

PERCURSO PELA ‘OPERA DOS MORTOS”
Ópera dos Mortos foi o livro com o qual Autran Dourado (1926-2012) consolidou seu universo peculiar de ficção, Duas Pontes (cidade imaginária do sul de Minas, quase na divisa com São Paulo)[1].
Esse romance de 1967 alterna duas técnicas narrativas principais: um tom “coral” (um recurso de que Autran será useiro e vezeiro nas obras posteriores), um narrador que absorve o ponto de vista da cidade, muito presente nos dois capítulos iniciais, no capítulo do meio (o 5º.) e no capítulo final, que começa de forma típica: “De repente a gente voltava ao sobrado. Atravessamos finalmente a ponte, o sobrado abria as portas para nós”; a alternância de discursos indiretos livres (aquele em que o narrador em terceira pessoa se funde de tal forma ao ponto de vista da personagem que não se sabe o que é de um ou de outro, e que sem chegar ao fluxo contínuo que é o stream of consciousness (imitação do processo associativo que é o nosso pensamento) de vários personagens, principalmente de Quincas Ciríaco, Rosalina, Juca Passarinho e Quiquina.
No primeiro capítulo, o narrador coral, “a gente”, apresenta o sobrado, comentando sua estranha construção: a parte de baixo foi construída por Lucas Procópio Honório Cota (sobre o qual correm “as brumosas histórias de um homem antigo que fazia justiça sozinho, que se metia com os seus escravos por aqueles matos, devassando, negociando, trapaceando, negaceando, povoando, alargando os seus domínios, potentado, senhor rei absoluto”); a parte de cima pelo seu filho, João Capistrano Honório Cota (“homem sem a rudeza do pai, mais civilizado, vamos assim dizer”). Ora, o encarregado da construção pensa em refazer a casa inteira e ouve a seguinte resposta: “Não derrubo obra de meu pai. O que eu quero é juntar o meu com o de meu pai. Eu sou ele agora, no sangue, por dentro. A casa tem de ser assim, eu quero. Eu mais ele, numa argamassa estranha de gente e casa.”
No segundo capítulo, conta-se a história da família Honório Cota, concentrando-se principalmente no episódio que fez João Capistrano “brigar” com a cidade, fechando o sobrado para ela: estamos na República Velha, ele afinal tem uma filha que vingou, Rosalina, após os muitos abortos e filhos natimortos, está em plena prosperidade, com os cafezais. Acalenta sonhos políticos quixotescos. Na política mineira, há dois partidos, os sapos e os periquitos, respectivamente os velhos partidos do Império “modernizados”, o Liberal e o Conservador. Por natureza, João Capistrano era um conservador e apoiaria naturalmente o chefe político da região, dos periquitos, senador Dagoberto. Porém, exaltado e idealista (“Era generoso, tinha grandes ideias para o Brasil. Se encarnava no avô, se via fazendo longos discursos na Assembleia Constituinte do Império”), começa a fazer reparos ao governo e é tomado como adepto dos sapos.
O sobrado passa a ser frequentado quase todas as noites e João Capistrano, candidato, é eleito. Mas há um conchavo entre os dois partidos (e para ambos ele é uma figura incômoda), os votos são recontados e roubados. Alertado de que “política é assim mesmo, não tem jeito —mão na bosta”, e colhido de surpresa pela morte da mulher, a sensata e pé-no-chão dona Genú, um ano depois, ele se fecha e a filha lhe faz companhia:
“E ninguém teve mais a coragem de cumprimentar o coronel Honório Cota feito antigamente… O coronel Honório Cota voltou à sua antiga morada para guardar a espada, elmo e couraça, encostou a sua lança. Voltou ao que era, ou melhor —ficou mais triste e ensimesmado do que era… Rosalina, já moça, procurava ampará-lo era assumir o silêncio do pai, aquele mesmo ar casmurro e pesado, de dignidade ofendida, aquele ódio em surdina, duradouro, de quem nunca se esquece.”
