(o texto abaixo, escrito em 2008, baseado num anterior, de 1994, faz parte das anotações de um curso, “Três Jovens Parcas”, na qual tentei fazer uma leitura comparativa do livro de Styron com Ópera dos mortos, de Autran Dourado, e Sobre heróis e tumbas, de Ernesto Sabato)
Autran Dourado ao eleger Antígona como figura arquetípica para a história de Rosalina, em Ópera dos mortos, estava plenamente consciente das convenções da tragédia com as quais iria trabalhar e sobre as quais iria fazer seu trabalho de deslocamento e paródia (toda retomada intertextual tem esse matiz de paródia), mesmo que isso não fique claro para o leitor[1].
Autran Dourado tinha 41 anos ao publicar Ópera dos Mortos (nasceu em 1926, o livro é de 1967). William Styron é, também, um autor muito consciente da tradição literária, como mostrou de forma inequívoca em A escolha de Sofia (Sophie´s choice, 1979), mas no seu livro de estréia, Deitada na escuridão (Lie down in darkness), os dados estão mais escondidos, quer por razões de estratégia, quer por inconsciência de um autor talentoso, de 25 anos (nasceu em 1925, o romance é de 1951[2]). Inconsciência não quer dizer que a convenção, o arquétipo, não estão lá. É que há uma maior eficiência no deslocamento realista.
Por exemplo, apesar das nítidas indicações históricas de Ópera dos Mortos, não há uma única data ou década mencionada. Pudera, estamos no mundo da “longa duração”, mundo rural, arcaico, em que há ecos da modernidade, mas tudo está estagnado, a grande época já passou e o que era o imitativo elevado se torna o modo irônico, típico da literatura moderna, segundo Frye:”…a sensação de olhar de cima uma existência de servidão, malogro ou absurdo”.
Condiz bem a esse clima a escolha de Antígona, atada à maldição de sua gens, do seu clã familiar, preso num tempo mítico que não mais serve aos propósitos da pólis e de seus cidadãos. Tanto a família de Édipo quanto a de Jocasta (por extensão, Creonte, irmão dela, e oponente da sobrinha, Antígona, como o foi de outro filho de Édipo, Polinices), envolvidos pela hybris da destruição mútua, são incômodas forças sociais negativas.
Eu penso que o arquétipos utilizados (de forma deslocada e paródica) em Deitada na escuridão são Ifigênia (Peyton Loftis) e seus pais, Agamêmnon (Milton) e Clitemnestra (Helen).
Ao lermos mais vezes a peça de Eurípides, Ifigênia em Áulis, vislumbramos um momento excitante em termos de dinâmica social: oba, os homens estão partindo para a guerra, vai haver ação, expansão, conquistas, despojos, escravos, riqueza. Nada de estagnação. Um pequeno porém: os ventos estão parados, tudo isso só pode ocorrer mediante o sacrifício de um pharmakós, um bode expiatório, a coitada da Ifigênia. Esse momento dinâmico e expansivo dos argivos será também a hamartía (falta) de Agamêmnon que gerará outro ciclo de hybris e destruição de um clã, mais tarde, nas tragédias pós-Tróia envolvendo a família. Porque, ainda que Ifigênia, como o Isaac de Abraão, na Bíblia, seja poupada da morte na hora do sacrifício (é substituída por uma corça e enviada como sacerdotisa de Ártemis, em Táuris), sacrifício que ela afinal escolhe e acolhe, para maior glória dos argivos, Clitemnestra jamais perdoará a Agamêmnon o ardil de fazer com que trouxesse a filha com o falso pretexto de casá-la com Aquiles.
De certa forma, Ifigênia em Áulis, mais do que a tragédia de Ifigênia, embora ela seja sua figura-chave como objeto de disputa e como pharmakós, é a tragédia da luta moral entre seus pais, ambos com falas longas e belíssimas, com suas razões, seus prós e contras. Portanto, no meio de uma conflagração histórica envolvendo os reinos gregos, por extensão, a nação grega, vemos uma luta primordial entre o paterno e o materno, e podemos tirar todos os freudismos que quisermos daí. E as posteriores conseqüências dessa situação é que a enriquecem consideravelmente, sob perspectiva. Acho que seria difícil apreciar tanto Ifigênia em Áulis não fossem os desdobramentos da decisão de Agamêmnon e do logro que tenta impingir à sua mulher e filha.
Pois bem, voltando ao livro de Styron, é minha opinião (e não precisa necessariamente ser compartilhada por mais ninguém) que Helen Loftis, a personagem mais impressionante do livro, quase sua razão de ser eu diria, carrega todos os estágios de Clitemnestra, tanto o da peça de Eurípides quanto os das tragédias pós-Tróia (particularmente as de Ésquilo), e por isso a sua fúria vingadora está sempre presente, e em razão disso a Ifigênia do livro é também, ou principalmente, sacrificada por ela.
Ao contrário das ardilosidades históricas de Ópera dos Mortos, o ritmo histórico fervilhante marca vários estágios da trama: vemos os EUA se configurando como potência mundial, e até o Deep South ter de se adaptar a novos ventos (que custam um pouco a soprar por lá, é verdade), com estaleiros produzindo navios de guerra. O casal Loftis se conhece e se casa durante a Primeira Guerra, e Helen esperava ter encontrado um herói; vários momentos intensos da família coincidem com momentos gerais intensos: o início da guerra, Pearl Harbor. O corpo de Peyton, após o seu suicídio, volta para casa (em Port Warwick, Virginia, cidade de estaleiros, de portos em que se carregam minérios poluidores do ar como a bauxita, que deixa uma caliça em todas as coisas e seres, e de mangues, de águas poluídas, com uma cor azinhavrada; logo, uma cidade de calor, pó e umidade) no ano em que os EUA e os aliados vencem a guerra e então uma nova situação mundial vai se delinear.
