MONTE DE LEITURAS: blog do Alfredo Monte

05/11/2015

Thomas Mann fazendo arte no romance: das ficções e confissões radicais

[uma versão do texto abaixo foi publicada em 04 de novembro no LETRAS IN.VERSO E RE.VERSO, ver  http://letrasinversoreverso.blogspot.com.br/2015/11/das-ficcoes-e-confissoes-radicais.html]

Após a Companhia das Letras ter colocado em circulação uma nova edição de Doutor Fausto, seria bem oportuno o relançamento do livro que Thomas Mann publicou em 1949 sobre sua obra-prima: A GÊNESE DO DOUTOR FAUSTO[1].

Nele, o fato biográfico mais importante é uma intervenção cirúrgica delicada que o grande escritor alemão (então vivendo exilado nos EUA) sofre aos 70 anos. Após passar pela experiência, ele afirma: «O romance:  durante todas essas semanas ímpares e aventurosas, mantive-o próximo ao coração, fazendo na mente um rol de correções necessárias e diversos planos para o prosseguimento. Minha conduta de paciente exemplar, a ligeireza da minha recuperação, espantosa na minha idade, todo esse desejo de sobrevivência, essa verdadeira persistência em vencer a provação inesperada e tardia, não havia por trás disso tudo um secreto ‘Para quê? ’ Não foi tudo a serviço da obra, não foi a partir do inconsciente que a tudo superei para erguer-me e acabá-la?».

Na passagem acima colocam-se as cartas na mesa: Doutor Fausto (escrito a partir de 1943 e publicado em 1947) é um ato de sobrevivência. Concluído José e seus irmãos, assombrado pela Segunda Grande Guerra e pelo declínio físico, Mann tenta produzir (e várias vezes reitera as dificuldades, pois o projeto é ambicioso em um nível inimaginável) a súmula da sua vida e da sua obra («um plano de vida que sempre foi um plano de trabalho»): «1943 ainda era um ano novo quando escrevi as últimas linhas do quarto romance de José… Para mim, esse quatro de janeiro foi um dia memorável, embora não especialmente eufórico. A grande obra narrativa que me acompanhara por todos esses anos de exílio, garantindo uma unidade em minha vida, estava realizada, consumada, e eu, sem um fardo nas costas, um alívio duvidoso para quem, há muitas décadas, desde o tempo de Os Buddenbrooks, vivia sob um fardo sem o qual talvez não soubesse viver».

Ele se voltou, então, para um tema que namorara já em 1911: o pacto de um artista com o diabo, utilizando a velha lenda de Fausto. Todavia, Doutor Fausto não a aproveitaria apenas para discutir a posição do artista na sociedade burguesa, e sim a destruição da arte, da Alemanha, da civilização europeia. O artista seria um músico: Mann pediu ao grande filósofo da Escola de Frankfurt, Theodor W. Adorno, para orientá-lo na parte musical do livro, além de se basear na teoria dodecafônica de Schönberg. E, permeando tudo, «quanto da atmosfera de minha vida está contido no Fausto. No fundo, uma confissão radical. É isso que tanto me abala nesse livro, desde o princípio».

Se o romance é uma confissão radical (e é mesmo), não deixa de ser engraçado observar como Mann se esconde em A GÊNESE DO DOUTOR FAUSTO, quase modelando ficcionalmente a sua vida. Até as dúvidas, angústias e perplexidades parecem fazer parte de um todo “arrumadinho”, pois como o livro foi escrito e lançado, tornando-se logo uma obra-chave da literatura moderna, “tudo acabou bem”, afinal. Aliás, ele tem plena consciência disso: «Pode ser agradável conviver com alguém em cujo ombro baila o duende da criação, alguém obcecado pelo trabalho, dia após dia e ano após ano por ele envolvido e possuído? Duvido. Maior ainda é a dúvida no meu caso particular. Como assim? Será que a consciência da própria desumanidade, dessa existência baseada numa distração concentrada, e por isso não despida de culpabilidade, é capaz de compensar as insuficiências de nosso rendimento, granjeando-nos perdão, talvez até mesmo afeto? ».

 

 

A GÊNESE DO DOUTOR FAUSTO não é um livro para se iniciar em Thomas Mann. Ele só servirá para quem já leu o romance (e o fato de ser uma obra muito difícil e ter provocado grande impacto é que suscitou uma  “explicação” do autor, nos moldes da de Gide sobre Os falsos moedeiros) e principalmente para quem é admirador de Mann, e admirador do artista, que prefere não esmiuçar a pessoa biográfica, e sim como se processou a alquimia de inúmeras fontes históricas, linguísticas, musicais e intelectuais, “homogeneizadas” na linguagem do texto («parece que, no âmbito do romance, hoje só é levado em consideração aquilo que não é mais romance» é talvez a frase mais famosa do livro).

Tem-se a confirmação de que Nietzsche foi o ponto de partida para a criação de Adrian Leverkühn, discute-se o problema da paródia e da citação-pastiche (inclusive esclarecendo várias, o que será muito precioso numa releitura), discussão fundamental para a compreensão do papel da crise da arte na estrutura do romance em si. O nada modesto (com toda a razão) Mann se compara a James Joyce: «Em termos estilísticos, eu mesmo não conheço nada além da paródia. Nesse ponto, sou semelhante a Joyce». Citando o livro de Harry Levin sobre o autor de Ulisses e pensando em si mesmo, quando o cita: «A melhor escritura de nossos contemporâneos não é um ato de criação, mas de evocação, singularmente saturado de reminiscências».

Para quem gosta de análise psicanalítica, há o neto, Frido, que inspirou um personagem essencial de Doutor Fausto: Nepomuk (que morre de meningite), e pelo qual Mann demonstra um predileção pra lá de suspeita: «mais uma vez fui cativado pelos encantadores olhos azul-celeste do pequeno Frido, meu neto predileto»; «tocado, como sempre, pelos belos olhos de Frido»; «Frido muito apegado a mim»; «pela primeira vez Frido veio de cabelos curtos»; «reencontro com Frido, arrebatador… De manhã com Frido. Ri às lágrimas com suas conversas e me distraí»; «reencontro com Frido, regozijo»; «o diário já descreve a criança tão meiga de modo enlevado, transfigurado, glorificado: com a palavra elfo».

A impressão, no entanto, é que todas essas pequenas vinhetas são propositais, são uma deliberada maneira de brincar com seus intérpretes futuros, muito mais do que confissões involuntárias de uma homoafetividade que sabia que não podia esconder totalmente, hiper-consciente como era. Não, leitor, para se seguir esse caminho é preciso antes explorar o que Mann cala ao escrever sobre sua vida do que aquilo que ele deixa como pista. Um exemplo: por que num livro em que ele está evocando os aspectos da criação da sua “confissão radical” não abre espaço nenhuma vez para discutir o suicídio da irmã que inspira um dos episódios mais importantes da trama?

A verdade é que A GÊNESE DO DOUTOR FAUSTO não é o tipo de livro para se ler todo de uma vez e sair correndo a escrever sobre ele. Ele é daqueles que o aficionado por Mann pegará várias e várias vezes e lerá tudo novamente ou trechos aqui e ali. É algo para se ler “com o lápis na mão” como fazia o seu autor quando queria se aprofundar numa obra. Quando se tem de falar dele, contrariando a “felicidade clandestina” da prazerosa leitura íntima, vêm à mente palavras do próprio texto: «Amaldiçoei o papel do escritor que, nessas circunstâncias, é forçado a se manifestar imediata e formalmente, exigido a juntar palavras e formar frases».

(o texto acima é uma versão da resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em  17 de julho de 2001)

VER AQUI NO BLOG:

https://armonte.wordpress.com/2015/10/20/o-pacto-com-o-diabo-de-thomas-mann-doutor-fausto/

NOTA

[1] Há uma tradução, de Ricardo F. Henrique, lançada em 2001 pela Mandarim. Dela extraí as citações do meu texto.

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22/10/2015

AVENTUREIROS DEMAIS POR DENTRO: a inquietante visão do artista em “Tonio Kröger” e “A Morte em Veneza”

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[uma versão do texto abaixo foi publicada em 21 de outubro de 2015, no LETRAS IN.VERSO E RE.VERSO, ver: http://letrasinversoreverso.blogspot.com.br/2015/10/por-alfredo-monte-em-confissoes-de.html]

Em Confissões de Felix Krull (1954), seu derradeiro romance, Thomas Mann faz Schimmelpreester, padrinho do personagem-título, um pintor que «não raro expressava ideias duvidosas sobre a natureza do artista em geral», dizer: «Assim são as pessoas. Desejam o talento, que em si é uma singularidade. Mas as outras singularidades que a ele se ligam, ou talvez lhe sejam inerentes, não só não as admitem de modo algum, como lhes negam toda e qualquer compreensão».

Portanto, o grande escritor alemão nunca chegou a abandonar as questões que povoam dois textos da juventude, Tonio Kröger (1903) e A morte em Veneza (1912), clássicos agora relançados pela Companhia das Letras[1]. Em ambos encontramos uma inquietante visão da realização artística. Ambos têm em comum também certa solenidade do tom narrativo, distante da alegria jocosa que perpassa O eleito (1951) e outras obras maiores de Mann (A montanha mágica, 1924; Carlota em Weimar, 1939; o próprio Felix Krull, por exemplo).

Escrito aos 28 anos, Tonio Kröger desenvolve à exaustão o mote da posição duvidosa e suspeita do artista na sociedade; de tal forma que o protagonista, já um escritor de certa fama, ao voltar à cidade natal, é confundido com um marginal foragido. E ele mesmo acha que a confusão é justificada!

Tonio pertencera a uma tradicional e abastada família («não somos ciganos num carroção verde»), porém abandonara a cidade quando da morte do pai, e a mãe—exótica mulher de um país estrangeiro—caíra no mundo, por assim dizer. Ainda assim, ele conservou a nostalgia pelo mundo burguês (do qual se excluíra por vontade própria), pelos «inocentes loiros, de olhos azuis», como seus amados da adolescência, Hans Hansen e Ingeborg Holm (note-se que a ambivalência dele atinge inclusive a sexualidade, como geralmente acontece no universo manniano, onde a beleza pessoal, mais do que a identidade de gênero, é que dá as cartas[2]).

Por isso, se sente «um burguês que se extraviou na arte, um boêmio com saudades do bom berço, um artista de consciência pesada», e compensa esse desconforto com a ideia de que o artista tem de ser um trabalhador incansável, «passando despercebido como uma sombra parda, como um ator sem maquiagem, que não é nada enquanto não tem um papel a representar(…) quem vive não trabalha(…) preciso estar morto para ser realmente um criador».

