MONTE DE LEITURAS: blog do Alfredo Monte

31/08/2012

O VÉU DE MAYA ou A ideia fixa se embebeda do oposto

Quem leu Os Buddenbrooks, A montanha mágica, José & seus irmãos  ou Doutor Fausto sabe como Thomas Mann seguiu à risca  a fórmula famosa de Guimarães Rosa, “faça pirâmides, não faça biscoitos”. Mas de vez em quando ele se dedicava à confecção de saborosos biscoitos, como é  o caso do “divertissement”, do “intermezzo” (para usar suas próprias palavras) As cabeças trocadas (1940). Inspirado pelo orientalista  Heinrich Zimmer (a dedicatória a ele sumiu inexplicavelmente na edição da Nova Fronteira), utiliza a Índia como cenário de uma fábula sobre a identidade, a partir de um triângulo amoroso.

Shridaman e Nanda são dois jovens amigos que apresentam características opostas:  Shridaman é o brâmane espiritualizado e pouco atlético; Nanda é o belo trabalhador braça terra a terra. Shridaman apaixona-se por Sita, mas quem faz a corte por ele é Nanda. Ora, como Sita não conhece o futuro marido, a imagem que ela tem como referência é a de Nanda. Consumado o casamento, apesar do carinho e respeito que tem por Shridaman, é Nanda quem ela deseja, com quem sonha e fantasia.

Durante uma viagem a três,  Shridaman, angustiado por causa da situação, se autodecapita no templo da deusa Kali. Desesperado ao ver a cena, Nanda segue o exemplo. Kali se compadece (ironicamente, é verdade) da situação de Sita e resolve ressuscitar  os dois autodegoladores, desde que ela reponha as cabeças nos devidos corpos. Sita, porém,  sem querer (ou querendo?) troca as cabeças. Assim, a espiritualizada cabeça de Shridaman ocupa o belo corpo de Nanda e vice-versa. Surge o dilema: quem é o verdadeiro esposo de Sita? Ela está grávida. Quem a engravidou? A cabeça ou o corpo? A personalidade ou o físico?

Com essa complicada e grotesca situação, Mann constrói um dos seus textos mais leves, já exercitando brincadeiras com a expectativa do leitor, que mais tarde seriam utilizadas com perícia ainda maior no genial O Eleito (1951), uma de suas obras-primas.

Há um verso de Petrificada petrificante, de Octavio Paz, que eu adoro, e que resume bem a essência do dilema Shridaman-Sita-Nanda: “A idéia fixa se embebeda do oposto”. O que impede o trio de encontrar uma solução é a insatisfação com o Mesmo e a eterna atração pelo Outro. Pois mesmo trocando as cabeças, as personalidades de Shridaman e Nanda se impõem aos corpo se operam uma gradativa modificação. Com o corpo do Outro sob a cabeça, ambos se tornam o Mesmo novamente:

“O corpo de Nanda, encimado pela veneranda cabeça do esposo, tornou-se na verdade outro, independente de qualquer maya, por assumir, sob a influência da cabeça e das leis da mesma, peculiaridades do cônjuge (…) Não era, portanto, de admirar, por mais milagrosa que nossa história possa parecer, que os braços de Nanda perdessem em breve muito do seu vigore definhassem lentamente, ao passo que o peito, estreitando-se, ficava menos rijo e na barriguinha depositava-se novamente alguma gordura. Em suma: o corpo de Shridaman assemelhava-se cada vez mais ao que tinha sido o do esposo… Somando tudo, o exuberante corpo do amigo, que na sua condição anterior fora o essencial, convertia-se num mero anexo, em mero acessório de uma cabeça, a cujos generosos impulsos bem cedo já não queria nem podia corresponder com a mesma perfeição paradisíaca, até que, por fim, apenas a secundava com certo enfado”.

Como se pode ver, mesmo num texto “menor”,Mann demonstra o mesmo virtuosismo que o tornou o mestre dos narradores de ficção, além de manifestar sua obsessão pelo problema da beleza, quer tenha a Índia como cenário ou Veneza. Herbert Caro, o excelente tradutor de tantos dos seus textos, dessa vez perde, se é que se pode falar assim, em termos de resultado final, para uma esplêndida tradução publicada na década de 40 pela antiga Globo e realizada pela dupla Liane de Oliveira & E. Carrera Guerra.

No mais, há entre os diálogos de As cabeças trocadas  uma fala de Shridaman que “trai”, por assim dizer, a seriedade que se esconde nas “brincadeiras” de Mann sobre a identidade: …além da verdade e do conhecimento racionais, existe a intuição do coração humano, que sabe ler a escrita dos fenômenos não apenas no seu sentido primário e simplista, mas também no sentido secundário e mais elevado, deles se servindo para atingira contemplação do puro e espiritual.. É dado e concedido aos homens se servirem da realidade para vislumbrar a verdade. A linguagem forjou a palavra poesia para nomear essa dádiva”.

(resenha originalmente publicada em A TRIBUNA de Santos,  em 12 de setembro de 2000)

O VÉU DE MAYA ou Por que Thomas Buddenbrook é meu personagem favorito

Desde o século XIX, proliferaram na ficção realista as histórias de famílias (na língua portuguesa, certamente nenhuma supera Os Maias, de Eça de Queirós). Qual seria a mais paradigmática? Provavelmente Os Buddenbrooks (1901), de Thomas Mann, no início do qual uma reunião festiva comemora a inauguração da grande mansão onde a família residirá. É um início sumamente irônico, pois marca um “auge da família e da firma Buddenbrook e o que vem a seguir será a precária tentativa de conservá-las nesse “auge.

Às vezes, haverá a ilusão de que o impulso comercial e familiar que marcou esse momento será até superado É o que ocorre quando Thomas Buddenbrook, neto do chefe da família, assume a firma. Mas o subtítulo é implacável na sua exatidão: Decadência de uma família Logo Thomas perderá a energia que o impulsionava a passar por cima dos elementos “desonrosos” (o comportamento bizarro do irmão, Christian; os infelizes, quase burlescos, casamentos da irmã, Antonie, e da filha desta, Erika)  para manter os Buddenbrooks no topo da vida social e comercial de Lübeck, embora a própria cidade (um importante porto outrora) já esteja decadente.

Thomas também contribui para que a solidez se desmanche: apaixona-se e casa-se com a exótica Gerda (um casamento dos mais estranhos, diga-se de passagem, e que configura um dos enigmas do livro), cuja paixão pela música a torna indiferente aos empreendimentos do marido. Essa paixão é herdada pelo único filho do casal, Hanno,que supostamente deveria continuar a obra do pai.

Não é o que acontecerá, porém. Nesse sentido, há, em Os Buddenbrooks, uma das cenas mais extraordinárias e arrepiantes  da literatura: como se viu, Thomas é obcecado em continuar a obra e a tradição de seus antepassados. Um símbolo dessa continuidade é a Bíblia na qual são anotados todos os acontecimentos relevantes da família. Um dia, Hanno, ainda criança, vê a Bíblia onde está registrado seu nascimento e faz com uma pena de ouro uma bela e limpa linha dupla através da folha inteira. Interpelado pelo pai, furioso por causa de tal gesto, Hanno responde: “Eu pensava… pensava… que não vinha mais nada. Temos, então, de forma aparentemente inocente, a negação do sentimento de sucessão, de continuidade, de uma geração passando a tocha para a seguinte.

Thomas Buddenbrook é o centro do romance. Para ser franco, é o meu personagem favorito na literatura inteira. Consegue esse feito incrível: fazer com que nos interessemos pelo destino de uma firma burguesa da Alemanha oitocentista e por uma personalidade “careta”, ferrenhamente ligada aos valores mais reacionários e conservadores que possamos imaginar.