Em A Escolha de Sofia, romance em que se coloca como personagem, aos 22 anos, lutando para escrever seu primeiro livro (o que forma uma das linhas narrativas, ao lado da história de Sofia), sulista perdidoem Nova Iorque, Styron nos conta:
“Em minha carreira de escritor, sempre me senti atraído por temas mórbidos —suicídio, estupro, assassinato, vida militar, casamento, escravidão. Mesmo nessa época, eu sabia que meu primeiro livro seria impregnado de uma certa morbidez”[3].
Há um outro lado da moeda: a amplitude, mesmo que disfarçada no tom depreciativo adotado, da sua ambição literária: “Minha estratégia original era pateticamente imitativa, sem lógica e sem planos, que eram substituídos por um desejo amorfo de fazer por uma cidadezinha do Sul o que James Joyce fizera em seu milagroso microcosmo. Para alguém da minha idade, não era uma ambição completamente destituída de validade, a não ser pelo fato de, mesmo no plano mais modesto, não parecer haver maneira de inventar réplicas sulistas para Stephen Dedalus e os imortais Blooms.”
Após angustiar-se diante da página em branco (“Deus meu, conseguiria eu alguma vez escrever um romance?”), recebe a notícia, através de uma carta do pai, do suicídio de uma paixonite da adolescência, Maria Hunt.
“Matara-se pulando da janela de um edifício e constatei, com espanto, que isso ocorrera apenas algumas semanas antes, em Manhattan. Mais tarde, fiquei sabendo que ela morava pertíssimo de mim, na Sixth Avenue. Era um dos sinais da desumana vastidão da cidade, o fato de termos vivido durante meses num bairro tão compacto como Greenwich Village, sem nunca nos termos encontrado.”
A morte de Maria fornece o “estalo” para um milagroso microcosmo de uma cidadezinha sulista, a mítica cidadezinha norte-americana, que pode ser tomada como o sal da terra dos valores americanos (não é de uma delas que sai o galante mr. Deeds de Frank Capra?) ou um celeiro de podres escondidos (como em Kings Row- Em cada coração, um pecado, um calhamaço de Henry Bellamann, em Peyton Place- A Caldeira do Diabo, de Grace Metalious, ou o seriado de David Lynch, Twin Peaks):
“A toda hora me debruçava sobre o recorte de jornal que meu pai me mandara, tomado de excitação pela crescente possibilidade de Maria e sua família servirem de modelos para as personagens de meu romance. A figura desesperada e arruinada de um pai beberrão e mulherengo; a mãe, ligeiramente desequilibrada e ultra-puritana, conhecida nas esferas da alta classe média —freqüentadores do country club e da igreja episcopal— pela sua estóica tolerância à amante do marido, mulher estúpida e arrivista, oriunda do subúrbio e, finalmente, a filha, a pobre e defunta Maria, condenada desde o início a vítima de todos os mal-entendidos, ódios mesquinhos e sentimentos de vingança capazes de fazer com que a vida familiar da burguesia fosse a coisa mais parecida que há na terra com o inferno —Deus meu, pensei, era uma maravilha, um presente dos céus!”
Deitada na escuridão é dividido em oito longos capítulos. A moldura do relato é o dia da chegada do corpo de Peyton, “num dia útil de agosto de 1945”, o que psicológica e narrativamente se mostra muito sábio: em primeiro lugar, tudo o que vamos ler, até o mais aparentemente insignificante acontecimento na infância será impregnado pela informação de que Peyton se suicidou, e portanto, tudo contribui, já que ela está morta, para configurar sua vida como um destino, o que é muito pertinente a essa galáxia de círculos fatalísticos que estamos visitando em nosso curso; em segundo lugar, como todos os eventos passados estão permeados pela visão do presente da narrativa (para cada segmento narrativo, um personagem é responsável pelo ponto-de-vista predominante: Milton, sua amante Dolly, Helen, o reverendo Carey), há uma sensação de sempiternidade, de anulação do tempo real e cronológico, pelo tempo psicológico e mítico, no qual se movem as pulsões da família, sua hybris. No meu prospecto de curso, coloquei como subtítulo das aulas, “As herdeiras no labirinto”, justamente porque da maneira como o tempo é manipulado pelas narrativas, o devir vira um labirinto cuja saída acaba sendo a morte (no caso de Peyton e Alejandra) ou a loucura (no caso de Rosalina). O efeito intensivo e saturador, principalmente no caso de Deitada na escuridão, é enorme. Eu acho que Styron aprendeu isso mais com Faulkner do que com Joyce.
O primeiro capítulo começa com o trem chegando a Port Warwick e é como se fôssemos adentrando na região de Tidewater (o litoral da Virginia). Nele, está o corpo de Peyton e seu pai, Dolly (com quem Milton está vivendo, numa das suas muitas idas e vindas entre a mulher e a amante), a criada, aguardam-no junto com o carro funerário. O calor é terrível, e o carro às vezes pifa. E há a ausência de Helen (o sr. Casper, o agente funerário, lembra: “Foi com grande curiosidade, portanto, lembrando o tom das palavras de Helen, frio, tão desprovido de emoção, que chegou à casa deles naquela manhã. Ela o recebeu na porta da frente, o rosto calmo como se estivesse recebendo o entregador do armazém. É verdade, pensou, sua pele estava cansada. Uma fina rede de rugas estendia-se por seu rosto pálido. Triste, pensou ele, triste. Porém elas —todas aquelas rugas, estrias e dobras—já estavam lá antes. Elas –juntamente com o cabelo encantador, inteiramente branco, embora ainda não tivesse cinqüenta anos— pertenciam a outro sofrimento”).