Tonio mantém-se “suspeito” aos olhos burgueses, todavia causará igualmente má impressão aos seus companheiros, por insistir numa fachada que ele denomina de «decoro exterior»; para ele, «Como artistas já somos aventureiros demais por dentro. Pelo menos por fora devemos vestir-nos bem, que diabo! E nos comportar como gente decente».

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Toda essa problemática, formulada em Tonio Kröger de maneira muito incisiva, só que com um entrecho dramático um tanto tênue, é amplificada poderosamente em A morte em Veneza, com resultados ficcionais mais fortes, tanto que talvez se trate da única novela do século vinte capaz de se ombrear com A metamorfose, de Kafka. Como Mann conseguiu escrever algo assim aos 37 anos?!

O cinquentão Gustav Aschenbach, apesar do afinco maníaco a que se entrega no trabalho de escritor, sente-se de fato “morto por dentro” (tal como Tonio augurara). Resolve, então, sair de sua estafante rotina em Munique, viajando para algum balneário no sul da Europa. Depois de outros lugares insatisfatórios, decide-se por Veneza. Lá, como todos sabem, impressiona-se com a beleza de um menino polonês de 14 anos, Tadzio; apaixonado, segue-o por toda a parte, não se decidindo a ir embora da mítica cidade, mesmo ao tomar conhecimento de que uma peste a assola. Durante um passeio, ao perder de vista Tadzio, angustiado e esgotado fisicamente, come morangos (contaminados) para refrescar-se e, pouco tempo depois, em plena praia, entra em agonia mortal.

Esqueça-se um pouco do pormenor homoafetivo, caro leitor, não é por aí que se compreenderá A morte em Veneza, nem o texto nem a extraordinária versão cinematográfica realizada em 1971 por Luchino Visconti, na qual Aschenbach transforma-se em compositor clássico, detalhe essencial num filme que é uma das mais perturbadoras e majestosas experiências não-verbais já levadas a cabo, onde o espectador compreende tudo o que se passa através da utilização da música de Gustav Mahler e das expressões (do pathos) de um ator admirável (Dirk Bogarde).

Tadzio, com sua beleza, exerce mais do que uma banal sedução erótica, é o anjo da morte a conduzir Aschenbach—aquele que trabalha incessantemente para criar formas artísticas e domesticar o caos—para o mar, o outro polo da narrativa, o mar que encanta o jovem Tonio Kröger e encanta o escritor maduro[3]: «Amava o mar pela necessidade de repouso do artista que, assediado pela multiformidade das aparências, anseia por abrigar-se no seio da simplicidade, da imensidão, e por um pendor proibido, diametralmente oposto à sua tarefa e por isso mesmo tentador, para o indivíduo: o desmedido, o eterno (…) Repousar na perfeição é o anseio nostálgico daquele que se esforça por alcançar a excelência; e o nada não é uma forma de perfeição?»[4].

Assim, Aschenbach, que vagara por Veneza atordoado por Eros (na forma de um Lolito, avoengamente chamados de efebos), não sabia que ele o levava para o reino do nada, numa irônica e cruel dança da morte. A beleza encarnada num corpo serve como perverso umbral para o território onde não existem formas.

Derrota (redentora talvez, quem sabe?) para Aschenbach; vitória absoluta para um Thomas Mann então em crise, chafurdando há anos num bloqueio criativo, do qual emergiu com o texto mais emblemático e perfeito da sua obra.

[a versão original do texto acima foi publicada em A TRIBUNA de Santos, em 16 de maio de 2000]

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NOTAS

[1] O primeiro deles em nova tradução, de Mário Luiz Frungillo. Já houve as de Maria Delling , as quais traduziram também o segundo, mas a nova edição reaproveita uma brilhante versão de Herbert Caro, publicada na antiga Coleção do Prêmio Nobel (Mann o recebeu em 1929).

[2] E talvez fosse melhor dizer que embaralha as cartas.

[3] Quase ia escrever “velho” porque, à época, cinquenta anos já era praticamente a velhice, e percebe-se nitidamente o temor de Mann a ela e suas possíveis iniquidades.

[4] Não foi à toa que Mann leu apaixonadamente Schopenhauer, cujo pensamento tem grande peso na estrutura de seu primeiro romance, Os Buddenbrooks (1901).

Bildnachweis: Keystone / Thomas-Mann-Archiv Zürich Zur ausschließlichen Verwendung in der Online-Ausstellung

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20/10/2015

O PACTO COM O DIABO DE THOMAS MANN: “DOUTOR FAUSTO”

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(uma versão da resenha abaixo foi publicada em A TRIBUNA de Santos, em 20 de outubro de 2015)

A tradução de Herbert Caro para Doutor Fausto talvez tenha sido o grande acontecimento literário nos anos 1980 e tornou-se um clássico. Agora reaparece pela Companhia das Letras, que reeditará as obras de Thomas Mann, as quais continuam surpreendentemente populares.

Nessa versão de 1947 do mais famoso pacto com o diabo, o tentador propõe ao músico Adrian Leverkühn vinte e quatro anos de genialidade. A “apropriação” da sua alma começou ao contrair sífilis com uma prostituta, doença que degenerará em loucura irremediável, tal como Nietzsche. O grande filósofo teve suas ideias encampadas pelo nazismo. O destino de Leverkühn, tão semelhante, espelhará o da Alemanha, que mergulha em duas guerras. Tudo nos é contado por Serenus Zeitblom que, em meio à Segunda Guerra, propõe-se a escrever a biografia do amigo.  Como ele mesmo afirma, «minha vida pessoal sempre se me afigurou apenas secundária, e sem que propriamente me descuidasse dela, vivia-a distraído… ao passo que minhas verdadeiras diligências, tensões e preocupações se dedicavam ao bem-estar do amigo da infância».

Portanto, de imediato salta aos olhos o aspecto de alegoria poderosa da Alemanha rumo à loucura nazista, ainda mais ao expor as raízes luteranas presentes na mentalidade germânica (boa parte da história transcorre em cidades saturadas de passado como Halle, Leipzig e Kaisersaschern). Mas há um lado ainda mais instigante em Doutor Fausto: a discussão do problema da arte contemporânea que, por extensão, afeta a própria forma do livro.

Leverkühn tem especial predileção pela paródia. Atualmente, todas as manifestações artísticas estão impregnadas por ela ou pelo seu primo pobre, o pastiche. Dentro da narrativa, discute-se incessantemente se a função genuína da arte não se esgotou e se ela não é somente, e isso nos melhores casos, crítica e recombinação paródica das formas passadas. Além disso, discute-se o problema da arte como jogo e diversão ou como forma de conhecimento, ambição dos maiores artistas do século vinte. Como romance enciclopédico que é, Doutor Fausto assume essa oscilação e, entre todo o anedotário da narrativa, o leitor passa por discussões sobre teologia, ética, física, astronomia, biologia, sociologia, economia, estética, teoria musical e por aí vai.

Isso não deve assustá-lo, leitor. Quem avançar no texto observará que ele vai se tornando cada vez mais “narrativo” e dinâmico na parte final, ao contar o destino das várias pessoas ligadas a Leverkühn, trazendo, aliás, muitos elementos autobiográficos (a vida das irmãs de Mann, por exemplo)[1].

E num romance tão extraordinariamente construído, onde um fato aludido em determinado ponto (como as formas híbridas de vida que aparecem no começo) vai ganhar pleno significado mais adiante, Mann também não deixa de espelhar sua obra. Há a decadência da burguesia e a oposição entre esta e o mundo artístico e boêmio (como em “Buddenbrooks” & “Tonio Kröger”), o episódio italiano desagregador (como em “Morte em Veneza”), há a presença da doença (como em “A Montanha Mágica”); há até a antecipação de projetos posteriores: Adrian compõe uma obra utilizando a história do Papa Gregório, que Mann contará em “O Eleito”, em 1951, poucos anos antes da sua morte.

No período da ascensão e triunfo de Hitler, quando o Nobel de 1929 tornou-se um famoso exilado, muita gente afligiu-se porque ele não deixava claro seu posicionamento diante do Terceiro Reich (é que, verdade seja dita, durante o conflito 1914-18, ele se destacara pelo nacionalismo fanático, quase chauvinista)[2]. Quando o fez, foi um acontecimento memorável e seu irmão, o também notável Heinrich Mann, o cumprimentou comentando que ele dissera a “palavra final”.

Os romances precedentes de Mann sempre foram acusados de ter um pé no passado e não acompanhar a radicalidade formal de outros grandes modernistas (Joyce, Kafka, Proust, Virginia Woolf, Faulkner, Musil, Broch, Döblin, Céline). Com seu pacto com o diabo, mais uma vez teve a última palavra.

[o texto acima é uma versão de resenha anterior, publicada em A TRIBUNA de Santos, em 08 de outubro de 1996]

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ANEXO 

[a resenha abaixo foi publicada em A TRIBUNA de Santos, em 5 de setembro de 2000]

Em O lobo da estepe (1927), de Hermann Hesse, pode-se ler o seguinte: «essas fatais relações com a música eram o destino de toda a intelectualidade alemã (…) uma hegemonia da música, como não se conheceu em nenhum outro povo. Nós, os intelectuais, sonhamos todos com uma linguagem sem palavras, que possa exprimir o inexprimível, que possa representar o irrepresentável. Em vez de tocar seu instrumento da forma mais fiel e honesta possível, o intelectual alemão está sempre em luta com a palavra e fazendo a corte à música».

Em Doutor Fausto (1947) talvez o maior entre os romances do século XX (junto com A montanha mágica), as palavras de Hesse citadas acima são lugubremente dramatizadas, tanto no que concerne a Adrian Leverkühn, o protagonista, compositor que faz pacto com o Diabo para desenvolver a genialidade inata (sempre trilhou caminhos perigosos), quanto no que concerne à narrativa, que tenta se apropriar da linguagem musical de uma maneira quase asfixiante, tornando o livro uma experiência difícil, insuportável para muitos.

Para o jovem Adrian, antes do pacto, «a música é ambiguidade organizada como sistema». Para Serenus Zeitblom, o narrador (amigo do músico pactário, desde a infância), «a música pertence a um mundo místico, por cuja fidedignidade incondicional em matéria de razão ou do valor humano eu não gostaria propriamente de garantir».

Zeitblom tenta manter a tocha do humanismo e da razão em meio ao mundo demoníaco criado pelo Nazismo. Escrevendo a biografia de Adrian, arrasta a narrativa para o universo da ambiguidade. Tudo é o que é. E mais alguma coisa, às vezes o seu contrário. A experiência do prazer sexual traz a doença mortal que levará à loucura e à morte. O vanguardismo musical (o estilo musical desenvolvido no livro é um espelho da técnica dodecafônica de Arnold Schönberg, que revolucionou a música clássica) mergulha no arcaico, no primitivo. O Diabo aparece como um rufião vulgar e discute como um teólogo.  O pacto é concretizado na Itália que foi berço do humanismo clássico e da Renascença. No plano mais íntimo, Adrian envia Rudi Schwerdtfeger, o qual foi seu amante, na missão de fazer a corte a uma mulher por ele.

