MONTE DE LEITURAS: blog do Alfredo Monte

26/08/2014

Destaque do Blog: FINAL DO JOGO, de Julio Cortázar (centenário do autor, meio-século da versão definitiva do livro)

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“Menino ainda, eu já suspeitava de que dar nome a uma coisa era apropriar-me dela. Mas isso não bastava, sempre tive necessidade de mudar periodicamente os nomes daqueles que me rodeavam, pois assim derrotava o conformismo, a lenta substituição de um ser por um nome. Um dia já começava a sentir que o nome já não caía bem, não era a coisa nomeada. A coisa estava ali, nova e brilhante, mas o nome gastara-se como uma roupa. Ao dar-lhe uma nova denominação, provava a mim mesmo, obscuramente, que o importante era o outro, a razão para o nome que lhe dava. E durante semanas a coisa ou o animal ou a pessoa me pareciam belíssimos sob a luz de seu novo signo…” (do Diário de Andrés Fava)

“…e tudo o que mediu e classificou e nomeou, toda a sua astronomia em pergaminhos iluminados era uma astronomia da imagem, uma ciência da imagem total, salto da véspera ao presente, do escravo astrológico ao homem que de pé dialoga com os astros. Talvez os governantes da guarda avançada pela qual damos tudo o que somos e temos, talvez a senhora Callamand ou o professor Fontaine, talvez os chefes e os homens da ciência  acabem saindo ao aberto, tendo acesso à imagem onde tudo está esperando…” (da Prosa do Observatório)

(uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 26 de agosto de 2014)

     Julio Cortázar nasceu em 26 de agosto de 1914 (em pleno espocar da Primeira Guerra Mundial). Neste ano de seu centenário, o leitor interessado se depara com uma produção labiríntica: vai do exercício perfeito de um gênero literário difícil como o conto até títulos desafiadores (como O jogo da Amarelinha) ou radicalmente experimentais (como Prosa do Observatório). O genial autor argentino (falecido em outro ano de conotações sinistramente simbólicas, 1984) ainda é um raro caso de publicação de escritos póstumos relevantes (como Diário de André Fava e parte de sua Obra Critica).

Por isso, é oportuno o aparecimento da nova tradução [de Paulina Wacht & Ari Roitman} para Final do Jogo[1] para não nos perdermos nos dédalosdesse cronópio (tipo de indivíduo imaginado por ele, desligado dos automatismos cotidianos e para o qual tudo é risco e aventura, volta ao dia em 80 mundos), nem que fosse pelo lugar estratégico que essa coletânea ocupa: há exatamente 50 anos aparecia a segunda e definitiva edição, onde eram agregados nove relatos à versão original, lançado em 1956, apresentando uma nova e intencional disposição.

No primeiro formato de Final do Jogo (que seguia o feitio de sua estreia no gênero, Bestiário), o leitor dos anos 1950 encontrava nove ótimos contos[2], alguns deles excepcionais, pontos altíssimos do gênero. O que mudou entre essa edição e a seguinte foi que Cortázar escreveu e publicou O Perseguidor e O Jogo da Amarelinha e começou a pensar sua obra de forma mais radical e transgressiva, cada título como um “jogo”, tanto num sentido lúdico quanto num sentido de provocação e perigo. Assim, o que era uma reunião muito coesa, e ainda “dentro dos conformes”, ganhou três partes e narrativas que se espelham, criando um circuito inquietante, todavia reiterativo, bem dentro da concepção “cerimonial” adotada pelo criador de As Babas do Diabo (inspirador de Blow up, filme-chave de Antonioni) — o conto de abertura, Continuidade dos Parques, por sinal, tornou-se um texto paradigmático, na sua utilização da metalinguagem, quebrando a ilusão da leitura.

Não à toa, o protagonista de A noite de barriga para cima se percebe engolfado pelo “tempo sagrado”, perigosamente epifânico (mas acontecendo “dentro do cotidiano”); em contrapartida,  lemos em  Relato com um fundo d´água o seguinte testemunho da alienação do dia a dia: “numa hora escura e sem nome tudo deixa de ser sério para dar lugar à suja máscara de seriedade que é preciso pôr na cara, e agora sou o doutor fulano e você o engenheiro beltrano, de repente ficamos para trás, começamos a nos ver de outra forma embora continuemos por um tempo com os rituais, os jogos comuns, os jantares de camaradagem que são o último salva-vidas em meio à dispersão e ao abandono, e tudo é tão horrivelmente natural…”

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Boa parte de Final do Jogo é dedicada a pôr por terra o que é “tão horrivelmente natural”: no inpactante Ninguém seja culpado, um homem descobre-se numa mortífera armadilha ao tentar vestir um pulôver, num dia frio; uma troca de correspondências que externaria amabilidades e mundanidades torna-se um intrincado de intrigas e exclusões (À mesa); a porta interditada (no conto que tem esse título) entre quartos de um hotel transforma-se num acesso para um mundo doloroso (e é um exemplo cabal de como a construção da “atmosfera” valoriza um relato; aqui, a maneira como o silêncio do “sossegado” hotel é trabalhado pelo narrador me parece ainda mais notável do que o insólito da fabulação); mesmo um passeio se torna uma experiência de ansiedade e mistério (Depois do almoço).

Talvez o exemplo mais explícito dessa linha seja A banda: Lucio Medina entra num cinema para assistir a um filme de um cineasta que admira (Anatole Litvak) e vê-se envolvido por um inesperado espetáculo cafona que algumas famílias organizaram para a apresentação (quase um desfile) exibicionista de uma banda fake (boa parte das componentes nem sequer canta de verdade), um simulacro:  “entendeu que aquela visão podia se prolongar até a rua, ao seu terno azul, ao programa da noite, ao veraneio em março, à sua amante, à sua maturidade, ao dia da sua morte…”

Obras-primas são os contos sobre adolescentes dos arredores de Buenos Aires, já em rituais de encantamento e decepção (o conto-título e Os Venenos)[3]. E como não destacar aqueles em que o verniz civilizatório vai cedendo espaço ao primitivo que aflora com brutalidade, caso de O Ídolo das Cíclades e A noite de barriga para cima, e c variante humorística (se a pessoa tiver um certo sentido do cômico) é a história dos músicos despedaçados pela plateia burguesa levada ao êxtase, em As mênades? E a formulação machadianamente terrível da percepção da mortalidade que é A Flor Amarela, complementando o belo exercício da primeira pessoa com o qual se narra o final melancólico de um mítico boxeador, no fantástico  Torito (outra exploração inspirada de tipos portenhos, e seus códigos de honra e gíria,  é O Motivo).

Entretanto, o conto supremo de Final do Jogo é aquele em que o espectador da vida de um ser bizarro, quase irreal e alienígena, vindo das profundezas do arcaico, do atemporal (os axolotles em exposição no aquário do Jardin des Plantes em Paris), de repente se vê aprisionado no ser que observava (Axolotle): “Por trás daquelas caras astecas, inexpressivas mas de uma crueldade implacável, que imagem esperava a sua hora?”[4]. Um dos maiores momentos da arte da ficção de todos os tempos, e uma porta de acesso como poucas à essência do universo cortazariano.

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NOTAS

[1] A anterior foi feita por Remy Gorga, Filha e lançada pela Expressão e Cultura, em 1971 (título original: Final del juego).

[2] Os venenos; O motivo; A noite de barriga para cima; As mênades; A porta interditada; Torito; A banda; Axolotle; Final de jogo;

[3] Cujos equivalentes, na nossa literatura, são certos contos magistrais de Lygia Fagundes Telles.

[4] Texto-irmão dos contos mais terríveis de Clarice Lispector, como O búfalo ou Amor.

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22/08/2014

A PERSEGUIÇÃO DE CORTÁZAR: uma poética da audácia e da aventura

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[uma versão do texto abaixo foi publicada originalmente no “Letras in.verso e re.verso”, VER: http://letrasinversoreverso.blogspot.com.br/2014/08/a-perseguicao-de-cortazar-em-louvor-da.html]

“Oh, faz-me uma máscara e um muro que me escondem de teus espiões

Dos agudos olhos esmaltados e das garras que denunciam

O estupro e a rebeldia nos viveiros de meu rosto,

Uma mordaça de árvores mudas que me guarde da nudez dos inimigos,

Uma língua de baioneta nesse indefeso fragmento de oração,

Torna loquaz a minha boca, e que ela seja uma trombeta de mentiras

[soprada com doçura,

Dá-me as feições de um estúpido entalhado no carvalho e na velha

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Para escudar o cérebro brilhante e confundir os inquisidores,

E uma dor viúva manchada de lágrimas caídas das pestanas

Para dissimular a beladona e fazer com que os olhos secos percebam

Que outros atraiçoam as lamentosas mentiras de suas perdas

Através do arco dos lábios nus e do riso à socapa.” 

(Dylan Thomas, tradução de Ivan Junqueira)

I

Fiquei contristado ao ler a seguinte afirmação de Alan Pauls, autor argentino por quem tenho imensa admiração, a respeito de seu compatriota Julio Cortázar (1914-1984): “Seus livros, mesmo os melhores, parecem exigir agora de mim o impossível: que volte a ser jovem. Como se só assim, rejuvenescendo, pudessem exercer sobre mim algo parecido ao efeito de audácia e de aventura que em algum momento exerceram[1].

Cortázar morreu há 30 anos. Estamos prestes (em 26 de agosto) a comemorar o centenário do seu nascimento. E devo dizer, provocativamente, quem sabe, que minha contristação é mais relacionada ao autor de O passado do que à sua avaliação do legado do autor de Rayuela- O jogo da amarelinha, cuja leitura me é necessária periodicamente justamente porque faz reviver radicalmente o encantamento, o ato de ler (complementando o de escrever) em função de uma ânsia de audácia e de aventura.

Não que a esse encantamento não se mesclem ingredientes de dissonância e desconforto (voltarei a esse ponto oportunamente), mas é preciso ter coragem e dizer: se há uma obra que me restitua tanto a fé (ou algo muito parecido) quanto o otimismo, é a cortazariana, no sentido vital de estar sempre alerta e em luta contra “a resistência absurda de um mundo rachado que continua defendendo raivosamente suas formas mais caducas”, como lemos em Livro de Manuel, seu último e talvez mais belo romance (opinião, adianto, que está longe de ser universalmente compartilhada).

Deixando de lado os (des)encantamentos e impressões antípodas entre os que já leram sua obra, pus-me a imaginar como seria para um neófito se deparar com o seu conjunto. Sim, pois há toda uma fieira de títulos que podemos reunir no cordão “dentro do padrão de gênero”, por mais desafiadoras que eles sejam: assim, temos a parte “professoral” (seus ensaios sobre Keats e Poe, por exemplo), seus quatro romances (Os prêmios; O jogo da amarelinha; 62-Modelo para armar; Livro de Manuel), suas coletâneas (Bestiário; Final de jogo; As armas secretas; Histórias de Cronópios e de Famas; Todos os fogos o fogo;Octaedro; Alguém que anda por aí; Um tal Lucas; Orientação dos gatos[2]; Fora de hora), assim como a peça Os reis, de 1949, a qual, junto com um pequeno livro de sonetos (aliás, publicado sob pseudônimo), Presencia, de 1938, constitui sua “estreia” editorial; há toda uma outra fieira, muito menos “alinhada”, mais difusa e escorregadia, desde os miscelânicos A volta ao dia em oitenta mundos e Último round, até o inclassificável Prosa de observatório, os quais possivelmente representam o mais profundo anelo  de Cortázar como escritor, no sentido de criar jazz (na acepção assaz mítica que ele atribuía ao termo) em prosa, de não se submeter a nenhuma convenção ou classificação, sempre privilegiando a audácia e a aventura que Pauls já não encontra na sua releitura[3]; e há, ainda, todo um jovem Cortázar póstumo, os textos inéditos e preciosos publicados depois da sua morte, e que se postam em ambas as fieiras, pois há aqueles “dentro do gênero”, como os ensaios reunidos na Obra crítica (onde se destaca sua “Teoria do Túnel” sobre o romance), ou os seus primeiros tateios no romance, que ele desistiu de publicar (O exame; Divertimento), ou textos do tipo Diário de Andrés Fava, a um só tempo subsidiários de outros e perfeitamente autônomos, dentro de uma percepção menos rígida e estanque de leitura.

Para fugir à dispersão de um comentário geral, e até como sugestão para uma boa porta de entrada do universo cortazariano, limito-me, na sequência, a “perseguir” um texto emblemático, El perseguidor, longo conto que pertence a uma das mais extraordinárias coletâneas de seu autor, As armas secretas, de 1959, mas que também seguiu trajetória à parte. Prova disso é que o comentarei, aqui, numa tradução de Sebastião Uchoa Leite em edição da CosacNaify, a qual segue a da espanhola Libros del Zorro Rojo (esta última, de 2009, portanto comemorativa dos 50 anos da publicação original), com as ilustrações de José Muñoz[4].

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II

O perseguidor (como parte de As armas secretas) foi publicado numa época em que Cortázar ainda não gozava de renome universal (em função do famoso boom latino-americano), o que acontecerá depois de O jogo da amarelinha (1963), porém era reputado como contista de alta qualidade, por suas duas primeiras coletâneas, Bestiário (1951) e a primeira versão de Final de jogo (1956)[5]. Naquele momento, mais precisamente na década de 1950, ele sobrevivia como tradutor, após sua mudança para a França (durante muitos anos, atuara como professor na Argentina).

