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I
(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 23 de abril de 2005)
Machado de Assis vinha sendo sistematicamente maltratado por edições horríveis das suas obras. Era muito difícil encontrar alguma obra individual, principalmente as reuniões de contos, que não fosse preparada com fins paradidáticos ou que não merecesse um tratamento editorial inferior (estamos falando aqui de capas, diagramação etc), de causar desgosto.
Algumas editoras, como a Ateliê e a Martins Fontes, estão mudando esse panorama. A última acaba de publicar a mais decente edição já vista por quem assina esta coluna, de Várias histórias (1896), uma das três coletâneas machadianas fenomenais (junto com Papéis avulsos e Histórias sem data), por serem mais coesas, sem o caráter de miscelânea de que se ressentem, por exemplo, Páginas recolhidas e Relíquias de casa velha).
O quilate de Várias histórias pode ser avaliado pelo seguinte fato: quando John Gledson, o inglês que tem ajudado os brasileiros a entender melhor a obra de nosso maior escritor, preparou (em 1998) uma antologia de 75 contos para a Companhia das Letras, ele só excluiu dois dos dezesseis que o integram: Mariana (aparece ali outro conto com esse título, mais antigo) e, injustamente, o delicioso O cônego ou A metafísica do estilo, a história do encontro amoroso difícil entre um substantivo e um adjetivo em meio ao ato de escrever um sermão, além de ser uma intuição formidável dos processos de associação da mente: “ Grupos de ideias, deduzindo-se à maneira de silogismos, perdem-se no tumulto de reminiscências da infância e do seminário. Outras ideias, grávidas de ideias, arrastam-se pesadamente, amparadas por outras ideias virgens. Coisas e homens amalgamam-se, Platão traz os óculos de um escrivão da câmara eclesiástica…memórias pias e familiares cruzam-se e confundem-se. Cá estão as vozes remotas da primeira missa, cá estão as cantigas da roça que ele ouvia cantar às pretas, em casa, farrapos de sensações esvaídas, aqui um medo, ali um gosto, acolá um fastio de cousas que vieram cada uma por sua vez, e que ora jazem na grande unidade impalpável e obscura…”
E qual seria o improvável melhor momento nesse mundo de melhores momentos, nessa experimentação incessante de formas de narrar? Seria Entre santos, no qual se flagra a conversa noturna dos santos de uma igreja, “terríveis psicólogos… desfibravam os sentimentos de cada um, como os anatomistas escalpelam um cadáver”, a respeito dos fiéis do dia?
Ou seria O enfermeiro, onde após assassinar involuntariamente seu paciente, o protagonista herda sua fortuna e o remorso progressivamente esvai-se na razão direta em que desfruta do imenso legado? Seria Uns braços, história de um menino de 15 anos, agregado à casa de um irascível comerciante e que fica fascinado com os braços da mulher do patrão, numa das melhores representações da imaginação erótica já escritas (e mais um flerte com o adultério na obra machadiana) ?
Seria A causa secreta, onde um filantropo se revela um sádico, capaz de saborear até as reações de dor de um apaixonado por sua mulher (e que poderia ter sido seu amante) diante do caixão dela? Seria Trio em lá menor, no qual a protagonista antecipa a Flora de Esaú e Jacó ao não se decidir entre dois homens, ficando satisfeita apenas quando os funde em sua mente? Seria Um homem célebre, em que um talentoso compositor de polcas vive insatisfeito por não compor música “séria”, um belo exemplo de alienação de um artista afinado com a arte de seu país e tentando, no entanto, ser “outra coisa” para a qual não nasceu (e esse texto é muito revelador a respeito do próprio autor, um dos primeiros profissionais da escrita que tivemos).
São, todos eles, contos famosíssimos. Há outros nem tão conhecidos, mas bárbaros (Dona Paula, por exemplo). E há outros, conhecidos de sobejo, e que causam certo fastio por terem sido tantas vezes incluídos em antologias escolares, e nem sempre pelos melhores motivos (pois havia o mito de Machado como exemplo do “belo escrever”, do estilo escorreito). É o caso de Um apólogo, de Conto de escola e, um pouco menos, de A cartomante, o qual, numa releitura, se revela um modelo de perfeição e um texto perturbador. Como diz o preparador da edição (Hélio de Seixas Guimarães), muito bem comparando A cartomante e Entre santos, “o contista deixa claro que nada será poupado, nem o ceticismo do cético, nem a crença do crente…”
II
(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 31 de dezembro de 2005)
Leio todos os anos os três principais romances (Memórias póstumas de Brás Cubas, Quincas Borba & Dom Casmurro) de Machado de Assis, e sua coletânea de contos Papéis avulsos. Em 2005, não houve motivo para queixas quanto a essa última, a qual finalmente ganhou uma edição recente (pela Martins Fontes) digna da sua importância.
