MONTE DE LEITURAS: blog do Alfredo Monte

31/07/2018

HOMENAGEM A HILDA HILST

 

(Uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos em 31 de julho de 2018)

Um dos privilégios da minha vida foi ter conhecido Hilda Hilst (a grande homenageada da FLIP 2018). Aos 20 anos, visitei a Casa do Sol, o sítio onde vivia. Era apaixonado por sua obra, que estava no auge, com a publicação da novela “A Obscena Senhora D” e os poemas de “Odes Mínimas” e “Cantares de Perda e Predileção”. O clímax inesquecível da visita foi a leitura em voz alta do ainda inédito “COM OS MEUS OLHOS DE CÃO”, publicado no ano seguinte (1986).

“COM OS MEUS OLHOS DE CÃO” trata-se de outro ponto alto da sua produção, cujo protagonista, Amós Keres, foi uma criança que fazia sempre perguntas incômodas, impressionado com a morte e a presença do sofrimento no mundo. Fortemente reprimido pelo pai autoritário, ele aos poucos calou em si essas perguntas, mergulhando no estudo da matemática, constituindo família, tornando-se professor universitário. Um dia, no alto de uma colina, ele tem uma visão epifânica e a partir daí ficarão esgarçadas todas as suas relações com um mundo mentiroso, sentimentalizado e complacente. Ele fica “alheio” nas aulas (os alunos se retiram e deixam recados jocosos na lousa), passa a sentir repulsa pela mulher e o filho, parece estar sempre com um sorriso desdenhoso (o que o mete em confusões) e a cabeça inclinada e seu único interlocutor é um amigo, Isaiah, que vive maritalmente com uma porca. Ao cabo, Amós decide voltar à casa da infância, com muito de rural ainda, e viver nos fundos do quintal, como um bicho, um ser desnudado, descobrindo também que o pai tinha os mesmos assomos de descortinamento do coração selvagem da vida: “que esforço para tentar não compreender, só assim se fica vivo, tentando não compreender”.

Não se pense que o texto é assim coeso, unívoco. Como sempre em Hilda Hilst, tudo vem numa forma agônica, emaranhada e intrincada, na qual todos os gêneros são misturados e a escatologia permeia todas as instâncias da condição humana (para se ter uma ideia, Amós Keres gostava de estudar matemática num puteiro), com a influência de Otto Rank & Ernest Becker de que vivemos sob o terror da morte e da nossa analidade “… Amós Keres. Inocente como um pequeno animal-criança olhando o Alto. Mas dizem que o Alto é o nada e é preciso olhar os pés. E o cu também. Com um espelho. Estou olhando. Impossível esquecer grotesco e condição”.

Plínio Marcos com Samuel Beckett. O leitor que se prepare, pois tem de estar disposto. Com essa obscena Senhora H, é tudo ou nada.

“Daqui onde estou posso ouvi-lo pensando da lucidez de um instante à opacidade de infinitos dias, posso ouvi-lo pensando nas diversas formas de loucura e suicídio. A loucura da busca, essa feita de círculos concêntricos e nunca chegando ao centro, a ilusão encarnada ofuscante de encontrar e compreender. A loucura da recusa, de um dizer tudo bem, estamos aqui e isto nos basta, recusamo-nos a compreender. A loucura da paixão, o desordenado aparentando ser luz na carne, o caos sabendo à delícia, a idiotia simulando afinidades. A loucura do trabalho e do possuir. A loucura do aprofundar-se depois olhar à volta e ver o mundo mergulhado em matança e vaidade, estar absolutamente sozinho no mais profundo. Amós está? Daqui onde estou posso ouvi-lo pensando como devo matar-me? Ou como devo matar em mim as diversas formas de loucura e ser ao mesmo tempo compassivo e lúcido, criativo e paciente, e sobreviver? ”.