Como admite ao entrevistador uruguaio Ernesto González Bermejo, na visão que cultiva de seu próprio desenvolvimento como escritor, O perseguidor é um ponto de inflexão, superando as realizações anteriores  num sentido claramente definido (e fortemente humanista): “O que verdadeiramente  me interessava, aquilo que eu enfatizava, era o conto em si mesmo, a situação, o mecanismo fantástico que eu pretendia com o conto (…) Posso dizer que se, naquela fase, para chegar a um conto eu fosse obrigado a sacrificar parcialmente a humanidade de um personagem, creio que o teria feito. Ao contrário, em O perseguidor minha atitude é muito diferente: o conto gira em torno do personagem e não o personagem em torno do conto”[6].

Portanto, esse relato seria a cristalização de um modo novo de encarar a fabulação e seus personagens, numa direção eticamente menos solipsista. O quão equivocado estaria o autor sobre seus próprios textos, e como essa é uma “ferida” ainda a sangrar na recepção da obra cortazariana, é uma questão para depois. Primeiro, constatemos como o texto “gira em torno de um personagem”, no caso o saxofonista Johnny Carter, calcado diretamente na biografia de Charlie Parker (1920-1955).

Johnny segue os passos de seu inspirador: instrumentista revolucionário, levando a música a limites insuspeitos, também era o típico “artista maldito”, viciado, destrutivo (embora muito atraente para as mulheres), com episódios de tentativas de suicídio, internação em clínicas de reabilitação, vexames em shows, cancelamentos de turnês, escândalos e incidentes quase trágicos em hotéis, numa tumultuada e curta trajetória de Baltimore a Nova York, e desta para Paris, nos badalados cafés, como o Flore.

Mas Johnny não é, em essência, uma vítima, um loser, enfim, um perseguido. Ele é o perseguidor do título.  O que Johnny persegue? Lemos a certa altura:  “Compreendo que o enfureça a ideia de que vão lançar a gravação de Amorous, porque qualquer um percebe as falhas, o sopro perfeitamente audível que acompanha alguns finais de frase, e sobretudo a selvagem queda final, essa nota surda e breve que me pareceu um coração que se rompe, uma faca entrando num pão… Mas em compensação a Johnny escaparia o que para nós é terrivelmente belo, a ansiedade que busca saída nessa improvisação cheia de fugas em todas as direções, de interrogação, de gesticulação desesperada. Johnny não pode compreender (porque o que para ele é fracasso para nós parece um caminho, pelo menos o sinal de um caminho) que Amorous vai ficar como um dos maiores momentos do jazz. O artista que há nele vai ficar frenético de raiva cada vez que ouvir esse arremedo do seu desejo, de tudo o que quis dizer enquanto lutava, cambaleando, a saliva lhe escapando da boca junto com a música, mais do que nunca só diante do que persegue, do que lhe foge quanto mais o persegue…”

Quem nos fala é Bruno, crítico musical que escreveu uma biografia pioneira de Johnny. O perseguidor também é sobre Bruno, ou melhor, é sobretudo a respeito de Bruno e o fato de que ele até pode fazer para o leitor a exegese da perseguição de Johnny, mas sempre haverá um abismo; o que ele poderá lograr, no máximo, é “fazer uma máscara” do perseguidor, tentar fixá-lo (por essa razão, que toma uma feição mesquinha muitas vezes, se preocupa, conforme a biografia vai abrindo caminho entre os sucessos editoriais, de que as ações de Johnny comprometam a integridade do seu trabalho), exasperando-se (apesar do fascínio) com a constatação de que não há parada nem volta no rastro da perseguição de seu biografado/amigo: “Sim, há momentos em eu gostaria que ele já estivesse morto”.

No fundo, há uma má-fé essencial na relação entre Bruno e Johnny, o que torna seu relato um modelo do “narrador não-confiável”,  e também do relato que nos diz tanto (ou mais) do narrador do que daquele que seria o motivo por que a narração é feita, como verificamos também em Bartleby, de Melville, Coração das trevas, de Conrad, o Sebastian Knight de Nabokov, o Seymour de Salinger ou o Zorba de Kazantzakis, ou, mais recentemente, o Humboldt de Saul Bellow, para dar alguns exemplos célebres[7].

A verdade é que, mais do que exasperado com Johnny, Bruno por vezes de mostra hostil a ele. Alguém poderia dizer que ele está sendo franco, contudo ele sempre atribui, reflexivamente, tal hostilidade como partindo inicialmente do próprio Johnny. É o que ele parece querer nos fazer acreditar ao descrever uma atitude “chocante” (e com conotações racistas incontornáveis da maneira como é visualizada para nós) do músico, num de seus momentos mais decadentes, num tugúrio sórdido: “… estava me despedindo de Dédée e dava costas a Johnny; senti que alguma coisa acontecia, vi nos olhos de Dédée e me voltei rapidamente (porque quem sabe tenho um pouco de medo de Johnny…) e vi que Johnny tinha tirado de súbito a coberta em que estava enrolado, e o vi sentado na poltrona completamente nu, com as pernas levantadas e os joelhos junto ao queixo, tremendo mas rindo, nu de cima a baixo na poltrona ensebada… eu não sabia como fazer para não dar a impressão de que o que Johnny  estava fazendo me chocava. E ele sabia e riu-se com toda a sua bocarra, mantendo as pernas obscenamente levantadas, o sexo pendendo da beira da poltrona como um macaco no zoológico, e a pele dos músculos com umas manchas esquisitas que me deram um asco infinito…”[8].

A revolta de Bruno é com o fato de que o músico admirável, seu objeto de biografia, é afinal um ser humano “abjeto” (pelo menos, na sua ótica burguesa), a respeito do qual ele aparentemente chega a uma conclusão “saturada”: “Eu que passei a vida admirando os gênios, os Picasso, os Einstein, toda a lista sagrada que qualquer um pode fabricar em um minuto (e Gandhi, e Chaplin, e Stravinsky), estou disposto como qualquer um a admitir que esses fenômenos andam pelas nuvens e que com eles não há por que estranhar coisa alguma. São diferentes, e ponto final. Em compensação, a diferença de Johnny é secreta, irritante por ser misteriosa, porque não tem nenhuma explicação. Johnny não é gênio, não descobriu nada, toca jazz como milhares de negros e brancas e, embora o faça melhor que todos eles, é preciso reconhecer que isso depende um pouco dos gostos do público, das modas do tempo, em suma”.

Um pouco mais adiante, no entanto: “Tudo isso prova que Johnny não é nada do outro mundo, mas mal penso isso me pergunto se precisamente não existe em Johnny algo do outro mundo (que ele é o primeiro a desconhecer)”[9].

Dói em Bruno sua condenação de ser, ao fim e ao cabo das voltas do parafuso de suas relações com Johnny, somente um mero “crítico” (daí o abismo), mesmo que bem-sucedido e importante: “Sou um crítico de jazz bastante sensível para compreender as minhas limitações, e percebo que o que estou pensando está abaixo do plano em que o pobre Johnny trata de avançar com as suas frases truncadas, seus suspiros, suas raivas súbitas e seus choros. A ele não interessa nem um pouco que eu o ache genial… Penso melancolicamente que ele está no princípio do seu sax enquanto eu vivo obrigado a me conformar com o final. Ele é a boca, eu a orelha, isso pra não dizer que ele é a boca e eu…”.

Capa de Conversas com Cortázar

III

     “Todo crítico é o triste final de algo que começou como sabor, como delícia de morder e mascar”, nos diz ainda Bruno.

Eis o momento de recolher redes lançadas (espero que não a esmo): a afirmação de que no meu encanto com a poética da audácia e da aventura que é a obra cortazariana se insinuar o veneno insidioso da insatisfação; o próprio autor de O perseguidor apontando-o como ponto-chave de uma evolução pessoal e criativa (e que tomará uma forma explicitamente politizada em sua obra posterior); e de certa forma, conectando-se com a desilusão de Alan Pauls, certa corrente de opinião, segundo a qual “o envolvimento de Cortázar com a política não fez muito bem a sua literatura e situam o melhor de sua produção entre 1951, ano da publicação de Bestiário, e 1963, ano da publicação de O jogo da amarelinha[10], corrente que me parece comungar de uma concepção produtora que não seria estranha ao pior lado de Bruno: a suspeita de que há “outra coisa”, um sopro de outro mundo (para ficar na esfera semântica do saxofone), mas a exigência de uma conformação ao estatuto de um  “produto” a ser digerido, interpretado, decifrado, mesmo como desafio artístico.

A meu ver, a dramática tensão evidenciada pela relação Johnny-Bruno é um reflexo do terror pessoal de Cortázar de se tornar algo parecido com o segundo, e sua ambição de ser mais como o primeiro, o que resultou num certo tom caricatural e maniqueísta a que não escapa o texto de O perseguidor[11]: professor, crítico, ensaísta e tradutor, ele poderia ter vivido uma trajetória muito parecida com o seu narrador tão pouco confiável; por outro lado, suas obras publicadas e mais exaltadas até aquele momento eram “esféricas”, muito bem acabadas, “produtos” (e sobretudo, limitadas do ponto de vista ético e político). Daí que ele, numa inflexão injusta, quero crer, postule limitações e uma “caretice” para esse período anterior, enquanto O perseguidor seria a abertura para uma exploração-Johnny da prosa, alargando a abertura para experiências como romances “abertos’ (O jogo da amarelinha) e livros que rompem com gêneros estanques (Prosa de observatório). E, ponto fundamental, uma abertura para a política, no sentido de transgressão a todas às formas retrógradas e repressivas, e de luta explícita contra determinados regimes.

O ponto delicado se situa nessa própria decisão (se é que não foi uma exigência existencial), que foi para o bem e para o mal: contida pelo próprio entorno dramático e narrativo (o confronto entre a realidade prosaica de Bruno e a perseguição impossível de Johnny),  esse “programa”, mesmo porque Cortázar nunca chegou de fato a ser um Johnny em plenitude, muitas vezes escorregou para um proselitismo realmente programático, anunciado e enfatizado por demais, e explicitado no discurso em prejuízo da própria intensidade e voltagem da perseguição.

Ainda assim, por sua audácia, seu senso de aventura, e pela força de uma generosidade (sempre rara) com a condição humana, aliada a um humor deleitável, a obra cortazariana pós-O perseguidor resiste como uma das experiências mais revigorantes que pode pedir o leitor cercado por uma realidade-Bruno (aquela condição acomodada que é o… da boca da utopia-saxofone), tentando fechar desesperadamente todas as brechas na superfície do mundo.

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TRECHO SELECIONADO:

“Vi poucos homens tão preocupados com tudo que se refere ao tempo. É uma mania, a pior das suas manias, que são tantas. Mas ele a desenvolve e a explica com uma graça a que poucos podem resistir. Lembrei-me de um ensaio antes de uma gravação, em Cincinnatti, e isso foi muito antes de vir a Paris, em 49 ou 50. Johnny estava em grande forma naqueles dias, e eu tinha ido ao ensaio para escutá-lo, apenas, a ele e também a Miles Davis. Todos tinham vontade de tocar, estavam satisfeitos, andavam bem-vestidos (lembro-me disse talvez por contraste, pelo fato de Johnny andar tão malvestido e sujo), tocavam com gosto, sem nenhuma impaciência, e o técnico de som fazia sinais de contentamento por trás da sua janelinha, como um babuíno satisfeito. E justamente nesse momento, quando Johnny estava como que perdido na sua alegria, de repente deixou de tocar e, dando um murro não sei em quem, disse < Isso eu estou tocando amanhã >, e os rapazes ficaram perturbados, apenas dois ou três continuaram uns compassos, como um trem que demora a frear, e Johnny batia na testa e repetia < Isso eu já toquei amanhã, é horrível, Miles, isso eu já toquei amanhã >, e não conseguiam fazê-lo sair disso, e a partir daí tudo andou mal…”  (na tradução de Sebastião  Uchoa Leite)

“Poucas vezes vi um homem tão preocupado com tudo o que se refere ao tempo. É uma mania, a pior de suas manias, que são tantas. Mas ele discorre sobre essa mania e a explica com tanta graça que quase ninguém consegue resistir. Lembrei-me de um ensaio antes de uma gravação, em Cincinnati, uma coisa que aconteceu muito antes de ele vir para Paris, em 49 ou 50. Na época Johnny estava em grande forma e eu havia ido ao ensaio só para escutá-lo, a ele e também a Miles Davis. Todos queriam tocar, todos estavam felizes, andavam bem vestidos (pode ser que eu me lembre disso por causa do contraste, de tão malvestido e sujo que Johnny anda agora), tocavam com prazer, sem a menor impaciência, e o técnico de som fazia sinais de contentamento atrás de sua janelinha, como um babuíno satisfeito. E justamente nesse momento, quando Johnny parecia estar perdido em sua alegria, de repente ele parou de tocar e deu um soco em alguém que estava por ali, dizendo <Estou tocando isto amanhã >, e os caras travaram, só dois ou três tocaram mais alguns compassos, como um trem que demora a frear, e Johnny dava tapas na testa e repetia < Isto eu já toquei amanhã, é horrível, Miles, isto eu já toquei amanhã >, e ninguém conseguia fazê-lo sair disso, e a partir dali tudo deu errado…” (na tradução de Heloisa Jahn)