Thomas é um personagem tão forte que não é de admirar que o interesse de Os Buddenbrooks decaia bastante após a sua morte prematura(tem-se ainda sessenta páginas onde Hanno ocupará o centro da narrativa até que ele mesmo morra). Thomas (o autor, não o personagem) escreveu muitos textos insuperáveis após essa sua obra-prima publicada aos 25 anos (ele morreu com 80). Todavia, nunca mais criou personagens tão memoráveis, embora tenha chegado perto, quanto Thomas Buddenbrook e sua irmã Antonie (também muito citada, e é uma das marcas da decadência,como senhora Permaneder, durante a narrativa). Mesmo quando lembramos de Hans Castorp, Settembrini, Mynherr Peepkorn (A montanha mágica), a senhora “conselheira” Kestner (Carlota em Weimar), Jacó e José (José e seus irmãos)ou Felix Krüll (As confissões do impostor Felix Krüll), não encontramos quem supere os inesquecíveis irmãos Buddenbrooks.

Para se ver como Thomas (o personagem, não o autor) vive intensamente na memória do leitor, basta citar as seguintes palavras de Marguerite Yourcenar: “…eu não penso nunca sem ficar emocionada em Thomas Buddenbrook, depois de uma vida convencional e desencorajada, descobrindo ao mesmo tempo em Schopenhauer o sentido do desespero e, talvez, a paz mais elevada”. A autora de Memórias de Adriano, a qual escreveu um magnífico e fundamental ensaio sobre Mann (Humanismo e Hermetismo em Thomas Mann, em Notas à margem do tempo), refere-se à leitura que Thomas  (o personagem, não o autor), pouco antes de  morrer, faz de O mundo como vontade e representação, de Schopenhauer, o embasamento filosófico de Os Buddenbrooks. A leitura desse livro foi decisiva também para o jovem Thomas (o autor, não o personagem). Ele mesmo o afirmou: Só se lê assim uma vez na vida, nunca mais acontece de novo”.

É a filosofia de Schopenhauer que dá ao romance sua atmosfera de maya, o conceito budista  de que tudo é ilusório, mesmo o que parece mais sólido. E mais ainda, que tudo é impermanente, nada pode permanecer o mesmo sob pena de estagnar e morrer de uma forma pior que a morte. Justamente por tentar manter a representatividade de sua família, como um ator leva até o fim uma peça falhada no palco, é que Thomas prefigura um dos grandes males do século XX e do nosso: o estresse, aquele eterno cansaço, a sensação de se carregar um peso nas costas, de que a energia vital está sempre para falhar:

“..sentia-se vazio; não via nenhum plano animador, num trabalho interessante a que se pudesse entregar com prazer e satisfação. O seu impulso trabalhador, a incapacidade da sua cabeça para descansar, a sua atividade, que sempre diferia fundamentalmente da vontade de trabalho natural e durável dos seus antepassados, sendo coisa artificial, válvula dos seus nervos… todas essas coisas haviam recrudescido, tornando-se suplício e desperdiçando-se numa porção de ninharias (…) Faltava-lhe por completo um interesse sincero e fervoroso que o ocupasse; na sua alma reinava empobrecimento e ermo –ermo tão forte que, quase sem cessar, pesava sobre ele uma mágoa indeterminada; ligavam-se a isso, de modo inexorável, a obrigação íntima e a decisão tenaz de exibir-se as aparências.Este esforço ininterrupto conduzira-lhe a existência àquele ponto em que ela se tornava artificial, consciente e constrangida, fazendo com que, na presença de outras pessoas, cada palavra, cada gesto, a mais insignificante ação chegasse a ser um trabalho de ator, penoso e exaustivo”.

Não há possibilidade de comentar todos os aspectos importantes desse romance formidável (e formidavelmente traduzido por Herbert Caro) de 800 páginas. Ficam apenas indicações: a insuperável percepção do jovem Mann do processo de envelhecimento, entre melancólico e cômico, de toda uma geração, que vai sendo substituída, aos poucos, por outra, que certamente nenhum romance mostrou tão bem; e também o humor típico do maior dos autores já exercita-se brilhantemente nessa sua primeira obra (por isso, a senhora Permaneder é tão memorável).

No mais, só se pode apelar para o repisado clichê: se não tivesse escrito mais nada, só com Os Buddenbrooks o grande escritor alemão já seria indispensável.  Considerando-se o que veio depois, é o maior elogio que ainda se pode fazer.

(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 29 de agosto de 2000)

29/08/2012

A IMPREGNAÇÃO DAS COISAS: a ficção de Osman Lins

I

(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 16 de setembro de 2003)

Boa parte do público que está fazendo de Lisbela e o prisioneiro talvez não saiba que se trata de uma peça com mais de 40 anos, que foi montada no início dos anos 1960 pela Companhia de Tônia Carreiro (e cuja publicação ocorreu originalmente em 1964). Mais ainda: Osman Lins, seu autor, faleceu há um quarto de século, após ter escrito alguns dos melhores textos da nossa literatura: os romances O fiel e a pedra, Avalovara e especialmente A rainha dos cárceres da Grécia; textos curtos como  os de Nove Novena, além de A ilha no espaço.

Talvez seja para marcar a data que está sendo lançada a antologia Os melhores contos de Osman Lins, com um preço superestimado com relação ao seu número de páginas (os textos escolhidos vão da página 31 à página 199!): 32 reais!!!???

Para dizer a verdade, a seleção feita por Sandra Nitrini é uma das mais fracas e discutíveis da já tradicional série da Global, pois ela se limitou tão somente às duas únicas coletâneas que o  grande escritor pernambucano publicou: Os gestos (de 1957, atualmente em editada pela Moderna) e Nove Novena (de 1966, agora no catálogo da Companhia das Letras).

Realmente temos que concordar que, entre os 13 textos da primeira e os 9 da segunda, era difícil fazer uma seleção, pois todos são praticamente impecáveis. Se ela escolheu seis de cada uma e poderia ter escolhido outros, é uma questão de preferência. Mas por que não se ampliou o leque, pensando-se na significação que isso teria na recepção atual da sua obra, e foram incluídos textos de acesso mais difícil, como o caso de Missa do Galo, no qual ele reescreveu o célebre e extraordinário conto de Machado de Assis; ou ainda seu derradeiro texto, ainda inédito em livro (só saiu na revista de literatura “Travessia” da Universidade Federal de Santa Catarina, salvo engano), Domingo de Páscoa?

Grave, também, é a não-inclusão de A ilha no espaço (também editado pela Moderna). Atento aos rumos da indústria cultural, Osman Lins aproveitou-se da brecha que havia na programação da Globo nos anos 1970, os famosos Casos Especiais, para ampliar seu público. Dos três que escreveu (os outros foram publicados na sua forma de roteiro: Marcha Fúnebre & Quem era Shirley Temple?), o melhor, o mais intrigante, baseava-se num texto antigo, também dos anos 1960, A ilha no espaço, que ele reescrevera várias vezes e que me parece crucial para a compreensão das preocupações da sua obra.

Apesar desses percalços, o que está em Melhores Contos é da mais alta qualidade. Não se espere, porém, algo leve e divertido feito Lisbela e o prisioneiro. Os brevíssimos e perfeitos (de uma perfeição quase gélida) contos de Os gestos são todos calcados em experiências de incomunicabilidade e frustração, desde o velho que está na cama, incapaz de falar, tendo que se contentar com migalhas sensoriais e com reminiscências (o conto-título) até o velho que conversa com o corpo da esposa que morreu e que já pressente a própria morte em vida, sendo isolado e infantilizado pelos parentes que lhe restam (Elegíada), passando por esposas incompreendidas e reprimidas (Cadeira de balanço & O vitral), e jovens sufocados pelo mundo provinciano (A partida).

Tudo permeado pelo patriarcalismo do Nordeste. Pois é incrível como um escritor tão experimental quanto Osman Lins (ainda nem tanto a essa altura) deixa penetrar a realidade brutal do mundo patriarcal, de uma forma tão poderosa quanto a que se vê em Lavoura arcaica, de Raduan Nassar, ou na recente adaptação de Walter Salles Jr. para Abril despedaçado.