Quando as pessoas da cidade vão prestar condolências e homenagem, numa cena muito teatral, ele desce as escadas do sobrado, não diz palavra a ninguém, dirige-se ao relógio-armário do salão e para o pêndulo. Após sua morte, todo mundo acorre ao sobrado, pensando que finalmente a birra entre o sobrado e Duas Pontes vai terminar, e há uma cena ainda mais teatral, deliberadamente teatral:
“Rosalina descia as escadas, toda a sua figura bem maior do que era, a cabeça erguida, digna, soberba, que nem uma rainha —os olhos postos num fundo muito além da parede, os passos medidos, nenhuma vacilação; trazia alguma coisa brilhante na mão. Rosalina era uma figura recortada de história, desses casos de damas e nobres que contam pra gente, toda inexistente, etérea, luar… Abriu-se caminho para Rosalina…aquilo que ela trazia na mão era o relógio de ouro do falecido João Capistrano Honório Cota, aquele mesmo que a gente babava de ver ele tirando do bolso do colete branco, tão bonito e raro, Pateck Philip dos bons, legítimo. Que ela colocou num prego na parede, junto do relógio comemorativo da Independência. Os relógios da sala estavam todos parados, a gente escutava as batidas do silêncio. Só na capa ouviam a pêndula no seu trabalho de aranha… A gente via tudo em silêncio de igreja: Rosalina subiu de novo as escadas, direitinho como desceu.” [2]
Dados os antecedentes, a narrativa salta mais ou menos uns quatorze ou quinze anos, e vemos Rosalina-Antígona, lá pelos 30 anos, vivendo trancada dentro de casa, enterrada viva, não falando com ninguém na cidade a não ser o seu camarada de infância, candidato a noivo (entretanto, casou-se com outra), Emanuel. Rosalina convive apenas com Quiquina, a criada muda, e às tardes esta vai entregar as flores de seda e de pano que Rosalina confecciona (creio que não é preciso insistir muito no simbolismo dessa atividade, que mostra a nossa heroína não só contra os costumes da pólis, como também contra a natureza; trocando em miúdos, Rosalina é uma flor de estufa). Nessas tardes (como à noite, também, quando se entrega à bebida, mas preocupando-se em manter as aparências para Quiquina: poupa o vinho mais caro, para não gerar falatório na cidade caso viesse a fazer encomendas, e se embebeda com o licor adocicado e enjoativo que Quiquina prepara), sempre é meio que tomada por fantasias nupciais.
No fundo, Rosalina desespera-se na casa onde se emparedou por orgulho:
“Forçou não pensar, deixar as coisas existirem de manso, sozinhas, sem ela, frias. Mas as coisas naquela casa não era frias e silenciosas, um pulso batia no seu corpo, ecoava estranhos ruídos, como se de noite acordada tivesse sempre uma porta batendo… A casa vivia de noite, ou de dia naquele oco de silêncio que ensombrecia como se fosse de noite, como se ouvisse, como se fosse um coração batendo a sua pêndula. Coração de quem? Da mãe, do pai, de Lucas Procópio? Nunca se sabia. Talvez o coração da casa mesmo… aí estava ela de novo empurrada para as sombras… Mas ela não podia mexer nos relógios, não devia nunca mexer naqueles relógios. Os relógios eram um quebranto, parados eles batiam como de noite aquele coração penado no meio da casa.”
No quarto capítulo, aparece o elemento estranho, aquele cujo destino vai se chocar com o de Rosalina, mas ambos serão triturados pela engrenagem da falta trágica: José Feliciano, o Juca Passarinho, malandro, vadio, errabundo, que deseja um lugar de parada, onde não precise trabalhar muito, de preferência só com mulheres, sem homem para vigiar se faz o serviço ou não. Ao se aproximar de Duas Pontes, só imagens agourentas: o cemitério e as voçorocas, as terríveis goelas expostas da terra, causadas pela erosão (o que há de sexual e freudiano nas voçorocas, não é preciso ressaltar).
