se concordar perfeitamente com Alexander Gerschenkron: É deplorável que o grande esforço de Nabokov tenha sido tão tristemente distorcido em nome da decisão de ser original a qualquer custo…sendo maldosamente pedante, desabridamente emocional e vítima da própria egolatria desenfreada”.

(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em primeiro de outubro de 2005)

SEGUNDO MOVIMENTO- ARREBATAMENTO

“Quero examinar a essência do Tempo, não sua passagem, pois não creio que sua essência possa ser reduzida a seu transcurso. Quero acariciar o Tempo.

  Pode-se amar o Espaço e suas possibilidades: tome, por exemplo, a velocidade, o acetinado e o zunido da espada da velocidade, a glória aquilina de domar a velocidade, o grito de alegria da curva… Eu me deleito sensualmente com o Tempo, com seu estofo e sua largura, com o caimento de suas dobras, com a própria impalpabilidade de sua gaze cinzenta, com a brisa fresca de seu continuum… Bem sei que todos que tentaram alcançar o castelo encantado se perderam na obscuridade ou atolaram no Espaço…”

Na seção passada, a propósito de um dos grandes lançamentos do ano, a tradução de Jorio Dauster para Ada ou Ardor, foram levantados os aspectos negativos do livro: visão esnobe da vida, auto-indulgência do autor e dos protagonistas (um casal de meio-irmãos envolvidos num amor incestuoso), saturação pernóstica da narrativa.

Trata-se do livro mais ambicioso de Vladimir Nabokov, em que ele tentou igualar a ousadia de um Ulisses, de Joyce, ou a amplitude de Em busca do tempo perdido, de Proust. Lembra mais, no entanto, O jogo da amarelinha, de Júlio Cortazar, ou Avalovara, de Osman Lins,  romances onde aspectos geniais convivem com uma incômoda artificialidade, não da estrutura, mas de certas escolhas pontuais, que parecem mais exibicionismo técnico do que uma necessidade orgânica.

Entretanto, ao narrar cem anos da história da família de Van e Ada, misturando elementos do século XIX e XX, da Rússia e dos EUA (e mesmo de certos países da Europa) numa “geografia barroca”, projetando o espaço para outro planeta, Nabokov, a quem se pode acusar de antipaticamente esnobe, também faz valer outro aspecto do seu aristocratismo, moral e estético: o requinte com que descreve o amor, a paixão e o erotismo. Um requinte que não foge dos detalhes fisiológicos, incorporando-os de maneira sensacional e intensamente real, um efeito desconcertante num livro em que as armadilhas e reconstruções da memória é que dão o tom (“naquele momento, ele cuidava de colecionar as imagens de que se relembraria no futuro”).  Nesse sentido, poucas cenas da ficção  são tão genuinamente eróticas como aquelas em que Van narra a tortura excruciante da sua excitação ao ficar debruçado sobre a “prima” enquanto ela desenha insetos, sua paixão. Sem contar a extraordinária primeira vez em que a mãe dela e o pai dele transam, entre cenas de uma peça na qual ela é a estrela ele, ao possuí-la fica maravilhado “com o breve abismo de absoluta realidade entre duas falsas figurações de vida fictícia”. Que estilo!

E, apesar dos seus excessos, a própria narrativa de Ada é de um requinte inexcedível, com o desdobramento de Van em 1a. e 3a. pessoa, e com comentários de Ada entremeando-se no fio da sua evocação do passado familiar.

(resenha publicada  originalmente em A TRIBUNA de Santos, em oito de outubro de 2005)

Alçapões invisíveis de onde surge a borboleta esquecida da revelação

 

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Quando comentei O grande Gatsby em resenha anterior, não obstante o lançamento oportuno de duas novas traduções do romance e minha admiração por ele, foi muito em função de ele ser o núcleo de uma das partes de Lendo Lolita em Teerã,  livro que mostra a fidelidade à literatura mesmo no momento mais adverso. Embora a obra de Azar Nafisi aborde, além de Fitzgerald, textos de Henry James e Jane Austen, seu centro mesmo, a partir do título, e mesmo porque a autora iraniana é especialista nele, está em Vladimir Nabokov (1899-1977).