E há a ambiguidade do próprio romance: ele é realmente uma narrativa na qual se conta uma história terrivelmente dramática, que pode ser uma alegoria da Alemanha desde as raízes luteranas presentes na mentalidade germânica até a loucura nazista, ápice de um processo inerente a essa mesma mentalidade, ou é uma vasta (para muitos, aborrecida, interminável) enciclopédia disfarçada?

Desde o começo, Mann povoa seu texto com uma desconfortável atmosfera híbrida, com a discussão de certas formas intrigantes como as «flores criadas pelo gelo» e a flora de excrescências inorgânicas desenvolvidas pelo pai de Adrian, formas heliotrópicas que arremedam a vida orgânica. A impressão que se tem é que o restante da narrativa não passa de um desdobramento dessas fantasmagorias que desafiam as fronteiras entre os reinos animal, vegetal e mineral. E essa mesma “contaminação” ou esse mesmo “simulacro” vão fornecer a base para um dos grandes temas de Doutor Fausto: o problema da paródia (pela qual Adrian demonstra predileção). A função da arte esgotou-se e ela, na era contemporânea, não é apenas (e isso nos melhores casos) recombinação paródica das formas passadas? A tragédia do pacto com o Diabo não se tornou uma espécie de melodrama? Curiosamente, o filho de Mann, Klaus, escreveu um romance que utilizou igualmente (e também foi igualmente traduzido pelo grande Herbert Caro) a aproximação paródico-alegórica com o Diabo e o advento do Nazismo: Mephisto, cuja famosa adaptação cinematográfica lamentavelmente deixava passar em branco na tela o tom de zombaria irônica do texto original, sucumbindo na “pesadez” solene e melodramática que muitos veem no próprio texto de Mann, o pai.

E realmente, Doutor Fausto também parece, a princípio, arrastar-se nessa mesma “pesadez” solene-melodramática. É incrível como Mann vai libertando o romance dessa armadilha e deixando-o, senão leve (o que é impossível, com um tema desses), cada vez mais ágil, dinâmico, cheio de soluções surpreendentes (Clarissa e Inês, irmãs que são as personagens femininas mais importantes, realizam atos extremos: uma suicida-se; a outra assassina Rudi Schwerdtfeger). Artimanhas de mestre.

Agora: que ironia cruel a de Thomas Mann fazer com que a danação de Adrian e sua repercussão no círculo de relações dele espelhem episódios da biografia da sua própria família. Já acontecera tal espelhamento biográfico em Os Buddenbrooks, só que dessa vez ele foi além da narração da decadência: lançou-os –só com passagem de ida—no Inferno. Grande escritor (o maior), mas péssimo (por que não dizer perverso) parente. Não  à toa o filho Klaus suicidou-se também.

VER TAMBÉM NO BLOG:

https://armonte.wordpress.com/2015/11/05/thomas-mann-fazendo-arte-no-romance-das-ficcoes-e-confissoes-radicais/

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NOTAS

[1] O próprio Mann revoltava-se contra os que acham árdua a leitura, ou mesmo ilegível a obra. Em carta ao seu editor afirmou, com razão: «O livro não é um tratado insuperavelmente difícil e sim, pelo menos em parte, um romance que entretém e até mesmo emociona. Não seria certamente desejável que o público ficasse atemorizado».

[2] Como se ele precisasse deixar mais claro do que escrever coisas inexcedíveis como Histórias de Jacó & Carlota em Weimar, os quais iam contra toda a burrice e intolerância dominantes. Em especial, é preciso lembrar das palavras que ele coloca na boca de seu Goethe a respeito dos alemães:

« [A antipatia aos judeus] só era comparável com outra, a que existe contra os alemães, cujo papel atribuído pelo destino e cuja posição interior e exterior entre os povos demonstravam o mais espantoso parentesco com a posição dos judeus… às vezes o assaltava o medo angustioso de que um dia se pudesse desencadear o ódio coligado do mundo contra o outro sal da terra, a germanidade…»

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15/07/2014

SADIO OU SÁBIO: “filho enfermiço da vida” ou “pândego”

Quando Thomas Mann escreveu Sua Alteza Real  (1909), descobriu uma forma de realismo simbólico que lhe seria  útil para concretizar A montanha mágica (1924), sua maior realização, o maior romance do século XX.

Por que chamar de simbólico o realismo de A montanha mágica? Porque, ao narrar os sete anos que o protagonista, o alemão Hans Castorp passa num sanatório para tuberculosos, nas altas montanhas suíças, o Berghof, este acaba por refletir a Europa anterior à guerra de 14. Tal decodificação simbólico-alegórica poderia parecer fácil e simples se não estivéssemos diante de um livro  total, daqueles que nem mesmo uma série de resenhas daria conta.

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Pertencendo a alta burguesia de Hamburgo, Hans Castorp, “um jovem singelo”, como alerta maliciosamente o narrador (e o leitor deste meu texto não pode imaginar quão malicioso  é o solerte narrador de A montanha mágica), veio ao sanatório Berghof para visitar o primo Joachim, e descobre-se enfermo também. Engenheiro naval, prestes a começar a trabalhar na profissão escolhida (está com 23 anos), acomoda-se sem problemas à “vida horizontal” do Berghof (todos permanecem deitados por boa parte do dia), um cotidiano regulado e regido por um horário minucioso.

Um dos amigos de Hans durante sua permanência no “mágico”  Berghof, que parece impedir que as pessoas consigam partir, será o italiano Settembrini, paladino da razão iluminista. É ele que, preocupado pedagogicamente com o rapaz, adjetiva-o com um dos dois epítetos significativos e contraditórios que Hans receberá ao longo da história:  “filho enfermiço da vida” e “pândego”. É na oscilação entre esses dois epítetos que a narrativa será conduzida.

Hans escolheu a profissão de engenheiro naval mais por causa do status do que por convicção. Obrigado a ficar no sanatório, não em razão de um desejo seu exteriorizado, mas sim por uma providencial enfermidade, ele não precisa assumir um papel no “mundo da atividade”, que fica adiado para o futuro, sem que ele se desonre. No fundo, ele tem uma enfermidade secreta: está ligado à sua classe social num sentido totalmente oposto ao que ela apresenta como ideologia (a produtividade) e da qual a profissão de engenheiro é um epítome; assim como Thomas Buddenbrook, ele se identifica com a alta burguesia no sentido mortuário, na sua tendência à petrificação, na sua resistência à mudanças, um desejo de estabilidade estagnada incompatível com o dinamismo da própria burguesia (tão admirado por Marx). No Berghof Hans encontra essa sua predisposição radicalizada na “vida horizontal” e inerte que ali se vive e à qual ele, como “singelo filho enfermiço da vida” se adaptará muito melhor que o primo rebelde (atraído pela vida militar), que teima em partir (e voltará moribundo).  Hans pode ficar indefinidamente na situação em que se encontrou num passeio de barco: entre o dia que morria e a noite que chegava, suspenso entre os dois.

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Só que ele também está destinado a uma legítima educação sentimental no Berghof e a ela se entregará de modo “pândego”. Apesar das advertências pedagógicas de Settembrini, apesar da recusa de Joachim, “estamos aqui para ficar mais sadios e não mais sábios”, ele assiste aos debates filosóficos intermináveis e divertidos (porque A montanha mágica é também um dos romances mais divertidos da história da alta ficção) entre o libertário italiano e Naphta, um jesuíta aficcionado pelo totalitarismo e pelo terror instituído. Entrega-se a estudos que,da maneira como se imiscuem no tecido narrativo, abrem um caminho novo para o gênero, e lemos maravilhados as  investigações científicas de Hans a respeito da origem da existência e sobre o tempo.

De fato, poucos livros revelaram tão bem na sua própria construção formal afora as inúmeras considerações do narrador, o problema da passagem do tempo. Assim, os primeiros dias de Hans no sanatório são narrados com minúcias extravagantes, enquanto que seus sete anos ali parecem se revestir de um clima de sonho e irrealidade, parecem não ter peso, como se fossem constituídos pela mesma atmosfera da sua célebre noite de amor com a exótica Clawdia Chauchat (que parece ser a personificação feminina de Pribislav Hippe, um companheiro de colégio que fascinou Hans, numa daquelas situações de ambivalência sexual tão prezadas e utilizadas por Mann), noite de amor cujo teor o leitor brasileiro que não é versado em francês (pois é a língua utilizada entre ambos nesse importantíssimo momento da narrativa) terá de adivinhar, uma vez que a Nova Fronteira não se deu ao trabalho de colocar (como fez o Círculo do Livro) uma tradução em notas de rodapé.  Após essa noite, nosso herói fica com o mais bizarro troféu amoroso já conquistado na literatura: a radiografia do pulmão da amada.

Portanto, se a vida no Berghof no plano das formalidades sociais é “horizontal” e apropriada  a um filho enfermiço da vida, a um rapaz singelo e medíocre, no plano interior, da alquimia que acontece no íntimo de Hans Castorp (o qual ele também conhece ou espreita, por assim dizer, através do raio X, noutro momento célebre), ela se verticaliza e o transforma num pândego, num aventureiro do corpo, do espírito, do coração e da mente.

A fusão de minúcia realista com atmosfera irreal de sonho, ou seja, do dia que morre e da noite que nasce, é bem pertinente: sendo o sanatório a civilização européia em microcosmo, nada mais justo do que refletir a problemática aceleração do tempo que se acentua na existência humana “civilizada”, pois, como se percebe no livro e na vida, há uma dupla angústia do tempo. Por um lado, percebemos demais o tempo, medimo-lo, fazemos com que ele esteja onipresente, através dos mais variados instrumentos, de forma que sempre o temos no nosso campo de visão e ideologia do “real”; por outro lado, não prestamos suficiente atenção ao tempo, ele nos escapa, escoa-se, torna-se abstrato, irreal, e o perdemos.

(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos em  19 de dezembro de 2000)

círculo do livro

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ADENDO-

Uma versão da resenha acima foi publicada em A TRIBUNA de Santos, em 15 de julho de 2014, com o título “Os 90 anos do maior gol do craque alemão Thomas Mann”, aproveitando o gancho do final da Copa do Mundo, com vitória alemã.