 

29/05/2018

A IMPRUDÊNCIA MAJESTOSA DE PHILIP ROTH

(Uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos em 29 de maio de 2018)

Já disse que John Updike e Philip Roth eram o Tolstói e o Dostoiévski da literatura americana. Updike se foi há alguns anos, seu “outro” judaico morre agora, aos 85 anos, deixando uma obra vasta e majestosa, da qual nenhuma resenha daria conta. Por isso, escolhi o meu favorito entre tantos títulos marcantes (“O complexo de Portnoy”, “O Ghost Writer”, “Pastoral Americana”, “O avesso da Vida”, por exemplo).

Um dos aspectos fabulosos de “O TEATRO DE SABBATH”, é o fato de o romance ter 544 páginas e toda a história praticamente ser contada nas primeiras cinquenta. O leitor fica a se perguntar o tempo todo: como Roth vai dar conta do recado? (Preencher e rechear as páginas que faltam) e, quando dá por si, leu o texto inteiro deliciado e maravilhado com o virtuosismo do genial escritor norte-americano.

“O TEATRO DE SABBATH” mostra um artrítico ex-titereiro (isto é, manipulador de fantoches) judeu que é a chaga da cidadezinha chamada Madamaska Falls, na Nova Inglaterra. Aos 64 anos, tem uma esposa alcoólatra e uma voluptuosa, opulenta amante, a qual descobre estar com câncer. E principalmente uma reputação de obscenidade.

Quando Drenka (a amante) morre, Sabbath passa a ir diariamente até o seu túmulo masturbar-se (e descobre que outros amantes de Drenka fazem o mesmo). Nesse ínterim, recebe a notícia da morte de um ex-conhecido do mundo teatral, em Nova Iorque. Ele hesita em ir ou não prestar suas homenagens, até que, após um confronto com a atual esposa, a cerimônia fúnebre torna-se uma perspectiva atraente. E é a partir daí que Roth, como romancista, mostra que tinha todos os trunfos na manga, e pode jogar à vontade com as informações que já fornecera ao leitor, sobre o passado do seu protagonista.

Nada, absolutamente nada, é desperdiçado no livro. Tudo oferece chance para cenas brilhantes e impagáveis, na qual Sabbath destila sua sexualidade politicamente incorreta e afrontosa. Nunca convide Sabbath para passar a noite em sua casa, leitor. Ele pode ocupar seu tempo vasculhando a roupa íntima das suas filhas, masturbando-se com as calcinhas delas ou fazendo propostas indecentes à sua esposa.

Demolindo a caretice e o conformismo triunfantes nos tempos modernos (e que se acreditava terem sido deixados para trás), a obra-prima de Roth faz com que Sabbath sempre fique no limite do intolerável, do inconveniente, do inapropriado. Herói de uma incipiente contracultura, nos anos 50, ele é um desconforto ambulante na década de 90, uma espécie de Rei Lear da sexualidade (não faltam alusões shakespearianas em “O TEATRO DE SABBATH”), despojado de tudo a não ser do seu pênis. Que continua dando trabalho a todos, ao dono e as pessoas que lidam com ele.

O maravilhoso em Philip Roth é que ele nunca cai na autoindulgência com a sexualidade masculina (tal como um Charles Bukowski). Seu talento corrosivo não poupa o próprio discurso libertário e abusado do sexômano sexagenário, que, mesmo assim, vem trazer uma lufada de ar fresco e um tempero picante, com sua degradação e sua inconveniência, a nossos tempos de “sexo seguro” (e tudo o mais totalmente inseguro e líquido): “Sem esposa, sem amante, sem tostão, sem profissão, sem casa… e agora, para coroar tudo isso, em fuga. Se não fosse velho demais para voltar para o mar, se seus dedos não estivessem aleijados, se Morty tivesse sobrevivido e Nikki não fosse louca, ou se ele mesmo não fosse louco também, se não houvesse guerra, loucura, perversidade, doença, estupidez, suicídio e morte, existiria alguma chance de Sabbath estar em uma situação bem melhor”.