Milton e Helen discutiram, e ela manteve-se irredutível quanto a não o acompanhar, preferindo chegar mais tarde com o reverendo Carey, embora ao lhe dar a notícia, Milton propusesse uma reconciliação, uma volta dele ao lar. E relembra alguns momentos bons de antigamente, mas justamente num desses flashes, Helen se lembra da irritação que sentia, Peyton ainda uma criancinha, com a ligação entre pai e filha: “O café na bandeja de desjejum ficou subitamente sem sabor e durante um instante ela sentiu um frustrante desamparo. Milton estava zumbindo, Peyton estava zumbindo.”
Milton: “o trem afinal chegaria, trazendo com ele a prova final do destino e contingência —palavra que nunca compreendera muito bem em toda a sua vida —sendo, pelo menos nominalmente, um membro da igreja episcopal, e não inclinado, por formação, a se preocupar muito com abstrações. Ele chegaria, trazendo também a prova de todos os seus erros e de todo o seu amor…”
Ficamos sabendo, então, como Milton e Helen se conheceram e como a aura emanada pelo uniforme de oficial (embora ele tenha feito a guerra da maneira mais distante possível do front) e por sua beleza seduziu-a, esperando dele grandes coisas. Casaram-se, construíram uma grande casa (o dinheiro era dela, herdado; ele só tinha as belas palavras, a retórica do cavalheiro sulista, manifesta de forma mais patética e constrangedora pelo pai de Milton).
Enquanto Milton espera o corpo, Helen tenta mergulhar no sono, e essa é a primeira indicação de que, insatisfeita com o mundo externo (tal como Frye nos mostra a polarização que a narrativa romanesca escancara), frustrada e desamparada, ela procurará na obscuridade do seu quarto e no sono, o esquecimento, o apaziguamento. E as imagens ligadas a Helen sempre serão contrastadas a verão, manhã, tarde, sol; ao aparecer em cena ou ser tomada pela fúria ou revolta, o que será muito comum, as imagens indicam escurecimento, crepúsculo, anoitecer, tempestade. Já a primeira cena em que a vemos “desamparada” diante da harmonia entre pai e filha, ela fica à parte de uma atmosfera estival, em que Peytonqueixa-se de abelhas, e o pai “a protege”, daí a frase “Milton estava zumbindo, Peyton estava zumbindo”.
Para coroar o capítulo, há uma carta de Peyton –que Milton carrega consigo, comentando seu aniversário (22 anos), que foi abandonada pelo marido, Harry (“Que tipo de veneno espalharam os boateiros locais? Que disse ela?”) e confessando que odeia Nova Iorque e se sente alheia a ela.
No segundo capítulo, continua o cortejo fúnebre (curiosamente esvaziado de conhecidos, numa família com projeção social). Milton se lembra de Peyton aos nove anos “anunciando excitadamente: —Papai, papai, sou linda!” Mas, na verdade, o ponto-de-vista do capítulo é de Dolly, que evoca uma visita à casa dos Loftis, com o marido medíocre e o filho boçal, na qual começou a se delinear o interesse mútuo entre ela e Milton, o qual bebe demais, dá em cima dela (mas o caso só vai se efetivar anos depois, ainda que Helen desconfie de que começou antes, o que psicologicamente não deixa de ser verdade). E aí há um incidente terrível: Peyton e Buster (o filho de Dolly), ao brincarem com Maudie, a filha meio aleijada dos Loftis, pela qual Helen tem um desvelo frenético, a amarram e quase a sufocam:
“Todo ficaram olhando. Muito suavemente, Helen depositou Maudie nos braços de Ella Swann, rodopiou então violentamente e em silêncio, sob o olhar de todos… caminhou para onde Peyton estava, com o olhar repentinamente perigoso, e deu-lhe uma violenta bofetada no rosto.” Será que a revolta de Helen e sua atitude não estão ligadas também ao flerte muito pouco disfarçado entre o marido e a visita vulgar, um casal que ela abomina e acha abaixo dela e de Milton? Ainda há a cerimônia de desculpas mútuas, quando Milton e Peyton sobem ao quarto de Maudie. Nessa subida, que dará ensejo a uma cena penosa e forçada entre mãe e filha, lemos:
“…surgiam cheiros fortes e misteriosos, pós e perfumes que, apesar de familiares a ambos, nunca perdiam o odor de coisa estranha e secreta…Em Peyton provocavam uma excitação pecaminosa, também uma promessa de bailes e festas e –uma vez que tinha apenas nove anos- a esperança de que, quando o Príncipe finalmente chegasse, com o amor e um alegre tinir de esporas, o dia cheiraria como aquele, um perfume perturbador, sempre de rosas.” Note-se a cumplicidade pai-filha e como isso coloca à parte a mãe. Há um diálogo entre ela e o marido que já promete coisa:
“-Não sei…
-Que quer dizer com isso, Helen?
-Se não fosse por Maudie, se não fosse por Maudie…
-Que quer dizer?
-Não sei, não concebo ser capaz de continuar a viver com você. Acho apenas que você vai destruir todos nós.”