“Vi poucos homens preocupados daquele jeito por tudo que se refere ao tempo. É uma mania, a pior de suas manias, que aliás são tantas.  Mas ele mostra essa mania e a explica com tal graça que ninguém consegue resistir. Lembro-me de um ensaio antes de uma gravação, em Cincinnati, e isso foi muito antes dele vir para Paris, em 49 ou 50. Naqueles dias Johnny estava em boa forma, e eu havia ido ao ensaio só para escutá-lo e para escutar Miles Davis. Todos tinham vontade de tocar, estavam felizes, andavam bem-vestidos (lembro disso talvez por contraste, porque Johnny anda agora malvestido e sujo), tocavam com prazer, sem nenhuma impaciência, e o técnico de som fazia sinais de alegria através do vidro do estúdio, como um babuíno satisfeito. E justamente naquele momento, quando Johnny estava perdido em sua alegria, de repente deixou de tocar e soltando um murro no nada disse: < Estou tocando isso amanhã >, e os rapazes ficaram perplexos, só uns dois ou três  seguiram os compassos, como um trem que demora a parar, e Johnny batia na testa e repetia: < Eu já toquei isso amanhã, é horrível, Miles, eu já toquei isso amanhã >, e não conseguiam tirá-lo dessa, e a partir daí deu tudo errado…” (na tradução de Eric Nepomuceno)

“He visto pocos hombres tan preocupados por todo lo que se refiere al tiempo. Es una manía, la peor de suas manías, que son tantas. Pero él la despliega y la explica con uma gracia que pocos pueden resistir. Me he acordado de un ensayo antes de una grabación, en Cincinatti, y esto era mucho antes de venir a Paris, en el cuarenta y nueve o el cincuenta. Johnny estaba en gran forma en esos dias, y yo había ido al ensayo nada más que para escucharlo a él y también a Miles Davis. Todos tenían ganas de tocar, estaban contentos,andaban bien vestidos (de esto me acuerdo quizá por contraste, por lo mal vestido y lo sucio que anda ahora Johnny), tocaban com gusto, sin ninguna impaciencia, y el técnico de sonido hacia señales de contento detrás de su ventanilla, como un babuíno satisfecho. Y justamente en ese momento, cuando Johnny estaba como perdido en su alegria, de golpe dejó de tocar y soltándole un puñetazo a no sé quién dijo < Esto lo estoy tocando mañana >, y los muchachos se quedaron cortados, apenas dos o tres siguieron unos compases, como un tren que tarda en frenar, y Johnny se golpeaba la frente y repetia <Esto ya lo toqué mañana, es horrible, Miles, esto ya lo toqué mañana >, y no lo podían hacer salir de eso, y a partir de entonces todo anduvo mal…” (no original –que cito a partir do primeiro volume dos Cuentos Completos, Alfaguara, 2010)

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NOTAS

[1] Minha fonte é a excelente introdução de Sérgio Karam para A autoestrada do sul & outras histórias, seleção de oito contos de Cortázar traduzidos por Heloisa Jahn (L&PM. 2013).

[2] Título no Brasil de Queremos tanto a Glenda.

[3] E que embasou seu último grande projeto, escrito em colaboração com seu amor tardio, Carol Dunlop: Os autonautas da cosmopista.

[4] Salvo engano, há outras duas traduções brasileiras de El perseguidor: a de Eric Nepomuceno, constando da versão integral de As armas secretas (publicada pela José Olympio em 1995, reeditada pela Civilização Brasileira em 2010); e a de Heloisa Jahn na já citada antologia A autoestrada do sul & outras histórias.

[5] Nessa primeira edição, havia nove contos; na segunda (1964), esse número dobrou, ganhando a feição atual.

[6] Cf. Conversas com Cortázar, em tradução de Luís Carlos Cabral (Jorge Zahar Editor, 2002).

[7] Matreiramente, ele nos diz, a certa altura: “O pior é que se continuo assim vou acabar escrevendo mais sobre mim mesmo do que sobre Johnny”.

[8] Em incidente posterior (causado pela notícia da morte da filha de Johnny), o músico—em pleno Flore—se   ajoelha chorando  pateticamente diante de Bruno, que fica exasperado e inconformado ao ver que as pessoas mais reprovam sua atitude  “decorosa” de tentar mitigar a penosa cena (levantando Johnny, sem êxito) do que o comportamento vexatório do outro.

[9] Em outra passagem, ele chama o talento musical de Johnny de “fachada” para outra coisa: “… e essa outra coisa é a única que deveria importar para mim, talvez porque é a única que importa verdadeiramente para Johnny”.

[10] Recorro mais uma vez a Sérgio Karam.

[11] Talvez seja esse o cerne da insatisfação de Antônio Cândido que, no prefácio do grande estudo de Davi Arrigucci Jr. sobre a obra de Cortázar (O escorpião encalacrado) diz que a interpretação brilhante parece tirar do texto mais do que ele parece oferecer (referindo-se explicitamente a O perseguidor).

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19/08/2014

“Virose” e o plano de deus para Lucas Barroso

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“O dia estava morrendo, um dia de que sequer lembraria. Um dia que não somaria nada à minha vida. Girei a chave com a intenção de não fazer barulho. Caminhei sorrateiramente em direção ao interruptor. Quando acendi a luz, minha mãe estava na sala, sentada no sofá.

__ Meu filho, estava preocupada com você. Tive um mau pressentimento. Você está bem?

    Não sabia responder. Me contive em observá-la. Em ter pena dela e de mim. Um sentimento idêntico para ambos. O que tínhamos feito, afinal, para sermos dignos de tanta pena?”

“Mas essa bagunça, essa maçaroca de tipos de acontecimentos chegou ao fim,  era muito cansativo ter que organizar a cabeça nesse mar de fatos. Não tinha um norte, uma linha a seguir.”

“Então, muitos acreditam em Deus. Eu apenas aumento o volume da televisão.”

(trechos de Virose)

(uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 19 de agosto de 2014)

Um homem é assassinado numa pizzaria, crime encomendado por sua companheira; um entregador com um membro de 30 cm, que nunca conseguira ereção com mulher alguma, encontra o amor com uma solitária, excessivamente dedicada ao trabalho secretária obesa; o funcionário de uma empresa de energia tem de cortar o fornecimento de uma família, da qual o pai não consegue parar em emprego, a mãe se chapa com medicações tarja preta e o filho fica diante da tela da tevê o dia inteiro; um velho funcionário subalterno, num daqueles periódicos “choques de gestão” (ou reengenharia, ou qualquer modismo do tipo), é cortado do quadro da empresa, pira e chacina os seus antigos chefes, reunidos numa confraternização; um magnata da área da informática, famoso pela filantropia, é o chefão do submundo da destinação ilícita do lixo; um vírus  apelidado de “gripe suína” transforma-se numa pandemia mortífera, alastrando-se pelo território do país…

Virose poderia ser uma coletânea de contos. Seria normal para uma estreia literária. Ambicioso, Lucas Barroso preferiu urdir um romance[1], explorando a vertente muito contemporânea dos seis graus de separação, em livros (Extremamente alto e incrivelmente perto, de Jonathan Safran Foer), filmes (Babel, Magnólia, Crash-No Limite, 360) e até seriados (Touch, com Kiefer Sutherland): a concepção, efetivada em termos de fabulação, de que as vidas individuais estão mais interligadas do que supõe nossa vã filosofia; e de que nenhum ato é gratuito, sem consequências, mesmo que inimagináveis para a pessoa fechada em seu mundinho próprio[2].

Nessa perspectiva, existências “se tocam” em Virose: por exemplo, o velho demitido é vítima das decisões do chefão da máfia do lixo; na cadeia, divide cela com o assassino da pizzaria. Certas frases reaparecem como refrões irônicos desses caminhos da providência, do plano de Deus: “as pessoas que não fazem dívidas não adquirem nada na vida”.

Um ponto que argamassa essas histórias: a maioria vira “noticiário” (mesmo os que não são notícia, transitam à volta do jornal que os veicula, como a secretária obesa e o entregador bem-dotado) nas mãos do único narrador em primeira pessoa dos 21 capítulos do romance, um jornalista “pau pra toda obra”, cobrindo todo tipo de matéria, e dando a cada uma delas o mesmo tratamento anódino, padronizado. De repente, é demitido também, contraindo uma vaga virose (como aquelas que estão  cotidianamente sendo diagnosticadas, mas não identificadas, de tal forma que viraram até piada pronta) que pode ser a mesma da pandemia, mas seus sintomas se traduzem mais numa paralisia da vontade, numa anomia: isolado no apartamento, sua única convivência próxima é com a mãe já morta, enquanto tem a expectativa de ser parte de uma contabilidade fatal:  “Quanto mais durmo, mais tenho sono… planejo ações que não pretendo realizar tão cedo. A vida é assim mesmo, a vida é assim… Minha mãe debate amenidades ou simplesmente me conta o que se passa na rua, nas horas que estou de olhos e ouvidos fechados. Minha mãe, agora, é minha consciência. Minha mãe faleceu há algum tempo (…) Mesmo não tendo uma rotina, sinto-me exausto… Ligo o computador e me atualizo um pouco…busco alguma companhia real: uma mulher, um amigo, um inimigo, tanto faz. Jogo conversa fora sem falar, sem sair da sala de estar. Discuto e me revolto sem me levantar da cadeira (…) Posso fazer parte de um grupo de risco, que não pode sair do hospital, de casa, de uma solitária. Posso desencadear uma peste ou derrubar um homem para sempre. Que lástima, como isso aconteceu? Ainda não tenho um diagnóstico. ..Minha vida estava em risco. Eu era notícia,um jornalista que poderia fazer parte da estatística, mais um número, talvez, mais um morto a ser inserido no balanço final. Quem escreveria minha história?”

Lucas Barroso é muito feliz na caracterização da “virose” de um jornalista que, encampando tantas histórias de vidas alheias, não se sente capaz de dar maior significado a elas[3] (por isso, nada mais natural do que a presença da falecida mãe: o mundo exterior se tornou fantasmático, virtual—e nesse mosaico “seis graus de separação” sua existência é a que não toca nenhuma outra[4]), a não ser colorindo-as de um falso verniz literário (é por isso que o romance começa—e isso não deve afugentar o possível leitor—da maneira mais fake possível, com diálogos inverossímeis entre o matador e sua vítima) quando não as desidrata no jargão associated press, nivelando o trágico, o exótico e o bizarro numa mesma miscelânea.

Já o acho menos bem-sucedido ao caracterizar a pandemia, narrada de forma ao mesmo tempo exagerada (fica parecendo um evento The walking dead) e truncada, mais uma sinopse do que um relato. Mais ainda: ele não consegue mesclar as duas “viroses”[5], o que seria crucial para as linhas de força de seu romance tão promissor, apesar dessa falha grave e de pequenos deslizes e arrefecimentos no seu texto, que se caracteriza, no geral, pelo uso austero e controlado (às vezes, por demais) da linguagem.

Assim como outros jovens escritores (como Javier Arancibia Contreras e Vinícius Jatobá), ele revitaliza os veios do expressionismo e do existencialismo; grosso modo, o mal-estar que envolve estar vivo numa sociedade tão desigual. Afinal, como desabafou seu conterrâneo Antônio Xerxenesky (cujo F comentei semana passada): “Depois de muito ter chafurdado na metaficção, deixei de lado esses recursos (…) Essa coisa de ficar escrevendo sobre o ato de escrever cansa – e muito!”. Já era tempo.

Acredito piamente que Deus tem um plano para Lucas Barroso como escritor.

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NOTAS

[1] Que ganhou uma boa edição (pela Bartlebee)—destaque para a capa com uma expressiva foto de Ramiro Furquim.

[2] VER: https://armonte.wordpress.com/2013/01/29/onze-de-bernardo-carvalho-o-mestre-de-paul-thomas-anderson-e-os-seis-graus-de-separacao/

[3] “(…) escrevo cinco matérias por turno e raramente ponho os meus pés na rua…”

[4] Pois mesmo as arestas, os aspectos desconfortáveis e risíveis (ainda que irrisórios) do dia a dia, não impedem que outros personagens procurem romper seu isolamento, como exemplifica a seguinte passagem: “Sabe-se lá a razão, mas com a obesinha, o motoboy, que tinha um pau de trinta centímetros, nunca broxou. Namoraram, casaram, tiveram filhos. Ele, no fundo, tinha um pouco  de vergonha dela.  Principalmente quando ia a jantares na casa de familiares e amigos. Ela também tinha vergonha da profissão e do rosto marcado dele. Principalmente quando conversava com familiares e amigas. De qualquer forma, ambos foram feitos um para o outro, gostavam-se.”

[5] A “virose” mais existencial (ao mesmo tempo, muito “social”) do jornalista também acomete outros personagens, como o assassino da pizzaria: “Conseguiu, depois de dois meses, uma vaga no departamento de lixo da cidade. Sentia-se humilhado por ter de enfiar a mão nos restos, na merda das pessoas, todo o dia. Doía ter que reciclar toda aquela imundície. Separar o que era orgânico do que era seco. O dia encerrava e ele sempre estava cansado, acabado. Como se contagiado por uma virose, que o prostrava mais e mais em sua solidão…” Neste trecho, insinua-se um dos pontos contraditórios e não inteiramente resolvidos de Virose: relatórios esquemáticos sobre a trajetória dos personagens—por vezes, esquemáticos em excesso; em contrapartida, transmitindo sucintamente a uniformidade que é uma praga contemporânea tão mortal quanto qualquer pandemia.