Como o narrador mesmo nos diz, “os 64 anos de vida de Sabbath o haviam, muito tempo antes, liberado da falsidade do bom senso”. Sabbath possui “o talento que um homem arruinado tem para cometer imprudências… o poder de ser alguém que nada mais tinha a perder”.  Tanto é, que perto do final, quando desistiu de cometer suicídio (para o qual estava se preparando boa parte da narrativa), por motivos que só uma leitura desse romance obrigatório (como tantos outros de Philip Roth) pode esclarecer, ao provocar o filho de Drenka, um policial, para que ele o execute, ele se resume da seguinte forma: “Sou um cara imprudente. Para mim, também é uma coisa inexplicável. Isso substituiu praticamente tudo o mais na minha vida. Parece constituir o único objetivo do meu ser”. Melhor para nós, leitores.

 

08/05/2018

QUARENTA ANOS SEM OSMAN LINS

 

(Uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos em 08 de maio de 2018)

Há 40 anos perdíamos um de nossos maiores escritores, Osman Lins. Morte precoce, mas pouco antes ele publicara sua obra-prima, “A RAINHA DOS CÁRCERES DA GRÉCIA”.

Num país bloqueado (estamos nos anos “barra pesada” da ditadura militar), o narrador refugia-se num diário no qual procura analisar o romance inédito “A RAINHA DOS CÁRCERES DA GRÉCIA”, deixado pela sua falecida amante, Julia Enone, a respeito de uma “irmã em destino” da Macabéa de “A hora da Estrela” (1977), de Clarice Lispector, também nordestina e miserável, chamada Maria de França, a qual passa anos da sua vida pleiteando um benefício do antigo INPS, em vão, não conseguindo romper a temível malha burocrática, mesmo porque não tem instrução ou equilíbrio psicológico (passa por períodos de loucura e internação): “Fazem-lhe, ainda na Riachuelo, nova sugestão: recorrer à Assistência Judiciária, antes obtendo atestado de pobreza. Ela ouve o conselho, desce as escadas, as escadas sujas, repetindo-o. Ao chegar embaixo, já se esqueceu de tudo. ”

Tanto quanto o jogo metalinguístico fascinante, “A RAINHA DOS CÁRCERES DA GRÉCIA” impressiona por sua dimensão política, apesar da sombria constatação do seu protagonista: “Assim, coincide melhor com as linhas gerais do romance outra visão –mais chã—do isolamento do escritor, não voltada para ele, e sim para a sociedade, que o recusa. ”

Inseto cavando sem alarme, perfurando a terra, escavando na obra de Julia Enone, sua orquídea antieuclidiana para desatar o labirinto (mito arquitetônico que foi um dos vários legados da civilização grega), o narrador comenta e transcreve notícias de jornal, nunca se referindo diretamente ao regime militar. Nenhuma obra dos anos 70, entretanto, captou tão poderosamente o clima opressivo da época e a degradação da informação enquanto valor na nossa sociedade, pois a maioria dos ficcionistas optou pela simplificação do “romance-reportagem” (“Infância dos Mortos”, “O crime antes da Festa”, “Lúcio Flávio”, “Acusado de Homicídio”, alguém lembra desses títulos?), onde, na tentativa de driblar a censura e oferecer um “retrato” da realidade nacional, o supostamente factual e referencial sufocava a narração e acabava-se reconfortando o leitor, mais do que o levando a uma atitude crítica, ao perseguir uma impressão de veracidade absoluta.

Flora Süssekind radiografou muito bem essa perspectiva naturalista e redutora no seu memorável estudo “Tal Brasil, qual romance? ” Ora, ao eleger a distorção dos fatos, até do espaço narrativo (Julia Enone funde Recife e Olinda como se fossem uma cidade só), o narrador de “A RAINHA DOS CÁRCERES DA GRÉCIA” dinamita essa mentira referencial, do que é “baseado na vida real”, e firma com o leitor um pacto ficcional, em que se finge a dor que deveras se sente. Ao descascar camadas e camadas de artifícios narrativos, ele nos transmite muito mais realidade (transbordante, simbólica, delirante que seja) do que qualquer medíocre relato de casos da época. É o triunfo do romance, mundo imerso no mundo, e, em última instância, da verdadeira literatura, sobre a reportagem que se disfarça (mal) de ficção.