Para a surpresa de Quiquina, e desagrado também, Rosalina concorda com que Juca Passarinho trabalhe em pequenos serviços e se agregue ao sobrado (ela só não queria alguém que fosse da cidade, não permite a entrada de nenhum nativo na casa).

O 5.o capítulo, postado estrategicamente no meio dos nove, chama-se Os dentes da engrenagem. Ele mostra como Juca Passarinho se torna querido na cidade, como as pessoas querem extrair dele notícias da intimidade do sobrado (“Desde os primeiros dias a cidade filhou Juca Passarinho, ele era um dos nossos. De novo tentávamos construir uma ponte para o sobrado, talvez por ali a gente pudesse passar”), e como ele mesmo tenta forçar uma maior intimidade (não sexual, ainda não), tentando sondá-la sobre o passado, “porque certas horas dona Rosalina não parecia a mulher feita de hoje. Era uma menina que contava seus casos, que fantasiava a vida. Era a vida e os seres vistos através dos olhos lumeados, do peito aberto de uma criança… A figura bem composta e cuidada não se casava com a voz e a fala doce e cantante que vinha de um fundo muito além, de uma outra pessoa…dona Rosalina era que nem um guará, ele tentava pegar o guará naquele casarão. Sempre escondida num lugar qualquer do sobrado, perdida no tempo.Não a pessoa de dona Rosalina, que esta era até muito parada e silente, naquele serviço quieto e vagaroso de fazer flor. Ele não sabia ainda que buscava nela a outra pessoa: a sombra, a alma de dona Rosalina”[3], sendo sempre, no fim, rechaçado e mandado de volta para o seu devido lugar. Ele, de tanto espiar, acaba conhecedor das noites de bebedeira de Rosalina, principalmente porque volta muito tarde, após ficar pela cidade, ou aproveitando o Curral das Éguas, o bordel dos pobretões de Duas Pontes (o Bordel da Ponte, mais chique, é para os coronéis e mais afortunados).
E é assim que começa o capítulo seguinte, O vento após a calmaria: Juca retorna ao sobrado, onde Rosalina espera a sua volta (sem admitir para si mesma), e bebe, e fantasia. Juca chega sedento, com gosto de cachaça e cerveja na boca, e não aprecia a água da bica, fica tentado pela água da moringa dentro da casa, é claro. Só que Quiquina não só fecha a porta da cozinha, por onde ele poderia entrar, como também fica meio que de guarda. Só que nesse dia a porta está entreaberta. Juca penetra no casarão e esse verbo penetrar não é nada inadequado para uma ação, que, se conjugarmos casa e mulher, ambos recintos defesos, se assemelha a uma violação, uma violação longamente esperada (“Agora era ir em frente, não podia mais voltar. Que importava se o mandasse embora, queria ir até o fim, ver o que ia acontecer”). O vento após a calmaria.
Ele encontra Rosalina bebendo, e sonhando, ela permite que ele sente ao seu lado (“Temia que ela voltasse a ser a dona Rosalina diurna, a dona Rosalina de sempre…Nunca estivera tão perto dela…”). Desmancha-lhe o penteado, ela tira uma flor que guarda no peito e entrega a ele (“Desabotoou os primeiros botões da blusa branca. Quê que ela vai fazer? Pensou rápido. Não. Ele viu que ela tirava qualquer coisa escondida nos seios”), e só não há consumação de nada porque ambos veem Quiquina, consciência vigilante do sobrado, na porta da sala. Rosalina corre para cima.
