MONTE DE LEITURAS: blog do Alfredo Monte

26/05/2015

Lídia Jorge e o Bubu: “a coisa maravilhosa que lá não estava e não era palavra”

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(uma versão do texto abaixo foi publicada no Letras in.verso e re.verso, em 25 de fevereiro de 2015, VER: http://letrasinversoreverso.blogspot.com.br/2015/02/um-romance-fascinante-de-lidia-jorge.html)

I

Enfim, temos uma edição brasileira (pela Leya) de Combateremos a sombra, de Lídia Jorge[1], cujo final (e peço de saída desculpas por revelá-lo) me lembrou a atmosfera dos romances de Leonardo Sciascia (1921-1989): Osvaldo Campos, após descobrir duas frentes conspiratórias e mafiosas no curso de alguns poucos meses que se seguem à virada do milênio, e ingenuamente arvorar-se em denunciador (mandando cartas a agências internacionais, à órgãos de imprensa e até à presidência e preparando um dossiê com nomes e dados), é assassinado —tentam, de forma canhestra, encenar um pretenso suicídio para encobrir o crime, o que não dá muito certo.

O assassinato, já aguardado pelo leitor como aqueles finais inexoráveis das tragédias, de um protagonista que sucumbe a um labirinto conspiratório, foi exercitado com maestria por Sciascia em A trama (1971), porém Osvaldo Campos me lembra mais o incauto professor Laurana de A cada um o seu (1966). Não que ele seja enganado por alguma mulher (o autor siciliano usa magnificamente o clichê do “cherchez la femme” no seu romance), ou que viva com antolhos, cego para a realidade à volta. Mas porque seu heroísmo esbarra na impotência e na falta de um possível fio de ariadne, hoje em dia, para desenovelar-se do labirinto de desmoralização ética à nossa volta. Isso me faz invocar Lukács e sua problematização da ação épica no romance enquanto gênero: para que o épico exista, a ação do herói deve ser necessária (mesmo que não reconhecida a princípio pela comunidade) e possível. A ação de Osvaldo Campos seria necessária e, mais ainda, possível?

Para responder à pergunta, voltemos ao princípio do grande romance de Lídia Jorge, um dos mais lindos que li nos últimos tempos: Combateremos a sombra se inicia justamente na virada do milênio. Em meio ao frenesi geral dessa data-pop, Osvaldo deixa a burguesíssima senhora sua esposa, Maria Cristina, muito irritada porque resolve ir ao seu consultório (no Prédio Goldoni, o 75 da Avenida de Santa Pulquéria, em Lisboa) com o fito de terminar um artigo, para uma revista especializada, sobre o tema  “Quanto pesa uma alma?”. Após batalhar com o texto (enquanto evita os incessantes telefonemas de seus pacientes-dependentes, entre os quais tomamos conhecimento de nomes que adquirirão peso no transcorrer da trama, como Maria London e Lázaro Catembe), crendo, aliviado, que chegaria a tempo ao Grande Hotel do Guincho para a recepção de réveillon (num autismo surpreendente, pois como não imaginar o trânsito do fim de ano?). Há a aparição inesperada de um ex-paciente, um jornalista veterano “dançado”, Elísio Passos, a princípio aparentemente “normal”, a lhe anunciar que fora envenenado nessa última noite do século e do velho milênio por um dos ovos de Salazar:

“Pois talvez o senhor não saiba que Salazar tinha um galinheiro em São Bento, há quarenta anos atrás, e que aí criava galinhas, e que as galinhas punham ovos que ele mesmo vendia… Eram ovos envenenados. Estramônio puro. E sabe o que fazia ele, depois, a esses cestos? Não sabe? – Mandava-os entregar no Supremo Tribunal de Justiça, na Assembleia Nacional, enviava-os à Nunciatura [etc etc]… Eu resisti desde criança, desde o dia em que o meu pai escarrou por cima do fato da Mocidade Portuguesa que a minha mãe me tinha comprado e eu assisti… O jornalista fez uma pausa, um suspiro— Mas passado todo este tempo, sabe o que aconteceu, professor? Passado todo este tempo de vigilância, distraí-me e esta noite comi um…”

Osvaldo Campos fica surpreendido consigo mesmo por não ter vislumbrado a loucura do antigo paciente, que lhe pede companhia para ser atendido num Pronto-Socorro. O que o psicanalista mais deseja é se livrar do doido e chegar a tempo de fazer as pazes com a mulher. Ele se livra do doido numa esquina, porém seu casamento acaba aquela noite, na qual ele toma ciência de que Maria Cristina mantinha um caso com seu colega e ex-sócio, Navarra, um psicanalista muito cortejado pela mídia, tendo sido matéria até da Times; aliás, Navarra foi o primeiro terapeuta a tratar de Maria London.

Dias depois, intimado pela polícia, fica sabendo que o jornalista “caíra morto” naquela noite mesmo de réveillon — e após a leitura completa do romance nos perguntamos se Elísio Passos não pode ter sido assassinado, e se seu destino não prefigura o de Campos, até na exaltação meio que fora do compasso da vida ordinária, a sugerir delírios e loucura, sem contar o mergulho obsessivo numa “teoria da conspiração”.

Após a tumultuada separação (disvórcio, uma das inúmeras ‘brincadeiras” com a linguagem que forma um capítulo à parte da beleza de Combateremos a sombra), Osvaldo Campos, o qual até aí se assemelha muito ao típico herói “em crise” do romance burguês tradicional, passa a residir no seu consultório, e entramos então na sua rotina de psicanalista, auxiliado pela inesquecível Ana Fausta, secretária que quase rouba o livro. Vemos aí como até numa narrativa de feitio mais minimalista, um escritor consumado, sagaz, de mão cheia, consegue nos oferecer um vislumbre de totalidade através de um universo inteiramente “mobiliado”[2], inclusive nos mais corriqueiros detalhes, até nos clientes “pagantibus” (anotados a caneta) e “gratuitos” (anotados a lápis), cuja desproporção (em favor crescente dos segundos) preocupa tanto a aflita funcionária.

A “paciente magnífica” de Osvaldo Campos é Maria London, que lhe conta sonhos compridíssimos e bem encadeados, sempre com a onipresença de navios de cruzeiros que parecem cidades imensas, autossuficientes, no interior dos quais predominando a degradação, a exploração humana, um submundo triunfante, enquanto a nau avança num oceano de corpos mortos. Como o foco narrativo também nos permite dar uma espiada na mente de Maria London, ficamos sabendo que ela, filha de um “magnata”, está na expectativa de uma reação do analista, uma pergunta, algo que rasgasse o véu de mitomania, histeria e labilidade. Apesar da “atenção” de Campos, ele está muito preso ao seu referencial minimalista para pressentir a Grande Narrativa que se esconde nos relatos oníricos de Maria London, assim como achara apenas um delírio a “teoria da conspiração” do jornalista que morreu na virada do milênio.  Voltarei à questão das Grandes Narrativas em breve.