O início desta nova versão:

Os alemães podem se orgulhar de ter conquistado com mérito o tetra na Copa do Brasil e, entre os craques em outras áreas, contar com o único escritor que, já nobelizado (em 1929) foi seriamente cogitado a receber uma segunda premiação: Thomas Mann. Sua obra máxima, a meu ver o mais genial romance do século passado, A Montanha Mágica, chega aos 90 anos em 2014, sempre com boa vendagem, em edições ininterruptas aqui no Brasil.

Ironicamente, poucos livros tiveram um parto mais complicado: considerado ultrapassado, regurgitando e ultrapassando sua visão chauvinista e ultranacionalista durante a Primeira Guerra, à beira dos 50 anos, após uma década sombria, Mann conseguiu concretizar um painel simbólico-alegórico da civilização europeia anterior ao conflito, num dos romances “totais” (como “Ulisses” e “Em Busca do Tempo Perdido”) que marcam o modernismo e representam, num certo sentido, o ápice do gênero.

montanha mágica

17/11/2012

A MAIOR PERSONAGEM FEMININA DE THOMAS MANN

Venho comentando sistematicamente nesta minha coluna de A TRIBUNA o relançamento das obras de Thomas Mann pela Nova Fronteira. Já quase no final do percurso, a avaliação do empreendimento acaba sendo negativa. A princípio, as edições pareciam boas e bonitas. Não resistem, porém, a um olhar mais cuidadoso: não há unidade nas capas, umas são de muito bom gosto, outras surpreendem pela breguice; no caso dos livros mais volumosos, elas vão se descolando e o exemplar fica todo deformado. Cobrando tão caro,  a editora poderia pelo menos ter utilizado um papel melhor porque, somando tudo, sua coleção Thomas Mann ficou com um ar bem ordinário.

As deficiências da apresentação gráfica não são nada comparadas às encontradas nos textos. A Nova Fronteira prometeu “traduções revistas”. Ora, ora. Pegue-se CARLOTA EM WEIMAR. A não ser em alguns casos demasiadamente gritantes, a nova edição mantém quase todos os erros da anterior (lançada em 1984). Por exemplo, Goethe era indulgente com os horários de seu secretário Riemer, mas tanto em 1984 quanto agora o leitor brasileiro lerá que ele era indulgente com os honorários. O mesmo Goethe afirmava ter mão de artesão, apesar do seu refinamento aristocrático, só que o infortunado leitor daqui encontrará, em 1984 e agora, um absurdo não de artista. Etc etc etc. As traduções devem ter sido revistas por Stevie Wonder.

É uma pena, uma vez que LOTTE IN WEIMAR  é notável e não apenas por trazer a melhor personagem feminina criada por Mann: o famoso sétimo capítulo penetra diretamente na mente de Goethe, num enorme e complexo monólogo interior, com jogos de palavras e alusões que necessitavam de um tratamente editorial decente para não trazer mais dificuldades ao leitor. Esse capítulo e a parte inicial de José e seus irmãos são os maiores tours-de-force de Mann em termos técnicos, seus maiores feitos virtuosísticos.

Antes desse momento genial, a Senhora Conselheira Carlota Kestner chega a Weimar em 1816 (com 68 anos). Ela foi, na juventude, a inspiradora de Lotte, amada de Werther na obra-prima de Goethe, fato que sombreou toda a sua existência burguesa respeitável como mãe de 11 filhos.Apesar do pretexto da viagem (visitar a irmã e o marido desta), Carlota tem como objetivo confrontar-se com Goethe, o qual pontifica em Weimar como o supremo homem da nação alemã. Como ela mesma (um personagem pelo qual o leitor se apaixona) afirma, a certa altura: “existe uma velha conta entre a montanha e eu, uma conta que não foi saldada”. Mais tarde, num diálogo fantasmagóricona carruagem do próprio Goethe: “Vim para considerar o que teria sido possível, e cujas desvantagens diante do real verdadeiro são tão evidentes; e que entretanto permanece no mundo a seu lado como um Mas, e se…? e Se tivesse sido de outro modo…, o que é digno de nossa investigação. Você não acha também, velho amigo, e não pergunta também, às vezes, pelo possível no meio das dignidades da sua realidade?”

Os seis primeiros capítulos do romance são bem teatrais. Carlota, que se instalara numa hospedaria, procura sair para visitar a casa da irmã e é impedida por diversas visitas, as quais lhe oferecem visões indiretas e sombrias do autor de Werther e Fausto. Depois, temos o extraordinário capítulo central do livro, em que percebemos o trabalho alquímico processando-se na mente goethiana, à margem e além de todas as visões exteriores e parciais que tivemos dele. O clímax do romance seria, é claro, o encontro (não se viram por 44 anos) entre Carlota e o “grande homem”, num almoço formal na casa dele, no capítulo seguinte, contudo Mann deliberadamente (creio eu) o constrói como um anti-clímax, para depois jogar o leitor no intrigante e belo capítulo final, onde a velha conta não saldada entre a montanha e Carlota é discutida numa atmosfera onírica, como se não fosse possível um entendimento real entre ambos no cotidiano solene, pesado e reverente que cerca o antigo apaixonado de Lotte.

Em CARLOTA EM WEIMAR alternam-se três planos: o plano do jogo literário (pois Carlota, no livro, se torna duplamente personagem: já o era de Goethe, torna-se novamente em Mann, afastand0-se ainda mais da sua existência biográfica real), que é  mola propulsora para o plano do espelhamento biográfico (a frustração, incompreensão e desilusão dos vários personagenscom relação a aspectos da personalidade e comportanento de Goethe, no texto, reproduzem as mesmas reações com relação ao próprio Thomas Mann, uma pessoa que, no entender do seu risível biógrafo Donald Prater, era mais fácil de admirar como escritor do que se gostar como ser humano, como se isso tivesse a menor importância: há gente simpática demais no mundo, um Thomas Mann é muito raro); e, por fim, o plano alegórico: ao desenhar um perfil da época pós-napoleônica na visita de Carlota a Weimar, o grande escritor alemão projeta o momento histórico no qual escrevia, com a sua pátria dando os passos decisivos para iniciar a Segunda Guerra.

Quem ler o romance com atenção, tendo em mente o ano da sua publicação (1939), verá como Mann faz com que as afirmações de Goethe, que é afinal o nome mais alto da cultura germânica, mesmo para os nazistas, funcionem como advertências diretas para os seus compatriotas (ele já se encontrava exilado): “não é certo que tenham de odiar a luz. Lamento por eles não conhecerem o encanto da verdade…que se consagrem credulamente a qualquer rufião místico que apele para o mais baixo, confirme-os em seus vícios e lhes ensine a entender a nacionalidade como isolamento…” A antipatia aos judeus “só era comparável com outra, a que existe contra os alemães, cujo papel atribuído pelo destino e cuja posição interior e exterior entre os povos demonstravam o mais espantoso parentesco com a posição dos judeus… às vezes o assaltava o medo angustioso de que um dia se pudesse desencadear o ódio coligado do mundo contra o outro sal da tera, a germanidade…”

(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 20 de fevereiro de 2001)

 

04/09/2012

Thomas Mann e seus contos: de aprendiz a feiticeiro

                              

OS FAMINTOS  é uma coletânea de 18 narrativas que vão de 1896 (Desilusão) até 1925 (Mágoa Prematura), quando Thomas Mann chegou aos 50, tendo atingido a sua maturidade literária completa no ano anterior, com A Montanha Mágica. Estão fora seus textos curtos mais emblemáticos: A morte em Veneza, Tônio Kröger, O sangue dos Walsungs, os quais foram escritos durante o período abrangido pela seleção, bem como o também memorável Mário e o Mágico, de 1930.

A capa da recente edição da Nova Fronteira, muito expressiva como chamariz (um hiperrealista mendigo dormindo no chão), é também bastante enganosa. O conto-título pouquíssimo tem de temática social. O seu protagonista, um escritor chamado Detlev, ao ser encarado desdenhosamente por um mendigo ao sair da ópera, sente uma imediata identificação com ele: ambos são párias, apartados do mundo normal e burguês. Aliás, duas características ficam bem evidenciadas nos contos do jovem Mann. Em primeiro lugar, a  posição do artista na sociedade é uma obsessão. Em segundo, ele não parece ter nenhuma simpatia por aqueles que chamamos hoje de excluídos; bem ao contrário, é o lado mais antipático do grande escritor alemão que aflora nos seus retratos  de pessoas pobres, infelizes e maltratadas pela vida: Tobias Mindernickel (a história de um solitário, alvo da zombaria da vizinhança, que só se sente bem maltratando seu cão), O caminho do cemitério (um beberrão fracassado fica indignado porque um rapaz insiste em andar de bicicleta no caminho do título) e até o estranho e ambíguo Gladius Dei (um rapaz religioso protesta contra a sensualização vulgar da figura da Madona numa obra de arte moderna). É como se ele tomasse como regra geral a afirmação do personagem principal de O diletante: “O conceito de felicidade como uma espécie de merecimento, de talento, de nobreza, de encanto; o conceito de infelicidade como algo feio, sombrio, desprezível e ridículo está muito arraigado em mim, e se eu fosse infeliz não poderia respeitar a mim mesmo”!!?

?

Aliás, O Diletante é um do contos mais reveladores de Mann nessa fase. Ele e outros textos fazem uso do que poderíamos chamar de alter egos negativos: 1) artistas falhados, infelizes. É o caso de Os famintos e do extraordinário Tristão, talvez o melhor texto de juventude entre aqueles reunidos na coletânea, e onde já aparece um sanatório como centro da história, tal como acontecerá em A Montanha Mágica; 2) artistas atormentados: o retrato de Schiller em A hora difícil, em contraste com o “artista feliz” Goethe, polarização que Mann retomará mais tarde num estudo magistral chamado Goethe e Tolstói; 3) artistas envolvidos num charlatanismo quase que inerente à condição artística: O Menino Prodígio é um exemplo notável; 4) e até personagens que representam simbolicamente a inadequação social do artista, como o deformado personagem-título de O pequeno senhor Friedemann, cuja sensibilidade é ridicularizada pela sua amada (tanto quanto a do escritor em Os famintos; na verdade, até mesmo a etérea Gabriele Klöterjahn, de Tristão, mantém uma condescendência meio irônica para com o herói da história, seu admirador).  

   Vemos que, ainda tateando seu universo criativo, Mann ainda não estava totalmente seguro do brado que coloca na boca de um dos seus alter egos: “Sinto em mim o poder da palavra e da ironia”. Ele ainda era um aprendiz de feiticeiro. Mesmo assim, pôde escrever narrativas do quilate de Tristão e do cruel Luisinha, este último com um clima de pesadelo expressionista na história do marido obeso que é obrigado pela esposa e o amante dela a fazer uma ridícula apresentação numa festa, vestido de mulher, e que poderia ter ser sido adaptada num filme de Fassbinder.