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12/08/2014

O tempo que, apesar dos espelhos, caminha em uma única direção: o inquietante “F”, de Antônio Xerxenesky

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“Inúmeras coisas aconteceram, e não entendo a relação entre elas. Não consigo avaliar o princípio nem o rumo que os acontecimentos estão tomando. No final das contas, praticamente fui envolvida nisso sem saber…”  (“1Q84- Livro 3”)

“Por alguns dias, escutei Bruce Springsteen, este americano tão americano, um músico mais afeito às guitarras do que aos sintetizadores, um roqueiro à moda antiga, e pensei nas possibilidades de vida que se espraiavam diante de meus olhos, ainda mais com tanto dinheiro para gastar (…) para não precisar me preocupar com o assunto por meses, um tempo para apreciar o ócio e as tardes inúteis, um tempo para assistir a mais filmes (…) e por dias posso me dedicar apenas a percorrer Los Angeles de carro ou a pé, fingindo que sou uma turista sem rumo ou mapa, enxergar a luz das cinco da tarde sem óculos escuros, com os olhos curiosos de quem nunca viu o sol.” (“F”)

“Não tinha para onde voltar, e não tinha para onde ir, pois todo lugar é qualquer lugar.” (“F”)

(uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 12 de agosto de 2014)

Na Granta-Os Melhores Jovens Escritores Brasileiros (2012), seleção de textos de 20 ficcionistas nascidos a partir de 1972, um dos destaques incontestáveis era F para Welles, excelente amostra de um romance em preparação, criando enorme expectativa[1]. No ano em que seu autor, Antônio Xerxenesky, completa 30 anos, enfim aparece F.

Assim como o badalado (e recém-traduzido) 1Q84, de Haruki Murakami, o relato tem como protagonista uma peculiar assassina de aluguel agindo em meados da década de 1980: aos 25 anos, Ana já tem reputação assegurada na área das execuções. A sua próxima vítima é o septuagenário Orson Welles, lenda viva do cinema que nem assim consegue financiamento para levar a cabo seus projetos: o último foi o incompreendido e inovador F for Fake (aqui no Brasil, Verdades e Mentiras), de 1973.

Como faz todas as vezes, ela procura conhecer minuciosamente o alvo, por isso mergulha na obra do diretor de Cidadão Kane, a princípio não se impressionando nem um pouco. Até que um dia recebe o impacto tardio de uma das imagens daquele incensado filme, realizado aos 25 anos (para a desgraça futura do seu realizador): abandonado pela esposa, isolado e obsessivo, Kane atravessa “um corredor que tem espelhos nas duas paredes. Ao passar pelos espelhos, o reflexo de um reflete o do outro, gerando uma continuidade de imagens que prossegue até o infinito.” É o signo do sombrio e tortuoso processo que fará Ana se dar conta do que é viver no pós-tudo, principalmente ao conviver com Welles em Los Angeles, como suposta assistente de uma nova produção dele (baseada em Os sonhadores, de Isak Dinesen/Karen Blixen, onde uma mulher se multiplica em várias imagens para homens diferentes[2]): mais do que qualquer outra coisa, começa a desejar que ele consiga concluir o projeto, e desiste de eliminá-lo, embora no final acabe levando o crédito por sua morte…

Como esse avatar de assassina era até aí a sua “identidade”[3], que a defendia de memórias terríveis (o pai não só colaborou com a ditadura brasileira, aperfeiçoando máquinas para a tortura de presos políticos, como também abusava da outra filha, Lúcia), pouco movida por qualquer ideologia—embora seu treinamento inicial tivesse ocorrido em Cuba—, Ana tateia um mundo à volta cada vez mais fantasmático e perigosamente dissolvente, uma (ir) realidade onde começam a intervir irreversivelmente a batida eletrônica, as drogas sintéticas, a computação (todo o território da virtualidade) — os resultados de certas rupturas revolucionárias na estética e na percepção, como o modo de editar imagens realizado por Welles em F for Fake (antecipador do videoclipe), ou o som do Joy Division:

  “Sem acreditar em céu ou inferno, só me restava acreditar que, com minha morte, o mundo acabaria. Orson Welles não existiria, nem seu filme novo, nem Antoine, nem a boate, nem a música. A música por sinal era Isolation, do Joy Division, e me perguntei se Ian Curtis, antes de se enforcar no varal, tivera a revelação que estava definindo o som do futuro; que, assim como os Lumière definiram a mídia do século, e assim como Welles tinha inventado uma nova maneira de editar e estrutura um filme com F for Fake, Ian previra a música dos anos 80, o ruído e o silêncio, a distorção da guitarra coexistindo com a artificialidade noturna do sintetizador, e a sua voz—grave, em todos os sentidos—era uma mensageira que transportava um recado muito específico, uma mensagem de autodestruição, uma mensagem de morte. E então, enforcou-se no varal onde pendurava as fraldas de sua filha pequena (…) Porém, para Antoine, eu estava errada, Joy Division não tinha nada a ver com o som do futuro. Ele se identificava com o New Order, a banda formada pelos remanescentes do Joy Division, a banda interessada em deixar para trás o clima soturno e criar hits de pista. Bastava escutar com mais atenção algumas faixas do New Order, no entanto, para captar, preso em um acorde menor o fantasma de Ian Curtis, um espectro que, apostava Antoine, a banda precisava expulsar (…) Ele ignora, portanto, que a chaminé do crematório espalhou por toda Manchester—por todo o Ocidente—uma fumaça nascida dos restos mortais de Ian Curtis, que ninguém se livraria dele, muito menos os companheiros de banda que tanto conviveram com o rapaz saturnino […que…] tinha aberto um furo de alfinete no tecido da existência e olhado através dele, e pelo buraco enxergou o som do futuro, e enxergou o futuro, que é a morte. Someone take these dreams away/that point me to another day, ele pede, mas não será atendido, os sonhos continuarão apontando para um passado que não está mais lá, e não há retorno possível, o tempo caminha apenas em uma direção, rumo ao futuro, o futuro que ele profetizou, e o futuro, repito—mas repetições nunca são o bastante—, o futuro é a morte.”

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O F do título seria então de fake, o falso, a impostura, os pastiches que se tornaram tão lucrativos na indústria cultural como um todo, e cada vez mais reivindicados pelos próprios artistas? Seria F de futuro, afinal o Brasil de 1985 saía da ditadura, ainda como o “país do Futuro” (em contraponto com aquele futuro à Ian Curtis, vocalista do Joy Division, sintonizado com o aniquilamento melancólico; ou ainda uma visão do futuro, como a sugerida por uma carta do inquieto tio de Ana, em que as cidades do mundo se uniformizam de forma a mal se distinguirem umas das outras[4])? É uma questão em aberto, e é quase irresistível seguir esse caminho (como já o fez Paulo Roberto Pires na orelha da edição da Rocco)[5].

De todo modo, ao contrário da frágil fábula (outro F) levada a cabo pelo colega japonês, favoritíssimo ao Nobel , em 1Q84(tido como um dos livros da nossa época; a meu ver, fake em demasia para tanto), o romance de Xerxenesky mostra que uma ficção (mais um F) bem urdida e consistente pode ser construída a partir de elementos aparentemente gratuitos, disparatados e até mesmo inconciliáveis. Aliás, o autor gaúcho vem preencher a lacuna deixada pela morte, em 2002, de Roberto Drummond (penso em livros, justamente dos anos 80, como Sangue de coca-cola; Hitler manda lembranças ou Ontem à noite era sexta-feira). Nem sei se Xerxenesky é leitor ou fã do criador de Hilda Furacão, entretanto a incorporação de elementos pop na essência da narrativa é algo notável nos dois, orgânica e profunda, e sobretudo muito rara[6].

Também não sei se era sua intenção a impressionante apreensão de um fracionamento imaginativo (a partir justamente das coordenadas cada vez mais fortes do universo pop) que tem mais a ver, talvez, com a minha geração, a dos nascidos em 1960[7].  E a criação da “voz” da narradora é um feito à parte, como amiúde insisto nesta coluna. Ter conseguido plasmar a linguagem dessa personagem é uma prova de que Xerxenesky já não merece ser visto como “jovem promessa”: está em plena posse da maturidade como escritor. Como Flaubert, ele poderá dizer , sem complexo de vira-lata: “Ana c´est moi”[8]. E ela é um pouco todos nós também, perdidos neste mundo contemporâneo e (para usar ainda um F) fugidio.

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Artigo F

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NOTAS

[1] VER aqui no blog: https://armonte.wordpress.com/2012/11/13/sobre-a-granta-e-os-melhores-jovens-escritores/. Só que, embora tenha adorado o trecho antecipado na Granta, equivoquei-me ao considerá-lo pelo prisma “leve e divertido”, que não faz totalmente jus ao romance.

[2] A capa da edição da Rocco com o formato gráfico do F do título lembrando os letreiros finais da série Bourne (na qual o protagonista não sabe exatamente qual a sua identidade, assumindo várias como assassino governamental, depois trânsfuga) também nos coloca no caminho dessa multiplicação incessante.

[3] Que ela encontra “espelhada” em produções cinematográficas: “Na videolocadora, me deparei com um filme que me chamou a atenção pelo nome. Crente de que era uma obra situada no Japão feudal, tirei da prateleira a fita O samurai, de Jean-Pierre Melville, a história de um sujeito estoico que mora em um minúsculo apartamento em Paris e ganha a vida como assassino por encomenda. A partir daí desenvolvi uma curiosidade por todo e qualquer filme cujo protagonista é um matador de aluguel (…) Mas o mais curioso é que quase todos os filmes retratam o assassino à moda de Melville, ou seja, um tio frio e durão, que esconde sentimentos enterrados em uma profundidade inalcançável. Outsiders, pessoas que não funcionam em sociedade. Assistia a filmes de assassinos de forma compulsiva, mas não me identificava com nenhum.”

[4] “… não faço ideia de onde estarei quando você sentar à mesa para redigir uma resposta. Espero que não em Seul: muitos carros, muito ruído (…) Meu medo é de que todas as cidades, daqui a uns cinquenta anos, transformem-se em réplicas de Los Angeles. E pensar que eu adorava Los Angeles.”

[5] Como [ressalvadas as muitas diferenças] outro título ancorado numa letra (ou inicial) “desdobrável” ou refletida em muitas imagens: V., de Thomas Pynchon, no qual podemos ler: “O que são umas coxas abertas para o libertino, o voo das aves migratórias para o ornitólogo, a parte móvel da ferramenta para o mecânico de produção, assim era a letra V para o jovem Stencil. Sonhava talvez uma vez por semana que fora tudo um sonho, e que agora estava desperto ia descobrir que a busca de V. era apenas uma pesquisa escolar afinal, uma aventura da mente, na tradição do Ramo de Ouro ou da Deusa Branca”.

[6] Sim, porque mais comum é: ou o autor “pós-moderno” enxerta informação “eruditas”, que parecem tiradas diretamente do google, como fizeram tanto Rubem Fonseca nos seus piores momentos como também seus seguidores; ou o autor tenta fazer o mesmo com um referencial mais pop, como fizeram tanto Bret Easton Ellis nos seus piores momentos como milhares de outros.

[7] Que tanto se formou com as realizações “vanguardistas” da época e ao mesmo tempo com “enlatados” televisivos como Além da Imaginação, naquela ruptura de padrões culturais estanques que caracteriza em certa medida o triunfo da chamada pós-modernidade.

[8] Afinal, estamos num universo de obsessivos que não seria estranho ao autor de Madame Bovary. Como diz Welles a Ana, “a obsessão exige muito do corpo do homem, não é fácil manter uma obsessão”. Ana descobrirá na carne o que é percorrer esse caminho.

Sobre Welles, aqui no blog, VER: https://armonte.wordpress.com/2013/03/29/longe-da-fronteira-a-marca-da-maldade-o-romance/

Sobre Murakami e 1Q84, VER:

https://armonte.wordpress.com/2014/01/21/lua-de-papel-1q84-de-murakami/

https://armonte.wordpress.com/2014/01/28/1q84-livro-3-de-murakami-a-poltrona-vagabunda-seduz-mais-que-a-sabedoria-da-coruja/ 

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10/08/2014

Milan Kundera e a insustentável forma de “A festa da insignificância”

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[O texto abaixo foi publicado originalmente no “Letras in.verso e re.verso”, em 06 de agosto de 2014,

VER: http://letrasinversoreverso.blogspot.com.br/2014/08/a-insustentavel-forma-de-festa-da.html]

 

I

O lançamento, com toda a pompa e circunstância[1], de A festa da insignificância, e o fato de que o novo romance de Milan Kundera já encabeça a lista dos mais vendidos (pelo menos no site da Livraria Cultura) se revestem de aspectos dignos de nota: há 30 anos, o autor tcheco era a bola da vez, como se diz, com A insustentável leveza do ser. Nem antes (apesar do seu prestígio) nem depois ele alcançaria tal repercussão. No Brasil, alguns títulos (obras anteriores) ainda se beneficiaram da “onda Kundera”; logo passou, mesmo porque certa ala dos nossos intelectuais associou o sucesso na lista dos mais vendidos à ideia de banalidade; para muitos, tratava-se de um escritor pretensamente sofisticado e profundo, mas com pouca substância, no fundo (em contrapartida, muitos leitores “comuns” compravam os livros e desistiam de ler, achando-os “difíceis”); para outros (é o meu caso), A insustentável leveza do ser representara a descoberta de um grande escritor[2].