Se o padre de Retábulo de Santa Joana Carolina quer se proteger da “impregnação das coisas”, o maravilhoso autor de A rainha dos cárceres da Grécia faz justamente o contrário. Embora os textos de Os Gestos nos passem uma sensação paralisante de inutilidade, da gratuidade do viver, como constata a esposa de Vitral, que deseja um retrato que imortalize o momento. Seu marido replica: “Não é possível guardar a mínima alegria. Em coisa alguma. Nenhum vitral retém a claridade”. Ela agarra o braço dele “a sentir que um júbilo quase angustioso jorrava de seu íntimo. Compreendeu que tudo aquilo era inapreensível: enganara-se ou subestimara o instante ao julgar que poderia guardá-lo. Que este instante me possua, me ilumina e desapareça, pensava. Eu o vivi. Eu o estou vivendo. Sentia que a luz do sol a trespassava, como a um vitral”.

II

(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 30 de setembro de 2003)

A Global lançou OS MELHORES CONTOS DE OSMAN LINS, seleção que reúne narrativas de dois livros, Os gestos (1957) e Nove Novena (1966).

Na seção passada, comentei os contos selecionados do primeiro, faltando os seis do segundo. E embora tenha criticado a seleção feita por Sandra Nitrini, por causa de certas omissões, é uma questão de justiça salientar que a disposição dada aos textos de Nove Novena (diferente da do livro) ajuda o leitor a perceber a crescente complexidade da proposta ficcional do grande escritor pernambucano, morto tão prematuramente.

O primeiro selecionado, Os confundidos (um pouco inferior a outros, excluídos, como O ponto no círculo ou Achados e perdidos), por exemplo, mostra a questão da incomunicabilidade entre casais—um dos temas dominantes em Os gestos—de uma forma inovadora, ainda que seja o mais “fácil” dos textos de Nove Novena: um casal discute seus problemas num diálogo aparentemente simples, mas no qual as vozes acabam por se confundir, como nota muito bem a organizadora na sua introdução: há “alternância entre oito segmentos de diálogos e sete trechos descritivo-narrativos, expondo a organização geométrica e equilibrada do texto. Esse aspecto fica mais evidente, quando se percebe o jogo entre a transparência do discurso do diálogo e o registro inusitado das marcações teatrais, que oscila entre os polos da definição e indefinição”. O texto não permite muitas vezes saber quem faz uma ação: “Um de nós levantou-se, ou irá ainda levantar-se, entreabrir a cortina, olhar a noite”.

A cada texto selecionado, a experimentação se radicaliza: em Conto barroco, há três possibilidades narrativas para a situação do  matador que vem executar um “serviço” e se envolve com a amante do homem que deve executar, uma das quais mostra como ela acaba sendo a vítima; em O pássaro transparente, a alternância entre a primeira e a terceira pessoa compõe uma trajetória de frustração do protagonista, que assume o destino do pai como patriarca da família, quando imaginava que seria aquele que romperia o círculo (ironicamente, quem faz isso é a sua amada da juventude, ao se tornar uma artista, que pinta justamente o quadro que dá título à narrativa).

Nos 20 fragmentos de Pastoral, o narrador, Baltasar, mostra sua condição de pária no sítio do pai até mostrar sua própria morte (e o seu velório: “estirado na mesa, sem velas, dedos cruzados, a pele de raposa cobrindo-me as virilhas. Sentados e mudos, nos lugares de sempre, meu pai, Joaquim e meus irmãos, rodeiam-me… Talvez com remorso, talvez com alívio, pois nunca mais verá este seu filho, que em nada se parece com ele e que, todos os dias, fazia-o recordar a mulher que foi capaz de deixá-lo, meu pai contempla-me”), ao tentar impedir que sua égua acasale com um garanhão, numa tentativa patética de negar o atavismo reiterado pelo universo patriarcal.

Mas os grandes destaques de MELHORES CONTOS  são os dois textos desafiadores, onde as personagens ganham símbolos identificadores, ao invés de nomes, para marcar sua intervenção: Pentágono de Hahn & Retábulo de Santa Joana Carolina. No primeiro, uma elefanta de circo (a Hahn do título) serve de convergência para cinco personagens, os quais representam fases diferentes da existência. E no segundo, quase que unanimamente considerado o mais perfeito entre os textos de Osman Lins (e olha que ele escreveu depois os belíssimos Avalovara * A rainha dos cárceres da Grécia), o leitor descobre o que é, de fato, a morte e vida Severina na trajetória da professorinha primária viúva que tenta sobreviver com seus diversos filhos em meio à miséria nordestina,e nessa luta inglória toca a transcendência e a santida, em meio à “impregnação das coisas”.

Joana Carolina diz, no oitavo “mistério” (entre os 12 que compõem a narrativa), que é uma lei sua “agir sempre como se o impossível não fosse”. Ao que parece, era o lei de Osman Lins como escritor.

O PACTO FICCIONAL ENTRE AUTOR E LEITOR

(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 25 de fevereiro de 2006)

Todos têm seus bordões, e nesse ponto não sou diferente de ninguém, também tenho os meus e um dos que mais gosto de repetir é tirado de um pedaço de frase do admirável A Rainha dos Cárceres da Grécia (1976), última obra de Osman Lins, que agora, 30 anos depois, recebe nova edição: “romance, mundo imerso no mundo”. Em Áporo, de Carlos Drummond de Andrade, lemos: “Um inseto cava / cava sem alarme / perfurando a terra / sem achar escape // Que fazer, exausto, / em país bloqueado / enlace de noite / raiz e minério ? // Eis que o labirinto / (oh razão mistério) / presto se desata: // em verde, sozinha, / antieuclidiana, / uma orquídea forma-se.” Num país bloqueado (estamos nos anos “barra pesada” da ditadura militar), o narrador refugia-se num diário no qual procura analisar o romance inédito A rainha dos cárceres da Grécia, deixado pela sua falecida amante, Julia Enone, a respeito de uma “irmã em destino” da Macabéa de A hora da estrela (1977), de Clarice Lispector, também nordestina e miserável, chamada Maria de França, a qual passa anos da sua vida pleiteando um benefício do antigo INPS, em vão, não conseguindo romper a temível malha burocrática, mesmo porque não tem instrução ou equilíbrio psicológico (passa por períodos de loucura e internação): “Fazem-lhe, ainda na Riachuelo, nova sugestão: recorrer à Assistência Judiciária, antes obtendo atestado de pobreza. Ela ouve o conselho, desce as escadas, as escadas sujas, repetindo-o. Ao chegar embaixo, já se esqueceu de tudo.”

Tanto quanto o jogo metalingüístico fascinante (que faz de Osman Lins um irmão de Nabokov e Paul Auster), A rainha dos cárceres da Grécia impressiona por sua dimensão política, apesar da sombria constatação do seu protagonista: “Assim, coincide melhor com as linhas gerais do romance outra visão –mais chã—do isolamento do escritor, não voltada para ele, e sim para a sociedade, que o recusa.”

     Inseto cavando sem alarme, perfurando a terra, escavando na obra de Julia Enone, sua orquídea antieuclidiana para desatar o labirinto (mito arquitetônico que foi um dos vários legados da civilização grega), o narrador comenta e transcreve notícias de jornal, nunca se referindo diretamente ao regime militar. Nenhuma obra dos anos 70, entretanto, captou tão poderosamente o clima opressivo da época e a degradação da informação enquanto valor na nossa sociedade, pois a maioria dos ficcionistas optou pela simplificação do “romance-reportagem” (Infância dos mortos, O crime antes da festa, Lúcio Flávio, Acusado de homicídio, alguém lembra desses títulos ?), onde, na tentativa de driblar a censura e oferecer um “retrato” da realidade nacional, o supostamente factual e referencial sufocava a narração e acabava-se reconfortando o leitor, mais do que o levando a uma atitude crítica, ao perseguir uma impressão de veracidade absoluta.

Flora Süssekind radiografou muito bem essa perspectiva naturalista e redutora no seu memorável estudo Tal Brasil, qual romance? Ora, ao eleger a distorção dos fatos, até do espaço narrativo (Julia Enone funde Recife e Olinda como se fossem uma cidade só), o narrador de A rainha dos cárceres da Grécia dinamita essa mentira referencial, do que é “baseado na vida real”, e firma com o leitor um pacto ficcional, em que se finge a dor que deveras se sente. Ao descascar camadas e camadas de artifícios narrativos, ele nos transmite muito mais realidade ( transbordante, simbólica, delirante que seja) do que qualquer medíocre relato de casos da época. É o triunfo do romance, mundo imerso no mundo, e, em última instância, da verdadeira literatura, sobre a reportagem que se disfarça (mal) de ficção.