Em compensação, ele já era um feiticeiro consumado, senhor absoluto da palavra e da ironia quando escreveu os dois últimos textos da seleção, duas obras-primas, O homem e seu cão e Mágoa Prematura. No primeiro, ele faz uma espécie de crônica sobre suas relações com o cão Bauschan, para sinuosamente evocar mais uma vez o tema da posição gauche do artista na vida: há um momento em que Bauschan, que adora o dono, mas que é um cão de caça, tem um vislumbre do que seria a vida com outro “senhor” que satisfizesse plenamente seus instintos e não o pacato escritor que só gosta de dar passeios inofensivos.O homem e seu cão é certamente um dos textos mais belos a registrar a antiga história de amor entre uma parcela da humanidade e os animais (em compensação, há uma parcela Tobias Mindernickel que faz questão de tornar um inferno a vida dos animais na terra, como os exploradores de cavalos esquálidos e esgotados, que vemos todosos dias levando um fardo monstruoso de carga e rebotalhos humanos, arrastando sua desgraça entre o descaso das autoridades e a indiferença dos honrados cidadãos).

E Mágoa Prematura consegue entrelaçar o clima opressivo da inflação dos anos 20 que desesperou a Alemanha como um todo com a muito reservada e doméstica ambivalência sexual de um pai, que se insinua na descoberta da paixonite da filha de 5 anos por um dos amigos dos irmãos mais velhos. A paixonite é só da filha ou, de alguma forma, o pai identifica-se com ela? O mais engraçado é que muita gente viu nesse texto uma espécie de louvor do autor de Doutor Fausto à sua felicidade conjugal e familiar. Isso é que é se deixar levar pelas aparências!

(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em treze de fevereiro de 2001)          

Mann e seus ensaios: a persistência pedagógica, os imperativos ético-produtivos e as trilhas perigosamente tentadoras

resenha publicada de forma mais condensada, originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 20 de dezembro de 2011)

Durante toda a sua longa carreira, Thomas Mann (1875-1955) escreveu ensaios. No Brasil, poucos deles chegaram a ser traduzidos, ao contrário dos seus romances, novelas e contos (quanto a estes últimos, também há várias lacunas): salvo engano, a última compilação aconteceu em 1988, uma seleção (realizada pelo grande Anatol Resenfeld para a Perspectiva) de oito textos notáveis.

Um deles, sobre Tchekhov (de 1954) foi igualmente incluído entre os doze que compõem O escritor e sua missão (em tradução de Kristina Michahelles), parte do louvável projeto da Zahar de lançar uma coleção com as facetas não-ficcionais do genial escritor alemão (a série começou com os discursos radiofônicos contra Hitler, Aos ouvintes alemães).

Gosto muito desse ensaio sobre Tchekhov, no qual —já no fim da vida— Mann detalha sua descoberta relativamente tardia do autor russo que homenageava, cinqüenta anos após sua morte, porque na juventude deixou-se enlear pela obra de fôlego monumental tipo Guerra e Paz (tipo que ele não só admirou como exercitou, como sabe bem quem leu algumas das suas maiores realizações), assim como gosto dos textos sobre Bernard Shaw, Hermann Hesse ou Tolstói, e assim como gosto até daqueles cuja maior fruição é prejudicada pelo pouco (caso de Hauptmann e Lessing) ou nada (caso de Hofmannsthal) que conheço do objeto de estudo.

São sempre construídos a partir de certas anedotas, de um certo posicionamento pessoal, que os torna muito carismáticos (como sou apaixonado pela correspondência entre Mann e Hesse1, tenho especial apreço por esse texto-homenagem aos 70 anos do autor de O lobo da estepe, que sintetiza o que os diferencia e aproxima, a sua coincidentia oppositorum, que os encantava e divertia). Acho menos defensável a inclusão dos textos sobre Heine e Zola porque são meros exercícios de página e meia (e no caso do expoente do naturalismo francês, constatamos um quase menosprezo pela sua obra de romancista—apesar de enaltecê-lo enquanto figura moral e polemista—, o qual só pode ser explicado pela rivalidade entre ele e o irmão, Heinrich, admirador do criador de Germinal).

Considero, contudo, o cerne de O escritor e sua missão os dois ensaios (os mais longos) que estão justamente na metade do volume porque representam os dois pólos entre os quais Mann oscilava: Goethe como representante da era burguesa (1932) e Dostoiévski, com moderação (1946), Goethe era ídolo literário do autor de Doutor Fausto, o qual, aliás, sempre teve como ambição alcançar uma posição similar no século XX; mais que isso, porém, Goethe e Tolstói (como desenvolveu num célebre ensaio, talvez o seu trabalho não-ficcional mais importante, incluído na seleção da Perspectiva2) eram os maiores representantes do que ele chamava de “filhos da natureza”, uma constituição “sadia”, quase pagã em sua vitalidade. Essa exuberância de dons naturais foi temperada, em Goethe, por suas virtudes burguesas, seu amor ao estudo, ao trabalho paciente e disciplinado, que permitiu a ele encarnar o suprassumo das qualidades do humanismo clássico (e é essa visão que o leva a encarar a veia evangelizadora de Tolstói como um “desvio” no pseudoespiritual, “tolices”). Esse era o ideal artístico de Mann. Entretanto, ele também era atraído, relutantemente, e sempre associando essa tendência à ligação entre existência como artista e doença, pelas figuras-irmãs de Nietzsche e Dostoiévski, os “filhos do espírito”, que levam o leitor a reinos demoníacos e suspeitos, ao irracional e ao desagregante. Os dois ensaios, lado a lado, permitem ao leitor brasileiro transitar pelo duplo apelo que fornece a tensão de base para obras como Morte em Veneza e A montanha mágica, e menos obviamente, como José e seus irmãos.

Pena que iniciativa editorial tão importante seja sabotada por erros de revisão esdrúxulos. Na página 121, entre outros detalhes aberrantes (por exemplo, o nome do mesmo escritor aparece grafado de formas diferentes ao longo dos ensaios; também acho que certas soluções são horríveis e anti-poéticos3 ), deparamo-nos com o seguinte trecho: “… um grau terrível e criminoso de conhecimento para o qual esse homem delicado e bondoso, dependente de todo tipo de cuidados, não tinha sido nascido (!!!???), mas para o qual, como Hamlet, fora convocado”. Como será ter sido nascido?

 

1 Publicada no Brasil pela Record, em tradução de Lya Luft. O mais fascinante na sua leitura é acompanhar a nascimento—lento, levou décadas—de uma verdadeira amizade, “uma simpatia que retira o seu alimento tanto das diferenças quanto das semelhanças”.

2 O título é Goethe e Tolstói-Fragmentos sobre o problema da Humanidade. No texto, ele opõe os pares Goethe-Tolstói e Schiller-Dostoiévski (mas não há equanimidade entre eles, o segundo fica à sombra do primeiro). Um trecho (a tradução é de Natan Robert Zins) pode dar idéia do “todo”: Ninguém afirma que Goethe e Tolstói, ao contrário dos gênios doentes, Schiller e Dostoiévski, tenham sido robustos e, no sentido burguês da palavra, ´”normais”. Mesmo o gênio mais abençoado pela natureza nunca é, no sentido do filisteu, natural, quer dizer, sadio, normal e de acordo com a regra. Aí, no físico, sempre fica muita coisa de tenro e irritável, predisposto à crise e à doença; no psíquico sempre resta muita coisa de estranho à média, sinistramente comovente, próximo ao psicopático…”

Foi esse ensaio (de 1922) que me levou a encarar de forma muito forte a função pedagógica da literatura, e é decisivo na minha leitura de obras não só de Mann (penso em A montanha mágica, é claro), como também de Hesse (O jogo das contas de vidro), Yourcenar (A obra em negro), Guimarães Rosa (Grande sertão: veredas), Doris Lessing (Shikasta) etc.

3 No texto sobre Hesse, há a seguinte passagem, tal como traduzida por Kristina Michahelles: Há coisas dele—por que não deveria dizê-lo?—como o “Badegast” e mesmo alguns trechos no Jogo das Contas de Vidro, principalmente a longa introdução, que eu leio e sinto como se fossem um pedaço de mim. Explicando o que seria “Badegast”, uma referência a um texto de Hesse por aqui pouco conhecido, ela o traduz como Anotações de um hóspede de um spa de Baden-Baden.

Veja-se a tradução muito mais simples, eficiente e descritiva de Lya Luft (a passagem, no caso, encontra-se num texto escrito em homenagem aos 60 anos de Hesse, reaproveitado e enriquecido dez anos depois, e publicado quando O jogo das contas de vidro nem tinha aparecido, só algumas partes): “Há coisas dele—por que não o dizer?—como “O hóspede da estação de águas”e mesmo a amostra prévia da sua misteriosa obra mais recente, “O jogo das contas de vidro”… que leio e sinto como se fossem parte de mim. Pode ser que “spa” seja um termo mais up to date, mas além da feiúra geral do título traduzido, como é muito mais evocativo da época “hóspede da estação de águas”

Esses detalhes não desmerecem, é evidente, de maneira nenhuma o resultado geral do trabalho de Kristina Michahelles, e me parece mais culpa do trabalho de revisão do que da tradutora.