No capítulo seguinte, A engrenagem em movimento ambos estão apavorados com as possíveis reações e decisões de Quiquina. Rosalina acorda numa terrível ressaca e não a encontra em casa. Fica pensando se acontecido “aconteceu” de fato ou foi fruto da sua imaginação. Só quando olha nos olhos de Quiquina percebe que tudo é fato. E Juca fica vagueando pela cidade, pelo cemitério, pelas voçorocas…
Notem-se as reticências, pois o capítulo seguinte (A semente no corpo, na terra) começa da seguinte forma: “E assim ele conheceu Rosalina.” Estabelece-se um ritual, em que a dualidade dia e noite, austeridade e luxúria, João Capistrano e Lucas Procópio, fica bem marcada (“Se o corpo lhe pertencia… A alma era dos mortos”). Até que Rosalina passa a rejeitar Juca Passarinho e lhe nega acesso ao sobrado noturno: ela engravidou e tenta esconder de todos, inclusive de Quiquina, o que impede a esta de realizar um aborto. A gravidez vai impondo uma terceira Rosalina, cada vez mais diáfana e desligada da realidade (e o estilo mimetiza esse desdobramento da personalidade desdobrando-se em parênteses). Na noite do parto, Quiquina ajuda-a (ela tem dores lancinantes), congratula-se por ninguém da cidade ter descoberto a situação, e preocupa-se com o bebê, ao qual pretende matar, caso não siga a sina dos filhos de dona Genú e nasça “anjinho”. Como explicar uma criança no sobrado e manter a fachada de orgulho?
No final, Juca ouve um vagido de recém-nascido e depois um assustador silêncio. Quiquina lhe traz uma trouxa costurada, sanguinolenta e nauseabunda e manda que jogue nas voçorocas. Ele, apavorado, obedece a ordem de pegar a “coisa”, mas a enterra e depois fica deitado, esperando o amanhecer, para fugir da cidade, que cumpriu seus presságios com o cemitério e as goelas abertas.
E o último capítulo, Cantiga de Rosalina traz a cidade de volta para o sobrado, e a última visão de Rosalina reinando sobre todos, na sua escadaria, em meio aos relógios todos parados (Quiquina para o da copa, o último a funcionar na casa)…

DESDOBRAMENTOS DA FAMÍLIA HONÓRIO COTA NA OBRA DE AUTRAN DOURADO
Como autor que gosta de fazer de suas obras uma Macro-narrativa, quase vinte anos depois de concluir a história de Rosalina, em 1985, Autran Dourado mostrou a raiz da maldição dos Honório Cota, a falta (no sentido trágico da tragédia grega) que determinou todo o destino narrado em Ópera dos Mortos. No romance Lucas Procópio, ficamos sabendo que o Lucas Procópio do livro anterior é um impostor, o capataz e assassino Pedro Chaves, que usurpou a identidade de seu patrão. Em Monte da Alegria (1990), Pedro Chaves/Lucas Procópio reaparece para assassinar a última pessoa que poderia desmascará-lo. E, por fim, em Um cavalheiro de antigamente (1992), conhecemos melhor João Capistrano, pai de Rosalina, e que herdou as características psicológicas do homem cuja identidade o pai dele usurpou.
O verdadeiro Lucas Procópio e seu amigo Francisco Fernandes Coutinho (o futuro Santinho de Monte da Alegria) são figuras quixotescas e arcaicas, compartilhando da mesma formação, por serem da mesma estirpe, que sofre a decadência (suas famílias eram riquíssimas no tempo do Ouro) com elegância, e que vem justamente a ser a formação de Isaltina, a qual acabará por casar-se com o brutal Pedro Chaves:
“Não havia aquelas riquezas dos tempos dos antigórios. Aquela elegância de homens e mulheres que frequentavam a casa de José Antônio[4] era mantida a duras penas, com muito cuidado. Os ternos e vestidos eram escovados e passados, alguns com cerzidos que eles disfarçavam com aquela dignidade dos nobres decaídos e dos que conheceram a abastança e agora roem os ossos com a dignidade possível e orgulhosa.”