25/08/2012

A gramática da dor

A poucos meses de completarem 40 anos de casamento, Joan Didion perdeu subitamente seu marido, John Gregory Dunne (autor do belo Confissões verdadeiras, cuja adaptação cinematográfica proporcionou a Robert de Niro um dos seus desempenhos mais inesquecíveis), na véspera do reveillon de 2004. Já na época do natal, eles estavam com a filha, Quintana, em coma induzido devido a um choque séptico.

O quadro clínico de Quintana irá se agravar ainda por meses após a morte do pai com sérios problemas neurológicos. Um ano de pesadelo, portanto. E por isso pareceria, de saída, ostensivamente irônico o título que a grande escritora norte-americana deu ao livro em que narra toda essa experiência com a perda: O ano do pensamento mágico. Seria mais justo dizer “dolorosamente irônico” porque no fundo, lá no fundo, irracionalmente, ela ainda não acreditava na morte do marido e esperava que o devolvessem, como prova um trecho em que  está separando as roupas dele para doação: Num outro dia, algumas semanas depois, peguei mais sacolas vazias e fui até o escritório do John, onde ele guardava suas roupas. Ainda não me sentia preparada para encarar os ternos, as camisas e as jaquetas, mas achei que poderia dar uma olhada no que restava dos sapatos… Parei na porta do escritório. Eu não podia doar o resto dos sapatos dele. Fiquei ali parada por um momento, e depois compreendi porquê: se ele fosse voltar, precisaria dos sapatos. Ter consciência desse pensamento não o afastou de modo nenhum.

O ano do pensamento mágico é mais do que o relato dessas vivências muito particulares, embora funcione como  o livro de memórias que Joan Didion talvez nuca escrevesse, e feito do seu modo peculiar, por flashes associativos e frases-refrão, típicos do jeito de narrar (ela é a autora do apaixonante Democracia, que tem a minha personagem feminina favorita  em toda a ficção norte-americana: Inez Christian Victor, a mulher que percebe que ninguém está isento do movimento geral”). Nesse jogo da memória evitada (porque causa dor) e constantemente acionada (porque 40 anos em comum não propiciam muitos desvios mentais), há a visão de uma vida não-planejada, de algo que foi dando certo pelo improviso constante, principalmente para quem –segundo ela mesma—tinha problemas em pensar em mim mesmo como esposa… o conceito de esposa não deveria ter sido difícil para mim, mas foi, apesar de, numa surpreendente afinidade com Clarice Lispector, dar grande valor aos rituais da vida doméstica: Aquilo parecia ter funcionado. Mais adiante: “De algum modo tudo funcionou. Por que achei que essa improvisação nunca fosse acabar? Se eu tivesse percebido que podia terminar, o que teria feito de diferente?”

Isso nos leva ao mais terrível do livro: planejada ou improvisada, a vida que construímos mostra a mesma precariedade tanto diante da morte inelutável (como no caso de John) quanto na experiência degradante que ganha o eufemismo de “tratamento médico” (o caso de Quintana). Ela mesma premonitoriamente já escrevera, vinte anos antes, páginas fantásticas com Inez à volta com hospitais e médicos, em Democracia.

Algumas histórias desvelam essa luta inglória para continuar humano num universo mais inóspito e desumano que qualquer outro: o universo da medicina moderna. É o caso de filmes como Wit, de Mike Nichols, com Emma Thompson, ou do ainda mais notável O óleo de Lorenzo. É o caso da internação e tratamento de Quintana, tal como vividos por sua mãe que, de certa forma comovente e ingênua, ainda tem a pretensão de obter algum controle sobre os fatos, mergulhando na literatura médica a respeito, pois aprendeu, em sua formação intelectual: Leia, aprenda, trabalhe em cima da coisa, consulte a literatura específica. Como se houvesse literatura específica para a dor, o medo e a mortalidade. O resultado de tal ‘pesquisa’ é resumido de uma forma brilhante e desalentada: quando comecei a ler [o Clinical Neuranatomy] só conseguia pensar numa viagem que fiz à Indonésia em que fiquei desorientada pela minha incapacidade de captar a gramática do bahasa indonésico, a língua oficial  usada na sinalização urbana, nas lojas e nos cartazes.”

Em tempo: afirmou-se mais atrás que O ano do pensamento mágico funcionava como livro de memórias. Também funciona para ilustrar os erros da memória: tudo o que Joan Didion afirma e cita com respeito a Hans Castorp, herói de A montanha mágica, é na verdade referente ao pai dele.

(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em  em 22 de julho de 2006)

Vislumbres do movimento geral: a poética do desfocamento de Joan Didion

(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 27 de julho de 1999).

Em Democracia, um dos romances que eu mais aprecio, pode ser lida a seguinte frase: “Não havia razão para qualquer um ficar isento do movimento geral”. Este, poderia ser, ao que parece, o lema nos livros de Joan Didion, como o leitor pode conferir em A ÚLTIMA COISA QUE ELE QUERIA (The lost thing he wanted, 1996, em tradução de Carlos Eduardo Matos para a Record),já de saída uma das traduções importantes de1999.

A princípio implica-se um pouco com A última coisa que ele queria porque parece uma reedição de temas e ritmos narrativos de Democracia: uma mulher norte-americana é colocada numa situação em que perde todos os seus referenciais (ou seja, é arrebatada pelo movimento geral), e que se envolve com um sujeito que atua “por debaixo dos panos” na estratégia política dos EUA, daquele tipo que fornece, como a autora diz: “vislumbres colaterais das longínquas fronteiras da Doutrina Monroe” (leia-se “imperialismo norte-americano”).

Mas atacar o livro por esse ângulo é mais do que inapropriado, é inaproveitável: é o mesmo que dizer que Fellini se repetia na maioria dos seus filmes, ou que Scorsese ao filmar Cassino reeditou Os bons companheiros. Bobagem. Obsessões criativas não criam repetição, criam jogos de espelhos, criam reverberações novas onde parecia que nada mais iria acontecer.

Em A última coisa que ele queria a protagonista que “perde todos os seus referenciais”, que perde sua isenção no movimento geral, é Elena McMahon, que, ao fazer uma visita ao pai, descobre que ele está muito doente e que iria fazer uma grande negociação com armas (na verdade, seria enganado e serviria como bode expiatório de um atentado) para a América Central (é a época do auge do governo sandinista). Ele, então, pede à filha que faça a transação por ele (tornando-a, sem querer, o novo “pato” da trama).

O homem com quem ela se envolve, aquele que mexe os pauzinhos “por debaixo dos panos” é Treat Morrison, que é, afinal, o alvo do atentado.

Como no outro romance, Didion aparece como a narradora que não quer seguir as regras do jogo, que “perdeu a paciência com as convenções do ofício”, que não aceita mais contar uma história. Ela, portanto, a monta, desmonta, contrai e estica, através de frases e imagens que vão e voltam incessantemente, de uma forma que nos remonta ao noveau roman francês, naquele tipo de ficção experimentada por Alain Robbe-Grillet ou Marguerite Duras (embora sejam escritores bem diferentes), uma experimentação formal que muitas vezes tinha um conteúdo bem politizado, como é o caso do próprio Robbe-Grillet e especialmente de Claude Ollier, veja-se, por exemplo, A encenação.

Mas é bem possível que a técnica narrativa de Joan Didion e de seus maravilhosos romances nada deva a esses talentosos experimentadores franceses. A impressão que fica é que ela optou por narrar dessa forma porque os fatos políticos que acontecem em seus livros geram tantas controvérsias, inverdades, “versões” oficiais, que acabam gerando uma necessidade de contá-los levando em conta essas distorções da realidade.