16/01/2018

A MORTE DE CARLOS HEITOR CONY

 

(Uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos em 16 de janeiro de 2018)

Sempre digo que não dá para ler tudo nem gostar de tudo. Mesmo assim, com a morte de Carlos Heitor Cony, fiquei perplexo ao constatar quão pouco li de sua obra, apenas dois livros: “ROMANCE SEM PALAVRAS” e “Matéria de memória”.

Acho genial o título “ROMANCE SEM PALAVRAS”. Queria saber como ele solucionou o paradoxo. O narrador relata a estória aparente, ligada à ditadura: ele dividiu a cela com um padre, Jorge Marcos, barbaramente torturado. Com a ajuda de Iracema, sua grande paixão consegue libertá-lo. Jorge Marcos desiste de seus votos religiosos e casa com a Iracema. Beto, o narrador, acompanha ao longo dos anos o aburguesamento do casal.

Mas há sempre a sombra do triângulo amoroso, pois Iracema é sempre esquiva, além de ambiciosa, Jorge Marcos se aproxima novamente da religião: “Iracema foi promovida. Diziam que fora rebaixada para cima, perdera fatias de poder na empresa mas fora compensada com um cargo mais alto e de melhor remuneração. Quando soube disso, desconfiei que ela própria manobrara no sentido de obter essa queda para cima”. Mais adiante: “—E o seu romance? Falta muito para terminar? – Não vou terminar nunca. Falta muita coisa para acontecer na minha vida… coisas sem palavras…”.

ROMANCE SEM PALAVRAS” se torna digno de Machado de Assis e Nabokov: “Foi uma visita apressada, nem tive tempo de avisá-la. Bati em seu apartamento, em Higienópolis, um prédio dos mais antigos do bairro. Ela veio abrir, ficou espantada quando me viu. Falou meu nome nem alto: — Beto! Que surpresa! Ouvi um barulho na sala ao lado, de alguém que se retirava às pressas. Enquanto beijava Iracema no rosto, vi o vulto desaparecer”.

De quem é o vulto? Aqui permanece o mistério tanto quanto o de eu ter lido tão pouco Carlos Heitor Cony.

05/12/2017

OS SETENTA E CINCO ANOS DE MARIA VALÉRIA REZENDE

Filed under: Homenagens — alfredomonte @ 19:19
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(Uma versão da resenha abaixo foi publicada originamente em A TRIBUNA de Santos em 05 de dezembro de 2017)

Prestes a completar 75 anos (em oito de dezembro), a santista, paraibana, vastomundense Maria Valéria Rezende, recebeu o mais polpudo prêmio brasileiro, o São Paulo de Literatura. Talvez agora as pessoas se apercebam que ela é o nosso José Saramago. Ambos começaram tardiamente, contudo na plenitude de seus recursos de linguagem.

Já no seu primeiro e emblemático livro, “Vasto Mundo”, ela apresentava um universo completo, o mundo rural de Farinhada. Recentemente, ela unificou esse mar de estórias num romance na linhagem de “O Povoado”, de William Faulkner.

Seu segundo livro “O Voou da Guara Vermelha”, reafirma a necessidade de narrar o vivido para lhe dar um sentido e traz o tema atualíssimo do trabalho escravo. “Um corpo de homem aguenta mais do que a gente imagina, por vontade de viver, mas a alma é outras coisas, vai morrendo mais depressa quando perde a esperança”. Um decreto indecente tornou mais verdadeira e contundente esta frase.

Logo a seguir veio a coletânea “Modos de Apanhar Pássaros a Mão”, com temática mais urbana e técnicas diversas. Tinha até um vampiro que se apaixonava por nossas churrascarias.

Porém, durante uma década ela mergulhou na literatura infanto-juvenil, fora as traduções. Sua produção nessa área é excelente, mas eu temia que sua obra adulta caísse no esquecimento então apareceu o avassalador “Quarenta Dias”, tratando das pessoas “invisíveis” das grandes cidades. Ganhou o Prêmio Jabuti de romance e livro do ano. E com sua obra-prima “Outros Cantos”, sua produção adulta firmou-se de vez.