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II

“Quem me diz que eu desço até Alcântara e não encontro uma coisa dessas, com o nome escrito no convés, exatamente assim–ALEXANDRIA? Pode imaginar o que pensaria eu de si, se fosse pela manhã a correr lá embaixo e deparasse com uma das suas fantasias a andar por ali, ao vivo? Tenho-lhe dito muitas vezes, Maria London, que é preciso respeitar o real, acima de tudo…”

Tendo cristalizado uma certa rotina na sua vida dupla de morador e profissional no consultório do Prédio Goldoni, Campos gosta de correr de manhãzinha. Um dos aspectos mais gritantes do “trabalho do sonho” de Maria London (que, aliás, mora num loft em frente ao Prédio Goldoni, e é testemunha das vigílias e da insônia do seu analista) é que os paquetes não só são descritos luxuriosamente, como os seus nomes avultam significativamente. Pois bem, numa de suas corridas, nosso herói dá de cara com um dos paquetes dos sonhos de Maria London. Pior ainda, a presença desse navio não está registrada em nenhum canto, é como se fosse uma alucinação do próprio psicanalista: ninguém reconhece que aquele paquete esteve em Lisboa (mais tarde, ele verá a paciente, levada pelo pai, embarcar em outro, após tê-la espreitado sorrateiramente).

A partir daí a visita noturna da paciente magnífica, sobre quem ele acalentava o sonho de escrever um memorial do caso, nos moldes dos famosos casos freudianos, ganha novos contornos, em que ela fornece informações sobre uma rede internacional de tráfico de drogas e sabe mais lá o quê da qual ela participa e o pai é um dos mandantes (as informações de Maria formam uma das fontes do dossiê que Osvaldo prepara depois e por causa do qual é morto).

Por outro lado, desde a noite do réveillon, ele conhecera uma mulher angolana (filha de um italiano e uma local), alojada no Prédio Goldoni, no apartamento-matadouro de um conhecido de Osvaldo, um sujeito poderoso e repelente. Aos poucos, muito aos poucos, ele e Rossiana vão se envolvendo, se apaixonando e ela revela que não é manteúda de ninguém, mas uma fotógrafa que registrou imagens de trabalhadores ilegais, que presenciou uma mula de tráfico (chamadas ali de cagões, com a proverbial sutileza lusitana) morrer por ter engolido saquinhos em demasia (ela nessa época era técnica de raio X na clínica onde os cagões vinham defecar sua carga); enfim, mais portas para o submundo, de certa forma tangenciando o obscuro mundo do pai de Maria London. Era para Rossiana ter sido eliminada, entretanto um dos seus executores a conhecia de outros tempos (fotografavam juntos) e ele a poupa, deixando-a “de molho” no terceiro andar do Goldoni (Osvaldo ocupa o quinto andar).

O que impressiona é o aspecto pífio que reveste o heroísmo de Osvaldo Campos. A princípio, e ainda mais com o narrativamente anticlimático final (com o óbvio assassinato), embora não pudesse haver outro final, creio eu, incomodou-me bastante a falta de grandeza dos personagens principais de Combateremos a sombra, especialmente o protagonista, Rossiana e Maria London, nenhum dos quais desperta grande empatia nem são inesquecíveis (a linguagem do narrador é que o é). Esse estofo diminuído das personagens, no entanto, é uma qualidade mimética, no final das contas: para dar conta da virada do milênio, Lídia Jorge nos dá as personagens possíveis dessa virada.

Perguntei acima se a ação do herói era necessária e possível. Sem dúvida, necessária, sempre o é (apesar de cada vez menos reconhecida pela sociedade, é evidente). Mas possível? Ao herói do milênio que começou parece só restar preparar dossiês que se confundirão com outros dossiês (há uma jornalista combativa e passional que diz a Osvaldo que só ela tinha em mãos uns cinco dossiês “daqueles”) e mandar cartas. Pelo menos, ele saiu do refúgio minimalista e se deu conta de que a teoria da conspiração pode ser uma fantasia delirante (Elísio Passos, mesmo assim evocando a última Grande Narrativa de Portugal, o período salazarista, antes de ser engolido pela comunidade europeia como a raspa do tacho) ou uma visão de um submundo que de alguma forma rege nossas vidas. E não deixa de ser sumamente irônico que aquilo que num romance de crime e submundo exigiria espaços diversos, perseguições e aventuras desenfreadas, passe tudo por um consultório médico num quinto andar de um prédio. É um triunfo do romance de Lídia Jorge essa contradição, um lance de mestre. O que Osvaldo Campos vislumbra, no âmbito de seu pequeno heroísmo malogrado, como os resignados e derrotados heróis sciascianos, é a presença das superestruturas na nossa vida.

E este que aqui escreve, que cada vez mais considera fundamentais as Grandes Narrativas de Freud e Marx, mesmo que todos os indícios e todos os proclamas indiquem seu óbito (talvez não passe de uma mula empacada, de uma besta quadrada), pensa que, se não estiver redondamente enganado, esse é o ingrediente que torna Combateremos a sombra um romance particularmente fascinante: do homem que, resignado com o fim do casamento, se satisfaz com a filosofia de um paciente, “Professor, navego por dia mares de trampa, para conseguir caçar um, dois peixes…” (trampa, que pode ser merda ou logro), a qual não deixa de ter a sua pequena verdade, se torna o comovente-quixotesco-cômico homem que a jornalista Marisa  Octaviano  conhece pouco antes da sua morte: “… se sentira tão sensibilizado pela atenção de Marisa Octaviano que se tinha lembrado de proceder com o seu pai, diante das mulheres que respeitava –Quando a veterana lhe estendeu a mão, ele beijou-lha. Um sinal de gratidão. Mesmo que as suas diligências desembocassem em nada, Osvaldo Campos sentia-se a partir daquele instante a fazer parte dum grupo, duma seita subversiva a que também pertencia aquela veterana. Um reconhecimento profundo. A Passionaria não sabia do que se tratava e riu — Deixe-me dizer-lhe que você, além do mais, até é cômico. – E desapareceu na porta, levando o material consigo”.

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III

A propósito da beleza da linguagem de Combateremos a sombra e da sua mágica com as palavras mais simples e singelas, uso como exemplo uma das minhas passagens favoritas do romance: como já se viu, Osvaldo Campos passa a morar no seu consultório e como não consegue dormir muito, na madrugada fica ouvindo um programa radiofônico chamado “Gracias a la vida”, como na canção de Mercedes Sosa.