O leitor, ao longo de A última coisa que ele queria, vê dispostas numa mesa várias fotos desfocadas. O trabalho da narradora não foi tanto o de torná-las mais nítidas, contudo (e isso sim é muito mais instigante), quanto de fazer o leitor pressentir os motivos para o desfocamento, o que poderia estar implícito nessas imagens imprecisas. Talvez o elemento condutor, o fio que liga todos esses instantâneos duvidosos, Elena McMahon, não seja tão marcante quanto a Inez Christian Victor, de Democracia, possivelmente a personagem feminina mais fascinante da década de 1980 (pelo menos na ficção norte-americana), mas esse novo vislumbre do movimento geral apanhando na sua rede alguém que parecia isento e imune é quase tão bom quanto o outro.

ETERNOS RETORNOS DE NELSON RODRIGUES (“A Falecida” e a guerra conjugal)

(escrito especialmente para o blog,  23 de agosto 2012)

Zulmira: Foi um altíssimo negócio essa cartomante. Agora eu sei de tudo. Essas dores nas costas… Olha: hoje eu passei o dia inteiro com o nariz entupido…

Tuninho: Gripe!

Zulmira: Gripe aonde? Macumba!

Tuninho: Sossega!

Zulmira: Sim, senhor! Alguma macumba que essa cara me fez! Aposto!

Tuninho: Mas a mulher é protestante!

Zulmira: Protestante, diz você! Mas duvido! Fingimento, máscara. Vou-te dizer o seguinte: Glorinha tem parte com o Demônio! Tão cínica que diz apenas o seguinte—vê se pode—que a mulher que beija de boca aberta é uma sem-vergonha. Pode ser o marido, pode ser o raio que o parta mas é uma sem-vergonha…

(…)

Zulmira: (…) A mulher de maiô está nua. Compreendeu: Nua no meio da rua, nua no meio dos homens!

(…)

Tuninho: Mas como?—perguntei eu à minha mulher—você tem nojo de seu marido? Zulmira rasgou o jogo; e disse assim mesmo: Tuninho, se você me beijar na boca, eu vomito, Tuninho, vomito!”

PRIMEIRO ATO

Tuninho: (…) Vai ser uma tragédia em trinta e cinco atos!

(…)

Zulmira: Eu vou morrer… Sei que vou morrer. Já não sou mais deste mundo.

Zulmira: Eu sou a morta, que pode ser despida…

Oromar: Estou com uma pena danada do Tuninho… A mulher morre na véspera do Vasco x Fluminense…

Nelson Rodrigues foi outra descoberta que fiz graças à série da Abril Cultural Literatura Comentada. Mais ou menos nessa época (início dos anos 1980, quando ele acabara de morrer, aos 68 anos), a Globo exibiu na série Aplauso uma adaptação de Vestido de Noiva, estrelada por uma então empenhada  Suzana Vieira (ou seja, estamos muito longe da celebridade global que parece mais interessada atualmente em aparecer nas fofocas de revistas como a Caras e no folclore humorístico a respeito da sexualidade das mulheres mais velhas1).

Nem sei dizer se a adaptação era boa, o que interessa é que veio a calhar como descoberta do universo rodriguiano, função que jamais seria cumprida pela sequência de versões cinematográficas indigestas lançadas pouco antes ou pouco depois: A dama do lotação; Bonitinha, mas ordinária; Engraçadinha (alguém caiu no equívoco de achar que Lucélia Santos era a atriz certa para o autor); Álbum de família; Os sete gatinhos (o Beijo no asfalto de Bruno Barreto era o mais comedido daquela safra toda, porém frio e sem vida, e mais uma vez se caía no erro de transformar o exagero expressionista de Nelson Rodrigues em caricatura histriônica, na composição de Tarcísio Meira). Neville d’Almeida e Braz Chediak (malgrado o filme de Haroldo Marinho Barbosa a partir da história de Engraçadinha ser igualmente um horror) passaram a ser um anátema para mim, e pareciam incompatíveis Nelson Rodrigues e o cinema. Ainda não conhecia filmes mais antigos, bem melhores, caso de A falecida, de Leon Hirszman, e Toda nudez será castigada e O casamento, de Jabor. Mas tive a sorte de ver nos palcos que o seu texto podia ser representado sem ridículo, com o espetáculo de Antunes Filho, Nelson 2 Rodrigues.

Em resumo, passei os anos 1980 admirando intensamente algumas peças do autor de Vestido de Noiva (particularmente esta, definida por Sábato Magaldi como “psicológica”, assim como Valsa número 6), e as peças denominadas míticas; nunca fui especialmente fã das “tragédias cariocas”, com as exceções de A falecida e Beijo no asfalto ). Tal era o contorno de Nelson Rodrigues para mim naquela década.

Nos anos seguintes, começaram a ser republicadas sistematicamente obras de gêneros diversos, e então veio o enfado quanto ao mundo rodriguiano. Acho que foi a hipertrofia de títulos; porém, mais ainda, foi a hipertrofia da figura de Nelson, aquela babação de ovo como se ele fosse um oráculo ao qual recorriam todos aqueles luminares da cultura carioca voltada para o próprio umbigo e para uma faixa limitadíssima de praia e areia. Um pouco também como o que acontecia com Borges (em outro sentido, claro), que parecia nunca ter dito uma bobagem ou soltado uma blague na vida, tudo o que dizia parecia ser justo, lapidar, oracular. E no final das contas ele fora um homem desagradável (como não o conheci pessoalmente, como seus discípulos, só posso me basear nos seus depoimentos gravados ou transcritos), irritante e rançoso!

Muito desse enfado com a indústria Nelson Rodrigues ainda persiste. Acho um porre o (provinciano) culto que lhe dedicam os machos da espécie-formato (reduzido) praias cariocas. Nunca vi uma mulher que lhe fizesse loas.

Foi a televisão que salvou tudo novamente. Por incrível que pareça, enquanto no palco e nas telas Nelson Rodrigues, Antunes Filho à parte, virava uma coisa risível, uma mistura de David Lynch com Miguel Falabella, de Eugene O´Neill com Jorge Fernando ou Guel Arraes, os seriados globais me faziam descobrir as preciosidades rodriguianas além da dramaturgia, seus folhetins inclassificáveis e apaixonantes, Meu destino é pecar & Asfalto selvagem, e principalmente as histórias-crônicas cariocas de A vida como ela é, impecavelmente transpostas para a tevê (e bem interpretadas).

E, é claro, cada releitura do seu teatro, confirmava: não importa a hagiografia de uma determinada subcultura e geração, mais que a figura de Nelson Rodrigues importa o mundo que ele criou para os palcos.

SEGUNDO ATO

Tuninho: Sabe por que a tal da Glorinha é o maior pudor do Rio de Janeiro? e por que toma banho de camisola? e não vai á praia? e tem nojo do amor? sabe?

Zulmira: Fala, criatura!

Tuninho: Porque teve câncer e tiveram de extirpar um seio…”

Havia uma edição do Círculo do Livro que eu adorava, pois continha Álbum de família, A falecida e Vestido de noiva; ou seja, era quase um “portable” Nelson Rodrigues, com o melhor do melhor do seu teatro (só faltou Senhora dos afogados, que nunca foi tão famosa quanto as outras2).

A falecida3 poderia ser uma crônica de A vida como ela é. O que impressiona na peça é a economia de meios cênicos (as deixas, aliás, são insistentes a respeito4), de personagens, e sobretudo da ação dramática.

Como nas peças “míticas”, tudo é muito concentrado, de tal forma que se chega quase a um casal carioca genérico, embora se chamem Zulmira e Tuninho (mas a mãe dela é chamada de Dona Fulana). E a peça mostra radicalmente a solidão desse casal, com os universos afetivos e os investimentos libidinais isolados de cada um, a fêmea e o macho (e novamente, aqui muita gente poderia tachar a ação dramática e a caracterização dos protagonistas de caricaturais e simplistas). É a “guerra conjugal” no palco, com força igual à dos contos de Dalton Trevisan5.

