(Uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos em 27 de fevereiro de 2018)
Comecei na semana passada um comentário sobre “SONHOS TROPICAIS”, de Moacyr Scliar, ressaltando o contraste entre o comportamento da população de agora e da 1904 com relação à vacina da febre amarela. Naquela época, eram maioria os analfabetos, os quais não faziam ideia do que era vírus, micróbios, bactérias e sentiam profunda desconfiança da ação governamental (eu, que tenho certo grau de instrução, alimento desconfiança similar, por mais irracional que pareça). Estaremos mais esclarecidos ou mais submissos?
É preciso dizer que, embora um grande médico, Oswaldo Cruz não possuía sensibilidade social e isso abriu caminho para medidas draconianas: suas brigadas sanitárias podiam invadir casas e vacinar à força. Ele era tão impopular que o romance relata que, na hora de sua morte, em 1917, houve manifestações comemorativas.
Afirmei na semana passada que a narrativa custa a engrenar, mas assim que aparece em cena o presidente Rodrigues Alves, ela cresce muito. Aliás, boa parte da “revolta da vacina” foi para certos grupos políticos uma oportunidade de depor o presidente apelidado de Soneca: “ – E se houver distúrbios? – Insiste Leocadio. Vicente suspira. – Bem, aí começamos a caminhar sobre areia movediça. Um pouco de distúrbio, uma ou outra cabeça quebrada, nada disto fará mal; ao contrário, nos dará o apoio da imprensa. O que temos de evitar é cutucar a fera com a vara curta. Enquanto a questão for a polícia, tudo bem. Mas, se entrar o Exército, se for decretado o estado de sítio, estaremos numa situação muito difícil: não sei se conseguiremos manter a resistência. Provavelmente perderemos a iniciativa para os elementos mais extremados, os bandos, as quadrilhas. Portanto, vamos nos restringir às reivindicações mais óbvias: melhor moradia, melhor transporte, melhores salários. Além, claro, do fim da vacinação obrigatória, que afinal motivou tudo”.
Mais adiante: “—Não sou eu, doutor. É o meu menino, de sete anos. É que ele… foi vacinado. Ontem. Eu não sabia, a mulher agarrou ele e levou lá onde estão vacinando. Quando eu soube, fiquei furioso – mas já era tarde. Agora me diga, doutor – o que é que eu posso fazer? Tem perigo? Vicente baixa a cabeça, reflete um instante. – Não – diz por fim. – Não tem perigo. Não se preocupe, não vai acontecer nada. O homem franze a testa. – Desculpe, doutor, mas estava assistindo à reunião aqui da porta, e entendi que os senhores vão fazer uma campanha contra a vacinação… – É verdade. Mas por razões políticas, não médicas. Entende? Não, ele não está entendendo. – Olhe aqui – diz Vicente –, no fundo não temos nada contra a vacina. Daqui a alguns anos, todo mundo será vacinado, e ninguém falará disso. Mas agora nós temos de atacar a vacinação – porque partindo da revolta do povo podemos mudar a sociedade, entendeu? ”.
É assombroso como há 25 anos, “SONHOS TROPICAIS” mostrava as falcatruas cariocas e nacionais. Vejam está fala de Rodrigues Alves: “—Espero que o senhor não me interprete mal, doutor Oswaldo. Há quem acuse os empreiteiros de favorecerem a corrupção, por causa de suas tradicionais colaborações às caixinhas dos políticos. Devo lhe dizer que, naturalmente, eu não aprovo tal políticos… Não se progride, doutor Oswaldo, sem demolir e sem construir – e como fazê-lo, sem empreiteiros? Às vezes, as propinas que dão têm como exclusivo objetivo azeitar um pouco a emperrada máquina estatal”.
Em tempo: uma personagem secundária, a judia polonesa Ester, vítima do tráfico sexual, ganhou realce na versão cinematográfica dirigida por André Sturm.