Entre os vários depoimentos de madrugadores por que dariam “gracias a la vida”, aquele que intriga e pouco a pouco encanta o psicanalista é o da mulher que afirma: “Gracias a la vida, o meu bubu beijou-me”: “O que era um bubu?  Um bubu que beijava?” Ele pergunta a si mesmo se seria um pássaro, um cão, e o que poderia ter acontecido para que fosse tão especial esse beijo, nessa manhã, do tal bubu: “Ou talvez um amante. Talvez um amante que demora a revelar-se.  Talvez bubu fosse o diminutivo guardado no silêncio da espera e até ao momento em que o amante beijasse, e a destinatária, uma mulher de voz bem timbrada, cuja idade não se revela, só o timbre acima da idade, essas vozes maravilhosas que são a própria alma desincarnada da voz, que pairam acima do tempo, naquele caso viesse agradecer sob anonimato, chamando a um homem amado, nas ondas da madrugada, bubu.  A sua ideia, definitiva, era pois que, à semelhança de tudo, o bubu fosse o nome de um outro nome. A sua ideia era de que tudo tinha um rosto visível e um outro estava escondido. A própria voz de Sosa era isso. Uma promessa. A beleza era uma promessa.  O que era maravilhoso atrás da palavra bubu era a coisa maravilhosa que lá não estava e não era palavra. Passava a vida a escutar histórias de bubu — Osvaldo Campos disse em voz alta o nome do seu bubu– Rossiana.”

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[Para uma versão mais condensada deste texto, VER:

https://armonte.wordpress.com/2015/02/26/navegando-por-mares-de-trampa-combateremos-a-sombra-de-lidia-jorge/]

NOTAS

[1] Publicado em Portugal pela Dom Quixote (2007).

[2] Termo que roubei do Umberto Eco de Pós-escrito ao Nome da Rosa.

LIDIA

25/05/2015

O ruim do mundo e o melhor da ficção: os 50 anos de “A coleira do cão” nos 90 anos de Rubem Fonseca

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«João continuou: Já viu coisa igual? Não acha que ele pode ser o campeão?. Eu disse: Talvez, ele tem quase tudo, só falta um pouco de força e de massa. O crioulo, que estava ouvindo, perguntou: Massa? Eu disse: Aumentar um pouco o braço, a perna, o ombro, o peito, o resto está — ia dizer ótimo mas disse: bom. O crioulo: E força? Eu: Força é força, um negócio que tem dentro da gente. Ele: Como é que você sabe que eu não tenho? »

(trecho de A força humana)

[uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 19 de maio de 2015]

1

Dois dos nossos escritores mais cultuados, ambos mestres na arte do conto, comemoram 90 anos em 2015: Dalton Trevisan e Rubem Fonseca, este último agora em maio—e um de seus títulos fundamentais, A Coleira do Cão (1965), tornando-se cinquentenário, ganhou nova edição pela Nova Fronteira[1].

Nele estão reunidos oito contos que ajudam a compreender por que Fonseca influenciou de forma decisiva, para o bem e para o mal, a ficção nas últimas décadas, sendo imitado à exaustão, inclusive nos seus maneirismos (a pseudo-erudição que infesta seus romances, muito ruins, na minha opinião) e na sua inclinação ao gênero policial. Eles valem tanto como registro histórico de um momento em que a balança da realidade nacional pendeu definitivamente para o urbano na imaginação literária («Ah, estava explicado, pensei, o Rio estava ficando diferente»), quanto como demonstrações cabais do que não mudou e resiste até hoje de forma lamentável: o classismo, o machismo, o racismo, a exploração, a corrupção, a desmoralização da sociedade civil[2]—espantoso é que, passado o regime militar, tudo isso persista—, mesmo que o “vocabulário” seja vigiado pelo “politicamente correto” (não é mais tão  “natural” e  “inofensivo” usar o termo “crioulo”, como fazem os personagens do livro). Até a atualíssima questão da diversidade sexual aparece, embora no texto mais frágil do conjunto, A opção.

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2

Já o texto de abertura, A força humana, é um dos maiores momentos da nossa literatura. O narrador é um personagem recorrente nos primeiros livros fonsequeanos, o fisiculturista-galã, no fundo intrinsicamente solitário, prisioneiro da incomunicabilidade—o que repercutirá, aliás, em todos os relatos de A Coleira do Cão[3]. Ao levar para a sua academia, devido ao potencial do seu corpo («Eu ainda não tinha visto o crioulo sem roupa, mas fazia fé—a postura dele só seria possível com uma musculatura firme»), um jovem que conhecera por acaso, acaba (como Bette Davis, em A Malvada) arranjando um sinuoso rival e sendo desbancado[4].

A voz narrativa é um feito, um daqueles exercícios de linguagem inconfundíveis, mais fascinante ainda porque multiplicado em outras “vozes” notáveis ao longo da coletânea, como a do rapaz que tenta aproveitar um fim-de-semana sozinho em seu apartamento (os pais viajam) para arranjar uma mulher, no excepcional Madona, e que ao cabo de um irrisório périplo de  atividades praieiras, barzinhos, festinhas e paqueras, tem de se contentar com uma “rapidinha” furtiva com uma das empregadas domésticas de seu edifício:  «… um dia que se acabou é um dia que se acabou, não volta mais, está perdido, sumido, é um bem que se foi, um pedaço perdido do tesouro, do tesouro de poucas riquezas…».

Também antológicos: Relatório de Carlos, no qual acompanhamos o declínio de um advogado cujo maior prazer era “reeducar” as amantes; e o conto-título, que coloca em foco não apenas o cotidiano de uma delegacia como um dos nossos maiores impasses civilizatórios, ainda agora: a violência policial.

E o que dizer do recatado romance que se estabelece via telefone entre uma dona de casa e um inválido (O gravador), ou do vigoroso retrato dos conflitos de uma família de raízes portuguesas, aquelas que associamos às padarias e a uma parte essencial do pequeno comércio no Brasil, e também a muitos dos nossos “valores” dominantes (O grande e o pequeno)?

E, apesar de antecipar a futura afetação do Rubem Fonseca “maduro” (e que tanto corroeu a qualidade da sua obra a partir dos anos 1980, com algumas exceções como O buraco na parede, sensacional coletânea de 1995) Os graus traça um impressionante perfil do desalento de um amante envelhecido. Pois como pressente o ainda muito jovem Sérgio, de Madona: « … o ruim do mundo eu ainda não tinha visto, mas faltava pouco, muito pouco para que isto acontecesse».

[a resenha acima apareceu no Letras in.verso e re.verso, em 20 de maio de 2015, VER: http://letrasinversoreverso.blogspot.com.br/2015/05/rubem-fonseca-90-anos-o-relancamento-de.html]

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NOTAS

[1] Na Coleção Saraiva de Bolso.

[2] Até as reclamações das “pessoas de bem” (as quais, via de regra, são as mais discriminatórias), capitaneadas pela mídia dominante, continuam as mesmas: «A cidade está entregue à sanha dos marginais. A polícia nada faz. Os habitantes desta cidade já não podem mais sair à rua sob pena de serem assaltados e perderem os seus bens ou terem a própria vida estupidamente sacrificada...», lemos numa matéria de jornal do conto A coleira do cão.