 

TRECHOS DOS ENSAIOS

Heine soube adequar a filosofia e a literatura alemãs ao sabor dos franceses. Seu empenho político visava a pacificar e aplicar o continente com base no entendimento e na amizade entre duas grandes civilizações—a Alemanha e a França—que, na sua opinião, haviam sido criadas para se complementar e não para se destruir mutuamente…” (Sobre Heinrich Heine, 1927)

No entanto, quero me deter naquilo que mais estreitamente une a ambos. É o processo de sublimação—que ninguém antes dele intuíra como possível—pelo qual passou nas mãos de ambos uma forma de arte previamente dada em formato espiritualmente mais modesto. No caso de Wagner, a forma preexistente era a ópera; no caso de Ibsen, a comédia de costumes. Goethe disse: ´Tudo o que é perfeito em sua espécie deve ultrapassar sua espécie, tornando-se outra coisa, incomparável`…”

(Ibsen e Wagner, 1928)

Ah, sim, as opiniões de Tolstói! Quando as escutávamos como se fossem revelações, isso se devia sem dúvida a que eram justamente isso: manifestações autocráticas daquilo que se chama ´personalidade´; postas em vigor à força, por obra daquela magia natural que transforma a casa de fazenda na província de Tula em centro de romaria da carência humana, um centro de força que irradia para o mundo inteiro. Vitalidade e grandeza, grandeza e força—em que medida tudo isso não é afinal a mesma coisa? O que se configura aqui é o problema do ´grande homem´, uma questão tão candente quanto não esclarecida que toda a humanidade teve motivas para ponderar […] pois até o sofrimento e a aspiração moral desta vida abençoada contêm a seiva vigorosa da manifestação da força. Qual era o seu fundamento? O horror físico à morte da parte de uma vitalidade desmedida, de uma vitalidade que irradia a vida mesmo quando se manifesta de forma pseudoespiritual. É preciso ser sincero, sem medo de diminuir a grandeza de Tolstói. Mesmo no célebre desfecho de sua vida, quando o santo toma distância do lar e da família, há certamente tanto de pulsão animal a fugir da morte como de anseio de redenção social e religiosa…”

(Tolstói, no centenário de seu nascimento, 1928)

Não posso elogiar sua conversação para não parecer estar me gabando de ter sido um interlocutor à altura. Eu estava enfeitiçado, como –sempre. Ele tinha uma maneira de compreender antes que o próprio interlocutor compreendesse, de aperfeiçoar e dar seqüência a coisas que capturava no ar, fazendo com que a conversação transcorresse com leveza onírica e jocosamente inteligente…” (In Memoriam Hugo Von Hofmannsthal, 1929)

 

Mas se for para se proclamar um gênio imediatamente, sem que se leve em conta a categoria do tempo, então os critérios passam a ser a originalidade, a personalidade, a ousadia extremas. O gênio, podemos afirmar, revela-se onde aparece algo nunca antes intuído, onde algo nunca antes imaginado se materializa; o gênio se anuncia ao possibilitar algo novo que se só se torna duradouro, até mesmo vitorioso, pela força e graça da personalidade. A genialidade na arte seria então o elemento da surpresa e do encanto que causa pasmo, o elemento da ousadia que só pode ser conhecido em suas realizações. Justamente essa definição de gênio torna mais fácil evidenciar como é vã a contenda sobre se Lessing era poeta ou não. Criações como Minna Von Barnhelm ou Natã, o sábio portam essa chancela do novo, surpreendente, ousado e só assim possível, que apenas podia se tornar duradouro e vitorioso com base nessa personalidade às voltas com a prudência e a ingenuidade…” (Discurso sobre Lessing, 1929)

Há nele um traço burguês de amor à ordem que ele herdou do pai—de quem também lhe veio a séria disciplina de vida—e que, como no pai, transformou-se com a idade em pedantismo e em mania de colecionador. Em Poesia e Verdade, ele conta que o Conselheiro Imperial levava ao extremo o princípio de terminar qualquer coisa iniciada. Mesmo que um livro seja enfadonho, uma vez iniciada a leitura é preciso ir até o fim; e assim ele insistia obsessivamente na finalização de tudo o que tivesse começado, ainda que o empreendimento em questão se revelasse incômodo ou mesmo inútil. O pai não tolerava que Wolfgang abandonasse estudos de desenho como esboços inacabados; circundava com lápis esses esboços a fim de obrigar o jovem a completar o desenho. Não se deve subestimar a eficácia de tal persistência pedagógica para a vida. Certamente, a ordem ético-produtiva de terminar as coisas era um corretivo necessário para a natureza de Goethe, que facilmente se enfadava e inquietava, curiosa por inúmeras coisas. De um ponto de vista exclusivamente prático e social, no fundo é indiferente se um artista possui a virtude burguesa da paciência, da laboriosidade e da persistência para conduzir uma obra iniciada ao término e ao aperfeiçoamento. Mas ao egoísmo do sonho e do prazer individual devem se contrapor os estímulos sociais da simpatia e do obséquio—estímulos burgueses, por assim dizer—para que se possa concretizar; e quem sabe se o Fausto teria afinal recebido o acabamento externo de que seu conteúdo interior infinito era capaz não fosse o pai burguês que implantou na alma infantil o imperativo pedagógico de sempre ´terminar tudo´…”

(Goethe como representante da era burguesa, 1932)

É muito curioso que minha vida de escritor tenha produzido estudos exaustivos tanto sobre Tolstói como sobre Goethe—vários sobre cada um deles. Mas nunca escrevi de forma consistente e exclusiva sobre duas outras experiências de formação intelectual, às quais não devo menos, que abalaram igualmente minha juventude e que não canso de renovar e de aprofundar mesmo nos anos mais maduros: nunca escrevi sobre Nietzsche nem sobre Dostoiévski. Fiquei devendo o ensaio sobre Nietzsche que alguns amigos muitas vezes me cobraram e que parecia estar no meu caminho. E só por alguns momentos, voltando a desaparecer rapidamente, emerge nos meus escritos o ´profundo e criminoso rosto de santo de Dostoiévski´(como certa vez me expressei). Por que me esquivei, por que o evitei, por que silenciei—em contraste com a eloqüência decerto insuficiente, porém alegre, que a grandeza daqueles dois outros mestres e astros despertou em mim? Bem sei o porquê…” (Dostoiévski, com moderação, 1946)

Portanto, é mais do que correto que ocasionalmente nossos nomes sejam mencionados no mesmo fôlego, e, ainda que isso ocorra da forma mais curiosa, está bem para nós. Em recente carta enviada à América, um velho e reputado compositor de Munique, arquialemão e malévolo, designou a nós dois, a Hesse e a mim, como ´miseráveis´que não querem compreender que nós, alemães, somos o maior e mais nobre dos povos, ´um canário entre rolinhas´. A imagem é estranhamente equivocada e estúpida, sem falar em sua total falta de cultura e na arrogância ali expressa, que trouxe bastante miséria para esse povo infeliz. Bem, durante toda a vida esse homem falou muita tolice, portanto, deixemos isto de lado junto com todo o restante. Da mesma forma, também me rendo ao juízo dessa ´alma alemã´. Em casa, certamente eu não passava de uma cinzenta rolinha racional entre os vários canários cantores da região do Harz, e foi assim que, em 1933, eles ficaram contentes por se ver livres de mim[…] Mas Hesse? Quanta ignorância, quanta incultura, para usar uma expressão bem alemã, querer expulsar esse rouxinol (pois um canário burguês ele certamente não é) de seu bosque alemão…”

(Hermann Hesse, homenagem ao seu 70º. aniversário, 1947)1

Na verdade, assim como todos os outros autores teatrais relevantes que o antecederam, Shaw criou sua própria linguagem, uma linguagem teatral no fundo tão pouco realista quanto a paixão cantada da ópera, elevada, exagerada, carregada e epigramática, em nada menos retórica do que os versos iâmbicos de Schiller e, por mais estranho que possa soar, tão patética quanto—sendo que aqui pathos não deve ser compreendido como peroração e grandiloqüência, e sim como expressão extrema, geralmente na forma de uma excentricidade da palavra impregnada com humor, prenhe de espírito, desafio, afronta—o paradoxo tonitruante. Em seu preâmbulo para Santa Joana—tão bom que quase torna a peça desnecessária—ele diz, pondo a nu a superstição científica do nosso tempo: as teorias dos nossos físicos e astrônomos e a facilidade com que acreditamos nelas ´teriam dissolvido a Idade Média num único grito de divertimento cético´. É esse o seu estilo. E é assim que ele fala não só como ensaísta, mas também por meio de seus personagens no palco—sendo obrigatório observar que é o seu próprio efeito sobre a platéia que ele descreve com precisão por meio da fórmula do ´dissolver-se num grito de divertimento cético´…” (Bernard Shaw, 1950)

 

É mesmo curioso: o naturalismo estava na ordem literária do dia e Gerhart Hauptmann era tido como o seu porta-estandarte—com razão, pois ele pertencia àquela corrente com uma parte de sua literatura. Mas ao mesmo tempo havia algo totalmente diverso nas transformações e na índole da época, algo que pouco tinha a ver com a reprodução crua da natureza, que até mesmo a contradizia rigorosamente: estavam lá as insinuações fantasmagóricas das últimas peças de Ibsen; a renovação esotérica da linguagem de Stefan George, oriunda do parnasianismo francês, a seu modo tão revolucionária e desafiadora quanto o choque naturalista para a burguesia; os primeiros dramas simbolistas de Maeterlinck, com sua linguagem onírica e altamente ansiosa; a arte de Hugo von Hofmannsthal, de um refinamento e efebismo característicos da Viena decadentista; o circuo sexual patético e moralizante de Frank Wedekind; Rilke e sua sonoridade lírica nova, tão sedutora—tudo isso acontecia ao mesmo tempo, tudo era expressão da índole daquela época tão rica e movimentada, quando se cruzavam e interpenetravam muitas correntes, determinadas por personalidades diversas—todas elas, por sua vez, igualmente marcadas pelo mesmo tempo…”

(Gerhart Hauptmann, 1952)2

A solida condição burguesa, a colossal ética do trabalho, a devoção científica, a estranha mistura que, nele, uniu uma visão do mundo sombria, que beirava o obsceno e o crasso, à crença luminosa em ideais simples e ao empenho pessoal na luta por eles: tudo isso é a vertente mais impressionante do século XIX e, parece-me, também tinha a ver com o mito, ou, se preferirem um sinônimo para ´mito´, com a tradição. Pois assim como a feroz convicção na verdade de sua obra épica escorava-se na tradição da crítica social francesa, assim também sua atuação polítixa em 1898, o famoso J´accuse, com o qual interferiu no affaire Dreyfus, era miticamente protegido pela tradição francesa: sem a figura—exemplo e admoestação ao mesmo tempo—de um Voltaire, sem o caso Jean Calas, Zola, romancista saturado e bem-estabelecido no mundo burguês, não teria compreendido que estava sendo chamado à luta…”

(Fragmento sobre Zola, 1952)

A verdade da vida, com a qual o poeta está comprometido antes de tudo, desvaloriza as idéias e as opiniões. Essa verdade é irônica por natureza, o que facilmente leva a que se acuse o poeta—para quem a verdade está acima de tudo—de falta de opinião, indiferença em relação ao bem e ao mal, falta de ideais e de idéias. Tchekhov se preservou contra tais acusações. Ele dizia confiar em que o leitor saberia preencher as lacunas da narrativa, os elementos reprimidos, ´subjetivos´, isto é, os elementos confessionais e a postura ética. De onde, então, vêm o seu medo, a aversão à sua fama, essa sensação de estar enganando o leitor, já que não conhece a resposta para as perguntas mais importantes? De onde vem essa misteriosa capacidade de se transfigurar em um ancião desesperado que descobre que em sua vida faltou a ´idéia do todo´, ´sem a qual nada existe´, que à pergunta ´o que devo fazer?´ de uma desorientada é obrigado a responder: ´Pela consciência, não sei´.