A inércia inicial de Lucas e Francisco se expandira para ações quixotescas, com resultados desastrosos (como mais tarde, a empreitada política de João Capistrano), não por acaso determinados por Pedro Chaves, que marca o fim do papel social desses herdeiros/deserdados do ouro. Um universo no qual Lucas é uma figura de destaque:
“…de cabelos e barba com alguns fios brancos, era afidalgado, filho de Mateus Romeiro Cota, português que vinha da nobreza hereditária lusitana (aparentado a del-Rei, era o que gostava de dizer Mateus na sua alta e agressiva prosápia), não da nobreza individual e intransmissível do Império do Brasil; tinha os gestos elegantes e as maneiras finas. Era um belo exemplar de homem, achavam mulheres e homens. De voz poderosa e timbrada, ninguém como ele para declamar um poema”.[5]
Saindo de Ouro Preto, o “lucidamente louco” Lucas Procópio (a caminho de uma propriedade no arraial que é por enquanto Duas Pontes, no Império, propriedade que será usurpada por Pedro Chaves) prega a redenção: “antigamente, parte mito, parte fatos acontecidos…Lucas Procópio pregava o seu evangelho das Minas Gerais, o renascimento da velha e brilhante civilização do ouro”[6]. Ele surge nas cidadezinhas do interior (acompanhado por Pedro e pelo negro Jerônimo) como uma figura “estúrdia”
“…jamais vista naquelas paragens. Era mesmo coisa de sarapantar, matéria de pura invenção, sonho da gente, figuração saída de gravura de livro antigo. Os moleques, de natural livres e ousados, não se continham, exaltados e atrevidos. Cadê o resto do circo? começaram a gritar no desrespeito comum ao pessoal miúdo. A gente aqui sabia o seu tanto de História. Nunca porém se vira cara, vestimenta, cavalo, arreio, armas iguais, tudo antigório.”
Francisco, por sua vez, torna-se um “iluminado” religioso, na linha de Antonio Conselheiro, após uma experiência incestuosa com a irmã, Conceição.
O assassinato de Lucas é narrado da seguinte forma:
“Pedro Chaves viu o patrão se levantar e ir em direção da canastra. Quando se voltou, gritou espantado vendo a carabina apontada para ele, as mãos no ar. Não faça isso, não faça isso, pedia. A arma apontada bem na cabeça de Lucas Procópio. Um pássaro trincou o silêncio estagnado, de cristal. A figura de Lucas Procópio contra o fundo azulado e luminoso do céu. Uma explosão, o corpo caiu. Está morto o coronel Lucas Procópio Honório Cota, gritou Pedro Chaves para o céu alto, tinindo de azul”.
É o final da primeira parte de Lucas Procópio, intitulada “Pessoa”. Depois, começa a 2ª., que narra o casamento do impostor com Isaltina e o seu apossar-se de Duas Pontes e arredores, intitulada “Persona”.
Já o assassinato do Santinho é assim:
“O irmão Francisco se levantou e abriu a porta. Era um homem forte e troncudo, que usava barba comprida, já grisalho… Qual é a graça de Vossa Senhoria? disse ele. Eu me chamo Lucas Procópio Honório Cota, coronel da Guarda Nacional. Não é possível, disse o irmão Francisco, eu conheci Lucas Procópio Honório Cota, fui amigo dele. Vossa Senhoria é um impostor. Sim, não sou Lucas Procópio Honório Cota, há alguns anos passo por ele. Meu vero nome é Pedro Chaves, mas você vai ser a última pessoa a saber, eu espero. E tirando do coldre um revólver, Pedro Chaves desfechou dois tiros no peito do irmão Francisco.”
Essas mortes deixam o caminho livre para o falso Lucas Procópio Honório Cota (veja-se a importância do nome, com sua aura de nobreza, realçada pela sua repetição obsessiva nos dois trechos) dominar a cena, mesmo entre os coronéis da região, os quais, eles mesmos, se espantam com sua desfaçatez, pois faz em aberto coisas que eles fazem à socapa, mantendo as aparências.