Publicada em 1881, é composta por 12 textos, todos eles especiais, alguns indispensáveis, caso de O alienista: se a língua portuguesa tivesse maior divulgação, ele seria tão famoso e comentado quanto as maiores obras-primas do século XIX. A história do médico Simão Bacamarte, que obtém o poder de trancafiar qualquer um no seu hospício, a Casa Verde, desde que julgasse que a pessoa pudesse apresentar um mínimo sintoma de perturbação mental, e com isso aterroriza a Vila de Itaguaí (pois de perto ninguém é normal), faria inveja ao Foucault que denunciou o controle social embutido no conceito de “loucura”.
Machado desmonta toda a autoridade opressiva que a ciência e a razão adquiriram a partir da Revolução Francesa e também os mais diversos tipos de retórica pomposa e vazia, incluindo aí o Romantismo aguado e reles que tanto sucesso fez (e faz) aqui no Brasil. Por isso, entre os muitos episódios deliciosos, talvez nenhum seja tão mordaz (tirando o final, é claro) como aquele em que Martim Brito, candidato provinciano a D. Juan, declama um discurso enaltecendo a insossa esposa do alienista, “em que o nascimento de D. Evarista era explicado pelo mais singular dos reptos. Deus, disse ele, depois de dar ao universo o homem e a mulher… Deus quis vencer a Deus e criou D. Evarista”. Reação do marido: “Trata-se de um caso de lesão cerebral, fenômeno sem gravidade, mas digno de estudo”; e lá acaba o orador peralvilho na temível Casa Verde, para desgosto da senhora alvo do elogio.
O alienista é insuperável, mas tem também Teoria do medalhão, aquele famoso diálogo entre pai e filho, que explica o comportamento dos nossos políticos (as Tvs Senado e Câmara mostram a aplicação da teoria diariamente); tem o magnífico Dona Benedita, que já começa com uma frase maliciosa (“A coisa mais difícil do mundo, depois do ofício de governar, seria dizer a idade exata de D. Benedita”) e que poderia ser o equivalente feminino de Brás Cubas no estudo da superficialmente simpática, mas no fundo revoltante, volubilidade da alta burguesia brasileira. E que final genial, com o aparecimento da Fada Veleidade, que presidiu o nascimento da heroína!
Há o inquietante O espelho, que acabou desafiando Guimarães Rosa a criar outra obra-prima com a mesma temática: o protagonista só tem certeza da sua identidade e existência vestindo a personagem, por assim dizer. Solitário, abandonada, só a sua farda, vestida frente ao espelho, garante-lhe o sentimento de estar no mundo e ser alguém.
E a “realidade” moldada pela propaganda, pelo apelo publicitário, pela opinião pública, é, com incrível poder de antevisão, dissecada no impagável e mortífero O segredo do bonzo: “Se puserdes as mais sublimes virtudes e os mais profundos conhecimentos em um sujeito solitário, remoto de todo contato com os homens, é como se eles não existissem”.
Deus quis vencer Deus e, sendo brasileiro, criou Machado de Assis, Que sorte a nossa!
III
(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 20 de setembro de 2008)
Só faltavam Páginas Recolhidas e Relíquias de Casa Velha para a Martins Fontes completar sua edição das sete coletâneas de Machado de Assis. Ela agora os lança num só volume, no qual Marta de Senna adotou um ousado (e bastante acertado) critério: reproduzir apenas os contos e sacrificar o feitio de “miscelânea” que os caracterizava originalmente.
Em 1899, momento de Páginas Recolhidas, Machado estava no pleno domínio do seu gênio, tanto que lançaria no final desse ano (e do século) Dom Casmurro; ao mesmo tempo ele tinha o seu lado “Academia Brasileira de Múmias”, que infelizmente ele fundara dois anos antes, portanto estava impregnado do horrível compadrio de literatos medíocres, que o fez achar talvez insuficientes os oito contos que escolheu na sua prolífica produção, e acrescentar evocações do Império, uma peça chinfrim, crônicas imemoráveis e, pior que tudo, um discurso por ocasião do lançamento da pedra fundamental de uma estátua de José de Alencar (aliás, Machado protegeu o filho dele, Mário de Alencar, com um afinco que o levou a cometer graves injustiças literárias). Que bom é às vezes o desrespeito à memória. Se a Universidade e a crítica adotassem atitudes como essa, e não uma veneração supersticiosa que nivela as obras-primas e a cartilha de beabá dos escritores, seríamos poupados de muita porcaria. Pois o que emerge da “limpa” realizada por Marta de Senna é o que realmente importa, mesmo que nos últimos tempos queiram nos convencer de que a crônica machadiana é o máximo e atingiu os píncaros da percepção e acuidade (leitor:dê preferência ao nosso supremo criador literário, que também é um mestre na arte de contar histórias especiosas, se não daqui a pouco teremos textos circunstanciais suplantando sua ficção).