Um ponto que une Maria Valéria e Saramago é que eles nos reconectam à humanidade, ao que deveríamos ser. Por essa razão considero o conto “O Muro” (premonitório se pensarmos em Donald Trump) a chave de sua obra, uma mulher que escolhe o descenso social e a ascensão espiritual, isto é, fraternal: “Nem pensei em voltar para a passagem no muro. Deus atirou-me para dentro de seu samburá de estreita boca, já não me debato. Soube logo que subiria, mas não por qual caminho, até que vi, pouco mais adiante, numa parede suja daquele mesmo beco, a marca do menino magro, fresca e brilhante, um fio de vermelho líquido ainda escorrendo. O único sinal que eu, vagamente, podia interpretar, neste mundo estranho onde nunca antes sequer imaginei penetrar. Meti-me pela viela que, alguns metros adiante, ao topar com uma parede de zinco e madeira carcomida, quebrava-se para a esquerda. Ninguém. Tive a impressão de que já não havia mais ninguém nesse labirinto, só eu e o menino pichador, porque pouco antes de que o caminho se bifurcasse, mais acima, vi outra vez a rubra assinatura. Sem outro fio senão aquele para guiar-me, eu o segui. Hesitei na bifurcação, mas ela estava lá outra vez, a marca, dizendo-me que lado escolher, direção que tomei sem mais duvidar, entranhando-me na armadilha das ruelas intrincadas”.

 

18/07/2017

A MORTE DE ELVIRA VIGNA, UM GÊNIO LITERÁRIO

Filed under: Homenagens — alfredomonte @ 14:03
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(Uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos em 18 de julho de 2017)

No café, em João Pessoa, depois da apresentação do seu novo livro, POR ESCRITO, e de um sanduíche, Elvira Vigna espera os chuviscos passarem e espia para ver o que vai acontecer ainda… Chega uma senhora e pergunta:

__ Então, está satisfeita?

__ Satisfeita, eu, não! Nunca!

__ Mas por quê?

__ Acho que é porque eu quero demais da vida.

__ E o que é que você quer agora?

__ Tempo, acho que a gente sempre precisa de mais tempo.

A senhora foi embora… depois informaram à Elvira: era a dona do Café! Queria saber se ela gostara do sanduíche.

No dia seguinte, nem abriu o jornal para não ver a manchete inevitável: “Proprietária de café se suicida em João Pessoa”.

Rigorosamente verídico, o diálogo acima é um típico-Elvira (para usar uma expressão cunhada por ela mesma) ao vivo!  Poderia estar em qualquer um de seus romances.

Cada vez mais, tenho a certeza de que Elvira Vigna era um gênio literário, como Juan Carlos Onetti e Samuel Beckett. Seu primeiro livro, “Sete Anos e Um Dia”, era uma crua e áspera alegoria dos anos de “abertura”. Mas seu primeiro sucesso, marcando uma intensa parceria com a Companhia das Letras, foi “O Assassinato de bebê Martê”, o qual começa a desvendar o universo dos emergentes, principalmente mulheres que se reinventavam, carregando o peso do passado, como o Brasil. Aí veio a sequência “Às Seis em Ponto”, “Coisas que os Homens não Entendem”, “Deixei ele lá e vim”, “Nada a dizer”, “O que deu para fazer em matéria de história de amor”.

Aí veio sua obra-prima, POR ESCRITO, onde o agônico superava o cáustico: “De antemão, decido. Vou tentar botar isso aqui no passado, com os verbos no passado. Não sei se vou conseguir.  Já tentei antes, mas não consigo deixar essas coisas no passado, aliás nem sei se existe isso, o passado. Acho mesmo que é como se eu estivesse num espaço assim, meio sem contorno marcado, em que as coisas entram e saem, em que os tempos convivem, Molly dança com um cara grande e quando ela dança, ela também, ao sentir a pressão do pau dele contra seu corpo, haverá de lembrar de outro pau, mais fino, mais ardido, ela também presa, dessa vez não pelas mãos grandes que a enlaçam, mas pela trama de uma colcha de rendão nas suas costas e aquele outro cara também vai estar lá, no espaço que também é meu e não só dela, todos juntos, os tempos todos juntos”.