Além disso, depois de passar a escrever diretamente em língua francesa, produzindo pequenos romances[3], é a primeira vez, já que A festa da insignificância é dividido em sete partes, embora curto como os três anteriores, que Kundera retorna à sua arquitetônica obsessiva, tal como caracterizada na célebre entrevista a Christian Salmon (da Paris Review): “Existem duas formas-arquétipos em seus romances: 1) a composição polifônica que une elementos heterogêneos em uma arquitetura fundada sobre o número sete; 2) a composição vaudevillesca, homogênea, teatral, que roça o inverossímil, e que se funda sobre o cinco”, sintetiza Salmon[4]. Kundera: “Sonho sempre com uma grande infidelidade inesperada. Mas até o momento não consegui escapar dessas duas formas.

   Então tentarei a seguir proceder a uma avaliação do novo romance-sensação (já em fase de gerar reações ambivalentes), roçando primeiramente a sua temática — afinal, os leitmotivs filosóficos sempre são um destaque, para admiração ou depreciação, na sua obra kunderiana —; e depois considerando essa volta à prisão, por assim dizer, das formas metronômicas, dentro da sua carreira como “escritor de língua francesa”.

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                                                  II

“A grande ideia de Schopenhauer, camaradas, é que o mundo é apenas representação e vontade. Isso quer dizer que por detrás do mundo tal como o vemos não existe nada de objetivo, nenhum Ding an Sich[5], e que, para fazer existir essa representação, para torná-la real, deve haver nela uma vontade: uma vontade enorme que a imponha (…) A questão é esta: existem tantas representações do mundo quanto pessoas sobre o planeta; isso cria inevitavelmente o caos; como pôr ordem nesse caos? A resposta é clara: impondo ao mundo inteiro uma única representação. E ela só pode ser imposta por uma única vontade, uma única imensa vontade, uma vontade acima de todas as vontades… E asseguro-lhes que sob o domínio de uma grande vontade as pessoas acabam acreditando em qualquer coisa.” [6]

     Quem está com a palavra no trecho acima é Stálin, evocado em A festa da insignificância a partir de anedotas colhidas nas memórias de um posterior dirigente supremo da União Soviética, Nikita Khruschóv, lidas por alguns dos personagens do romance. Elas nos remetem a uma época em que ainda não fora decretado o “fim da história” e em que havia Grandes Narrativas., como o marxismo — transformado (e o trecho sugere que deliberadamente) em uma impostura: o stalinismo.

É desconcertante (e provocante) a evocação da figura de Stálin porque o narrador envolve o ditador numa aura de gracejo (sim, Stálin graceja e chega a ser frívolo), enquanto em torno—e isso é o Terror—espalha uma mentalidade de mortal (ainda que risível) seriedade, um dos grandes temas kunderianos.

Num mundo de impostura, onde uma versão da realidade, uma representação, é escolhida como A Verdade, não há liberdade para a insignificância básica da existência (uma insignificância benigna): tudo é levado a sério. Daí o escândalo de Khruschóv e dos outros membros do Partido à volta de Stálin quando percebem que ele contou uma mentira. No mundo totalitário, a pequena comédia privada tem alto valor subversivo em contraposição à Grande Comédia da impostura universal.[7]

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                                   III

“Agora, a insignificância me aparece sob um ponto de vista totalmente diferente de então, sob uma luz mais forte, mais reveladora. A insignificância, meu amigo, é a essência da existência. Ela está conosco em toda parte e sempre. Ela está presente mesmo ali onde ninguém quer vê-la: nos horrores, nas lutas sangrentas, nas piores desgraças. Isso exige muitas vezes coragem para reconhecê-la em condições tão dramáticas e para chamá-la pelo nome. Mas não se trata apenas de reconhecê-la, é preciso amar a insignificância, é preciso aprender a amá-la. Aqui, neste parque, diante de nós, olhe, meu amigo, ela está presente em toda a sua evidência, com toda a sua inocência, com toda a sua beleza. Sim, sua beleza. Como você mesmo disse: a animação perfeita… e completamente inútil…”

    Agora quem está com a palavra é Ramon, um dos protagonistas (os outros são seus amigos Alain, Charles e Calibã, além de um ex-colega por quem nunca teve muita simpatia, D´Ardelo) de A festa da insignificância, numa Paris atual, pós “fim da história”, muito longe da representação única imposta pela vontade stalinista e numa Europa-Novo Milênio onde multidões entediadas fazem fila para uma exposição de obras de Chagall como poderiam estar fazendo qualquer outro investimento de tempo e de consumo (para fugir ao tédio e ao vazio, mas incorporando-os na própria ação, que sempre parece insatisfatória nessa “economia de desejos”).

Os leitores de A insustentável leveza do ser vão lembrar-se de que seus protagonistas, mesmo longe da opressão stalinista e de uma Praga ocupada pelos russos, sentiam um mal-estar indisfarçável na ultrademocrática Zurique. Dessa vez, Stálin recuando para o universo anedotário, vagueando pela capital francesa, o que ocupa os seres kunderianos, esses caracteres ficcionais que o narrador confessa amar (“Os quatro companheiros que lhes apresentei: Alain, Ramon, Charles e Calibã, eu os amo. Foi por simpatia com [sic] eles que um dia trouxe o livro de Khruschóv a fim de que todos se divertissem”)?

Basicamente, eles (e mais D´Ardelo) se dedicam a pequenas comédias íntimas e imposturas inofensivas (até certo ponto), que não se chocam com nenhuma vontade única e excludente. Talvez porque cada um deles seja manqué de alguma forma: por exemplo, Calibã é um ator (assim alcunhado por ter brilhado na pele do personagem shakespeariano) há anos desempregado (no esteio da cambaleante práxis do “estado de bem-estar” vive do seguro-desemprego), que auxilia, como garçom, Charles em coquetéis e festas. Para tanto, criou para si a persona de um paquistanês que não fala o francês, ele e Charles comunicando-se numa linguagem inventada com o fito de dar verossimilhança à farsa; D´Ardelo, por sua vez, aparece pela primeira vez no romance recebendo a informação de que seus exames não apontaram o câncer que ele temia; porém, ao encontrar Ramon (que, como já apontei, nunca teve muita simpatia por ele), seu colega aposentado, informa-o de que está com a doença. Nesse ponto, mais uma vez vemos a implicância de Kundera com um conceito derrisório de seriedade: “Fiquei comovido com a maneira como ele me contou… muito lacônica, quase pudica… sem demonstrar nenhum sofrimento, sem narcisismo algum. E de repente, pela primeira vez, senti por aquele cretino uma verdadeira simpatia… uma verdadeira simpatia…”, diz Ramon.

Já Alain, observando os corpos femininos, medita sobre o “umbigo” como nova zona erótica[8], substituindo coxas, bundas, peitos, e o significado disso para caracterizar nossa época, o que remete tanto às ásperas polarizações ideológicas em que se taxava alguém “alienado” como aquele preocupado “com o próprio umbigo” (o que justificaria sobremaneira essa parte do corpo como obscuro objeto de desejo numa fase histórica loucamente ensimesmada), quanto à própria biografia do personagem, abandonado pela mãe ao nascer (ela não queria ter filhos), e aí há toda uma distorção da mística do cordão umbilical, o amor materno, etc. Inconformado com esse abandono, Alain inventa diálogos com o retrato dela, e no decorrer da narrativa, a voz fictícia da mãe vai adquirindo força e acompanhando-o até fora dos limites do retrato.

   Portanto, os personagens de A festa da insignificância procuram, através desses pequenos logros ou imposturas, escapar da insignificância não benigna, isto é, do indiferenciamento e uniformidade que transforma toda a fruição da vida moderna numa fila enorme e entediada para uma exposição de Marc Chagall[9]. E escapar da inquietante evidência[10] da pluminha na festa (uma festa de verdade, não a metáfora do título) de aniversário de D´Ardelo (organizada por Charles, com Calibã como garçom, e à qual —a contragosto—comparece Ramon), que deixa siderados os convidados, tentando apanhá-la: “Ela erguia a mão com o indicador em riste para que a pluminha pudesse aterrissar nele. Mas a pluminha evitava o dedo e continuava sua errância…”

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IV

Espero, ao utilizar as expressões “insignificância benigna” e “insignificância não benigna”, ter sugerido a feição ambivalente e até prismática que o conceito de “insignificância” toma no romance de Kundera. A insignificância pode, por exemplo, ser benigna quando relativiza e solapa a seriedade como imposição totalitária; e pode ser não benigna quando o irrisório passa a ser um projeto contínuo e conspícuo de como empurrar as existências pela frente.

Penso que haverá quem considere que ele apenas arranhe superficial e frivolamente essas implicações (lembrando que Kundera sempre gostou de explorar conceitos já nos títulos que escolhe: “imortalidade”, “lentidão”, “ignorância”, “identidade”, e mesmo, de forma menos evidente, “esquecimento”, “leveza” etc). Acredito, porém, que o calcanhar de aquiles do livro está na questão da forma romanesca, naquelas duas formas-arquétipos já citadas e às quais retorno.

Escrevendo numa segunda língua, ratificada sua condição de “exílio” (e de autor que, essencialmente, é conhecido via tradução, pois seus originais estavam censurados no país de origem), tive a impressão, ao longo dos anos em que acompanhei o lançamento dos seus três romances em francês, de que aos poucos ele desatava os nós e recuperava seus dons. Recapitulando: começou meio duro, apesar do despojamento formal, com A lentidão; o seguinte, A identidade, já era mais equilibrado, e finalmente com A ignorância (para mim, o melhor Kundera pós-A insustentável leveza do ser) parecia ter sido encontrado o ponto certo, na história de dois exilados tchecos, Irena e Jozef, pressionados a voltar à pátria após a queda do regime comunista. No relato desse retorno, o próprio autor parecia ter reencontrado seu “laço secreto” com a fonte de seus dotes: “É a essa Praga  que ela é afeiçoada, não aquela suntuosa, do centro… Sonhadora, ela caminha;  durante alguns segundos entrevê Paris,  que, pela primeira vez, lhe parece hostil: geometria fria das avenidas… e em nenhum lugar um único toque dessa intimidade amável, um só sopro desse idílio que ela respira aqui; aliás, durante todo seu exílio foi esta imagem que ela guardou como emblema do país perdido… ela se sentia feliz em Paris, mais do que aqui, um laço secreto de beleza a ligava só a Praga[11].

A ignorância demarcava também um possível estilo tardio kunderiano, ao mesmo tempo reconhecível por seus temas e mais depurado, concentrado. Nesse sentido, A festa da insignificância me parece um tremendo retrocesso, uma volta diluída aos procedimentos anteriores à “fase francesa”, inclusive a opção infeliz por dividir uma narrativa tão curta em sete partes[12].

Creio que até mesmo dentro do fetichismo das duas formas, teria sido preferível algo mais vaudevillesco, do tipo A valsa dos adeuses. Mesmo um romance “filosófico” (termo detestável), pelo próprio estatuto épico do gênero, precisa se espraiar em ação e conflitos para que suas ideias sejam encarnadas com mais vigor e mais verossimilhança. Da maneira como A festa da insignificância foi estruturado, houve um efeito de compressão sem adensamento. A forma sendo “séria” (ou “larga” ou “ampla”—tudo o que poder evocar o polifônico, isto é, os contrapontos narrativos e rítmicos em que ele sempre foi um mestre) e o conteúdo tendo a ressonância (e consequente impacto) de um piparote, a impressão é que temos é que o romance que lemos representa um descompasso entre ambos.

Kundera ama seus personagens, contudo não se deu ao trabalho de nos fazer amá-los também. E quem, como eu, tem pelo menos a Sabina de A insustentável leveza do ser em altíssima conta, entre as personagens da ficção das últimas décadas, acaba se sentindo um pouco logrado.

A lentidão de Milan kundera

NOTAS

[1] Capa dura, com uma imagem (de Dominique Corbasson) muito bem escolhida. Lamentável (e desnecessário) é a Companhia das Letras ter colocado um apelativo BEST SELLER INTERNACIONAL para chamar a atenção sobre o livro.

[2] Gosto muito de todos os livros de Kundera, no entanto para mim suas obras-primas são os romances A brincadeira e A valsa dos adeuses e a coletânea de contos Risíveis amores.

[3] A lentidão; A identidade; A ignorância.

[4] Exemplos da primeira maneira: O livro do riso e do esquecimento, A insustentável leveza do ser e, agora, o romance aqui em questão; exemplo da segunda: A valsa dos adeuses.

[5] A “coisa em si” por trás das representações, na concepção de Kant.

[6] Em todas as citações de A festa da insignificância [no original, “La fête de l´insignifiance”), valho-me da tradução da kunderiana-mor Teresa Bulhões Carvalho da Fonseca (Companhia das Letras, 2014).

[7] Que seja Stálin quem pratique a pequena comédia da mentira, da impostura privada, inclusive como objeto de anedotas, é um achado delicioso.

Lembremos-nos de outro tcheco, o Kafka de O processo: “A mentira se converte em ordem universal”.