Se a verdade da vida é irônica por natureza, a arte, então, seria niilista por natureza? E, no entanto, ela é tão laboriosa! Pois ela é, por assim dizer, o trabalho em seu estado puro e em alto grau de abstração, o paradigma de todo e qualquer trabalho, o trabalho em si. Tchekhov se entregava ao seu trabalho como ninguém. Gorki disse nunca ter conhecido ´ninguém que sentiu tão profundamente a importância do trabalho como base de toda cultura como Tchekhov´. De fato, todos os dias, até o fim, ele trabalhou incessante e incansavelmente, sem considerar a sua constituição frágil, apesar da natureza da doença que consumia suas forças. Mais ainda: realizou esse trabalho heróico duvidando constantemente do seu sentido, a despeito de um sentimento de culpa por carecer de uma ´idéia geral´, de uma ´idéia do todo´, por não ter resposta para a pergunta ´o que devo fazer?´ e apenas desviar a atenção desta pergunta, por meio da simples narrativa da vida…”

(Ensaio sobre Tchekhov, 1954)3

1 O compositor é Hans Pfitzner. Na tradução de Lya Luft, o trecho fica assim:

Assim, está muito bem que sejamos eventualmente mencionados juntos, e ainda que aconteça duma maneira curiosa, para nós está bem. Um famoso e velho compositor de Munique, fiel alemão e amargamente furioso, chamou-nos, a Hesse e a mim, recentemente numa carta para a América, de ´miseráveis´ que não querem perceber que nós alemães somos o povo superior e mais nobre de todos, ´um canário entre pardais´. A imagem em si é totalmente tola e errada, para não falar na teimosia, na incorrigível petulância que nela se expressa e que já trouxe bastante desgraça sobre esse povo infeliz. Bem, durante sua vida essse homem disse muitas coisas irritadas e loucas e podemos juntar-lhes mais essa. Também eu deixo, resignado, que repouse sobre minha pessoa o julgamento da ´alma alemã´. Fui provavelmente em minha terra apenas um pardal cinzento entre trinados de canários Harzer, e em 1933 eles ficaram felizes por se verem livres de mim […] Mas, Hesse? Que ignorância, que falta de cultura, para dizê-lo de maneira bem alemã, são necessárias para expulsar esse rouxinol (pois ele, obviamente, não é um canarinho burguês) de sua floresta alemã…”

2 Mann caricaturizou (se é esse o termo que se pode usar, já que o personagem é tão grandioso) Hauptmann no Myheer Peeperkorn de A montanha mágica, causando um certo mal-estar com o modelo (não por tê-lo retratado, mas porque ele leu o romance e não se reconheceu e depois outros comentaram com ele). No ensaio, ele enfrenta o assunto:

Não tenho como me arrepender, mesmo hoje, depois de mais de um quarto de século, não tenho como me maldizer pelo que fiz, por mais que tenha sido criticado […] Muito se murmurou e falou sobre aquele ato, uma transgressão nascida do fascínio. E por que eu não haveria de falar a respeito sob a proteção do perdão que sua grandiosa bondade me concedeu? […] Repetindo: eu me encontrava num impasse e buscava um personagem que já tinha sido previsto há muito na composição e que eu precisava introduzir, mas que eu não via, não ouvia, não possuía. Eu viera para Bolzano inquieto e preocupado, e o que me foi dado lá foi uma visão. Nenhuma outra palavra seria tão adequada. Não pensem que eu o tenha espionado e, maldosamente, decidido retratá-lo. Não é assim que as coisas acontecem, não de forma tão mesquinha e baixa. Não se trata de ´observar´, mas de um olhar para a realidade que se converte em contemplação […] Mynheer Peeperkorn, aquele trágico e estranho personagem que se elevou no meu romance, o orador fascinante no trovão ensurdecedor da cachoeira, a ´personalidade´ irracional, o formato ´dominador´, a cujo lado os falastrões e pedagogos intelectuais, as rinhas dialéticas do romance de formação parecem anões[…] Não se trata de mera caricatura—não foi traição, foi uma homenagem, e enquanto retrato da maior figura na dimensão humana e pessoal que já conheci, será muito mais capaz de transmitir à posteridade o teor de sua existência, da festividade dolorosa de seu ser, do que muitas monografias críticas…”

3 Na coletânea da Perspectiva, o trecho (traduzido por Natan Robert Zins, aparece da seguinte forma:

A verdade da vida, à qual o escritor sempre é obrigado, deprecia as idéias e as opiniões. Ela é irônica por natureza, e facilmente leva a que o escritor, para quem a verdade é o mais importante, seja censurado pela sua falta de ponto de vista, pela indiferença ao bem e ao mal e pela falta de ideais e idéias. Tchekhov se acautela contra tais censuras. Confia, diz ele, que o leitor mesmo completará o que falta na narrativa, o ´subjetivo´ suprimido, ou seja: elementos confessos e tomada de posição moral. De onde provém então a sua ´angústia ´, a aversão à sua fama, esta sensação de levar o leitor com muito jeito para trás da luz, já que ele não sabe mesmo a resposta às perguntas mais importantes? De onde se origina sua capacidade inquietante de se transportar ao ancião desesperado, que reconhece que lhe faltou na vida a ´idéia geral´, ´sem a qual nada existe´, e que diante da pergunta de uma desesperada, ´o que devo fazer?` é obrigado a responder: ´Palavra de honra, não sei!´?

Se a verdade da vida é irônica por natureza, então a arte é niilista por natureza? E ela é tão trabalhadora! Ela é, por assim dizer, o trabalho de cultura pura e, no abstrato, é o paradigma de todo trabalho, o próprio trabalho e o trabalho em si. Tchekhov era afeiçoado ao trabalho como ninguém. Dele disse Gorki: que ´não conhecia ninguém que sentisse tão profundamente o significado do trabalho como fundamento da cultura toda, como Tchekhov´. De fato, ele trabalhava incessante e incansavelmente, contra a sua frágil constituição física, a despeito da natureza consumidora de sua doença, todos os dias, até o fim. Mais ainda, fazia este trabalho heróico em dúvida constante quanto ao seu sentido, apesar da sensação de culpa, de que falta a ´idéia geral´, central, de que não havia resposta à pergunta ´o que fazer?` e de que se desviava desta pergunta através de descrições divertidas da vida…”

 

03/09/2012

Thomas Mann, terminando como começou: “Confissões do Impostor Felix Krüll”

Em meados dos anos 50, Patricia Highsmith escreveu O talentoso mrRipley, no qual mostrava como o protagonista se apropriava da identidade do homem que invejava após assassiná-lo. Na verdade, Ripley sentia-se como se, a partir daí, começasse efetivamente a existir (antes, sempre se sentia um “nada”). Não deixa de ser curioso que, mais ou menos na mesma época, Thomas Mann tenha lançado o primeiro volume do seu Confissões do impostor Felix Krüll, em que se narra também um processo de apropriação da identidade alheia. Com uma diferença fundamental: há o consentimento do Outro. E mais ainda: se Ripley é sombrio, Felix Krüll faz jus ao seu prenome. Pelo menos, é o que afirma e reafirma várias vezes. No entanto, quanto à troca de identidade não há dúvida:

“Não, a mudança e renovação do meu eu usado, despir o velho Adão e entrar num outro, era isso, na verdade, que me dava plenitude e felicidade. Percebi que a troca de existências não produz apenas uma deliciosa renovação, mas também certa obliteração, no sentido de que todas as recordações da minha vida anterior haviam sido exiladas de minha alma… Minhas recordações! Não era prejuízo nenhum já não terem de ser minhas”.

Já na adolescência, Felix gostava de se fantasiar (servia de modelo para o padrinho, o pintor Schimmelpreester) e detestava voltar ao ramerrão diário:

“Ah, eram horas maravilhosas! Mas quando, acabada a brincadeira, eu vestia novamente meus trajes cotidianos, insípidos e insignificantes, dominava-me uma incontrolável tristeza, uma nostalgia, uma sensação de tédio indescritível e infinito”.

Entre uma e outra citação há todo mundo de aventuras e incidentes engraçados. Confissões do impostor Felix Krüll é o que se chama de romance picaresco, isto é, mostra de forma antes cômica que séria como um personagem ascende na escala social. Nele, fica claro que, no fundo, Thomas Mann (que morreu um ano depois do lançamento do livro, em 1955, deixando o seu derradeiro romance incompleto) era tanto um anarquista quanto um humorista, apesar de ter mantido uma aparência de decoro burguês nas obras anteriores.

O livro permeou toda a sua carreira. Começou a ser escrito mais ou menos na época de Morte em Veneza (1912), teve uma parte publicada anos depois, em 1923, e segundo Nigel Hamilton (em Os irmãos Mann) quando o grande escritor alemão o retomou, no fim da vida, continuou a escrever de onde tinha parado no manuscrito, como se não tivesse havido nenhuma modificação interna ou estilística no intervalo (claro que isso não é possível, mas John Ford, o maior dos cineastas clássicos, já nos alertou numa de suas obras-primas derradeiras: quando a lenda é mais forte do que a verdade, imprima-se a lenda).

Resumindo ao extremo, o romance conta como, no final do século XIX, após a falência e suicídio do pai, a família de Felix se dispersa. Ele vai para Paris trabalhar como criado de hotel, além de aperfeiçoar sua arte como ladrão e trapaceiro. E um grande sedutor, pois é muito belo e a narrativa mostrará pretendentes femininos e masculinos ao seu corpo. Entre os freqüentadores habituais do hotel está o marquês de Venosta. Ele mantém uma ligação com uma atriz e os pais querem obrigá-lo a fazer uma viagem pelo mundo para afastá-lo dela. É ele quem propõe a Felix a troca de identidades já referida. Quando ela se efetiva, o primeiro passo do “marquês” é Lisboa (Mann, ao descrevê-la, parece ter misturado Portugal e Espanha, numa confusão geográfica que espanta seus críticos, em se pensando no seu meticuloso apego documental, mas ele parece ter se dado total liberdade de trabalhar num terreno quase onírico em algumas das suas obras finais). Lá, ele se envolve com a esposa e a filha de um eminente cientista, o professor Kuckuck, a quem ele conhecera no trem para a capital portuguesa (uma passagem que retoma o clima e o tom narrativo de A montanha mágica, tanto que, em alguns momentos, temos a impressão de que Felix se metamorfoseou não no marquês de Venosta, e sim em Hans Castorp, o herói daquele que é o meu livro predileto de Mann e de todos que já li). E é em Lisboa, mais exatamente nos braços da sra. Kuckuck, que a narrativa se interrompe…

Assim como em Retrato de uma senhora, de Henry James, esse desfecho truncado não chega a ser decepcionante. A história do simpático e sedutor trapaceiro tende ao infinito e provavelmente Mann (que tinha particular estima por ela) jamais a terminaria mesmo. Não deixa de ser pertinente que se interrompa justamente no momento em que a formidável matrona acolhe nos braços o jovem “marquês”, quando se pensa que o autor supremo para Mann era Goethe: Felix Krüll “termina” (uma palavra extremamente imprópria neste caso) sua história envolto pelo eterno feminino consagrado por Fausto, a suprema obra goethiana. De fato, a própria troca entre Krüll e Venosta é meio fáustica, enquanto que a “troca”, por assim dizer, entre Ripley e Dickie Greenleaf era mais dostoievskiana, carregada de crime e culpa.