E quem imaginaria que ela radicalizaria mais ainda em seu último livro, “Como se estivéssemos em palimpsesto de putas”. Coisas de gênio.

 

 

20/06/2017

OS CINQUENTA ANOS DE ÓPERA DOS MORTOS

 

(Uma versão originalmente publicada em A TRIBUNA de Santos em 20 de junho de 2017)

Autran Dourado é um dos meus autores do coração, por isso ele aparece tanto nesta coluna. Sua obra-prima, ÓPERA DOS MORTOS (Rocco), completa 50 anos em 2017.

O romance conta a história da principal família de Duas Pontes, no início da República. Rosalina, a última dos Honório Cota, mantém-se trancada no sobrado familiar, recusando-se a qualquer tipo de ligação com a cidade. Após longos anos de isolamento, Rosalina admite como empregado Juca Passarinho, um malandro boa-vida, “apenas porque não é da cidade”. Juca descobrirá o segredo de Rosalina: ela se embebeda todas as noites.

A dona do sobrado Honório Cota acaba enlouquecendo e apavora os habitantes, ao ficar entoando uma cantiga estranha no cemitério. Até que se descobre a identidade do “fantasma” e a cidadezinha tem a oportunidade de entrar novamente no sobrado, que lhe parecia definitivamente vetado: “Agora a gente estava de novo no sobrado, esperando. De uma certa maneira todo mundo ficava de dono da casa… A confusão, a promiscuidade era geral. Já mexiam nos armários, nas panelas, tinha gente que fazia café”.

Essa “profanação”, por assim dizer, do sobrado Honório Cota, mostra como Dourado absorveu bem o clima das tragédias gregas.  O nosso maior romancista soube transportar isso muito bem para um “tamanho mineiro”, para a atmosfera da “vida besta” de uma “cidadezinha qualquer” (essas imagens aparecem num célebre poema do ilustre conterrâneo de Autran, Carlos Drummond de Andrade). Em compensação, até os personagens parecem imbuídos do teor teatral da trama. Ao enfrentar a cidade nos momentos decisivos, Rosalina sempre parece agir como que diante de uma plateia. Aliás, com relação à Rosalina, um dos pontos mais fascinantes de ÓPERA DOS MORTOS é o fato de ela duplicar, em si, o amálgama do sobrado: este era uma construção térrea, feita inicialmente pelo brutal e misterioso fundador da família, Lucas Procópio; o segundo andar foi acrescentado pelo filho, João Capistrano, de personalidade oposta ao pai; e a casa ficou com os dois estilos de personalidade em seu traçado.

Ao se entregar a Juca Passarinho, Rosalina dicotomiza-se como o sobrado: de dia, ela se mantém senhorial e distante, como João Capistrano; à noite, ela perde todas as amarras, como o despótico e desregrado Lucas Procópio. Dessa forma, também a relação entre ela e o agregado assume um caráter “ritual”. E o desenvolvimento da obra de Autran Dourado tornou ainda mais complexa e instigante a história da família mais ilustre de Duas Pontes. Dois outros romances “completaram” (se possível) o quadro: Lucas Procópio (1985) e Um Cavalheiro de Antigamente (1992). O que prova que, como já sabiam os gregos, e volta-se a ver nos cafundós de Minas, o destino sempre acaba se cumprindo, de uma forma ou de outra.

 

06/06/2017

CINQUENTA ANOS DE TUTAMEIA

(Uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos em 06 de junho de 2017)

Assim como Clarice Lispector, que no ano de sua morte publicou um dos seus mais relevantes romances, João Guimarães Rosa, ao morrer em 1967, deixou uma obra-prima, TUTAMEIA. Colaboravam para a sensação de estranheza despertada por TUTAMEIA: o título peculiar (um vocábulo com o significado de “coisa de pouco valor”), os quatro prefácios com títulos abusadamente esdrúxulos (“Hipotrélico”; Nós, os temulentos, por exemplo); e, sem contar os títulos de várias estórias (“Antiperipléia”; “Droenha”; “Rebimba”, “O Bom”; “Tapiiraiauara”), os textos herméticos e quase impenetráveis.