[8] Não custa lembrar que o don-juanismo, em seus esplendores e misérias, em sua glória e melancolia, é um dos motes recorrentes da obra de Kundera.

[9] Não posso deixar de apontar que essa imagem da fila revela um sentimento elitista e muito nostálgico da ideia de Europa-civilização (que também tem o seu quê de impostura) que me parece muito problemática, mas que não me proponho a desenvolver aqui, só deixo a indicação.

[10] Ou aceitá-la, como faz Ramon.

[11] Cito esse trecho de A ignorância utilizando a versão de Tereza Bulhões Carvalho da Fonseca (Companhia das Letras, 2002).

[12] Ricardo Lísias parece ter matado a charada, ou seja, a perplexidade (que pode ser traduzida como insatisfação) que a leitura de A festa da insignificância causa no sentido da falta de ressonância formal para aquilo que se propõe: “O livro me deixou perplexo: tem tudo dos melhores romances de Kundera, mas em proporções reduzidas. As personagens são apresentadas de forma ligeira e seus conflitos também são rasos. Os diálogos são um tanto frívolos e o livro vai aos poucos se desfazendo, sem que eu tivesse conseguido entender se isso faz parte da construção de uma espécie de discurso do insignificante (nós que sempre buscamos significantes…) ou se o livro não deu certo mesmo.
Dizendo de outro jeito: não consegui saber se o autor, para mostrar um grupo social insignificante, fez um livro com tudo mais ou menos insignificante, ou se sou eu que estou procurando qualidades demais em um livro menor de um grande autor. De um jeito ou de outro, um autor como Milan Kundera merece no mínimo essa dúvida.”

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07/08/2014

O clã Honório Cota na obra de Autran Dourado: “Ópera dos mortos”, “Lucas Procópio”, “Um cavalheiro de antigamente”

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PERCURSO PELA ‘OPERA DOS MORTOS”

Ópera dos Mortos foi o livro com o qual Autran Dourado (1926-2012) consolidou seu universo peculiar de ficção, Duas Pontes (cidade imaginária do sul de Minas, quase na divisa com São Paulo)[1]. 

     Esse romance de 1967 alterna duas técnicas narrativas principais: um tom “coral” (um recurso de que Autran será useiro e vezeiro nas obras posteriores), um narrador que absorve o ponto de vista da cidade, muito presente nos dois capítulos iniciais, no capítulo do meio (o 5º.) e no capítulo final, que começa de forma típica: “De repente a gente voltava ao sobrado. Atravessamos finalmente a ponte, o sobrado abria as portas para nós”; a alternância de discursos indiretos livres (aquele em que o narrador em terceira pessoa se funde de tal forma ao ponto de vista da personagem que não se sabe o que é de um ou de outro, e que sem chegar ao fluxo contínuo que é o stream of consciousness (imitação do processo associativo que é o nosso pensamento) de vários personagens, principalmente de Quincas Ciríaco, Rosalina, Juca Passarinho e Quiquina.

No primeiro capítulo, o narrador coral, “a gente”, apresenta o sobrado, comentando sua estranha construção: a parte de baixo foi construída por Lucas Procópio Honório Cota (sobre o qual correm “as brumosas histórias de um homem antigo que fazia justiça sozinho, que se metia com os seus escravos por aqueles matos, devassando, negociando, trapaceando, negaceando, povoando, alargando os seus domínios, potentado, senhor rei absoluto”); a parte de cima pelo seu filho, João Capistrano Honório Cota (“homem sem a rudeza do pai, mais civilizado, vamos assim dizer”). Ora, o encarregado da construção pensa em refazer a casa inteira e ouve a seguinte resposta: “Não derrubo obra de meu pai. O que eu quero é juntar o meu com o de meu pai. Eu sou ele agora, no sangue, por dentro. A casa tem de ser assim, eu quero. Eu mais ele, numa argamassa estranha de gente e casa.”

No segundo capítulo, conta-se a história da família Honório Cota, concentrando-se principalmente no episódio que fez João Capistrano “brigar” com a cidade, fechando o sobrado para ela: estamos na República Velha, ele afinal tem uma filha que vingou, Rosalina, após os muitos abortos e filhos natimortos, está em plena prosperidade, com os cafezais. Acalenta sonhos políticos quixotescos. Na política mineira, há dois partidos, os sapos e os periquitos, respectivamente os velhos partidos do Império “modernizados”, o Liberal e o Conservador. Por natureza, João Capistrano era um conservador e apoiaria naturalmente o chefe político da região, dos periquitos, senador Dagoberto. Porém, exaltado e idealista (“Era generoso, tinha grandes ideias para o Brasil. Se encarnava no avô, se via fazendo longos discursos na Assembleia Constituinte do Império”), começa a fazer reparos ao governo e é tomado como adepto dos sapos.

O sobrado passa a ser frequentado quase todas as noites e João Capistrano, candidato, é eleito. Mas há um conchavo entre os dois partidos (e para ambos ele é uma figura incômoda), os votos são recontados e roubados. Alertado de que “política é assim mesmo, não tem jeito —mão na bosta”, e colhido de surpresa pela morte da mulher, a sensata e pé-no-chão dona Genú, um ano depois, ele se fecha e a filha lhe faz companhia:

“E ninguém teve mais a coragem de cumprimentar o coronel Honório Cota feito antigamente… O coronel Honório Cota voltou à sua antiga morada para guardar a espada, elmo e couraça, encostou a sua lança. Voltou ao que era, ou melhor —ficou mais triste e ensimesmado do que era… Rosalina, já moça, procurava ampará-lo era assumir o silêncio do pai, aquele mesmo ar casmurro e pesado, de dignidade ofendida, aquele ódio em surdina, duradouro, de quem nunca se esquece.”

Quando as pessoas da cidade vão prestar condolências e homenagem, numa cena muito teatral, ele desce as escadas do sobrado, não diz palavra a ninguém, dirige-se ao relógio-armário do salão e para o pêndulo. Após sua morte, todo mundo acorre ao sobrado, pensando que finalmente a birra entre o sobrado e Duas Pontes vai terminar, e há uma cena ainda mais teatral, deliberadamente teatral:

      “Rosalina descia as escadas, toda a sua figura bem maior do que era, a cabeça erguida, digna, soberba, que nem uma rainha —os olhos postos num fundo muito além da parede, os passos medidos, nenhuma vacilação; trazia alguma coisa brilhante na mão. Rosalina era uma figura recortada de história, desses casos de damas e nobres que contam pra gente, toda inexistente, etérea, luar… Abriu-se caminho para Rosalina…aquilo que ela trazia na mão era o relógio de ouro do falecido João Capistrano Honório Cota, aquele mesmo que a gente babava de ver ele tirando do bolso do colete branco, tão bonito e raro, Pateck Philip dos bons, legítimo. Que ela colocou num prego na parede, junto do relógio comemorativo da Independência. Os relógios da sala estavam todos parados, a gente escutava as batidas do silêncio. Só na capa ouviam a pêndula no seu trabalho de aranha… A gente via tudo em silêncio de igreja: Rosalina subiu de novo as escadas, direitinho como desceu.” [2]

Dados os antecedentes, a narrativa salta mais ou menos uns quatorze ou quinze anos, e vemos Rosalina-Antígona, lá pelos 30 anos, vivendo trancada dentro de casa, enterrada viva, não falando com ninguém na cidade a não ser o seu camarada de infância, candidato a noivo (entretanto, casou-se com outra), Emanuel. Rosalina convive apenas com Quiquina, a criada muda, e às tardes esta vai entregar as flores de seda e de pano que Rosalina confecciona (creio que não é preciso insistir muito no simbolismo dessa atividade, que mostra a nossa heroína não só contra os costumes da pólis, como também contra a natureza; trocando em miúdos, Rosalina é uma flor de estufa). Nessas tardes (como à noite, também, quando se entrega à bebida, mas preocupando-se em manter as aparências para Quiquina: poupa o vinho mais caro, para não gerar falatório na cidade caso viesse a fazer encomendas, e se embebeda com o licor adocicado e enjoativo que Quiquina prepara), sempre é meio que tomada por fantasias nupciais.

No fundo, Rosalina desespera-se na casa onde se emparedou por orgulho:

     “Forçou não pensar, deixar as coisas existirem de manso, sozinhas, sem ela, frias. Mas as coisas naquela casa não era frias e silenciosas, um pulso batia no seu corpo, ecoava estranhos ruídos, como se de noite acordada tivesse sempre uma porta batendo… A casa vivia de noite, ou de dia naquele oco de silêncio que ensombrecia como se fosse de noite, como se ouvisse, como se fosse um coração batendo a sua pêndula. Coração de quem? Da mãe, do pai, de Lucas Procópio? Nunca se sabia. Talvez o coração da casa mesmo… aí estava ela de novo empurrada para as sombras… Mas ela não podia mexer nos relógios, não devia nunca mexer naqueles relógios. Os relógios eram um quebranto, parados eles batiam como de noite aquele coração penado no meio da casa.”

No quarto capítulo, aparece o elemento estranho, aquele cujo destino vai se chocar com o de Rosalina, mas ambos serão triturados pela engrenagem da falta trágica: José Feliciano, o Juca Passarinho, malandro, vadio, errabundo, que deseja um lugar de parada, onde não precise trabalhar muito, de preferência só com mulheres, sem homem para vigiar se faz o serviço ou não. Ao se aproximar de Duas Pontes, só imagens agourentas: o cemitério e as voçorocas, as terríveis goelas expostas da terra, causadas pela erosão (o que há de sexual e freudiano nas voçorocas, não é preciso ressaltar).

Para a surpresa de Quiquina, e desagrado também, Rosalina concorda com que Juca Passarinho trabalhe em pequenos serviços e se agregue ao sobrado (ela só não queria alguém que fosse da cidade, não permite a entrada de nenhum nativo na casa).

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O 5.o capítulo, postado estrategicamente no meio dos nove, chama-se Os dentes da engrenagem. Ele mostra como Juca Passarinho se torna querido na cidade, como as pessoas querem extrair dele notícias da intimidade do sobrado (“Desde os primeiros dias a cidade filhou Juca Passarinho, ele era um dos nossos. De novo tentávamos construir uma ponte para o sobrado, talvez por ali a gente pudesse passar”), e como ele mesmo tenta forçar uma maior intimidade (não sexual, ainda não), tentando sondá-la sobre o passado, “porque certas horas dona Rosalina não parecia a mulher feita de hoje. Era uma menina que contava seus casos, que fantasiava a vida. Era a vida e os seres vistos através dos olhos lumeados, do peito aberto de uma criança… A figura bem composta e cuidada não se casava com a voz e a fala doce e cantante que vinha de um fundo muito além, de uma outra pessoa…dona Rosalina era que nem um guará, ele tentava pegar o guará naquele casarão. Sempre escondida num lugar qualquer do sobrado, perdida no tempo.Não a pessoa de dona Rosalina, que esta era até muito parada e silente, naquele serviço quieto e vagaroso de fazer flor. Ele não sabia ainda que buscava nela a outra pessoa: a sombra, a alma de dona Rosalina”[3], sendo sempre, no fim, rechaçado e mandado de volta para o seu devido lugar. Ele, de tanto espiar, acaba conhecedor das noites de bebedeira de Rosalina, principalmente porque volta muito tarde, após ficar pela cidade, ou aproveitando o Curral das Éguas, o bordel dos pobretões de Duas Pontes (o Bordel da Ponte, mais chique, é para os coronéis e mais afortunados).

E é assim que começa o capítulo seguinte, O vento após a calmaria: Juca retorna ao sobrado, onde Rosalina espera a sua volta (sem admitir para si mesma), e bebe, e fantasia. Juca chega sedento, com gosto de cachaça e cerveja na boca, e não aprecia a água da bica, fica tentado pela água da moringa  dentro da casa, é claro. Só que Quiquina não só fecha a porta da cozinha, por onde ele poderia entrar, como também fica meio que de guarda. Só que nesse dia a porta está entreaberta. Juca penetra no casarão e esse verbo penetrar não é nada inadequado para uma ação, que, se conjugarmos casa e mulher, ambos recintos defesos, se assemelha a uma violação, uma violação longamente esperada (“Agora era ir em frente, não podia mais voltar. Que importava se o mandasse embora, queria ir até o fim, ver o que ia acontecer”). O vento após a calmaria.

Ele encontra Rosalina bebendo, e sonhando, ela permite que ele sente ao seu lado (“Temia que ela voltasse a ser a dona Rosalina diurna, a dona Rosalina de sempre…Nunca estivera tão perto dela…”). Desmancha-lhe o penteado, ela tira uma flor que guarda no peito e entrega a ele (“Desabotoou os primeiros botões da blusa branca. Quê que ela vai fazer? Pensou rápido. Não. Ele viu que ela tirava qualquer coisa escondida nos seios”), e só não há consumação de nada porque ambos veem Quiquina, consciência vigilante do sobrado, na porta da sala. Rosalina corre para cima.