[3] «.Não quero saber coisa alguma da vida de ninguém, prostituta, mulher de família, presidente da República, artista de cinema, a vida dos outros não me importa, o que importa é a minha vida. A minha vida.», lemos em Relatório de Carlos.

[4] «… e João olhou para mim com cara de amigos-amigos-negócios à parte, com cara de contar dinheiro—já se respaldava no crioulo…»

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12/05/2015

Como nascem os monstros: o centenário da publicação de “A Metamorfose”

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(uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 12 de maio de 2015)

«Seja como for, éramos tão diferentes e nessa diferença tão perigosos um para o outro, que se alguém por acaso quisesse calcular por antecipação como eu, o filho que se desenvolvia devagar, e tu, o homem feito, se comportariam um em relação ao outro, poderia supor que tu simplesmente me esmagarias sob os pés, a ponto de não sobrar nada de mim… » (da Carta ao Pai)

Texto mais famoso de Franz Kafka(1883-1924), obra paradigmática do século passado, A Metamorfose  (“DIE VERWANDLUNG”) completa agora em 2015 o centenário de sua publicação original. Entre as diversas traduções, recomendo a de Marcelo Backes, publicada pela L&PM (na série Clássicos, um formato diferente da Pocket[1]), pois dessa edição consta também o conto, bem mais curto, Das Urteil-O Veredicto (isto é, a condenação à morte de um filho pelo próprio pai), o qual ajuda a esclarecer os motivos pelos quais «Certa manhã, ao despertar de sonhos intranquilos, Gregor Samsa encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso».

Ambos pertencem (assim como o inacabado O Desaparecido) à fase “filhos” na obra kafkiana, aliás, uma explosão criativa por volta de 1912: em todas essas parábolas, filhos são banidos pelos pais. A diferença é que, enquanto os outros dois permanecem no âmbito da casa paterna, a história de Klaus Rossmann (em O Desaparecido), enviado à América totalmente recriada pela imaginação (uma Amérika, como o romance era conhecido) após ter sido seduzido pela criada, já aciona o mecanismo de “soltar no mundo” o filho pródigo, cuja maior realização ocorrerá em O Castelo.

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O «inseto monstruoso» é um caixeiro-viajante, arrimo financeiro dos pais[2]. Numa espécie de vingança masoquista, o genial escritor checo, ao reduzir seu protagonista a um estado inválido, incapaz para o trabalho, sobretudo vergonhoso, estaria dando vazão a um ressentimento pessoal que faz dos familiares de Gregor os verdadeiros monstros da narrativa—mesmo a irmã, Grete, bondosa e compassiva com ele a princípio, metamorfoseia-se numa tirana, quase uma megera.

O nó do problema é o pai (não esqueçamos aquele famoso e patético documento biográfico, a Carta para Hermann Kafka, escrita em 1919[3]). Não por acaso, os capítulos de A Metamorfose encaminham-se para confrontos onde o senhor Samsa praticamente esmaga o filho. Inicialmente, com uma bengalada, relegando-o à condição de prisioneiro no quarto; meses mais tarde, ao acertá-lo com uma maçã que apodrecerá no seu corpo, apressará seu fim.

Esse pai parece revitalizar-se com a desgraça do filho, revirilizar-se, ressentindo-se com a atenção dispensada a Gregor na sua “condição monstruosa”, a qual nada mais é do que a incapacidade de garantir o sustento da família, ou seja, de manter-se no mercado de trabalho, essa expressão odiosa que parece ter se metamorfoseado no nosso único horizonte. Pois o relato também pode ser lido através da ótica do esvaziamento das relações, isto é, a alienação progressiva da própria ideia do “humano”.  É por isso que nunca se limitará a ser apenas mera vingança de um filho oprimido e recalcado, para ganhar a dimensão de uma das definitivas alegorias do capitalismo.

O que, porém, só uma leitura, um contato efetivo, transcendendo a miríade de chaves biográficas e interpretativas que se pode ter do texto, mesmo quem não o tenha lido, pode mostrar de fato o impacto que é acompanhar o metamorfoseado rumo à sua morte decretada pela família e pela esfera de produção, em cenas que conseguem o milagre de ser engraçadas (quem pode esquecer a fuga do chefe de Samsa após sua aparição? Ou o espanto dos inquilinos? Ou a empregada jocosa?) e macabras, a um só tempo.

E, pouco antes da terrível sentença familiar contra ele, o inútil, desvalido num mundo em que todos precisam mostrar-se produtivos e capazes, o texto atinge o ápice da beleza quando Gregor rasteja, inconsciente dos danos iminentes (ele que se transformara num monstro rancoroso, rabugento e faminto), rumo à irmã, que toca violino: «…rastejou um pouco mais… a fim de que os seus olhares se encontrassem. Será que ele não passava de um animal, embora a música o emocionasse tanto? Parecia que ela lhe abria um caminho rumo a um alimento desconhecido pelo qual ele tanto ansiava».

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TRECHO SELECIONADO

«Depois de ter refletido acerca de tudo isso às pressas, sem conseguir se decidir a deixar sua cama – o despertador acabara de anunciar quinze para as sete –, bateram com cautela à porta, na cabeceira de sua cama.

     – Gregor – alguém chamou; era sua mãe –, já são quinze para as sete. Não querias ter partido a essa hora? – A voz suave! Gregor assustou-se quando ouviu sua voz respondendo; e era inconfundivelmente a mesma voz de antes, mas a ela misturava-se, como se vindo de baixo, um ciciar doloroso, impossível de evitar, que só no primeiro momento mantinha a clareza anterior das palavras, para destruir seu som de tal forma quando acabavam por sair, a ponto de fazer com que não se soubesse ao certo se havia ouvido direito. Gregor quis responder em detalhes e esclarecer tudo, mas limitou-se, dadas as condições, a dizer:

    – Sim, sim, obrigado mãe, já vou me levantar.

      Por causa da porta de madeira, a mudança na voz de Gregor por certo não foi percebida lá fora, pois sua mãe tranquilizou-se com a explicação e se afastou, arrastando as chinelas. Devido à troca de palavras, contudo, os outros membros da família ficaram cientes de que Gregor, ao contrário do que esperavam, estava em casa, e o pai já batia numa das portas laterais, fraco, mas com o punho:

     – Gregor, Gregor – ele chamou –, o que está acontecendo? –

      Depois de alguns instantes advertiu mais uma vez em voz mais grave:

     – Gregor! Gregor! Na outra porta lateral, entretanto, a irmã lamentava em voz baixa:

    – Gregor? Não estás bem? Precisas de algo? Gregor respondeu em ambas as direções:

      – Já estou pronto – e esforçou-se para, tomando o maior cuidado na pronúncia e fazendo longas pausas entre as palavras, evitar que sua voz chamasse a atenção.