Lolita (1955), um dos livros que mais amo, será preterida aqui por outra obra-prima nabokoviana, Fogo Pálido (1962), cuja tradução (realizada com uma perícia incrível, por Jorio Dauster & Sergio Duarte) acaba de ser reeditada pela Companhia das Letras, quase 20 anos após ter sido um memorável acontecimento editorial (e pessoal) de 1985, ao ser lançada pela Guanabara. Ainda lembro da minha primeira leitura, que coincidiu com a vitória de Jânio Quadros sobre Fernando Henrique Cardoso na disputa pela prefeitura de São Paulo.

Nabokov conseguiu aquele feito raro: o romance absolutamente original. Seu narrador (nada confiável), Charles Kinbote (ou um mero professor Botkin!) se apropria do último manuscrito do célebre John Francis Shade, justamente o poema intitulado Fogo Pálido, pois acredita que ele contenha elementos da sua própria biografia. Decepcionado ao descobrir que se enganara, edita o poema com um aparato crítico (prefácio, notas, índice remissivo) –que forma a estrutura do romance—cuja finalidade manifesta é desentranhar do poema de 999 versos decassílabos as referências a ele mesmo, Kinbote. Supostamente, ele seria o exilado, erudito e sodomita rei de Zembla, destronado por uma revolução e perseguido por um assassino esquerdista, Gradus, que acabaria por matar Shade.

Seria isso verdade? Ou seria a loucura de um megalômano intelectual que despreza o meio universitário e acadêmico em que vive (descrito, aliás, de forma engraçadíssima e mortífera). Em Lendo Lolita em Teerã, Azar Nafisi justifica sua  “relação especial” com Nabokov, “a despeito das dificuldades de sua prosa”: “Seus romances são moldados em torno de alçapões invisíveis, lacunas repentinas que constantemente puxam o tapete sob os pés do leitor. Eles são repletos de desconfiança sobre o que chamamos de realidade da vida diária, um senso aguçado da inconstância e fragilidade daquela realidade”. O “rei” de Zembla nos diz, por sua vez: “…sei fazer algo de que somente um artista é capaz: lançar-me sobre a borboleta esquecida da revelação, afastar-me abruptamente do hábito das coisas, ver a teia do mundo e a trama dessa teia”.

E através dele Nabokov proporciona uma das maiores experiências de leitura da história da ficção: perde-se muito com a leitura linear de Fogo Pálido, é preciso dizer. Muito mais fascinante e proveitoso é seguir o seu ritmo louco, aberto e caleidoscópico (a borboleta esquecida da revelação): uma nota remete à outra, e obriga sempre a reler os trechos do poema, sem contar as vezes em que nos leva ao índice remissivo. Por exemplo, o comentário do verso 17 remete à nota sobre o verso 596, que remete  aos versos 628 a 631 etc etc… Estamos longe, decerto, da “placidez da erudição” que, alega Kinbote, alimenta seus comentários. Estamos mesmo é sob a majestade da palavra poética, esta sim bastante real. Como ele prova triunfalmente ao mostrar a movimentação do assassino Gradus rumo à consumação do destino de John Francis Shade: “Embora Gradus usasse os mais variados meios de transporte…. a força que o impulsiona é a ação mágica do poema de Shade, o mecanismo e o ímpeto próprios dos versos, o poderoso motor do decassílabo. Nunca antes o avançar inexorável do destino recebeu forma tão sensual”. Ou ainda: “Acompanharemos Gradus  constantemente em nossos pensamentos, enquanto ele se desloca da longínqua e indistinta Zembla aos verdes Apalaches, ao longo de todo o poema, seguindo os caminhos de seu ritmo, cavalgando uma rima, dobrando a esquina de um enjambement, tomando fôlego num hemistíquio… escondendo-se entre duas palavras, desaparecendo no horizonte de um novo canto, aproximando-se sempre no compasso da métrica…”

Se a loucura tem esse estilo, quisera eu ser rei em Zembla.

(rezembla publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 18 de dezembro de 2004)

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