No capítulo seguinte, A engrenagem em movimento ambos estão apavorados com as possíveis reações e decisões de Quiquina. Rosalina acorda numa terrível ressaca e não a encontra em casa. Fica pensando se acontecido “aconteceu” de fato ou foi fruto da sua imaginação. Só quando olha nos olhos de Quiquina percebe que tudo é fato. E Juca fica vagueando pela cidade, pelo cemitério, pelas voçorocas…

Notem-se as reticências, pois o capítulo seguinte (A semente no corpo, na terra) começa da seguinte forma: “E assim ele conheceu Rosalina.” Estabelece-se um ritual, em que a dualidade dia e noite, austeridade e luxúria, João Capistrano e Lucas Procópio, fica bem marcada (“Se o corpo lhe pertencia… A alma era dos mortos). Até que Rosalina passa a rejeitar Juca Passarinho e lhe nega acesso ao sobrado noturno: ela engravidou e tenta esconder de todos, inclusive de Quiquina, o que impede a esta de realizar um aborto. A gravidez vai impondo uma terceira Rosalina, cada vez mais diáfana e desligada da realidade (e o estilo mimetiza esse desdobramento da personalidade desdobrando-se em parênteses). Na noite do parto, Quiquina ajuda-a (ela tem dores lancinantes), congratula-se por ninguém da cidade ter descoberto a situação, e preocupa-se com o bebê, ao qual pretende matar, caso não siga a sina dos filhos de dona Genú e nasça “anjinho”. Como explicar uma criança no sobrado e manter a fachada de orgulho?

No final, Juca ouve um vagido de recém-nascido e depois um assustador silêncio. Quiquina lhe traz uma trouxa costurada, sanguinolenta e nauseabunda e manda que jogue nas voçorocas. Ele, apavorado, obedece a ordem de pegar a “coisa”, mas a enterra e depois fica deitado, esperando o amanhecer, para fugir da cidade, que cumpriu seus presságios com o cemitério e as goelas abertas.

E o último capítulo, Cantiga de Rosalina traz a cidade de volta para o sobrado, e a última visão de Rosalina reinando sobre todos, na sua escadaria, em meio aos relógios todos parados (Quiquina para o da copa, o último a funcionar na casa)…

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DESDOBRAMENTOS DA FAMÍLIA HONÓRIO COTA NA OBRA DE AUTRAN DOURADO

Como autor que gosta de fazer de suas obras uma Macro-narrativa, quase vinte anos depois de concluir a história de Rosalina, em 1985, Autran Dourado mostrou a raiz da maldição dos Honório Cota, a falta (no sentido trágico da tragédia grega) que determinou todo o destino narrado em Ópera dos Mortos. No romance Lucas Procópio, ficamos sabendo que o Lucas Procópio do livro anterior é um impostor, o capataz e assassino Pedro Chaves, que usurpou a identidade de seu patrão. Em Monte da Alegria (1990), Pedro Chaves/Lucas Procópio reaparece para assassinar a última pessoa que poderia desmascará-lo. E, por fim, em Um cavalheiro de antigamente (1992), conhecemos melhor João Capistrano, pai de Rosalina, e que herdou as características psicológicas do homem cuja identidade o pai dele usurpou.

O verdadeiro Lucas Procópio e seu amigo Francisco Fernandes Coutinho (o futuro Santinho de Monte da Alegria) são figuras quixotescas e arcaicas, compartilhando da mesma formação, por serem da mesma estirpe, que sofre a decadência (suas famílias eram riquíssimas no tempo do Ouro) com elegância, e que vem justamente a ser a formação de Isaltina, a qual acabará por casar-se com o brutal Pedro Chaves:

      “Não havia aquelas riquezas dos tempos dos antigórios. Aquela elegância de homens e mulheres que frequentavam a casa de José Antônio[4] era mantida a duras penas, com muito cuidado. Os ternos e vestidos eram escovados e passados, alguns com cerzidos que eles disfarçavam com aquela dignidade dos nobres decaídos e dos que conheceram a abastança e agora roem os ossos com a dignidade possível e orgulhosa.”

A inércia inicial de Lucas e Francisco se expandira para ações quixotescas, com resultados desastrosos (como mais tarde, a empreitada política de João Capistrano), não por acaso determinados por Pedro Chaves, que marca o fim do papel social desses herdeiros/deserdados do ouro. Um universo no qual Lucas é uma figura de destaque:

    “…de cabelos e barba com alguns fios brancos, era afidalgado, filho de Mateus Romeiro Cota, português que vinha da nobreza hereditária lusitana (aparentado a del-Rei, era o que gostava de dizer Mateus na sua alta e agressiva prosápia), não da nobreza individual e intransmissível do Império do Brasil; tinha os gestos elegantes e as maneiras finas. Era um belo exemplar de homem, achavam mulheres e homens. De voz poderosa e timbrada, ninguém como ele para declamar um poema”.[5]

Saindo de Ouro Preto, o “lucidamente louco” Lucas Procópio (a caminho de uma propriedade no arraial que é por enquanto Duas Pontes, no Império, propriedade que será usurpada por Pedro Chaves) prega a redenção: “antigamente, parte mito, parte fatos acontecidos…Lucas Procópio pregava o seu evangelho das Minas Gerais, o renascimento da velha e brilhante civilização do ouro”[6]. Ele surge nas cidadezinhas do interior (acompanhado por Pedro e pelo negro Jerônimo) como uma figura “estúrdia”

“…jamais vista naquelas paragens. Era mesmo coisa de sarapantar, matéria de pura invenção, sonho da gente, figuração saída de gravura de livro antigo. Os moleques, de natural livres e ousados, não se continham, exaltados e atrevidos. Cadê o resto do circo? começaram a gritar no desrespeito comum ao pessoal miúdo. A gente aqui sabia o seu tanto de História. Nunca porém se vira cara, vestimenta, cavalo, arreio, armas iguais, tudo antigório.”

Francisco, por sua vez, torna-se um “iluminado” religioso, na linha de Antonio Conselheiro, após uma experiência incestuosa com a irmã, Conceição.

O assassinato de Lucas é narrado da seguinte forma:

   “Pedro Chaves viu o patrão se levantar e ir em direção da canastra. Quando se voltou, gritou espantado vendo a carabina apontada para ele, as mãos no ar. Não faça isso, não faça isso, pedia. A arma apontada bem na cabeça de Lucas Procópio. Um pássaro trincou o silêncio estagnado, de cristal. A figura de Lucas Procópio contra o fundo azulado e luminoso do céu. Uma explosão, o corpo caiu. Está morto o coronel Lucas Procópio Honório Cota, gritou Pedro Chaves para o céu alto, tinindo de azul”.

É o final da primeira parte de Lucas Procópio, intitulada “Pessoa”. Depois, começa a 2ª., que narra o casamento do impostor com Isaltina e o seu apossar-se de Duas Pontes e arredores, intitulada “Persona”.

Já o assassinato do Santinho é assim:

    “O irmão Francisco se levantou e abriu a porta. Era um homem forte e troncudo, que usava barba comprida, já grisalho… Qual é a graça de Vossa Senhoria? disse ele. Eu me chamo Lucas Procópio Honório Cota, coronel da Guarda Nacional. Não é possível, disse o irmão Francisco, eu conheci Lucas Procópio Honório Cota, fui amigo dele. Vossa Senhoria é um impostor. Sim, não sou Lucas Procópio Honório Cota, há alguns anos passo por ele. Meu vero nome é Pedro Chaves, mas você vai ser a última pessoa a saber, eu espero. E tirando do coldre um revólver, Pedro Chaves desfechou dois tiros no peito do irmão Francisco.”

Essas mortes deixam o caminho livre para o falso Lucas Procópio Honório Cota (veja-se a importância do nome, com sua aura de nobreza, realçada pela sua repetição obsessiva nos dois trechos) dominar a cena, mesmo entre os coronéis da região, os quais, eles mesmos, se espantam com sua desfaçatez, pois faz em aberto coisas que eles fazem à socapa, mantendo as aparências.

Nada explicita melhor a hipocrisia dos outros coronéis, principalmente nos tempos republicanos, do que a atitude do delegado Requião, em Um cavalheiro de antigamente:

   “…ele mesmo deixava de perseguir os capangas dos coronéis do município, só exigia que eles não permanecessem dentro da cidade, na cidade mesmo só de passagem. Como era pouco o que ele queria, os coronéis que o mantinham na delegacia, do partido da situação, achavam uma exigência de somenos, até elogiavam, caso contrário viver nas Duas Pontes ficava perigoso para as famílias. Cobra e capanga é no mato, dizia seu Requião o chefe político das Duas Pontes, quando lhe contaram o ditado, riu muito, até louvou o zelo de seu Requião.”

Já Pedro Chaves, transformado em Lucas Procópio (isso é que é self made man), surpreende pelo seu arrivismo, que o coloca bem à vontade na passagem do Império para a República, quando também Duas Pontes deixa de ser mero arraial e transforma-se numa cidadezinha, que conhecerá seu auge durante a economia cafeeira:

   “…Lucas Procópio não era o que antigamente se chamava um caráter adamantino, um homem de bem. Seus negócios nunca foram limpos, não se podia confiar na sua palavra. De vontade férrea e imperiosa, mandão e atrevido…mesmo depois de um tanto transformado, Lucas Procópio nunca respeitou muito a lei, ele a burlava com desfaçatez, pelo que jamais foi punido…era senhor-rei-absoluto, fazia justiça com as próprias mãos.”[7]

É justamente essa tendência arrivista que o faz adaptar-se às mudanças que se fazem, na melhor tradição “gattopardo”, para tudo continuar como está, como se pode ler em Lucas Procópio:

    “O seu poder econômico de agora (na verdade, era a maior fortuna de Duas Pontes e arredores) levara-o fatalmente à política, uma era consequência do outro. A libertação dos escravos não o atingira tanto, pensando bem até lucrara com ela. Um ano antes, embora conservador por interesse e temperamento, vendera e alforriara os seus escravos e conseguira trazer para a Fazenda do Encantado colonos italianos contratados como assalariados ou pelo regime da meia e da terça… O único problema que passou a ter com os colonos é que muitos deles tinham noção de sua dignidade, preservada a todo custo… Muitos deles tinham ideias avançadas para a época, uma noção muito nítida dos seus direitos e interesses (…) Na política continuou a mesma tradição de mandonismo, própria daqueles tempos, que vinha ao encontro do seu antigo temperamento. Pela sua natural autoridade, pelo manso respeito que passaram a ter por ele na cidade, não lhe foi difícil chegar à chefia do Partido Conservador. Com a mudança do regime, passou a ser o presidente do Partido Republicano. O sistema autoritário dos primeiros anos da república era bem de acordo com o temperamento do seu chefe municipal.”

Portanto, o “temperamento” do falso Lucas Procópio condiz com o que se pede a uma autoridade nos primeiros anos da república. Um pouco mais adiante, há um trecho irônico sobre a “transformação” da figura pública de Pedro Chaves: “…ele se tornou, á sua maneira, um homem até ponderado Um tanto do trabalho de retoque da imagem pública de Lucas Procópio/Pedro Chaves fica a cargo do seu filho (que enfrentará o mundo com instrumentos mentais e um temperamento bem próximo ao homem que o pai assassinou).

No final de Lucas Procópio, no Ponto (o local em Duas Pontes onde os homens param para bater papo).

    “…viu passar por ele um preto, não lhe pareceu estranho. O preto andou alguns passos, se voltou. E sem que ninguém entendesse nada, gritou Pedro Chaves! (…) Armado de uma garrucha, o preto lhe desferiu um tiro no ombro. Mesmo ferido, o coronel ainda foi mais ligeiro. Sacou do revólver e desfechou no preto dois tiros seguidos, certeiros, que o prostraram no chão, morto. Quem era, lhe perguntaram. Não sei, um preto que deve ter me tomado por alguém que não sou, disse. E a si mesmo: Jerônimo, preto filho da puta!”[8]

Ao morrer, tempos depois, há um efeito “retrato de Dorian Gray”:

“…Quando mandaram tirar ao sua máscara mortuária, o que se viu não foi a cara serena do velho Lucas Procópio Honório Cota em que o homem se transformara, nome pelo qual a gente o conhecia, mas a cara enrugada, dura, má, sinistra, que ficara na cera: na verdade as feições do terrível e antigo feitor Pedro Chaves, tanto tempo escondido.”

Esses antecedentes (criados posteriormente) são indispensáveis à fruição da história de Rosalina? Pode ser que não, mas são apaixonantes. E ajudam a compreender o objetivo do curso, de relacionar tragédia e romance. Ao escavar as origens, Autran Dourado dá mais uma demão nas camadas que envolvem o sobrado, argamassa estranha de casa e gente.

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VOLTANDO À “ÓPERA DOS MORTOS”: O ÚLTIMO CAPÍTULO

    A Cantiga de Rosalina, último capítulo de Ópera dos Mortos, se inicia com a triunfante afirmação do narrador-coro:

    “De repente a gente voltava ao sobrado. Atravessávamos finalmente a ponte, o sobrado abria as portas para nós. Era como das outras vezes, quando dona Genú morreu, quando o coronel João Capistrano Honório Cota se foi para sempre. Naquela casa tudo tendia a se repetir.”

O filho de Rosalina com Juca Passarinho nasceu, foi morto por Quiquina, que o deu ao pai para que se livrasse do corpo (e ele o fez, enterrando-o nas voçorocas). Juca se escafede de Duas Pontes, e ninguém ficaria sabendo desses acontecimentos se Rosalina não desandasse a andar pelo cemitério, entoando uma incompreensível cantiga. Pois ela perdeu a virgindade, desonrou a casa e a memória dos mortos, por isso permitiu que a cidade invadisse o sobrado, devassasse a sua intimidade.