O pai, em todo caso, voltou ao café da manhã, mas a irmã sussurrou:

      – Gregor, abra a porta, eu te imploro. »

VER:

https://armonte.wordpress.com/2010/04/07/a-morte-do-caixeiro-viajante/

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NOTAS

[1] Mas há também uma edição nesse formato.

[2] «Se eu não me contivesse por causa de meus pais, já teria pedido as contas há tempo; teria me apresentado ao chefe e lhe exposto direitinho o que penso, do fundo do meu coração. Ele teria de cair da escrivaninha! É um jeito bem peculiar o dele, de sentar-se sobre a escrivaninha e falar do alto a baixo com seu empregado, que além do mais tem de se aproximar bastante por causa das dificuldades auditivas do chefe. Bem, a esperança ainda não está de todo perdida; quando eu tiver juntado o dinheiro a fim de quitar a dívida de meus pais com ele – acho que isso demorará ainda uns cinco ou seis anos –, eu encaminho a coisa sem falta. Aí então terá sido feito o grande corte.»

[3]   “Brief an den Vater”, também traduzido por Backes para a L&PM.

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07/05/2015

Os quadros escritos de Alessandro Baricco: “Mr. Gwyn” e “Três vezes ao amanhecer”

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(uma versão do texto abaixo foi publicada no Letras in.verso e re.verso em 06 de maio de 2015, VER: http://letrasinversoreverso.blogspot.com.br/2015/05/os-quadros-escritos-de-alessandro.html)

1

O personagem-título de Mr. Gwyn (2011), de Alessandro Baricco, desaparece a certa altura do relato—mais precisamente no capítulo 57 (num total de 68). Logo no início, ele anunciara sua decisão de não mais escrever ou publicar livros. A seguir, não podendo desembaraçar-se de uma vida dedicada às palavras, inventara uma prática inusitada: observando uma pessoa, como um “quadro vivo”, num cenário totalmente controlado, comprometia-se a entregar a ela (e tão somente a ela, sem publicidade) o resultado verbal dessa contemplação («Era como fazer-lhes uma mesa, ou lavar-lhes o carro. Um ofício. Escreveria o que eram, só isso»). Por exemplo, com Rebecca, seu “modelo” primordial: «…qualquer coisa que tivesse imaginado e notado dela, antes de entrar naquele estúdio, se dissolvera completamente, ou não existira nunca. Assim como não lhe parecia que o tempo passasse, lá dentro, mas sim que se desenrolasse um só instante, sempre idêntico a si mesmo»[1].

Mas a discrição com que ele exerce seu curioso ofício de “copista”, como ele se denomina, é comprometida, a atividade torna-se notícia (inclusive pelos altos valores envolvidos), e durante quatro anos, Rebecca—que se transformara em sua colaboradora, ajudando-o a selecionar os indivíduos a serem “copiados” —reconstrói sua própria vida (de fato, é quase como uma segunda existência com relação àquela que o leitor acompanhara), sem notícias do escritor: «Muito raramente acontecia-lhe relembrar Jasper Gwyn, e sempre sem emoção especial. Eram recordações leves como cartões-postais expedidos a partir de uma vida precedente». Até descobrir que “Três vezes ao amanhecer”, romance póstumo encontrado entre os papéis de Akash Narayan, professor de música anglo-indiano, reproduz um dos “quadros escritos” produzidos durante aquela original experiência artística; ou seja, é uma realização do sumido Gwyn.

Então, em sua origem, o romance de Narayan/Gwyn pertencia ao círculo de obras criadas por um personagem, no delicado e especialíssimo exercício borgiano-metalínguístico (um Paul Auster—e faço essa aproximação devido à obsessão do protagonista de Baricco pela tabula rasa, a ânsia de apagar os traços da sua vida anterior[2]— que tivesse um estilo à Italo Calvino, de inusitada leveza) que Mr. Gwyn representa na ficção mais recente. Existia tão somente como referência, em comentários trocados entre seres ficcionais.

O autor italiano aprofundou o jogo de espelhos, ao publicar em 2012 Três vezes ao amanhecer[3], tornando “concreto”, por assim dizer, o que era apenas implícito. Como diz sua nota inicial, pode-se fazer uma leitura do romance autônoma, com relação ao anterior, porém sentiu vontade de escrevê-lo, «um pouco para dar uma leve e distante sequência a Mr. Gwyn e um pouco pelo simples prazer de perseguir certa ideia que eu tinha na cabeça»[4].

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EDWARD HOPPER

EDWARD HOPPER

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Três vezes ao amanhecer, como o título indica, divide-se em três episódios distintos (mas que sugerem uma proximidade biográfica:  poderiam ser momentos da vida de um mesmo indivíduo), todos eles iniciando-se num hotel.

No primeiro deles, um homem de 42 anos está sentado no hall, quando chega uma mulher que, embora se dizendo hóspede, pede que ele a leve para o seu quarto. A todo instante, o homem reitera que precisa partir, pois tem um compromisso comercial, no entanto vai se deixando ficar, como se sua vontade ficasse cada vez mais “amolecida” diante daquela estranha—curiosamente, não há “sedução”, mesmo que ela fique nua no quarto, deitando-se na cama: é uma noite “errada” (há a «vaga impressão de que era uma hora errada para um monte de coisas»). Vai amanhecendo. Saberemos que o nome do homem é Malcolm Webster quando a polícia bater à porta para levá-lo….

No segundo, um velho porteiro noturno observa consternado a chegada de um casal: deplora que a moça, adolescente de encanto irresistível (embrutecido pelo que ele tacha de maldade), esteja com um parceiro tão desclassificado, aliás violento e barraqueiro, desperdiçando assim sua juventude. Consegue convencê-la a sair do hotel em sua companhia, após revelar a ela que passou anos na prisão. O amanhecer os surpreende em fuga: «Seria uma trabalheira compreender a história deles, ao vê-los…Talvez um pai e uma filha, mas nem isso». Eles acabam por separar-se, e quem alcança o velho porteiro é o parceiro dela…

No terceiro, uma policial cinquentona decide ser um pardieiro inaceitável o hotel para onde foi levado um garoto (chamado Malcolm), o qual perdeu os pais num incêndio criminoso que destruiu sua casa; contrariando ordens superiores, coloca-o num carro e dirige através da escuridão da noite para deixá-lo, ao amanhecer, com um homem que constrói barcos e com quem tem uma longa história de idas e vindas…

Pelos esquemáticos sumários acima, pode-se perceber a dramaticidade fundamental nas três histórias, ligadas todas elas pela ideia de possibilidades de recomeço (como o próprio amanhecer indica), fugas, saídas possíveis (ou impossíveis) de impasses. E pela concentração temporal, o espaço de uma noite, sem falar no investimento maciço na arte do diálogo (Baricco se mostra um mestre, nesse quesito), funcionariam à perfeição no teatro ou no cinema. Cada uma delas vale por si mesma, devido justamente a essa concentração— em termos dramáticos, espacial e temporalmente.