No terceiro capítulo, Dolly percebe (ou tem um “pressentimento”) de que Milton vai abandoná-la. Ela relembra o momento em que ele soube da notícia da morte de Peyton, quando finalmente a levara ao country club, assumindo o caso e mostrara a ela quem eram “as” pessoas (ao mesmo tempo, ela se enfadara de ouvi-lo discorrer sobre Peyton, seu assunto favorito). E é no country club que Peyton comemorou a sua festa de 16 anos, estragada pela mãe, que ficou indignada ao saber que Milton lhe dera uísque para beber (também nessa festa, na sala de troféus, é que Milton e Dolly “consumam” o adultério, após anos de embromação e flertes, e apesar de todo mundo achar que eles já têm um caso). Nesse capítulo, há um trecho-chave para caracterizar a estratégia existencial de Helen, que já não suporta seu casamento, e, tirando seus cuidados com Maudie, mal suporta a família:
“…ela deixou-se cair no leito, ou melhor, na total escuridão, sabendo que com uma palavra —Sim, Perdão ou Amor— podia ter confirmado tudo, soltado todos os falsos, vingativos e perturbadores demônios no circundante ar da noite, e tudo voltaria a estar bem. Mas deitou-se nas trevas, a porta se fechou, eliminando o retângulo de luz que, momentaneamente, penetrara no quarto, seu lar, deixando de fora todas as intromissões, de forma que, agora, sonhadora, meio adormecida, ansiando desesperadamente pelo sono, recordava os dias do Exército, o distante e barulhento som das cornetas na praça de armas há tanto tempo, enquanto desejava, numa infinita espécie de sonolência, ser rodeada por aqueles braços fortes e constantes.”
E é nesse capítulo que fica clara a batalha dos pais pela alma de Peyton/Ifigênia, embora já de saída Helen a alinhe com o inimigo. Ou é a própria Peyton a inimiga? No confronto entre as duas no banheiro (Helen quer levá-la embora da própria festa por ter bebido), Peyton diz à mãe: “Desprezo você!” E Milton toma o seu partido. Peyton confessa a ele: “É absolutamente uma coisa terrível de dizer e não sei como dizê-la. Porém ela sempre faz essas coisas e suponho que ela tenha o direito de fazê-las, mas não posso evitar, não gosto dela”, o que revela algo mais profundo do que mera rebeldia adolescente contra uma mãe repressora, tão típica nos dramalhões. E Milton, por sua vez, já embriagado, vai gostar de mostrar a Dolly como é vítima da situação criada pela mulher (ele gosta da “sensação moderadamente trágica que sentia”). O capítulo termina no presente, com o cortejo fúnebre reduzidíssimo encontrando a multidão de negros da região indo ao encontro de um carismático reverendo, Daddy Faith (Papai Fé), muito apropriado quando se leu poucas páginas antes o desabafo de Helen: “Espere aí, Milton. Deixe-me dizer-lhe. Sei como é. Sei o que é o pecado. Conheço o pecado —repetiu, e a palavra foi como o fio de uma lâmina mergulhado em seu corpo —Eu sei. Eu sei. Conhecendo isso, sempre fui superior a você.” Portanto, ficamos conhecendo a hybris de Helen, como um pouco antes ficamos conhecendo sintomas da frustração de Milton, em meio à festa: “Por que seria sua sina ficar eternamente cercado de mentes inferiores, de corretores de imóveis e empreiteiros?”
No quarto capítulo começamos a acompanhar o ponto-de-vista do reverendo Carey Carr, a quem Helen foi procurar, anos antes, para aconselhamento espiritual (por conta do caso de Milton e Dolly), embora fortificada no seu orgulho, ou como diria o célebre tango de Carlos Gardel, “abraçada ao seu rancor”. No dia do enterro de Peyton, ele é quem a levará ao cemitério. Na conversa entre eles, Helen conta o incidente da ida de Peyton para o internato de Sweet Briar. Mortificada pela cumplicidade entre a filha e o marido, ela decidira estragar o dia, não os acompanhando. O “insight” de Helen merece ser transcrito com certa minúcia:
“Helen foi até a janela. Viu-os sob o salgueiro. Peyton no braço da cadeira dele… estava alisando o cabelo dele…
—Peyton estava sentada ao lado dele, disse Helen, de costas para mim. De short, vi suas coxas, o tecido colado nelas, e tive pensamentos vergonhosos: que aquele corpo que eu dei à luz…não, não quero repetir [veja-se o refinamento técnico de Styron, pois há o depoimento em primeira pessoa de Helen, mas permeado pelas considerações, anos depois, do reverendo Carr]… pela maneira como ela se apertava agora contra o pai, o senhor já pode imaginar que Peyton não era tão inocente assim no trato com os homens…
…Ela não se lembrava de quanto tempo durou… O que lhe tinha acontecido durante esse tempo? Sentiu que o demônio esteve ao seu lado enquanto os olhava…Ele dizia: Olhe-os, veja o pecado deles, olhe como ambos a traíram…Um a traiu, sendo infiel; a outra, por vício e maldade…
Portanto, olhou-os da janela e, ao fazê-lo, pareceu-lhe que tudo o que havia de errado e odioso no mundo tinha se juntado em torno da casa e do gramado, atraído para lá ao entardecer por breve instante e ainda mais insuportável porque ela percebeu estar sendo maldosamente tentada…”
Na seqüência, Peyton deixará Maudie cair da escada, um acidente sem importância, o qual no entanto jamais será esquecido por Helen, que o usará contra Peyton até o fim, como se ela fosse responsável, por seu comportamento e por ser como é, pela doença e pela morte da filha. É o lado mater dolorosa de Helen, seu escudo contra o marido e a filha. É como se, na superfície, Maudie fosse Ifigênia, sacrificada pela leviandade do pai e da irmã; num estrato mais profundo, o pharmakós é Peyton, crucificada pela desunião entre os pais e o ciúme patológico da mãe que, creio eu, ficou bem claro na citação acima. Tanto que há um momento, no mesmo capítulo, em que após a briga por causa da queda de Maudie, Helen ouve os dois lá embaixo (ela, eternamente deitada na escuridão no seu quarto): “e, no silêncio, ela pensou em sua prisão, no seu banimento”.
Nesse capítulo há outro episódio importante: o encontro/confronto entre Helen e Dolly, com a vitória desta, mais segura e menos patológica. Enquanto isso, o reverendo, no dia da chegada do corpo de Peyton, vai se aproximando da casa de Helen, e uma das criadas,La Ruth, desperta-a e tenta consolá-la. É possível consolar Helen Loftis?