Contudo, a grande arte, a suprema ironia de Confissões do impostor Felix Krüll está no exercício da narrativa em primeira pessoa. Em nenhum dos outros grandes romances de Mann o leitor encontrará a primeira pessoa.Que ele o faça numa narrativa em que justamente o narrador é um farsante, um trapaceiro, alguém que usurpa a identidade alheia e foge da sua própria, é a prova de um senso de humor superior, de alguém que sabia tudo sobre o ato de escrever ficção. Alguém que terminou sua obra assim como começou: como o maior de todos.

(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 27 de junho de 2000)

02/09/2012

CONTAMINAÇÕES, ARREMEDOS, PACTOS E PARÓDIAS: Um mundo terminal em “Doutor Fausto”, de Thomas Mann

 

t.mann

 

doutor fausto

Em O lobo da estepe (1927), de Hermann Hesse, pode-se ler o seguinte: “…essas fatais relações com a música eram o destino de toda a intelectualidade alemã (…) uma hegemonia da música, como não se conheceu em nenhum outro povo. Nós, os intelectuais, sonhamos  todos  com uma linguagem sem palavras, que possa exprimir o inexprimível, que possa representar o irrepresentável. Em vez de tocar seu instrumento da forma mais fiel e honesta possível, o intelectual alemão está sempre em luta com a palavra e fazendo a corte à música”.

Em Doutor Fausto (1947) talvez o maior entre os romances do século XX (junto com A montanha mágica), as palavras de Hesse citadas acima são lugubremente dramatizadas, tanto no que concerne a Adrian Leverkühn, o protagonista, um compositor que faz pacto com o Diabo para desenvolver a genialidade inata (e que sempre trilhou caminhos perigosos), quanto no que concerne à narrativa, que tenta se apropriar da linguagem musical de uma maneira quase asfixiante, tornando o livro uma experiência difícil, insuportável para muitos.

Para o jovem Adrian, antes do pacto, “a música é ambigüidade organizada como sistema. Para Serenus Zeitblom, o narrador (amigo do músico pactário desde a infância), “a música pertence a um mundo místico, por cuja fidedignidade incondicional em matéria de razão ou do valor humano eu não gostaria propriamente  de garantir”.

Zeitblom tenta manter a tocha do humanismo e da razão em meio ao mundo demoníaco criado pelo Nazismo. Escrevendo a biografia de Adrian, arrasta a narrativa para o universo da ambigüidade. Tudo é o que é. E mais alguma coisa, às vezes o seu contrário. A experiência do prazer sexual traz a doença mortal que levará à loucura e à morte (a “apropriação” da alma de Adrian começa quando contrai sífilis de uma prostituta). O vanguardismo musical (o estilo musical desenvolvido no livro é um espelho da técnica dodecafônica de Arnold Schönberg, que revolucionou a música clássica) mergulha no arcaico, no primitivo. O Diabo aparece como um rufião vulgar e discute como um teólogo.  O pacto é concretizado na Itália que foi berço do humanismo clássico e da Renascença. No plano mais corriqueiro, Adrian envia Rudi Schwerdtfeger, o qual foi seu amante, na missão de fazer a corte a uma mulher por ele.

E há a ambigüidade do próprio romance: ele é realmente uma narrativa na qual se conta uma história terrivelmente dramática, que pode ser uma alegoria da Alemanha desde as raízes luteranas presentes na mentalidade germânica até a loucura nazista, ápice de um processo inerente a essa mesma mentalidade, ou é uma vasta (para muitos, aborrecida, interminável) enciclopédia disfarçada, em que se discute teologia, ética, física, astronomia, biologia, sociologia, economia, teoria musical?

Desde o começo, Mann povoa seu texto com uma desconfortável atmosfera híbrida, com a discussão de certas formas intrigantes como as “flores criadas pelo gelo” e a flora de excrescências inorgânicas desenvolvidas pelo pai de Adrian, formas heliotrópicas que arremedam a vida orgânica. A impressão que se tem é que o restante da narrativa (das 700 páginas, com a tradução impecável de Herbert Caro) é o desdobramento dessas fantasmagorias que desafiam as fronteiras entre os reinos animal, vegetal e mineral. E essa mesma “contaminação” ou esse mesmo “simulacro” vão fornecer a base para um dos grandes temas de Doutor Fausto: o problema da paródia (pela qual Adrian demonstra predileção). A função da arte esgotou-se e ela, na era contemporânea, não é apenas(e isso nos melhores casos) recombinação paródica das formas passadas? A tragédia do pacto com o Diabo não se tornou uma espécie de melodrama? Curiosamente, o filho de Mann, Klaus, escreveu um romance que utilizou igualmente (e também foi igualmente traduzido pelo grande Caro) a aproximação paródico-alegórica com o Diabo e o advento do Nazismo: Mephisto, cuja famosa adaptação cinematográfica lamentavelmente deixava passa em branco na tela o tom de zombaria irônica do texto original, sucumbindo na “pesadez” solene e melodramática que muitos vêem no próprio texto de Mann, o pai. E realmente, Doutor Fausto também parece, a princípio, arrastar-se nessa mesma “pesadez”  solene-melodramática. É incrível como Mann vai libertando o romance dessa armadilha e deixando-o, senão leve (o que é impossível,com um tema desses), cada vez mais ágil, dinâmico, cheio de soluções surpreendentes (Clarissa e Inês, irmãs que são as personagens femininas mais importantes, realizam atos extremos: uma suicida-se; a outra assassina Rudi Schwerdtfeger). Artimanhas de mestre.

Agora: que ironia cruel a de Thomas Mann fazer com que a danação de Adrian e sua repercussão no círculo de relações dele espelhem episódios da biografia da sua própria família. Já acontecera tal espelhamento biográfico em Os Buddenbrooks, só que dessa vez ele foi além da narração da decadência: lançou-os –só com passagem de ida—no Inferno. Grande escritor (o maior), mas péssimo (por que não dizer perverso) parente. Não é à toa que o filho Klaus  tenha se suicidado.

(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 5 de setembro de 2000)

 

01/09/2012

Lolito ou Anjo da Morte?

(uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 01 de fevereiro de 2011)

“Veneza: É um lugar esplêndido, mas para morrer…”

(Virginia Woolf)

Já era tempo de Morte em Veneza ser publicado isoladamente. As edições brasileiras quase sempre o colocavam junto a outros textos menores, principalmente Tonio Kröger (muito bonito, mas aquém do alcance do companheiro), e afinal se trata da maior novela (aquela forma intermediária e imprecisa entre o conto e o romance) do século XX, junto com A metamorfose, de Kafka, esta sim sempre valorizada enquanto peça individual (o incrível é que elas foram escritas no mesmo ano, 1912).

Durante toda sua vida de escritor, Thomas Mann foi obcecado pela idéia da posição duvidosa do artista na sociedade, e a proximidade da criação artística com a doença (não é à toa que o gênio de Adrian Leverkühn, em Doutor Fausto, vem junto com a sífilis): um de seus personagens sente-se um “burguês que se extraviou na arte, um boêmio com saudades do bom berço, um artista de consciência pesada”.

Morte em Veneza dramatiza de forma lapidar essa dicotomia estranha entre ser “respeitável” e ser um “aventureiro da arte” que tanto atormentava o genial alemão: o escritor cinqüentão (no lindíssimo filme de Visconti, transformado em compositor) Gustav Aschenbach, de Munique, apesar do afinco maníaco com que se entrega ao ofício, sente-se morto por dentro. Resolve, então, sair de sua rotina disciplinada e estafante, indo para algum balneário no sul da Europa. Depois de sentir-se insatisfeito em outros lugares, opta  pela irresistível  Veneza, onde vai  impressionar-se  com a beleza de um adolescente polonês de 14 anos, Tadzio.

Apaixonado (não se alarmem, leitores que se chocam com a pedofilia, Tadzio é de boa família, não é nenhum garoto árabe do gênero que fez a felicidade de um André Gide; tudo será platônico, cosa mentale), começa a segui-lo por toda a parte, não se decidindo as ir embora da cidade, mesmo ao tomar conhecimento de que uma peste a assola. Após um passeio durante o qual perdeu de vista Tadzio, sentindo-se angustiado e esgotado fisicamente, come morangos (contaminados) para se refrescar e, pouco tempo depois, em plena praia, entra em agonia mortal…

Esqueça o pormenor (sim, é um pormenor) do homossexualismo, leitor, não é por aí, que se compreenderá Morte em Veneza, por mais que os departamentos gays da indústria cultural (com sua insistência nas “obras de gênero”) tentem hipertrofiar a questão, e mesmo que agora se trombeteie ter Mann—um senhor casado e que teve seis filhos—sentido atração por jardineiros, ascensoristas e mensageiros.  Mesmo assim, enquanto dono do seu imaginário artístico, para ele a beleza pessoal era mais importante do que a identidade de gênero. E depois, e sobretudo,  Tadzio, com sua beleza, exerce mais do que uma banal sedução erótica: mais que um “lolito”,  é o anjo da morte que conduz, no final da história, Aschenbach, aquele que trabalha incessantemente (e por isso não tem uma “vida”) para criar formas artísticas perfeitas e domesticar o caos, para o mar, o outro pólo poderoso da narrativa: “…amava o mar pela necessidade de repouso do artista exausto que, assediado pela multiformidade das aparências, anseia por abrigar-se no seio da simplicidade, da imensidão, e por um pendor proibido, diametralmente oposto à sua tarefa epor isso mesmo tentador, para o indiviso, o desmedido, o eterno, para o nada. Repousar na perfeição é o anseio nostálgico daquele que se esforça para alcançar a excelência; e o nada não é uma forma de perfeição?”

Assim, Aschenbach, que vagara por Veneza atordoado por Eros, não sabia que ele o estava conduzindo para o reino do nada. A beleza encarnada num corpo humano jovem serve como perverso portal para o reino onde não existem formas.

Derrota para Aschenbach, vitória absoluta para Thomas Mann, que, aos 37 anos, criou uma de suas obras-primas supremas, e a mais famosa hoje em dia. Mesmo quem não tem paciência de ler A montanha mágica ou Doutor Fausto se encanta com a precisão lapidar dessa dança da morte.

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