Ainda assim, insisto na janelinha que abre esses três textos esféricos (ainda uma saída, uma passagem virtual, como a que se apresenta fugazmente para a existência dos personagens) para uma interface com Mr. Gwyn, em especial, com o «talento singular» de seu protagonista, para não falar da perseguição de «certa ideia que tinha na cabeça» o nosso autor em questão.

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No encontro em que Gwyn faz a Rebecca a proposta de ser seu primeiro modelo numa experiência a qual nem mesmo ele sabe o que significa (e que, em termos verbais, nunca será explicitada para o leitor), lemos:

«Depois se entregou a uma confissão, coisa que não lhe era habitual, e disse que, em outra vida, gostaria de ser um lobby de hotel.

__ Trabalhar em um lobby, o senhor quer dizer?

__ Não, não, ser um lobby, fisicamente».

Antes de descoberta pela mídia, a atividade de “copista” e a colaboração com Rebecca rendem nove “retratos”. Ao ler “Três vezes ao amanhecer”, ela percebe que a primeira parte é muito semelhante a um deles («Era até verdade que resultava mais longa, mas quando foi conferir, Rebecca verificou que as coisas importantes estavam todas lá»).

Como Jasper Gwyn deixou suas cópias dos “retratos” aos seus cuidados, ela vai conferi-los e se dá conta de algo que lhe escapara: havia, na verdade, dez “retratos”:

«Compreendeu-o de repente, com a velocidade fulminante com a qual a gente às vezes compreende, muito tempo depois, coisas que estão ali à vista desde sempre, basta saber olhá-las.

   Pegou nas mãos o retrato que fora parar em “Três vezes ao amanhecer” e começou a relê-lo.

    Como foi que não pensei nisso antes, perguntou-se.

    O lobby do hotel, caralho.»

O que lemos na primeira parte de Três vezes ao amanhecer é, portanto, além de um belo relato completo em si mesmo, o autorretrato de Jasper Gwyn. Podemos rastrear, inclusive, sua obsessão pela possibilidade, ainda que virtual, da tabula rasa: a misteriosa mulher que o fisga, por assim dizer, impedindo-o de fugir antes da chegada da polícia, lhe diz que «na realidade, quase ninguém, afinal, recomeça de fato desde o início, mas não se tem uma ideia de quanto tempo as pessoas passam fantasiando sobre isso, e muitas vezes justamente quando estão bem no meio dos seus problemas, e da vida que gostariam de deixar». Mais adiante, essa mulher-nêmese (tal como a literatura acaba por ser nêmese para Gwyn, o qual nunca deixará de produzir livros, mesmo sob disfarces), insiste: «sabe o que compreendi? O homem não respondeu. Compreendi que a gente não muda verdadeiramente nunca, não há jeito de mudar, fica-se toda a vida do jeito como se é, desde pequeno, não é para mudar que se recomeça desde o início. E é para quê, então?, perguntou o homem […] Recomeça-se para mudar de mesa, disse. Temos sempre essa ideia de ter caído na partida errada, e de que com nossas cartas sabe lá o que conseguiríamos fazer se nos sentássemos a outra mesa do jogo»[5]. O autorretrato de Jasper Gwyn termina com um homem indo para a prisão.

Como Paul Auster escreveu, em Cidade de vidro (que faz parte de outra reunião de três narrativas, a Trilogia de Nova York): «o que interessava nas histórias que escrevia não era a sua relação com o mundo, mas a sua relação com outras histórias».

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Todo o percurso acima me interessa sobremaneira, é evidente. Todavia, deixei para o final o fator que considero mais fascinante na decisão de Baricco em escrever Três vezes ao amanhecer. Conquanto tenha gostado demais de Mr. Gwyn, queixo-me de que ele nos deixa na mão, com relação ao experimento dos “retratos em palavras” de seu herói, os quais permanecem mais um conceito do que uma experiência narrativa, apesar de tudo o mais que o romance tem a nos oferecer em matéria de fabulação e reflexão.

Afirmei que Três vezes ao amanhecer funcionaria no palco ou nas telas (pelo menos, sob a batuta de um diretor talentoso). Sua feição crucial (quase afirmaria: “mais verdadeira”), porém, é a da experiência de Jasper Gwyn, enfim efetivada diante de nossos olhos, não apenas um conceito ou uma possibilidade narrativa.

Ler esse livro é como ter quadros de Edward Hopper metamorfoseados em textos, e não apenas “explicados” ou meramente descritos. O leitor sente palpavelmente que, mesmo para além das fronteiras dos hotéis (e Mr. Gwyn queria tanto ser o lobby de um qualquer!) em que os quadros “começam” (suas molduras, pode-se dizer), nos reinícios que não sabemos se darão certo, o que está ali  pode até resultar “mais longo” do que uma experiência pictórica tal como a de percorrer os quadros de Hopper (para ficar num pintor que tão bem retratou a solidão, a angústia e a incomunicabilidade em quartos e estabelecimentos[6], e que, paradoxalmente, se presta a um “olhar narrativo”), mas com a precisão mágica da prosa e dos diálogos de Baricco,  «as coisas importantes estão todas lá».

O leitor pode fechar os olhos, após a leitura, e visualizar: três pungentes retratos escritos. Cem páginas que valem por três imagens.

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TRECHOS SELECIONADOS

«Eram quadros grandes, todos parecidos, como a repetição de uma só ambição, ao infinito. Havia sempre uma pessoa nua, e pouca coisa ao redor, um aposento vazio, um corredor. Não eram pessoas bonitas, eram corpos ordinários. Simplesmente estavam ali—mas era especial a força com que o faziam, como se fossem sedimentos geológicos […] Notou que o pintor trabalhara naquilo durantes anos, mais ou menos vinte, sem que aparentemente tivesse alterado nada em seu modo de ver as coisas, ou em sua técnica. Simplesmente havia continuado a fazer—como se tivesse sido um único gesto, só que muito longo. Jasper Gwyn se perguntou se isso acontecera também com ele, nos doze anos em que havia escrito, e enquanto procurava uma resposta chegou ao apêndice do livro, e ali havia fotografias feitas enquanto o pintor trabalhava, em seu estúdio […] Impressionou-o uma foto na qual o pintor se mantinha sentado placidamente em uma poltrona, voltado para uma janela, olhando lá fora; a poucos metros dele, uma modelo estava deitada em um divã, nua, numa posição não muito diferente daquela em que havia sido retratada na tela. Ela também parecia olhar o vazio.