O quinto capítulo começa com um segmento que tem um trecho incisivamente revelador:
“… ali estavam, totalmente atolados. Barclay acionava a partida, mas o carro funerário não se movia, e de todos os lados chegava o barulho das buzinas, irreverentes e insistentes no calor do meio-dia. Nesse instante, um audível som de desespero saiu da limusine. Foi como se o calor, o sofrimento e a tensão se fundissem no feroz berrar de buzinas em volta deles…”
Então, voltamos para o natal de 1942. Note-se que o autor sempre acumula cenas em torno de cerimônias que, em teoria, seriam congregadoras e, ao fim e ao cabo, mostram-se desagregadoras. Loftis chegou aos 50 anos, numa “aparência de uma imerecida juventude, embora um tanto dissoluta. Seu rosto era magro e viçoso, apenas levemente balofo na papada. Seu nariz era ligeiramente arrebitado, traço que ele considerava peculiarmente aristocrático…”, apesar da sua condição profissional e financeira: “… nunca pôde ganhar o bastante, sabia, para manter o padrão de vida aristocrático a que se obrigava, ainda era dependente de Helen”.
A casa foi enfeitada para o reaparecimento de Peyton (uma das várias voltas da filha pródiga). Vários convidados. Mas Milton começa a beber mais do que devia, como sempre. E Dolly resolve dar um telefonema justamente naquele dia impróprio.
“…maldizendo Dolly furiosamente, viu Helen desaparecer escada acima. Ela não mais retornaria à festa… Os convidados ´sentiram´. Muitos conheciam o ´problema` dos Loftis e pelo menos alguns alegraram-se quando notaram que Helen não parecia ser a pessoa trágica e retraída que, durante muito tempo, tinham espalhado que era. Mas o telefonema tinha posto tudo nos devidos lugares. Nada faz soprar um vento frio sobre a cordialidade como o pressentimento da aproximação de uma desagradável querela doméstica; assim, os convidados despediram-se aos poucos…”
Peyton chega, contudo fica pouco em casa, saindo com amigos, para a decepção de Milton:
“… ficou muito desapontado (Por que Peyton não ficava em casa? pensou) e, com vagas, sombrias e temerosas reflexões sobre Helen lá em cima, deitada nas trevas, virou-se para Dick Cartwright [o namorado de Peyton, com o qual ela perderá a virgindade, num momento-chave da trama, e que depois se revela impotente], ofereceu-lhe uma bebida e perguntou:
—Para que arma vai, filho?” [estamos na 2ª. Guerra e esse não é um dado secundário no romance de Styron; a guerra representa uma virada dos valores tradicionais, das convenções de distância e cavalheirismo, do próprio raio de ação das mulheres, que também tem seu peso no drama dos Loftis, basta lembrar das expectativas de Helen na Primeira Guerra, e de Peyton na Segunda: uma, casa com um uniformizado “herói” sulista; a outra, com um pintor judeu boêmio do Greenwich Village].
Helen, sublimando o telefonema de Dolly, transforma o final de ano num inferno, acusando Peyton de não se importar com a família (o tio veio de longe para vê-la e ela mal parou em casa). Vemos Helen no auge do seu avatar de mãe e esposa sofredora, Mildred Pearce, Stella Dallas, Imitação da Vida:
“… carregava travessas e pratos para a mesa como uma oprimida copeira, de má vontade, sofredora, e havia ameaça no seu movimento apressado, nos passos muito rápidos, determinados e cerimoniosos. Como os passos de uma penitente não mais interessada na penitência, apenas meio cansada, no entanto compelida a executá-la até o fim.”
Quando Peyton parte, Milton tem uma revelação: “…ela estava indo embora e ele sentiu que jamais voltaria”. Começa o período boêmio de Peyton pré-Nova Iorque. Milton continua seu caso com Dolly (embora considere sórdidos os cenários da sua “paixão”) e Helen vai com Maudie para Charlottesville. É de lá que, num momento em que Dolly ousa “invadir”, profanar, a casa deles pela primeira vez (e acaba passando a noite com Milton, que ao final pensa “na vergonha de ter nascido para essa desonra”, pois ele é o homem sentencioso, das grandes palavras envolvendo um comportamento sempre meio equívoco), Helen manda um telegrama avisando que Maudie está agonizante. Essa 2ª. parte desse imenso capítulo (na edição americana da Vintage,com o texto original em inglês, vai da pág.150 a 236) representa um dos momentos mais intensos (e digno das idéias de Frye) do romance, e com certeza não é por acaso que se encontra justamente no meio.