A entrada do povo de Duas Pontes para ver o que as autoridades decidem sobre o destino de Rosalina (e toda a comédia de poder e de costumes decorrente da caracterização dessas autoridades) ganha um caráter de profanação:

     “Agora a gente estava de novo no sobrado, esperando. De uma certa maneira todo mundo ficava de dono da casa…A confusão, a promiscuidade era geral. Já mexiam nos armários, nas panelas, tinha gente que fazia café. Se a coisa demorasse mais, se Seu Emanuel não desse logo a ordem do cortejo, iam acabar limpando a casa, já tinha gente mirando o patrão de ouro.”

É aí que Rosalina faz sua aparição final, teatral ao extremo, meio noiva, meio rainha. E todos se sentindo “como se estivessem numa cerimônia”.

É curioso que nessa “cerimônia” se fale do juiz, do promotor, do delegado, até do coronel Sigismundo, como autoridades locais que são, e não haja nenhuma menção a um padre, como não há, aliás, no livro inteiro. E se há uma figura recorrente nas histórias interioranas (e inclusive em outras histórias de Autran Dourado) é o padre católico. Se ele não aparece nas páginas de Ópera dos Mortos com certeza foi intencional. Era desejo do autor manter o livro no âmbito trágico, da hybris, e a presença mais que natural de um padre (que com certeza visitaria Rosalina, seria seu confessor, mesmo com o isolamento dela com relação ao resto da cidade) teve de ser suprimida para a coerência interna da história e o efeito pretendido de “um livro mítico, ritual”, que é sintetizado assim em Uma poética de romance: matéria de carpintaria:

    “Pense-se no livro como tragédia, mais do que como romance, e se terá uma melhor leitura”.

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NOTAS

[1] Duas Pontes aparece pela primeira vez num conto, “Inventário do Primeiro Dia” publicado na coletânea Nove histórias em grupos de três (atualmente absorvido por Solidão Solitude), em 1957. Depois é o cenário da história da prima Biela, Uma vida em segredo (1964). A partir de Ópera dos Mortos, só um livro importante, Os sinos da agonia, e uma recriação de “Missa do galo” de Machado de Assis, não terão nenhum vínculo com Duas Pontes.

[2] Ópera dos mortos é uma narrativa onde a repetição é muito importante. Tanto que o livro, a princípio, ia se chamar Relógios de repetição.

[3] Aqui já fica insinuado o “dualismo” (ou mesmo multiplicidade) de Rosalina, um ajuntamento de muitas Rosalinas numa só Rosalina”; para Juca, “ela nunca parecia ser uma, a mesma pessoa… procurava botar em ordem as idéias, compor com os fiapos que pegava no ar uma só figura de dona Rosalina, uma dona Rosalina impossível de ser, que são similares à construção do sobrado; na verdade, ela é o sobrado.

[4] Pai de Francisco Fernandes Coutinho (o trecho acima é de Monte da Alegria).

[5] Ainda um trecho de Monte da Alegria. De Lucas Procópio é a máxima: “Depois do Século do Ouro, nada de bom surgiu nas Minas Gerais.”

[6] Já esse trecho é de Lucas Procópio.

[7] Nesse trecho, que é de Um cavalheiro de antigamente, utiliza-se uma formulação bem parecida com a usada em Ópera dos mortos. Autran Dourado gosta de manter a unidade da sua obra, quer o leitor perceba ou não.

[8] Esse episódio é retomado da seguinte forma em Um cavalheiro de antigamente:

“Foi no Ponto que um dia a gente viu uma coisa espantosa. Quando, ao sair do banco, o coronel Lucas Procópio se deteve para falar com alguém sobre um negócio qualquer, de repente apareceu um preto retinto, gritou Pedro Chaves, e deu um tiro no ombro dele. Mesmo ferido, o coronel sacou o revólver o matou com dois tiros. Quem era, perguntaram. Não sei, um preto qualquer que deve ter me tomado por alguém que não sou, ele falou. O coronel não chegou nem ao menos a ser indiciado, nem inquérito o delegado abriu..”.

E ao longo do livro não há explicação para o episódio. É preciso juntar o quebra-cabeça lendo todos os livros, como muita coisa em Faulkner. E Um cavalheiro de antigamente é sobre João Capistrano. E começa assim:

“A mais recuada e brumosa visão que João Capistrano tinha da sua infância (ele fez tudo para esquecê-la e até certo ponto conseguiu era a de um homem grande, forte e espadaúdo, de sobrancelhas grossas espetadas feito taturana, a barba comprida, as botas sujas de barro, vibrando um chicote no ar, descendo-o sobre sua mãe. Esse homem era seu pai, Lucas Procópio Honório Cota.”

Depois que fica sabendo, ao longo do livro, do adultério da mãe, lemos:

“Daquele dia em diante João Capistrano começou, com a paciência com que uma aranha tece a sua teia, a reconstruir o ídolo quebrado, a imagem partida que a mãe e ele fizeram de Lucas Procópio Honório Cota. E todos viam premonição e simbolismo em tudo. Assim foi quando João Capistrano resolveu dar um novo túmulo ao pai, condigno com a sua importância e posição, grande e homem e senhor que a mãe e ele inventaram. Mandou vir de São Paulo dois túmulos e demais complementos em mármore Carrara. Um para o pai, simples, apenas uma cruz e uma lápide com a inscrição “Lucas Procópio Honório Cota, coronel da Guarda Nacional, homem de bem”, seguida da data de nascimento e da sua morte. O segundo era mais difícil de explicar; o de Isaltina Honório Cota: ela ainda estava viva.. Quando lhe perguntaram a razão do segundo, ele disse, seco e perempto, foi pra economizar carreto. Do que todos duvidaram muito. Era um belo túmulo de mármore branco, com um grande anjo de asas abertas. Na lápide ele tinha mandado gravar o nome Isaltina Sales Honório Cota, a data do seu nascimento, deixando para mais tarde o dia da sua morte. Abaixo do nome da mãe e da data de nascimento, em letras graúdas: ANJO DE BONDADE E PUREZA.”

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05/08/2014

Destaque do Blog: A PAIXÃO, de Almeida Faria

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(uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 05 de agosto de 2014)

O Brasil vem conhecendo a vibrante ficção portuguesa atual, talvez a mais expressiva deste início de século. Seria o caso de, agora, sanar as lamentáveis lacunas de gerações anteriores: acaba de sair pela COSACNAIFY o romance A Paixão, publicado em 1965, quando Almeida Faria tinha apenas 22 anos. Sua estreia no gênero, Rumor Branco (1962) fora objeto de acerba polêmica intelectual e ideológica entre a corrente neorrealista, então dominante em terras lusitanas, e uma suposta corrente existencialista (tida como “alienada”), à qual pertenceria o jovem prosador como discípulo do grande Vergílio Ferreira.

“…haverá um lugar para os que ressuscitam, como houve aqui lugar para os que morrem; de fato, este é o livro dos mortos, dos mais mortos que os mortos…”, lemos em um dos capítulos finais de A Paixão. São 50 ao todo, divididos em três partes, correspondentes a uma sexta-feira da Semana Santa (Manhã; Tarde; Noite). No mundo “morto”, estagnado, do regime salazarista, num ambiente rural marcado por um profundo arcaísmo (“mastigando exata e calmamente a sua indubitável vida”), acompanhamos uma narrativa que bruxuleia entre a terceira e a primeira pessoa, através das sensações e percepções de uma decadente família “fidalga”.

O pai, Francisco (que vivia “numa atitude passiva, regressiva dependente, voltada para ontem, para um mundo inexistente”), a mãe (a qual mal tem direito a um nome, a uma individualidade, “nem lhe demos um nome, vamos chamar-lhe Marina[1]), e os cinco filhos; dos três mais velhos, Arminda e João Carlos representam o conflito de gerações, tentando escapar do atavismo familiar e de classe, enquanto  André simboliza o elemento “existencialista” (alienado?[2]): “por  que me tornei demasiado velho depois de ser criança? Por que não serei eu nunca um homem novo? durmo, velo, sonho, lembro; a vida é isto: tempo”; dos dois mais novos, Jó “via a tudo e todos duma zona distante, do seu mundo ainda mítico, de adolescente, enquanto Tiago desperta para esse universo de miasmas e angústias — e de ranço autoritário e patriarcal: há uma cena em que, trocando-se numa barraca de praia, o pai o provoca a mostrar o “berloque”, se é algo já para mostrar; ele replica: “Mostre o pai o seu antes”. E então lemos: “Só se lembra que pesado, ardente formigueiro lhe embateu na cara, a mão do pai…”

   Pela manhã, ao despertar de cada um deles com o seu repertório íntimo individual e grupal, se acrescenta o de três serviçais: Piedade, Estela (obrigada a viver longe do marido e dos filhos) e o velho Moisés. A tarde surpreende Francisco, saído da casa que mantém para uma amante (já desinteressado de todo pela esposa), com a notícia de um incêndio provavelmente criminoso em uma de suas herdades. Mais um indício de que os negócios do clã não estão bem encaminhados, mesmo numa mentalidade de pasmaceira, ultraconservadora, do Alentejo e do “seu grande torpor”. E a noite o surpreende com a oposição filial verbalizada por João Carlos, que ousa discutir à mesa familiar.

Enfim, a representação de uma paisagem ao mesmo tempo doméstica e nacional, “nestas alturas que vêm desordenar a rotinas, todos se buscam, se querem, sentem o mútuo silêncio; então nos descobrimos, mudos e sós, desencontrados, como afinal estivemos sempre; o meu marido anda longe, ocupado na lavoura, ou em qualquer coisa que desconheço e que temo; gostaria nesse instante de ter todos a meu lado; mas os filhos são ilhas isoladas; e as criadas não são como antigamente; nosso mundo frio que nenhum fogo acende”, diz a mãe.

Uma paisagem tornada verbo por uma linguagem portentosa, na maior parte do texto (quem admira António Lobo Antunes e Walter Hugo Mãe encontrará aí um forte “antepassado”[3]). Pena que, se extremamente feliz no que tange à “paixão”, ou seja, o estado moribundo de Portugal mergulhado nas trevas ditatoriais, e talvez devido à incompreensão sofrida pelo seu primeiro livro, o autor alentejano enfraquece por vezes seu notável livro com certo proselitismo “ressurreicionista” e apartes “politizados” que destoam da tessitura[4], embora sejam surpreendentemente explícitos para uma época de repressão (será que os censores salazaristas não tiveram o tino de avançar pela narrativa, ofuscados pela pecha sofrida pelo autor como “existencialista” e “alienado”?). Muito mais acusadora e implacável é a própria representação daquele mundo, trazida à tona pela consciência, e até pela inconsciência, de seus viventes.

Um episódio ilustra à farta esse Alentejo ao mesmo tempo 1960 e imemorial: a criada Piedade, namoradeira, é louca por uma rapaz com o qual tem um encontro marcado. Ela, contudo, está menstruada e lhe vem à mente, sugestionando-a (mesmo que ela tente se convencer de que são bobagens, afinal ela vive na modernidade) crendices e superstições ligadas a esse estado: “o cuidado necessário á tarde, no namoro, em não olhar, mesmo sem querer, para o belo relógio de pulso do rapaz, ou perguntar-lhe as horas, porque ele parará, partir-se-á, esmigalhando-se o vidro e caindo no chão, curvados os ponteiros, o mostrador manchado de cinza, sangue ou pus, o espanto e talvez o susto no olhar do namorado, tudo por estar menstruada…”

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ADENDO- Pedro Salgueiro me informou que já houve edição brasileira de A Paixão, pela Nova Fronteira, em 1988 (tal informação não muda em nada o teor do meu comentário, mas acho curioso sequer o autor–no prefácio que escreveu para a edição da CosacNaify–fazer  qualquer referência a essa publicação mais antiga, e pioneira).

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NOTAS

[1] Mais adiante: “Marina vive tão metida no passado que nenhum nome para ela é bem real…”

[2] André é o personagem de A Paixão que mais obviamente aproximaria o universo de Almeida Faria do universo de seu suposto mestre, Vergílio Ferreira, tão contestado—na polêmica a que aludi—pelo paladino do neorrealismo, Alexandre Pinheiro Torres.

Mas pelo menos quanto a esse romance, é enganosa tal aproximação, já que, apesar de toda a sua densidade e vigor, a obra vergiliana (Aparição; Alegria breve; Rápida, a sombra) é basicamente monovózica, muito voltada para um indivíduo central, ensimesmado, em conflito com o mundo à sua volta; já o de Almeida Faria, apesar de certa dissolvência das fronteiras entre as personalidades, é muito mais polifônico e prismático.

[3] Quanto aos “antepassados” do próprio Almeida Faria (especificamente o de A Paixão, bem entendido), mais do que de Vergílio Ferreira (pelos motivos já apontados), podemos aproximá-lo com mais proveito de certas experiências de Virginia Woolf, como As Ondas e Ao Farol, e do Faulkner de Enquanto Agonizo.

[4] Por exemplo, numa passagem em que se refere aos serviços (Piedade, Estela, Moisés) e mais o amado de Arminda (um proletário): “… que vieram fazer a este dia?… vieram porque são a voz pelas vanguardas pedida emprestada, motor futuro da terra de que falo, estória próxima, tarefa imediata”.

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