   Jasper Gwyn viu nisso um tempo que ele não esperava, o escoar de um tempo. Como todo mundo, imaginava que aquele tipo de coisa acontecia de modo costumeiro, com o pintor ao cavalete e o modelo em seu lugar, imóvel, ambos empenhados num passo a dois cujas regras eles conheciam—podia imaginar as conversas bobas, enquanto isso. Mas ali era diferente, porque pintor e modelo pareciam sobretudo esperar e até mesmo esperar, cada um, por conta própria—e esperar por alguma coisa que não era o quadro. Era o caso de pensar que esperavam se depositar no fundo de um enorme copo […]

   Numa das fotos via-se um senhor de seus sessenta anos, com bigode bem-cuidado, longos pelos brancos sobre o peito, sentado numa cadeira ocupado em beber de uma xícara, talvez um chá, as pernas ligeiramente abertas, os pés pousados um pouco de viés sobre o pavimento frio. Dir-se-ia absolutamente inadequado à nudez, a ponto de evitá-la até na intimidade doméstica ou amorosa, mas ali estava perfeitamente nu, o pênis apoiado de lado, um tanto grande e circunciso, e, mesmo sendo indubitavelmente grotesco, era também, ao mesmo tempo, tão inevitável que por um instante Jasper Gwyn teve certeza de ignorar algo que aquele homem sabia.

   Então ergueu o olhar, procurou ao redor, e de repente encontrou o retrato do senhor com bigode, grande, pendurado na parede de frente; era ele mesmo, sem xícara de chá, na mesma cadeira, nu, os pés pousados meio de viés sobre o pavimento frio.  Pareceu-lhe enorme, mas sobretudo pareceu-lhe alguém que chegou.

__ Gosta?—perguntou a galerista.

   Jasper Gwyn estava compreendendo algo de particular, que depois mudaria o curso dos seus dias, e por isso não respondeu logo. Voltou a olhar a foto no catálogo e depois de novo o quadro na parede—era evidente que alguma coisa havia acontecido, entre a foto e o quadro, alguma coisa como uma peregrinação. Jasper Gwyn pensou que devia ter sido necessário um monte de tempo, uma espécie de exílio, e sem dúvida a dissolução de muitas resistências. Não pensou em algum truque técnico e sequer lhe pareceu importante a eventual competência do pintor, só lhe veio à mente que uma atuação paciente estabelecera para si mesmo uma meta, e por fim o que conseguira obter era reconduzir para casa aquele homem com o bigode. Pareceu-lhe um gesto belíssimo».

(trecho de Mr. Gwyn)

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«E, de fato, do horizonte havia subido uma luz cristalina para reacender as coisas e repor o tempo em movimento[…] Não era o caso de dizer isso ao garoto, mas na verdade voltar ali a deixava ansiosa, depois de tanto tempo. Além disso, sabia que não tinha outro plano, caso aquele falhasse, coisa que também podia acontecer […] No entanto, ela havia imaginado o modo pelo qual tudo podia dar certíssimo, e sabia que nesse caso não poderia ter inventado nada melhor para aquele garoto, quanto a isso não tinha dúvidas. Tratava-se apenas de se manter otimista. Aquela luz a ajudava[…]  e sentiu uma fisgada que não entendeu, tão difícil era separar o sabor da saudade da bela sensação de haver inventado algo de bom. Afinal, talvez você não seja aquele fracasso que acredita ser, disse a si mesma. E por um instante lhe voltou aquele brilhante descaramento que ela possuía quando jovem, quando sabia não ser nem pior nem melhor do que muitos outros, mas apenas diferente, de um modo precioso e inevitável. Era quando tudo lhe entusiasmava, mas ela ainda não sentira medo de nada. Agora se passara tanto tempo, uma espécie de cansaço inquieto havia dominado tudo um pouco, e a nitidez daquela sensação se tornara muito rara. Ela a reencontrou, ali, à beira da estrada, diante de uma placa que anunciava um nome, aquele nome, e desejou  muito que aquilo não fosse embora logo. Desejou fortissimamente que a sensação a acompanhasse até aquele homem, porque então o homem a leria em seus olhos e mais uma vez pensaria  em quanto ela era única, e bonita, e irrepetível».

(trecho de Três vezes ao amanhecer)

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NOTAS

[1] Em todas as citações dos textos de Baricco, utilizo as traduções de Joana Angélica d´Avila Melo publicadas pela Alfaguara.

[2] De fato, um dos protagonistas de Auster, Sidney Orr (de Noite do oráculo, 2003), escreveu um romance intitulado Tabula rasa.

[3] No original, Tre volte all´alba.

[4] Mais adiante, ainda que insistindo na autonomia da narrativa: «isso não impede que, em sua primeira parte, ele mantenha aquilo que Mr. Gwyn prometia, isto é, um olhar a mais sobre o curioso caso de Jasper Gwyn e do seu talento singular». A meu ver, não só nessa parte, e sim no livro como um todo.

[5] Note-se que essa perspectiva lança uma aura de antecipada ironia sobre as duas histórias a seguir, centrada nas possibilidades de recomeço que os personagens mais velhos (o porteiro noturno e a policial veterana) tentam abrir para seus jovens interlocutores, a adolescente e o garoto.

[6] E Jasper Gwyn diz: «Um dia percebi que nada mais me importava e que tudo me feria mortalmente…»

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[ autoria: Adão Cruz]

05/05/2015

“Submissão” tira a venda dos nossos olhos

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(uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 05 de maio de 2015)

Entre as razões que me fizeram detestar O mapa e o território (o incompreensível prêmio Goncourt de 2010), estavam a autocomplacência com que se narrava ali o irrisório da existência pós-moderna, liquidado qualquer horizonte que não seja o mercado, e sua prosa pastosa e entulhada[1].

Temia, então, que Submissão, o novo romance—após cinco anos de silêncio—de Michel Houellebecq, cujo lançamento acabou associado ao atentado sofrido pelo “Charlie Hebdo”— e no qual se imagina um presidente muçulmano que chega ao poder na França em 2022,  instaurando profundo retrocesso dos costumes— seguisse o mesmo caminho, pois François, o narrador,  admirador e estudioso do decadentista J. K. Huysmans (1848-1907), autor de Às avessas, caracteriza a si mesmo do seguinte modo: «Meu interesse pela vida intelectual decrescera muito; minha existência social não era mais satisfatória do que a corporal, ela também se apresentava como uma sucessão de pequenas amolações—pia entupida, internet fora do ar, perda de pontos na carteira de motorista, faxineira desonesta, erro na declaração do imposto—que também se sucediam sem interrupção, praticamente nunca me deixando em paz»; ou seja, mais um apático, sem fibra ou ardor, que não nos desperta a menor empatia, como os personagens do livro anterior (não obstante a eles pudesse se aplicar o lamento do Mr. Gwyn de Baricco: «Um dia percebi que nada mais me importava e que tudo me feria mortalmente…»)[2].