Milton encontra uma Helen desvairada e acusadora, e também já está completamente bêbado, mal dormiu (lembrem-se de que ficou fornicando com Dolly na sua própria casa) e enxovalhado, suado, meio fedido pelo álcool e pela longa viagem. E aí temos uma maravilhosa amostra de deslocamento e paródia. Frye nos alerta que o grande arquétipo das narrativas romanescas, da aventura, é a busca, quer seja do santo graal, de um símbolo redentor, de uma princesa (ou príncipe), enfim… de algo que dê sentido final às experiências. Escorraçado pelo desprezo de Helen, Loftis sai em busca, como um cavaleiro andante etílico, de Peyton, que se encontra numa fraternidade de estudantes em Charlottesville, para trazê-la para perto da irmã agonizante (deixando, assim, Helen condenada mesmo à solidão e ao banimento). Acontece que justamente é um dia de final de campeonato, ou qualquer coisa que o valha, e todos estão excitados pelo jogo importante. Loftis vai até a fraternidade (Kappa Alfa) e chega a entrever Peyton, mas algo sempre o impede de alcançá-la (paródia dos obstáculos que atrapalham os heróis e cavaleiros andantes). Chega até mesmo a ir ao jogo de futebol, e depois ainda cai numa vala, ferindo-se. Assim, sangrando, fedendo e quase que completamente anestesiado pela bebida (ainda houve um diálogo constrangedor com o ex-marido de Dolly), é que ele se atira aos braços da filha, a qual, embora adore o pai, fica indignada de saber que ele não tomou a atitude mais prática para avisá-la do estado de Maudie: telefonar para ela. Ambos vão para o hospital e é o momento em que Helen aproveita para lançar na cara deles o seu desprezo[4], e praticamente expulsá-los dali. É na seqüência dessa loucura e desse desespero que o capítulo vai terminar com Peyton perdendo a virgindade com Dick Cartwright, que, evento o qual, próximo à morte de Maudie, constituir-se-á duplamente uma profanação e um escárnio (e eu sempre pensei, embora possa estar enganado, que psicologicamente é o momento em que se Peyton se condena à morte, pela ótica da mãe). O final do capítulo é característico da atenção de Styron às fases do dia e dos ciclos da natureza:
“O crepúsculo envolveu seus corpos, pintou-os com fogo como o das crianças condenadas ao inferno que vivem, respiram e mudamente gritam, com as almas queimando eternamente.”
Como conseqüência das atitudes de Helen nesse capítulo, Milton vai viver com Dolly.
O próximo capítulo, o sexto, começa com o reverendo Carey e Helen, no trânsito, em meio à multidão que quer ver e ouvir Papai Fé (e como estamos no Sul pré-Martin Luther King, “Carey teve um instante de pânico: percebeu que, com Helen, ele era o único branco em toda aquela extensão de quilômetros, como um missionário isolado entre nativos hostis, que caminhavam incessantemente à procura de uma redenção pagã nas águas do Congo”, o bom autor segue seus personagens até os confins de seus preconceitos e condicionamentos culturais). É nesse capítulo que Helen diz a ele que Deus a abandonou. Carey está tentando “fazer a cabeça” de Helen para aceitar Milton de volta, agora que um só tem o outro na vida, e já que Peyton voltou finalmente para casa, como filha recebida pelo pai e pela mãe (“e ele pensou um pouco na loucura e naquela família que conseguira —quase sem esforço, parecia— destruir-se.”). Há um momento em que Milton e Carey, de certa forma, rivais simbólicos, se reúnem numa parada de estrada. E Carey relembra o breve momento de reconciliação entre Milton e Helen, quando ele até deixou de beber, principalmente depois de um (“Loftis e não Helen era quem estava conseguindo o impossível. Tinha começado a se dominar.”) “acidente”, uma ingestão excessiva de nembutal, que todo mundo toma como uma tentativa de suicídio, embora para Helen fosse apenas o conforto de continuar para sempre sonhando, deitada na escuridão. E para coroar a situação, planeja-se uma grande reconciliação entre a mãe e a filha, pois Helen dispõe-se a fazer os preparativos para que Peyton se case (com um judeu de Nova Iorque, é verdade) na casa em que nasceu, insistindo até em buscar sozinha a filha e o futuro genro na estação. A descrição desse dia começa ensolarada, um tom celebratório, apesar de ser outono (e isso deveria nos servir como alerta). Milton, por exemplo, acorda “com o sol da manhã caindo alegremente em diagonal sobre as cobertas e o ar gelado, com sua sugestão de distantes folhas fulgurantes, afagando seu rosto pela fresta da janela” e sentiu “mais feliz do que havia sido em anos, vigoroso e curiosamente faminto, com uma fome profunda, visceral, sonolenta, como não experimentava desde os tempos do colégio interno”.
É outra longa seqüência (vai da pág. 246 a314), e o ponto alto do livro. Milton começa a beber, e como sempre perde as estribeiras, fica babujento, pegajoso, lamuriando-se que está entregando sua filha, seu tesouro, sendo um pouco agressivo e piegas com o genro, e afinal beijando um tanto excessivamente Peyton, que já viveu longe da família, e ainda por cima em Nova Iorque, tempo suficiente para se sentir constrangida, embora condescendente (ela já havia dito, “estou agora tentando ficar sóbria, sofisticada, moderna” e há um momento de revelação mais íntima e sofrida, e como sempre no romance, uma ligação com estações do ano: “Todo o inverno e primavera passados, vivi andando sem pouso fixo, embora não deixasse transparecer quando escrevia a você. Vivi dessa maneira, pensando na minha futilidade ou coisa assim, o que me fazia infeliz. Realmente, Bunny[5], você nem imagina como me sentia infeliz. Acho que só as suas cartas me deram forças para prosseguir. No entanto, mesmo assim, eu saía e bebia demais com aquela gente detestável que eu conhecia —do comércio da moda ou da decoração de interiores, ou que trabalhavam em revistas chiques, e todos eram espertos e bem falantes, mas nenhum deles tinha um pingo de sentimento verdadeiro— e então voltei para casa com a curiosa sensação de ter sido enganada, mas apenas porque me permiti sê-lo… Acho que odiei a humanidade. Tentei fingir que gostava desse mundo novo e moderno, de todo mundo, mas não. Acho que sequer gostava de mim” ).
Quem não é nada condescendente assistindo à cena é Helen, e a Clitemnestra furiosa que vive dentro dela explode e o reverendo Carey, que tenta contê-la, fica literalmente convencido de que ela está louca.