O mundo dela é o da procura das cartomantes, das rivalidades femininas, das vizinhas, do adultério, da obsessão com as mazelas do corpo (e a preocupação com o próprio enterro, com a escolha do melhor caixão); o dele é o futebol, o bilhar, as apostas, a afirmação enquanto macho (que sofrerá um rude golpe com a descoberta das traições da esposa, e por isso a vingança final, quando—de posse do dinheiro da chantagem que ela mesma lhe proporcionou, antes de morrer6—compra o caixão mais fuleiro para enterrá-la). E, pairando sobre eles, o mundo da contravenção, do jogo do bicho.

Enfim, admire-se (como eu) ou não (os que acham tudo caricato) é um microcosmo de uma determinada feição do Rio de Janeiro tornada quase paradigmática,por causa das figuras elevadas ao imaginário como o proverbial bicheiro, e símbolos populares como o estádio do Maracanã.

Uma coisa que eu adoro nas falas da peça é o uso e abuso de expressões populares: “estou desempregado e outros bichos. Quer dizer, na última lona”; “Até aí morreu o Neves”; “ia lavar a égua”; “Estou crente que aquela besta vai descobrir coisas do arco-da-velha no meu pulmão”; “Entra de sola, que mulher gosta é disso”; “tudo isso é batata ou golpe?”; “Será o benedito?”; “Agora é tarde e Inês é morta”; “Está na hora da onça beber água”, “É mesmo da fuzarca”

NOTAS

1 Naqueles tempos pré-históricos, ela também estrelou uma das raras telenovelas das quais guardo uma lembrança muito forte: A sucessora.

2 Ela se tornou uma referência maior, creio eu, de 2008 para cá, por causa das montagens recentes.

3 No exemplar do Círculo, a data é 1954, mas na biografia O anjo pornográfico, de Ruy Castro, consta 1953 (inclusive da primeira montagem, com Sônia Oiticica como Zulmira, e Sérgio Cardoso como Tuninho.

4 Por exemplo:

Os personagens é que, por vezes, segundo a necessidade de cada situação, trazem e levam cadeiras, mesinhas, travesseiros que são indicações sintéticas dos múltiplos ambientes”.

5 Similar ao mundo de Trevisan há até os fetiches corporais entre homem e mulher. Como quando Tuninho diz a Zulmira: “Vem espremer o cravo grande das costas”. Ou quando o bicheiro Pimental conta sua primeira relação com Zulmira, num banheiro, da qual saiu “sujo de batom até a alma”.

E Rodrigues sempre está atento ao sensacionalismo (espetacularização do cotidiano), como levará ao limite extremo em Beijo no asfalto. A filha do bicheiro (amante de Zulmira) é atropelada:

Funcionário: (…) a garota saiu do colégio, atravessou a rua e foi esmagada entre um bonde e um ônibus. Sanduíche autêntico!

Timbira: Morreu:

Funcionário: Se morreu?! Está feito uma papa! Sabe o que é papa? papinha?

6 “Assim que eu morrer, pega um táxi, vai à casa dele, ao escritório, seja lá onde for, e diz o seguinte: que eu morri. Mas que, antes de morrer, pedi que ele me pagasse um enterro de quarenta mil cruzeiros… Ele te dará dinheiro… E não diz que é meu marido…”

A obra maior de Nelson Rodrigues: SENHORA DOS AFOGADOS

Paulo: (…)nós temos a loucura  na carne, a loucura e a morte…

Misael: Um Drummond não pode amar nem a própria esposa. Desejá-la, não; ter filhos… A cama  é triste para os Drummond…

D.Eduarda: Meu próprio marido me possuiu sem me acariciar…

(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 21 de agosto de 2012, sem as notas de rodapé)

Pensando em como homenagear o centenário de Nelson Rodrigues (nascido em 23 de agosto de 1912), e levando em conta a multiplicidade de sua produção —romances folhetinescos, crônicas, memórias[1] —, apesar de uma certa superestimação tão ao gosto da autocentrada cultura carioca (embora ele fosse de origem pernambucana), logo percebi que seria tarefa vã dar conta de todos os aspectos.

Mesmo na área em que sua contribuição revela-se mais essencial (pois ainda é nosso maior dramaturgo), como abordar 17 peças, boa parte delas extremamente marcante, com um expressivo número de adaptações para o cinema (a maioria, horrorosa) e para a televisão? Afinal, com a sua segunda obra para o palco, Vestido de noiva (1943), ele se valeu de um experimentalismo formal que até hoje impressiona e coloca a peça entre os grandes momentos do alto modernismo (tanto que é praxe comparar seu impacto sobre o nosso teatro com o de Cidadão Kane no cinema comercial norte-americano)

E Vestido de noiva só era o início do percurso. Em uma sequência inacreditável (de 1946 a 1949), escreveu as quatro peças alucinadas e alucinantes, hoje arroladas como míticas (no segundo volume do Teatro Completo, organizado por Sábato Magaldi), que representam o lado mais radical do seu teatro: Álbum de família, Anjo negro, Senhora dos afogados e Doroteia.

A mais poética delas, possivelmente a sua obra-prima suprema, Senhora dos afogados, também é a mais comentada em anos recentes, pois os dois encenadores de maior renome do país, José Celso Martinez Correa e o grande Antunes Filho, resolveram montá-la quase que ao mesmo tempo, em 2008. O trabalho de Antunes é admirável e rigoroso, o de Martinez Correa não veria nem amarrado, pois sempre tive uma aversão incontornável pelo seu dionisismo institucionalizado (creio que até financiado por verbas públicas; assim, é fácil ser orgíaco).

Quando a peça começa, os Drummond (uma família de três séculos, com mulheres que se gabam da fidelidade conjugal: “nunca houve um adultério” por parte de uma esposa do clã[2]: “Pudor têm todas as mulheres da família”) choram a morte por afogamento de Clarinha. Ao mesmo tempo, prostitutas do cais interrompem suas atividades para lamentar o 19º. ano de impunidade do assassinato de uma das suas.Acontece que o assassino é Misael Drummond, pai de Clarinha: ele matara a “mulher da vida” com quem tivera um caso porque ela insistia em experimentar o leito conjugal antes da esposa (era o dia do seu casamento).

Antes mesmo de saber que a sua filha morrera, Misael—num banquete em sua homenagem—vê o fantasma da prostituta morta lhe aparecer, e foge da cerimônia: “Ela tornou o banquete maldito… Todos sentiram que havia uma morta entre os convidados. Eduarda, quando essa mulher apareceu, houve no banquete um cheiro de mar…”

   Enquanto isso as duas Drummond sobreviventes (há uma terceira, a avó, que ficara louca ao testemunhar o crime do filho), Eduarda e Moema, mãe e filha, se digladiam em torno da questão do pudor e da honra da mulher, núcleo do universo burguês tradicional tão bem caracterizado na obra rodriguiana, hostilizando-se devido a um ódio primordial. Moema, que gostaria de viver sozinha com o pai (e por isso matou as irmãs), urde um plano de forma a fazer com que a mãe o traia com o próprio noivo, um ex-marinheiro que na verdade queria seduzi-la para se vingar do pai (de ambos, já que ele é o fruto dos amores de Misael com a prostituta assassinada)…

Estamos aqui, já pelas ligações incestuosas entre os personagens, e pela obsessão com os polos da respeitabilidade e da transgressão, no cerne das pulsões arcaicas, no primordial, nos confins do lógico, do racional, do consciente. Todas as amarras foram rompidas, e os personagens se movem num tempo verdadeiramente mítico, que só pode ser o do inconsciente. Não é a toa que a peça se aproxima das tragédias gregas, em que os clãs familiares se entredevoram num inferno de culpas e desmedidas. Evocando a mãe assassinada, o Noivo diz (respondendo à afirmação da Vizinha de que ela devia ser linda): “Muito. E não sei há quantos anos não envelhece nada; não envelhecerá nunca. A mesma idade sempre—nem um minuto a mais, nem um minuto a menos…” E ainda: “Os outros podem morrer. Tudo mais pode morrer. Menos minha mãe” (evidentemente o fato de ela já estar morta não tem a menor importância na economia psíquica do personagem).