Pensei: lá vem outro mapeamento aborrecido da nulidade contemporânea (felizmente não tão prolixo quanto o anterior)! Para minha imensa surpresa, Submissão[3] é um abalo sísmico ficcional — além disso, apresenta uma prosa de surpreendente precisão. Assustadora, entretanto, para o leitor brasileiro, é a analogia com a atual situação política em nosso país (não à toa, no livro há uma manifestação direitista nas ruas de Paris, e lemos: «De acordo com os organizadores, havia dois milhões de pessoas—trezentos mil, segundo a polícia…»), com nossa presidente acuada por seus supostos aliados, mais perigosos do que seus adversários, e cercada pelo congresso mais conservador e propenso a retrocessos da nossa história recente: «…esse espetáculo vergonhoso, mas aritmeticamente inelutável, da reeleição de um presidente de esquerda num país cada vez mais abertamente de direita […] um ambiente estranho, opressor, se espalhara pelo país. Era como um desespero sufocante, radical, mas perpassado aqui e ali por clarões insurrecionais…»[4].

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O alienado François («…sentia-me tão politizado quanto uma toalha de rosto…»[5]) se vê engolfado pela tremenda reviravolta civilizatória ocorrida em sua nação, e por não ser muçulmano é desligado da universidade (até então acomodara-se numa amorfa carreira de funcionário público). Aos poucos, com sua falta de bússola ontológica, deixa-se cooptar pelo novo regime, numa “suave” conversão.

A fantástica advertência que Submissão realiza não é um discurso defensivo em favor do Ocidente e anti-Islã! O que Houellebecq mostra, de forma cabal, é o que nós mesmos acompanhamos por aqui: partidos de esquerda, cujo discurso, para não falar da prática governamental, mal difere da direita, e sobretudo o amolecimento de ideais, a abdicação de convicções ideológicas, abrindo caminho para que o ranço conservador e reacionário, o fundamentalismo religioso (de todos os matizes), permeassem alianças políticas malsãs, diminuindo consideravelmente o escopo dos avanços sociais e dos costumes, e dando margem para que qualquer contrapartida totalitária ao vácuo espiritual deixado como rastro de óleo pelo triunfo do mercado e do consumo (particularmente o apelo à “ordem”, a nostalgia de uma tradição em que os valores morais eram respeitados, e aos quais a maioria era submissa) tenha enorme poder de atração para as massas (no final, parece que vencerá a demografia ao invés da democracia): «Que a história política conseguisse ter um papel em minha própria vida continuava a me desconcertar, e a me repugnar um pouco. Contudo, eu percebia claramente, e fazia anos, que a distância crescente, agora abissal, entre a população e os que falavam em seu nome, políticos e jornalistas, devia necessariamente levar a algo caótico, violento e imprevisível […]até recentemente eu ainda estava convencido de que os franceses, em sua imensa maioria, continuavam resignados e apáticos—talvez porque eu mesmo estivesse razoavelmente resignado e apático. Eu estava enganado».

Esse perigo crucial (render-se a um espúrio antídoto ao caos atual)  poucas vezes foi mostrado de forma tão contundentemente pedagógica. Submissão é uma leitura vital e necessária, daquelas que bruscamente tiram dos olhos todas as vendas, mesmo as mais resistentes. Por  paradoxal que seja, me remeteu à seguinte passagem bíblica (de Reis, 6, 17-19) : «Eliseu orou, e disse: Senhor, abre seus olhos, para que ele veja! E o Senhor abriu os olhos do servo, e ele viu; e eis que a montanha estava coberta de cavalos e carros de fogo, em torno de Eliseu! E, quando os arameus desciam contra ela, Eliseu orou ao Senhor: Fere, peço-Te, esta gente de cegueira! E o Senhor feriu-a de cegueira, conforme a palavra de Eliseu. Então Eliseu lhes disse: Não é este o caminho, nem é esta a cidade…».

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TRECHO SELECIONADO

   «… a direita liberal ganhara a “batalha das ideias”, Ben Abbes entendera perfeitamente isso, os jovens tinham se tornado empreendedores, e o caráter insuperável da economia de mercado era, agora, unanimemente admitido. Mas, o verdadeiro lance de gênio do líder muçulmano foi entender que as eleições não se disputariam no terreno da economia, e sim no dos valores […] Ali onde Ramadan apresentava a charia como uma opção inovadora, e até revolucionária, ele lhe restituía seu valor pacífico, tradicional—com um perfume de exotismo que a tornava, para completar, desejável. Quanto à restauração da família, da moral tradicional e, implicitamente, do patriarcado, abria-se uma avenida diante dele, que a direita não podia palmilhar, a Frente Nacional também não, sem serem qualificadas de reacionárias, e até de fascistas pelos últimos remanescentes de Maio de 68, múmias progressistas moribundas, sociologicamente exangues mas refugiadas em cidadelas midiáticas de onde continuavam capazes de lançar imprecações sobre a desgraça dos tempos e o ambiente nauseabundo que se espalhava pelo país; só ele estava ao abrigo de qualquer perigo. Paralisada por seu antirracismo constitutivo, a esquerda foi desde o início incapaz de combatê-lo, e até de mencioná-lo».

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NOTAS

[1] Como afirmei, num comentário no FACEBOOK: «Terminei O mapa e o território  com a forte sensação de que era o Ricardo Lisias reescrito pelo Daniel Galera (infelizmente, o de Barba ensopada de sangue), com pitacos do Bret Easton Ellis.

[2] Talvez a respeito de O mapa e o território possa se aplicar uma consideração de François sobre uma das obras de seu ídolo literário: «…contar, num livro fadado a ser decepcionante, a história de uma decepção…».

[3] No original, Soumission, e cujas passagens citadas são da tradução de Rosa Freire d´Aguiar.

[4]  No romance, o presidente francês “se faz de morto”—e espero que esse não seja o destino político de Dilma Roussef: «Ao término de seus dois calamitosos mandatos…, devendo sua reeleição apenas à estratégia lamentável que consistiu em favorecer a ascensão da Frente Nacional, o presidente praticamente desistira de se manifestar, e quase toda a imprensa parecia até mesmo ter esquecido de sua existência.».

[5] Ele também diz, a certa altura: «…decididamente a fibra espiritual era quase inexistente em mim…». Entretanto, creio que a declaração mais eloquente sobre sua condução existencial é a seguinte: «A expressão “Depois de mim, o dilúvio” é atribuída ora a Luís XV, ora à sua amante, Madame de Pompadour. Ela resumia bastante bem meu estado de espírito, mas era a primeira vez que uma ideia inquietante me cruzava o espírito: o dilúvio, afinal de contas, poderia muito bem se produzir antes de meu próprio falecimento». Quase a usei como epígrafe.

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