Nada explicita melhor a hipocrisia dos outros coronéis, principalmente nos tempos republicanos, do que a atitude do delegado Requião, em Um cavalheiro de antigamente:
“…ele mesmo deixava de perseguir os capangas dos coronéis do município, só exigia que eles não permanecessem dentro da cidade, na cidade mesmo só de passagem. Como era pouco o que ele queria, os coronéis que o mantinham na delegacia, do partido da situação, achavam uma exigência de somenos, até elogiavam, caso contrário viver nas Duas Pontes ficava perigoso para as famílias. Cobra e capanga é no mato, dizia seu Requião o chefe político das Duas Pontes, quando lhe contaram o ditado, riu muito, até louvou o zelo de seu Requião.”
Já Pedro Chaves, transformado em Lucas Procópio (isso é que é self made man), surpreende pelo seu arrivismo, que o coloca bem à vontade na passagem do Império para a República, quando também Duas Pontes deixa de ser mero arraial e transforma-se numa cidadezinha, que conhecerá seu auge durante a economia cafeeira:
“…Lucas Procópio não era o que antigamente se chamava um caráter adamantino, um homem de bem. Seus negócios nunca foram limpos, não se podia confiar na sua palavra. De vontade férrea e imperiosa, mandão e atrevido…mesmo depois de um tanto transformado, Lucas Procópio nunca respeitou muito a lei, ele a burlava com desfaçatez, pelo que jamais foi punido…era senhor-rei-absoluto, fazia justiça com as próprias mãos.”[7]
É justamente essa tendência arrivista que o faz adaptar-se às mudanças que se fazem, na melhor tradição “gattopardo”, para tudo continuar como está, como se pode ler em Lucas Procópio:
“O seu poder econômico de agora (na verdade, era a maior fortuna de Duas Pontes e arredores) levara-o fatalmente à política, uma era consequência do outro. A libertação dos escravos não o atingira tanto, pensando bem até lucrara com ela. Um ano antes, embora conservador por interesse e temperamento, vendera e alforriara os seus escravos e conseguira trazer para a Fazenda do Encantado colonos italianos contratados como assalariados ou pelo regime da meia e da terça… O único problema que passou a ter com os colonos é que muitos deles tinham noção de sua dignidade, preservada a todo custo… Muitos deles tinham ideias avançadas para a época, uma noção muito nítida dos seus direitos e interesses (…) Na política continuou a mesma tradição de mandonismo, própria daqueles tempos, que vinha ao encontro do seu antigo temperamento. Pela sua natural autoridade, pelo manso respeito que passaram a ter por ele na cidade, não lhe foi difícil chegar à chefia do Partido Conservador. Com a mudança do regime, passou a ser o presidente do Partido Republicano. O sistema autoritário dos primeiros anos da república era bem de acordo com o temperamento do seu chefe municipal.”
Portanto, o “temperamento” do falso Lucas Procópio condiz com o que se pede a uma autoridade nos primeiros anos da república. Um pouco mais adiante, há um trecho irônico sobre a “transformação” da figura pública de Pedro Chaves: “…ele se tornou, á sua maneira, um homem até ponderado Um tanto do trabalho de retoque da imagem pública de Lucas Procópio/Pedro Chaves fica a cargo do seu filho (que enfrentará o mundo com instrumentos mentais e um temperamento bem próximo ao homem que o pai assassinou).
No final de Lucas Procópio, no Ponto (o local em Duas Pontes onde os homens param para bater papo).
“…viu passar por ele um preto, não lhe pareceu estranho. O preto andou alguns passos, se voltou. E sem que ninguém entendesse nada, gritou Pedro Chaves! (…) Armado de uma garrucha, o preto lhe desferiu um tiro no ombro. Mesmo ferido, o coronel ainda foi mais ligeiro. Sacou do revólver e desfechou no preto dois tiros seguidos, certeiros, que o prostraram no chão, morto. Quem era, lhe perguntaram. Não sei, um preto que deve ter me tomado por alguém que não sou, disse. E a si mesmo: Jerônimo, preto filho da puta!”[8]
Ao morrer, tempos depois, há um efeito “retrato de Dorian Gray”:
“…Quando mandaram tirar ao sua máscara mortuária, o que se viu não foi a cara serena do velho Lucas Procópio Honório Cota em que o homem se transformara, nome pelo qual a gente o conhecia, mas a cara enrugada, dura, má, sinistra, que ficara na cera: na verdade as feições do terrível e antigo feitor Pedro Chaves, tanto tempo escondido.”
