Quem leu Os Buddenbrooks, A montanha mágica, José & seus irmãos ou Doutor Fausto sabe como Thomas Mann seguiu à risca a fórmula famosa de Guimarães Rosa, “faça pirâmides, não faça biscoitos”. Mas de vez em quando ele se dedicava à confecção de saborosos biscoitos, como é o caso do “divertissement”, do “intermezzo” (para usar suas próprias palavras) As cabeças trocadas (1940). Inspirado pelo orientalista Heinrich Zimmer (a dedicatória a ele sumiu inexplicavelmente na edição da Nova Fronteira), utiliza a Índia como cenário de uma fábula sobre a identidade, a partir de um triângulo amoroso.
Shridaman e Nanda são dois jovens amigos que apresentam características opostas: Shridaman é o brâmane espiritualizado e pouco atlético; Nanda é o belo trabalhador braça terra a terra. Shridaman apaixona-se por Sita, mas quem faz a corte por ele é Nanda. Ora, como Sita não conhece o futuro marido, a imagem que ela tem como referência é a de Nanda. Consumado o casamento, apesar do carinho e respeito que tem por Shridaman, é Nanda quem ela deseja, com quem sonha e fantasia.
Durante uma viagem a três, Shridaman, angustiado por causa da situação, se autodecapita no templo da deusa Kali. Desesperado ao ver a cena, Nanda segue o exemplo. Kali se compadece (ironicamente, é verdade) da situação de Sita e resolve ressuscitar os dois autodegoladores, desde que ela reponha as cabeças nos devidos corpos. Sita, porém, sem querer (ou querendo?) troca as cabeças. Assim, a espiritualizada cabeça de Shridaman ocupa o belo corpo de Nanda e vice-versa. Surge o dilema: quem é o verdadeiro esposo de Sita? Ela está grávida. Quem a engravidou? A cabeça ou o corpo? A personalidade ou o físico?
Com essa complicada e grotesca situação, Mann constrói um dos seus textos mais leves, já exercitando brincadeiras com a expectativa do leitor, que mais tarde seriam utilizadas com perícia ainda maior no genial O Eleito (1951), uma de suas obras-primas.
Há um verso de Petrificada petrificante, de Octavio Paz, que eu adoro, e que resume bem a essência do dilema Shridaman-Sita-Nanda: “A idéia fixa se embebeda do oposto”. O que impede o trio de encontrar uma solução é a insatisfação com o Mesmo e a eterna atração pelo Outro. Pois mesmo trocando as cabeças, as personalidades de Shridaman e Nanda se impõem aos corpo se operam uma gradativa modificação. Com o corpo do Outro sob a cabeça, ambos se tornam o Mesmo novamente:
“O corpo de Nanda, encimado pela veneranda cabeça do esposo, tornou-se na verdade outro, independente de qualquer maya, por assumir, sob a influência da cabeça e das leis da mesma, peculiaridades do cônjuge (…) Não era, portanto, de admirar, por mais milagrosa que nossa história possa parecer, que os braços de Nanda perdessem em breve muito do seu vigore definhassem lentamente, ao passo que o peito, estreitando-se, ficava menos rijo e na barriguinha depositava-se novamente alguma gordura. Em suma: o corpo de Shridaman assemelhava-se cada vez mais ao que tinha sido o do esposo… Somando tudo, o exuberante corpo do amigo, que na sua condição anterior fora o essencial, convertia-se num mero anexo, em mero acessório de uma cabeça, a cujos generosos impulsos bem cedo já não queria nem podia corresponder com a mesma perfeição paradisíaca, até que, por fim, apenas a secundava com certo enfado”.
Como se pode ver, mesmo num texto “menor”,Mann demonstra o mesmo virtuosismo que o tornou o mestre dos narradores de ficção, além de manifestar sua obsessão pelo problema da beleza, quer tenha a Índia como cenário ou Veneza. Herbert Caro, o excelente tradutor de tantos dos seus textos, dessa vez perde, se é que se pode falar assim, em termos de resultado final, para uma esplêndida tradução publicada na década de 40 pela antiga Globo e realizada pela dupla Liane de Oliveira & E. Carrera Guerra.
No mais, há entre os diálogos de As cabeças trocadas uma fala de Shridaman que “trai”, por assim dizer, a seriedade que se esconde nas “brincadeiras” de Mann sobre a identidade: “…além da verdade e do conhecimento racionais, existe a intuição do coração humano, que sabe ler a escrita dos fenômenos não apenas no seu sentido primário e simplista, mas também no sentido secundário e mais elevado, deles se servindo para atingira contemplação do puro e espiritual.. É dado e concedido aos homens se servirem da realidade para vislumbrar a verdade. A linguagem forjou a palavra poesia para nomear essa dádiva”.
(resenha originalmente publicada em A TRIBUNA de Santos, em 12 de setembro de 2000)