É em Páginas Recolhidas que encontramos Missa do Galo, o equivalente miniaturesco de Dom Casmurro em narração enganosa e maliciosa, na história da tentativa de sedução de um adolescente, evocada (e fantasiada?) por ele anos depois; igualmente perfeito é O Caso da Vara, mais uma prova da miopia dos que acham Machado um escritor alienado dos problemas sociais. São dois textos assombrosos: parece não haver uma palavra a mais ou a menos. Um Erradio não fica muito atrás, ao satirizar as febres de inspiração literária que acometem a juventude (principalmente num país de “emoção fácil” como o nosso), e a facilidade da acomodação à vida burguesa e “prosaica”. Lendo sob o prisma da aparente “acomodação” do próprio Machado, ele se torna mais fascinante ainda. Já Eterno!, além de ser um dos melhores contos “profissionais” e brejeiros da produção machadiana tardia, ainda foi parafraseado num grande poema de Carlos Drummond de Andrade. E há o fulminante Papéis Velhos em que o parlamentar preterido para um ministério pensa em abdicar da vida pública, mas o desenrolar da narrativa vai dissuadi-lo de uma forma que é uma mortífera anatomia do nosso gênero de políticos. Os outros quatro não fazem feio (principalmente Idéias de Canário), mas esses são as jóias da coroa.
IV
(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 27 de setembro de 2008)
“Preguiça amamenta muita virtude”.
Frases como essa fazem as delícias dos apaixonados por Machado de Assis. No ano da sua morte, ele publicara seu último romance, Memorial de Aires, risivelmente tomado por muitos como uma espécie de “reconciliação com a vida”, escrito num tom mais compassivo e benévolo. O autor deste artigo pensa justamente o contrário, e acha Machado mais perverso ainda por trazer sua corrosividade disfarçada de um modo ainda mais sutil e enigmático do que qualquer uma de suas experiências ficcionais anteriores.
A citação de abertura pertence a Marcha Fúnebre, um dos cinco contos da sua derradeira coletânea, Relíquias de Casa Velha (1906), que ainda não tinham sido publicados na imprensa. Entre eles, encontram-se os dois melhores textos curtos dessa fase final da sua produção: o impactante e inesperado Pai contra Mãe, um dos raros momentos não enviesados em que ele apresenta a escravidão, numa situação brutalmente dramática, e um dos poucos entre os nove textos que não apresenta um tom cansado, saturado de profissionalismo e maneirismo, em que as obsessões machadianas já estão vazadas num molde já “de mestre”, sem o vigor de outrora; e, bem no meio, dividindo a seleção, Suje-se Gordo (ou seja, cometa um crime de monta, não um reles, café pequeno), súmula brilhante da sua preocupação com a desfaçatez imoral com que a sociedade brasileira é conduzida desde sempre; e, seguindo a mesma linha (e o melhor entre os não-inéditos) Evolução (de uma safra mais antiga e forte, 1884), que mostra um sujeito que se apropria das opiniões e concepções alheias.
Quem já conheceu alguém assim (é o caso de quem assina esta coluna) se delicia particularmente, como na passagem em que se descreve a volúpia de Benedito com os clichês protocolares do parlamento (fáceis de serem surrupiados): “Saboreava-os tanto que eu não sei se ele aceitaria jamais a liberdade real sem aquele aparelho verbal; creio que não. Creio até que, se tivesse de optar, optaria por essas formas curtas, tão cômodas, algumas lindas, outras sonoras, todas axiomáticas, que não forçam a reflexão, preenchem os vazios, e deixam a gente em paz com Deus e os homens”.
Aqui Machado está muito mais afiado do que nas graças já requentadas e quase preguiçosas de Marcha Fúnebre (embora sempre cintile o gume de uma frase perfeita aqui e ali): “Quando rezava, ao levantar da cama, o Padre Nosso, não imitava um de seus amigos que rezava a mesma prece, sem todavia perdoar aos devedores, como dizia de língua; chegava a cobrar além do que eles lhe deviam…” Nem parece um texto que começa tão fulminante: “O deputado Cordovil viera cedo do Cassino Fluminense… e durante o baile não tivera o mínimo incômodo moral nem físico. Ao contrário, a noite foi excelente; tão excelente que um inimigo seu, que padecia do coração, faleceu antes das dez horas, e a notícia chegou ao Cassino pouco depois das onze”. É esse o Machado que não morreu em 29 de setembro de 1908 e jamais morrerá.