Esses antecedentes (criados posteriormente) são indispensáveis à fruição da história de Rosalina? Pode ser que não, mas são apaixonantes. E ajudam a compreender o objetivo do curso, de relacionar tragédia e romance. Ao escavar as origens, Autran Dourado dá mais uma demão nas camadas que envolvem o sobrado, argamassa estranha de casa e gente.

VOLTANDO À “ÓPERA DOS MORTOS”: O ÚLTIMO CAPÍTULO
A Cantiga de Rosalina, último capítulo de Ópera dos Mortos, se inicia com a triunfante afirmação do narrador-coro:
“De repente a gente voltava ao sobrado. Atravessávamos finalmente a ponte, o sobrado abria as portas para nós. Era como das outras vezes, quando dona Genú morreu, quando o coronel João Capistrano Honório Cota se foi para sempre. Naquela casa tudo tendia a se repetir.”
O filho de Rosalina com Juca Passarinho nasceu, foi morto por Quiquina, que o deu ao pai para que se livrasse do corpo (e ele o fez, enterrando-o nas voçorocas). Juca se escafede de Duas Pontes, e ninguém ficaria sabendo desses acontecimentos se Rosalina não desandasse a andar pelo cemitério, entoando uma incompreensível cantiga. Pois ela perdeu a virgindade, desonrou a casa e a memória dos mortos, por isso permitiu que a cidade invadisse o sobrado, devassasse a sua intimidade.
A entrada do povo de Duas Pontes para ver o que as autoridades decidem sobre o destino de Rosalina (e toda a comédia de poder e de costumes decorrente da caracterização dessas autoridades) ganha um caráter de profanação:
“Agora a gente estava de novo no sobrado, esperando. De uma certa maneira todo mundo ficava de dono da casa…A confusão, a promiscuidade era geral. Já mexiam nos armários, nas panelas, tinha gente que fazia café. Se a coisa demorasse mais, se Seu Emanuel não desse logo a ordem do cortejo, iam acabar limpando a casa, já tinha gente mirando o patrão de ouro.”
É aí que Rosalina faz sua aparição final, teatral ao extremo, meio noiva, meio rainha. E todos se sentindo “como se estivessem numa cerimônia”.
É curioso que nessa “cerimônia” se fale do juiz, do promotor, do delegado, até do coronel Sigismundo, como autoridades locais que são, e não haja nenhuma menção a um padre, como não há, aliás, no livro inteiro. E se há uma figura recorrente nas histórias interioranas (e inclusive em outras histórias de Autran Dourado) é o padre católico. Se ele não aparece nas páginas de Ópera dos Mortos com certeza foi intencional. Era desejo do autor manter o livro no âmbito trágico, da hybris, e a presença mais que natural de um padre (que com certeza visitaria Rosalina, seria seu confessor, mesmo com o isolamento dela com relação ao resto da cidade) teve de ser suprimida para a coerência interna da história e o efeito pretendido de “um livro mítico, ritual”, que é sintetizado assim em Uma poética de romance: matéria de carpintaria:
“Pense-se no livro como tragédia, mais do que como romance, e se terá uma melhor leitura”.


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NOTAS
[1] Duas Pontes aparece pela primeira vez num conto, “Inventário do Primeiro Dia” publicado na coletânea Nove histórias em grupos de três (atualmente absorvido por Solidão Solitude), em 1957. Depois é o cenário da história da prima Biela, Uma vida em segredo (1964). A partir de Ópera dos Mortos, só um livro importante, Os sinos da agonia, e uma recriação de “Missa do galo” de Machado de Assis, não terão nenhum vínculo com Duas Pontes.