Mas isso ainda é dizer pouco, uma vez que nunca Nelson Rodrigues, nem mesmo em Vestido de noiva e Anjo negro, nem nas posteriores A falecida (1953) e Beijo no asfalto (1960), escreveu ou escreveria não apenas falas da mais absoluta beleza e precisão, nada faltando, nada sobrando, como também  “deixas” de um lirismo único, que no teatro contemporâneo só se encontra talvez num Eugene O´Neill (“Só estão em cena os espectrais vizinhos. Cochicham entre si. É ainda a casa dos Drummond, sempre a casa dos Drummond”; outros exemplos: “Em cena, também os vizinhos. São figuras espectrais. Um farol remoto cria, na família, a obsessão da sombra e da luz. Há também um personagem invisível: o mar próximo e profético, que parece estar sempre chamando os Drummond, sobretudo as suas mulheres”).[3]

É lógico que as revelações bombásticas de crimes e disposições incestuosas beirariam o cômico não fosse a genialidade do autor de Toda nudez será castigada (1965), que domou o excesso com a perícia cirúrgica do seu texto. Todas as vezes que o li , não conseguia imaginar como seria no palco, que tom poderia ser adotado para não ficar como nas ridículas versões de cinema (especialmente a de Álbum de família, escrita na mesma toada), as quais resvalavam para o chanchadesco. Foi preciso esperar por Antunes Filho para constatar que sim, era possível, e que o Nelson Rodrigues de Senhora dos afogados é um ponto-limite no dizer teatral e na forma cênica.

Em tempo:  a peça foi interditada pela censura em 1948, liberada apenas em 1953. Na estreia (montagem dirigida por Bibi Ferreira), um ano depois,  houve vaias, e a estreante Nathalia Thimberg, aterrada com o tumulto, testemunhou o autor enfrentando a plateia. Nelson Rodrigues, longe do tom das homenagens do seu centenário, era tido então como tarado e degenerado. [4}

[3


[1]  Considero deliciosos (num sentido perverso) Meu destino é pecar & Asfalto selvagem, e acho o melhor Nelson Rodrigues, depois das peças, o de A vida como ela é. A isso se resume meu conhecimento da sua obra, pois não tenho muita paciência para o lado, tão exaltado pela turma de Ruy Castro, Arnaldo Jabor & Cia, de polemista e paladino das frases politicamente incorretas. Isso é coisa de província.

[2]Misael:  E eu que pensei que nossa família fosse casta.(…) Se tua mãe foi infiel, as outras mulheres da família também…

Moema: Mas minha mãe era uma estrangeira… Não tinha o rosto dura das Drummond (…) Nossos espelhos a estranhavam….

[3] Nas sua bela introdução ao volume das peças míticas, Sábato Magaldi desenvolve uma minuciosa aproximação de Senhora dos afogados com a obra-prima de O´Neill, Electra Enlutada, afirmando ser a peça de Nelson uma espécie de extrapolação ou paráfrase da peça do autor norte-americano.

[4] Devo essas informações à biografia de Ruy Castro, O anjo pornográfico.

16/08/2012

Destaque do Blog: O LEÃO E A JOIA, de Wole Soyinka

(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos,  sem as notas de rodapé, em 14 de agosto de 2012)

Um dos destaques do ano entre os lançamentos de literatura estrangeira é, sem dúvida, O leão e a joia  (The lion and the jewel), tardia primeira tradução brasileira (muito bem realizada, por William Lagos, para a Geração Editorial) de Wole Soyinka.

  Atualmente com 78 anos, o autor nigeriano teve essa sua peça de juventude encenada no final dos anos 1950 (a publicação em livro aconteceu há exatamente 50 anos), quando se dedicou a estudar em profundidade (após um período “londrino”) o teatro africano.

  O leão e a joia coloca em cena o velhíssimo tema do triângulo amoroso e na superfície se vale das regras clássicas e estritas da unidade de ação, tempo e lugar, que indicariam mais um apego às formas teatrais europeias. Numa aldeia da nação iorubá, acompanhamos uma trama farsesca desenrolando-se em três atos (Manhã, Meio-dia, Noite): Sidi é a bela de Ilujinle, ainda virgem. Seu pretendente mais declarado é o para-lá-de-ocidentalizado professor primário Lakunle, que a admoesta por manter hábitos “bárbaros” e “primitivos” e lamenta constantemente o atraso do povoado (“Eu quero caminhar a seu lado como fazem os casais de Lagos que eu vi: a dama usa sapatos de salto alto e usa batom vermelho nos lábios. E seus cabelos são alisados como em uma foto de revista. Eu lhe ensinarei a valsa e nós vamos aprender juntos a dançar o foxtrote”). Sua amada, ferina e maliciosa, o provoca e ridiculariza (“Por causa desse aí, não lhe dê mais atenção do que daria a um eunuco”), em diálogos ágeis e nervosos, cheios de metáforas e analogias inspiradas[1], dando vazão à sua indignação por ele não ceder ao costume ancestral de pagar um dote à noiva. Subira à cabeça de Sidi, ademais, ela ter sido fotografada por um forasteiro, tornando-se capa de uma revista.

  Acontece que há outro pretendente: o bale (chefe) local, Baroka—um personagem fascinante—que se lamenta à mais velha das esposas (causando nele um sentimento de secreto rejúbilo, movido pela eterna guerra dos sexos) de que, aos 62 anos, está assombrado pela impotência e gostaria de ter Sidi como a nova esposa para resgatar sua virilidade perdida. Não entrarei em detalhes sobre tudo o que o texto de Soyinka urde, tece e entrança de astúcias, ardilosidades e armadilhas para a incauta Sidi, que em sua ingenuidade crê ter a tarimba para lidar com o “leão” (matreiro ao ponto de subornar o encarregado da ferrovia que passaria pela aldeia, trazendo o tão falado progresso), ou de como a própria “joia” aceita o seu papel de peão no tabuleiro e joga de forma a garantir uma posição social elevada. Deixo ao leitor a descoberta das delícias do desenrolar da ação.

  O que eu pretendo enfatizar é a engenhosidade do Nobel de 1986 em colocar no palco, de forma simples e lapidar, o confronto de forças históricas e sobretudo a eficiência das fórmulas cênicas africanas que transformam em musical, de uma maneira que chega a humilhar Broadways, Holly ou Bolly Woods, em naturalidade e agilidade rítmica[2] notáveis (e que também demonstram, sem necessidade de didatismos—apesar do lastro pedagógico de O leão e a joia—os atavismos que nos regem, pois o modernoso professor Lakunle é arrastado irresistivelmente para essas coreografias), os eventos passados que esclarecem os fatos que vemos no palco: assim, dança, música, cenas coletivas, decorrem de conflitos íntimos e jogos verbais entre praticamente quatro personagens: Sidi, seus dois pretendentes e a esposa mais velha, Sadiku; há ainda Ailatu, a atual “favorita” de Baroka, enquanto ele não conquista a “joia”, numa única cena maravilhosa.

   Por falar em cenas maravilhosas, não posso deixar de destacar a longa fala de Sadiku em que as metáforas de linho, cordão, carretel e similares atingem uma ressonância sexual inequívoca e saborosa[3], os ditados pândegos[4] emitidos pelo supostamente venerável e sábio Baroka; este, apesar de lamentarmos a persistência do patriarcalismo no que ele congrega de atraso e imobilismo, permanece um personagem mais simpático e humano do que o sinistro Lakunle e sua visão (satirizada cruelmente por Soyinka) do que seria a modernização da África: “Vamos queimar a floresta, cortar as árvores e depois plantar um parque moderno para os namorados. Vamos imprimir jornais todos os dias com fotografias de jovens sedutoras. O mundo irá julgar nosso progresso pelas nossas moças que vencerão concursos de beleza”.


[1] Outro exemplo:

Lakunle: Sidi, meu amor abrirá a sua mente como a folha casta da manhã, quando o sol a toca pela primeira vez.

Sidi: Se você começar de novo com isso, eu saio correndo. Eu já ouvi o suficiente dessas bobagens ontem.

Lakunle: (…) Como você pode chamar de bobagens que eu tenha derramado as águas da minha alma para lavar seus pés?