A princípio, a cerimônia havia suscitado nela um sentimento de triunfo:
“Trouxera Milton de volta, junto com a possibilidade de vê-lo implorar, rastejar e se humilhar. Que mais alguém que sofrera uma vida de indignidades, de permanente carência, podia querer?… E aquele dia fora de fato uma vitória para ela. Ninguém jamais saberia. Ninguém jamais saberia que satisfação elétrica sentia, sob a maneira suave, de terna dignidade, por trás da franzida e um tanto triste mas graciosamente idosa serenidade de sua testa. Ninguém jamais saberia também da luta para afetar apenas aquele ar casual, sereno, de mãe orgulhosa: a mulher sacrificada, cujo sofrimento era conhecido da comunidade, mas que, no dia do casamento da filha, exibia apenas um ar de humildade, coragem e gentil boa vontade… Tudo para que as pessoas viessem a saber: foi Helen Loftis, aquela mulher sofredora, quem reuniu a família esfacelada.” [e vemos aí o deslocamento realista e paródico do sacrifício de Ifigênia, nesse casamento convencional e fake].
Mas o que Helen não pode perdoar, por que “aquela profunda e inalterável aversão a Peyton”? Ela tem a filha como uma rival. Não Dolly, mas Peyton é a sua grande rival com relação a Milton. É essa a loucura da sua vida que ela identifica com precisão no casamento de Peyton. E Milton também, finalmente, o grande bobalhão, ao testemunhar a troca de sorrisos entre mãe e filha:
“…percebeu o porquê dos sorrisos e teve uma cruciante, arrepiante, premonição de desastre… Loftis estava observando Peyton… pôde perceber com o coração oprimido que ela era irrecuperável. Foi um momento de compreensão que surgiu agudo e terrível. Loftis sentiu que tinha esperado a vida toda por aquele momento, pela chegada daquele relance de percepção. Ele apenas disse palavras loucas, impensadas, inofensivas… e elas tinham enviado uma secreta corrosão aos corações daquelas duas mulheres. Que Deus o ajudasse, ele não soube a vida inteira que elas se odiavam e desprezavam? Tinha ele gasto vinte anos…apenas para descobrir, naquele mais importante dos dias, a destruidora, crua, amarga verdade? Aqueles sorrisos… claro… como Peyton e Helen tinham sempre sorrido uma para a outra daquele jeito!… era ele mesmo que estava no centro daquelas desconcertantes e horríveis emoções. Nem fizera nem deixara de fazer alguma coisa para que se odiassem. Nem mesmo Dolly. Nenhum dos seus atos, certos ou errados, causara aquela tragédia, além do simples fato de ele mesmo, de sua própria existência, ter-se interposto desarmado e indefeso numa terra de ninguém entre duas encarniçadas máquinas guerreiras femininas”.
Embora Helen e Peyton cheguem a se engalfinhar (longe da vista dos convidados, só Milton é que ouve a discussão), na ruptura final, ainda assim o momento mais impactante é aquele que li na aula, quando Peyton está conversando com o bom doutor Holcomb (que acompanhou toda a depressão de Helen):
“Na outra porta, não mais que a uns cinco metros de distância, estava Helen. O doutor viu-a apertar o casaco com força em torno dos ombros, embora a sala estivesse abafada, até mesmo quente… A música derramou-se pela sala como água fervente; Peyton sobressaltou-se e o doutor também; ele a sentiu apertar-lhe o braço e quis virar-se para confortá-la, até mesmo protegê-la. Pousando o olhar em Helen, ficou paralisado pela apreensão. Observou-a com apreensão. Helen estava imóvel na soleira da porta sem mover um músculo do corpo. Com os braços pendentes, duros como varas, só a cabeça e os insanos olhos azuis moviam-se: era como olhar uma víbora, pensou o médico; sem dúvida, estava prestes a atacar. Nenhum dos outros convidados pareceu tê-la notado e também isso aumentou sua sensação de perigo iminente: o de uma cobra que jaz tranqüila, fria como gelo, a não ser pela cabeça imóvel à beira de uma moita, preparada, como que por intuição divina, para picar o desatento. Peyton, a desatenta, não a viu. Nem viu também, ao contrário do médico, o olhar de Helen dardejar e mover-se mais uma vez das paredes para a poncheira e janelas, deter-se momentaneamente sob o último raio de luz e depois fixar-se como dentes nas costas de Peyton.”
Esse capítulo-clímax consuma também o fracasso de Agamêmnon em proteger a filha. Aliás, Frye, na Escritura Profana comenta (num capítulo dedicado aos heróis e heroínas das narrativas romanescas): “Eurípides retrata o pai de Ifigênia como um personagem fraco; o tema da heroína exposta a uma situação de sacrifício por um pai tolo ou negligente tem sido bastante explorado ao longo de toda a ficção.”
Após o engalfinhamento com a mãe, Peyton vai embora e o resto do capítulo, uma travessia de balsa, enfatiza o contraste brutal (e determinante do fracasso previsível do casamento) entre sua visão de mundo e a de Harry (aliás, isso é indicado por uma passagem reveladora, uma vez que temos uma personagem suspensa entre um mundo mais provinciano e uma metrópole: a ligação de Port Warwick com outros lugares é feita através de trem ou balsa, “um dos motivos pelos quais muita gente de lá se tornou mais do que o normal provinciana”); e, no presente, finalmente eles se aproximam do cemitério.
Por falar em cemitério, o sétimo capítulo começa com Harry resgatando o corpo de Peyton de um cemitério de indigentes. É o “gancho” para olharmos um pouco a trajetória de Peyton em Nova Iorque, antes, durante e depois do seu casamento com Harry. Ampliando seu tour-de-force técnico, Styron nos dá 51 páginas do chamado stream of consciousness, o fluxo de consciência, consagrado por Joyce em Ulisses e por Faulkner em O som e a fúria, a tentativa de imitar o processo associativo e caótico do pensamento. No caso de Peyton, além de ser a sua vez de ocupar o centro do palco, já que ela ficou relativamente em segundo plano até então, é como se ela estivesse acuada. Seu “stream” começa assim: “Não tenho muito tempo” (há até um momento em que ela pensa: “…se Harry me visse, pensando em Santa Catarina, em Orestes e Ifigênia…”).