Hoje percebe-se melhor ter ele tão somente condensado ao extremo as características que se “espalhavam” nos amplos espaços épicos de “Grande Sertão: Veredas & Corpo de Baile”, fazendo de cada texto de TUTAMEIA a coisa mais similar à poesia que já se criou na ficção: impossível mexer numa palavra sequer. Além disso, investindo nas “anedotas” do sertão mineiro, ele tenta atingir uma realidade “mais verdadeira”. Para isso, é importante “contar” mais do que “viver”.

Quanto à acusação de hermetismo, mesmo se levando em conta a linguagem peculiaríssima de Rosa, nada mais delicioso do que as “anedotas” (tenho minhas dúvidas e ressalvas quanto aos prefácios) da coletânea. Nem por isso, nos “desenredos” tramados pelo autor de Sagarana, deixamos de entrever as linhas tortas pelas quais lemos a vida.

Por exemplo, temos o guia de cego que ajuda o patrão a se envolver num caso adúltero e que termina suspeito da morte dele, para a qual, como em “Rashomon”, há várias versões (“Antiperipléia”). Esse guia pode ser o anão que aparece na última estória do livro, “Zingaresca” (sim, as histórias são dispostas em ordem alfabética), aquele que “vigia o que não há”. Como Riobaldo, ele conta sua história para um interlocutor citadino.

Em Lá, nas campinas, Drijimiro não consegue lembrar o local da sua infância, só restou na memória as palavras que dão título à estória, “o que guardado sempre sem saber lhe ocupara o peito, rebentado: luz, o campo, pássaros, a casa entre bastas folhagens, amarelo o quintal da voçoroca, com miriquilhos borbulhando nos barrancos.

Esses são alguns pontos altos do livro. E sempre, em qualquer uma delas, as frases genialmente únicas: “as coisas começam deveras é por detrás, do que há, recurso; quando no remate acontecem, estão já desaparecidas”; “calava-se a ternura, infinito monossílabo”; “memória, que é o que sem arrumo há, das muitas partes da alma”; “a gente tem de existir—por corpo real, continuado—condenado”; “o mundo se repete mal é porque há um imperceptível avanço”; “de onde vem o medo? Ou este terráqueo mundo é de trevas, o que resta do sol tentando iludir-nos do contrário”… E assim, Guimarães Rosa iluminou a nossa literatura como a borboleta que (ele mesmo diz, raiando pela indescrição) “sai do bolso da paisagem”.

16/05/2017

A MORTE DE ANTÔNIO CÂNDIDO

Filed under: Homenagens — alfredomonte @ 9:19
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(Uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos em 16 de maio de 2017)

Admiro muito o crítico americano Harold Bloom, porém, me sinto afastado dele por causa do excessivo peso que ele dá à individualidade estética, como se cada gênio literário fosse um milagre independentemente da época a qual pertence. Com Antônio Cândido aprendi que o contexto (momento histórico, a recepção do público etc) faz parte da obra literária, interiorizando-se até em seus aspectos formais, e que a excelência artística não está solta no espaço como se tudo dependesse apenas do talento.

O nosso maior crítico literário, morto aos 98 anos, em seu monumental “Formação da Literatura Brasileira” (1959), prova cabalmente que a preocupação cada vez mais visível, desde a era colonial, é com a constituição de uma identidade nacional, e isso é a base (e permite compreendê-la) da obra de José de Alencar. Essa visão do fenômeno literário explica a razão de estudarmos livros às vezes muito fracos, mas que têm sua razão de ser na sequência histórica.

Cândido, além de ter renovado a crítica de jornal, foi um magistral ensaísta, em obras como “Literatura e Sociedade”; “Ficção e Confissão”; “A Educação pela Noite”; “O Discurso e a Cidade” (um dos meus livros favoritos). Em “Esquema de Machado de Assis”, em poucas páginas, sucintas e brilhantes, ele elenca todos os motivos e características que merecem a atenção do leitor da ficção machadiana, é uma verdadeira mina de ouro. O fascinante é que, além da qualidade da análise, o estilo (ao contrário de outros grandes críticos brasileiros, notadamente Luiz Costa Lima, uma leitura árdua e espinhosa) é límpido, cristalino.