[2] Ópera dos mortos é uma narrativa onde a repetição é muito importante. Tanto que o livro, a princípio, ia se chamar Relógios de repetição.
[3] Aqui já fica insinuado o “dualismo” (ou mesmo multiplicidade) de Rosalina, “um ajuntamento de muitas Rosalinas numa só Rosalina”; para Juca, “ela nunca parecia ser uma, a mesma pessoa… procurava botar em ordem as idéias, compor com os fiapos que pegava no ar uma só figura de dona Rosalina, uma dona Rosalina impossível de ser”, que são similares à construção do sobrado; na verdade, ela é o sobrado.
[4] Pai de Francisco Fernandes Coutinho (o trecho acima é de Monte da Alegria).
[5] Ainda um trecho de Monte da Alegria. De Lucas Procópio é a máxima: “Depois do Século do Ouro, nada de bom surgiu nas Minas Gerais.”
[6] Já esse trecho é de Lucas Procópio.
[7] Nesse trecho, que é de Um cavalheiro de antigamente, utiliza-se uma formulação bem parecida com a usada em Ópera dos mortos. Autran Dourado gosta de manter a unidade da sua obra, quer o leitor perceba ou não.
[8] Esse episódio é retomado da seguinte forma em Um cavalheiro de antigamente:
“Foi no Ponto que um dia a gente viu uma coisa espantosa. Quando, ao sair do banco, o coronel Lucas Procópio se deteve para falar com alguém sobre um negócio qualquer, de repente apareceu um preto retinto, gritou Pedro Chaves, e deu um tiro no ombro dele. Mesmo ferido, o coronel sacou o revólver o matou com dois tiros. Quem era, perguntaram. Não sei, um preto qualquer que deve ter me tomado por alguém que não sou, ele falou. O coronel não chegou nem ao menos a ser indiciado, nem inquérito o delegado abriu..”.
E ao longo do livro não há explicação para o episódio. É preciso juntar o quebra-cabeça lendo todos os livros, como muita coisa em Faulkner. E Um cavalheiro de antigamente é sobre João Capistrano. E começa assim:
“A mais recuada e brumosa visão que João Capistrano tinha da sua infância (ele fez tudo para esquecê-la e até certo ponto conseguiu era a de um homem grande, forte e espadaúdo, de sobrancelhas grossas espetadas feito taturana, a barba comprida, as botas sujas de barro, vibrando um chicote no ar, descendo-o sobre sua mãe. Esse homem era seu pai, Lucas Procópio Honório Cota.”
Depois que fica sabendo, ao longo do livro, do adultério da mãe, lemos:
“Daquele dia em diante João Capistrano começou, com a paciência com que uma aranha tece a sua teia, a reconstruir o ídolo quebrado, a imagem partida que a mãe e ele fizeram de Lucas Procópio Honório Cota. E todos viam premonição e simbolismo em tudo. Assim foi quando João Capistrano resolveu dar um novo túmulo ao pai, condigno com a sua importância e posição, grande e homem e senhor que a mãe e ele inventaram. Mandou vir de São Paulo dois túmulos e demais complementos em mármore Carrara. Um para o pai, simples, apenas uma cruz e uma lápide com a inscrição “Lucas Procópio Honório Cota, coronel da Guarda Nacional, homem de bem”, seguida da data de nascimento e da sua morte. O segundo era mais difícil de explicar; o de Isaltina Honório Cota: ela ainda estava viva.. Quando lhe perguntaram a razão do segundo, ele disse, seco e perempto, foi pra economizar carreto. Do que todos duvidaram muito. Era um belo túmulo de mármore branco, com um grande anjo de asas abertas. Na lápide ele tinha mandado gravar o nome Isaltina Sales Honório Cota, a data do seu nascimento, deixando para mais tarde o dia da sua morte. Abaixo do nome da mãe e da data de nascimento, em letras graúdas: ANJO DE BONDADE E PUREZA.”