“…certa vez agachei-me sob a roseira junto da cozinha. Era no verão, também, e ouvi Ella cantando na despensa e o zumbir que não parava das abelhas; aí vi a água escorrer pelo chão debaixo de mim, e Helen me arrancou do meio da fragrância das rosas: você não deve, não deve fazer isso, você não sabe se portar. Deus castiga as crianças que não se portam de acordo com as conveniências [Helen cerca Peyton até dentro da sua cabeça, no interior da sua mente, é o velho labirinto].”
“…Eu? Eu mesma, toda esmagada, esta adorável concha? Talvez eu volte a erguer-me outra vez, embora eu esteja deitada na escuridão e tenha minha luz transformada em cinzas…Estou morrendo, Bunny, morrendo. Mas você deve se comportar de acordo. Ah, deve se comportar. Poderoso. Ah, Poderoso Ah, deve…”
E chegamos ao último capítulo, o oitavo, que tem Helen recusando-se a Milton (ou seja, recusando a solidariedade entre pais viúvos, um consolando e perdoando o outro) numa ante-sala da capela do cemitério (está chovendo), cena testemunhada pelo reverendo Carey e que termina da forma seguinte:
“Loftis fez Helen virar-se de modo a olhar para ele e começou a sacudi-la.
— Dane-se!, gritou, se eu não posso… então você…nada!
— Gente!, gritou Carey, gente, gente! —ele não podia mover-se.
— Dane-se, morre, morre!
Acabou tão depressa quanto havia começado, um relâmpago vermelho de violência desdobrado como um raio momentâneo na tempestade. Loftis relaxou a pressão na garganta dela, ficou tremendo e chorando no saguão com sua luz precária e desagradável, seu cheiro de umidade e chuva e morte. Helen caiu sobre Carey pesadamente, sem um som, e à distância, dentro da capela, onde estava o corpo de Peyton, alguma coisa moveu-se, talvez um pedaço de reboco caindo, uma telha deslocada pela chuva, quem sabe?”
Milton sai correndo, não parando nem ao passar pelo carro onde está Dolly:
“A última coisa que viu dele foram suas costas, em meio à chuva e ao vento, enquanto ele corria, passando por coroas e caixões e sobre túmulos, em direção à estrada.
Depois Helen aprumou-se apoiada em Carey, e pousou a cabeça na parede.
—Peyton —disse ela— ah, meu Deus, Peyton. Minha filha. Nada! Nada! Nada! Nada!”
As páginas finais focalizam a criada, Ella, e sua filha, La Ruth, em meio ao povaréu que cerca Papai Fé, e depois comentando o dia. E Deitada na escuridão termina com um trem saindo da cidade.

[1] Sobre outro livro, Os sinos da agonia (1974), onde retoma a história de Hipólito e Fedra, Autran afirma:
“…meus livros podem ser lidos em vários níveis, não me considero hermético. Mesmo não conhecendo Eurípides, Sêneca, Racine, acredito que o leitor comum possa apreciar minha narrativa, senti-la plenamente. Porque os mitos e arquétipos são eternos, renovam-se incessantemente, estão no consciente individual, no inconsciente coletivo, como queria Jung.” Podemos também lembrar do que Antunes Filho fala a respeito de Senhora dos Afogados, de Nelson Rodrigues:
“Claro que há aspectos do cotidiano, do prosaico. Mas isso é aparência, por baixo há outras camadas. Por baixo, fervem os mitos.”
[2] Nessa época, Autran tinha publicado dois livros toscamente adolescentes, Teia (1947), praticamente nulo, e Sombra & Exílio (1950), já um pouquinho melhor e mais complexo. Em 1952, lançaria seu primeiro romance “adulto”, mas ainda meio ronceiro, Tempo de Amar. Seu primeiro grande trabalho de fôlego mesmo foi A barca dos homens (1961).
Já Ernesto Sabato, que em 61 lançará, aos 50 anos (nasceu em 1911), sua obra-prima Sobre heróis e Tumbas, tinha estreado em 48, com um livro admirado até por Camus e Thomas Mann, e com razão: O túnel. Ele só escreveu mais um romance, o impressionante Abadón, o exterminador (1974). Styron e Sabato não foram prolíficos como Autran.
[3] Em Perto das Trevas (Darkness Visible), narrando sua luta contra a depressão, escreve:
“A depressão, quando me dominou, não era uma estranha, nem mesmo uma visitante inesperada. Há décadas ela batia à minha porta.” Quando se lê a novela Uma manhã em Tidewater (A Tidewater morning), percebe-se bem a raiz dessa depressão: sua família se desagrega por conta da evolução da doença da mãe, que nem a morfina alivia mais. A “manhã” do narrador na vida já está toda comprometida com a dissolução e o sofrimento: “De súbito, minha mãe gritou —um grito longo e desamparado, trazendo uma nota de angústia diferente de tudo que havia escutado até agora. Um guincho estridente que percorrera como uma chama meu corpo nu de cima para baixo. Era um som alienígena, o que significa dizer inesperadamente além do meu senso de lógica e da minha experiência, de tal forma que em sua duração insignificante tivera o efeito de algo histriônico, saído do cinema, de uma fita de Frankenstein ou Drácula em que uma atriz medíocre emite um terror implausível. Mas era real, e eu enfiei meu rosto no travesseiro, embrulhando minha cabeça com ele como dentro de um úmido âmnio, tentando desligar o grito.”
[4] Ela conta a eles um momento idílico, uma espécie de zênite e de verão para Maudie e para o seu avatar de mãe, que não vem ao caso aqui, só fica registrado.
[5] É o modo como Peyton chama o pai.