Antônio Cândido foi um dos homens exemplares do século passado. Era lúcido, generoso, com um engajamento político que, em retrospecto, nos enche de orgulho e tristeza, uma preocupação pedagógica admirável (explicando, por exemplo, num famoso ensaio, o que é um personagem de ficção, ou como fazer a análise de um poema, em “Na Sala de Aula”). Tive a sorte de fazer a pós-graduação com alguns de seus discípulos, como Davi Arrigucci Junior, o falecido prematuramente João Luiz Lafetá.

O único senão (que, inclusive, me afastou da vida acadêmica) ao mestre e seus discípulos é a relutância em abrir o cânone para novos autores, o que eu considerava um conservadorismo deplorável, não sei se as coisas mudaram. Clarice Lispector conseguiu entrar, apesar da má vontade de quase todos eles. Mas eu ouvi, espantado, que Hilda Hilst, Carlos Nejar, Adélia Prado, nunca entrariam no departamento de Teoria Literária da USP, eram leituras adolescentes. Uma pena. Um time tão excepcional e tão restritivo, o que não tira a importância essencial de Antônio Cândido para a história do Brasil.

 

09/05/2017

Belchior, o poeta de uma geração e da eternidade

Filed under: Homenagens — alfredomonte @ 10:51
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Musico Belchior em 1977. FOTO DIVULGAÇÃO.

 

(Uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos em 9 de maio de 2017)

Numa entrevista maravilhosa, Pedro Bial perguntou ao ex-presidente do Uruguai, José Mujica, o que era mais importante: O manifesto ou a poesia. Resposta: A poesia, a longo prazo.

Para a minha geração, a qual (e peço desculpas pela imodéstia de querer ser seu porta-voz), cresceu durante a ditadura militar, mas teve a sorte de se formar com um time inigualável de letristas da MPB (por exemplo, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Paulinho da Viola, Aldir Blanc, Fernando Brant; e, pairando sobre todos, Chico Buarque), o gênio do manifesto lírico foi Belchior. Migrou do Ceará para o Rio de Janeiro, “com lágrimas nos olhos de ver o verde da cana e de ler o Pessoa”, “um rapaz latino americano, sem dinheiro no banco, nem parentes importantes”, viveu a miséria, a exclusão social, junto ao “preto, o pobre, o estudante”, revoltado com o conformismo (“minha dor é perceber que apesar de sermos jovens ainda somos e vivemos como nossos pais”), alertando que “uma mudança em breve vai acontecer, o que era novo, hoje é antigo, e precisamos rejuvenescer”.

A sua alucinação “é viver o dia a dia, o meu delírio é com coisas reais”, “enquanto houver espaço, tempo e algum modo dizer não, eu canto”. Como o leitor pode perceber, fiz uma costura de trechos das canções de Belchior. A tentação é prosseguir, pois há muita coisa linda no seu repertório. Talvez a sua ambição poética seja melhor sintetizada pelos versos finais de “Paralelas”: “teu infinito sou eu, no Corcovado quem abre os braços sou eu, Copacabana esta semana o mar sou eu, como é perversa a juventude do meu coração, que só entende o que é cruel e o que é paixão”.

A partir dos anos 80 Belchior caiu na obscuridade, e recentemente ganhou uma fama folclórica, quase ridícula. Com sua morte, todo mundo se deu conta da sua grandeza. Como afirmou Mujica, a poesia ficou mais evidente com a passagem do tempo, sem perder o seu recorte histórico. Dois exemplos do que o “longo prazo” produziu: “eu não vou querer o amor somente, é tão banal, busco a paixão fundamental, edípica e vulgar, de inventar meu próprio ser”; “Contemplo o rio, que corre parado, e a dançarina de pedra que evolui. Completamente sem metas, sentado, não terei sido, não serei, nem fui”. Mesmo entendendo a mensagem, foi sim, senhor Belchior. Um dos maiores.

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