[2] No sentido de palco e no sentido da música

[3] Um trecho:

(…) somos nós que enrolamos e desenrolamos o cordão à volta de vocês, lentamente, até que nada mais sobre do que um carretel velho e carcomido (…) Fui eu que estropiei Okiki: a casa do tesouro de Sadiku estava fechada e cobrava um sacrifício para quem quisesse entrar… E aí chegou Okiki, com sua chave enferrujada. Ele veio para mim como uma cobra e saiu feito um capacho, um capacho frouxo e besuntado de vergonha…

  O que contrasta com a bazófia da virilidade enunciada por Baroka:

(…) seu eu pudesse ensinar a esse passarinho anda implume, que não tem a sabedoria de abraçar o rico mofo da idade…

[4] Ou pelo menos assim me soam na tradução de William Lagos, que acho muito esperta. Um exemplo: “(…) é como dizemos, uma mulher se perde na floresta um dia e no outro morrem todos os deuses da mata.

Destaque do blog: O MUNDO SE DESPEDAÇA, de Chinua Achebe

O PODEROSO ROMANCE DO COLONIZADO

E eu que pensava nunca encontrar um personagem à altura de Thomas Buddenbrook, o qual, em Os Buddenbrooks (1901), de Thomas Mann, tenta desesperadamente manter uma vida “representativa”, com muito trabalho e empenho, mesmo que por dentro se sinta minado e desalentado, mesmo sabendo que sua família está em declínio e, mais ainda, seu modo de vida, seu mundo “social”, estão sendo solapados, deixados para trás. Por algum motivo, foi o personagem masculino da ficção que mais me falou ao coração, que mais me marcou até hoje.

E, de repente, encontro uma alma gêmea de Thomas Buddenbrook: Okonkwo, em Things fall apart- O mundo se despedaça (belo título para a tradução, muito bem escolhido, assim como a arrepiante capa), romance de estréia do nigeriano Chinua Achebe, de 1958, só agora traduzido no Brasil (por  Vera Queiroz da Costa e Silva, para a Companhia das Letras).

Okonkwo, um dos principais homens de Umuófia, nove aldeias nas terras dos ibos, que —nos tempos pré-colonização—teve  de se fazer sozinho na vida, como se diz, pois nada herdou do pai, um músico boa-vida e embrulhão (assim como os membros do clã Buddenbrook a certa altura só envergonham o chefe da família): “… toda a sua vida era dominada pelo medo, o medo do fracasso e da fraqueza. Era um medo mais profundo e mais íntimo do que o medo do Mal, dos deuses caprichosos e da magia, do que o medo da floresta e das forças malignas da natureza, de garras e dentes vermelhos. O medo de Okonkwo era maior do que todos esses medos. Não se manifestava externamente, jazia no centro do seu ser. Era o medo de si próprio, de que afinal descobrissem que ele se parecia com o pai. Mesmo quando menino pequeno, magoara-se com o malogro e a debilidade do pai… Foi assim que Okonkwo se viu dominado por uma paixão: odiar tudo aquilo que seu pai, Unoka, amara. Uma dessas coisas era a doçura, e a outra, a indolência.” Um dos medos dele é que a próxima geração repita os “vícios” da anterior: “O primogênito de Okonkwo, Nwoye…já provocava grande apreensão no pai, por sua incipiente preguiça. Essa era a impressão que sua atitude dava ao pai, que procurava corrigi-lo com pancadas e críticas incessantes…”

Através da férrea vontade, da força física (é uma lenda viva como lutador: “Toda a gente conhecia Okonkwo nas nove aldeias e mesmo mais além. Sua fama assentava-se em sólidos feitos pessoais…” , assim se inicia O mundo se despedaça), da brutalidade e da intolerância, Okonkwo consegue ser um grande plantador de inhame (símbolo absoluto da riqueza e da virilidade, até pelo seu aspecto fálico: “O inhame, rei das colheitas, era plantio dos homens”) e manter um grande compound, um conjunto suntuoso de habitações  para suas três esposas e filharadas respectivas, mas ainda não tem os títulos principais que distinguem os líderes da tribo.

Um dia, durante o funeral de um dos líderes mais velhos (e estou pulando aqui diversos incidentes habilmente explorados pelo autor para mostrar a buddenbruquiana angústia de Okonkwo), sua arma acidentalmente mata um rapaz: “Era o filho de Ezendu, de 16 anos, que, juntamente com seus irmãos e meio-irmãos, participava, momentos antes, da tradicional dança de adeus em homenagem ao pai morto. A arma de Okonkwo explodira e um pedaço de ferro trespassara o coração do menino. A confusão que se seguiu não encontrava paralelo na história de Umuófia. Mortes violentas eram freqüentes ali, mas nunca acontecera nada semelhante”.

  A punição é o exílio, com toda a sua família, durante sete anos,uma punição que nos lembra aquelas do Antigo Testamento: “Logo que o dia amanheceu, um grande número de homens da família de Ezendu, em roupagens de guerra, invadiu tempestuosamente o campound de Okonkwo. Atearam fogo às casas, demoliram os muros vermelhos,mataram os animais e destruíram o celeiro. Era a justiça da deusa da terra. Seus corações não abrigavam nenhum ódio contra Okonkwo, cujo melhor amigo, Obierika, fazia parte do grupo. Estavam simplesmente limpando a terra que Okonkwo poluíra com o sangue de um membro do clã”.

O clã de Okonkwo vai viver na aldeia de sua mãe, Mbanta. E durante todo esse tempo afastado, ele, que também prospera por lá,  só pensa em recuperar a sua posição na aldeia natal, a meta da sua existência: “Sete anos é um período demasiado longo para se passar afastado do clã a que se pertence. O lugar de um homem ausente não fica vazio, à espera que o antigo dono volte a ocupá-la. Assim que alguém se vai, surge logo um candidato à sua vaga. O clã é como os lagartos, que, quando perdem a cauda, logo lhes nasce outra nova. Okonkwo sabia muito bem de tudo isso. Sabia que perdera seu lugar entre os nove espíritos mascarados que aplicavam a justiça no clã…Estava decidido a fazer com que seu regresso não passasse despercebido de sua gente. Voltaria em grande estilo e haveria de recuperar os sete anos perdidos…”

    Só que durante seu afastamento chegam os missionários brancos e mudam drasticamente a vida dos ibos, trazendo consigo comissários, administradores, enfim, a lei dos brancos. O filho mais velho, o sonhador e melancólico Nwoye se torna cristão, adota o nome de Isaac  e é renegado pelo tirânico pai (tudo isso tem a ver com Ikemefuna, um rapaz de outra aldeia que fora dado para sacrifício em paga de uma morte, e que fora viver com a família de Okonkwo, tornando-se muito amigo de Nwoye; anos depois, decidem que ele deve cumprir seu destino, e Okonkwo participa ativamente da sua violenta morte, para horror de muitos, pois se apegara muito a ele, assim como o resto da sua família; mas aquele medo da fraqueza…). Assim como Hanno Buddenbrook há de decepcionar o pai, Okonkwo não se conforma com o filho: “Okonkwo fora popularmente apelidado de Chama Estrondosa. Nesse momento, ao contemplar o fogo produzido pela lenha, lembrou-se dessa alcunha. Ele era um fogo ardente. Como era possível, então, que tivesse gerado um filho como Nwoye, degenerado e efeminado? Talvez Nwoye não fosse seu filho. Isso mesmo! A mulher o havia enganando. Dar-lhe-ia uma lição! No entanto, Nwoye era muito parecido com o avô, Unoka. Procurou afastar da sua mente esse pensamente. Ele, Okonkwo, era chamado de fogo ardente. Como poderia ter procriado uma mulher, em vez de um filho macho? Na idade de Nwoye, Okonkwo já se tornara famoso em toda Umuófia por sua maneira de lutar e por sua bravura. Suspirou fundo e, em sinal de solidariedade, a lenha, já sem chama,  também lançou um suspiro. Nesse preciso instante,  os olhos de Okonkwo se abriram e ele compreendeu tudo com absoluta clareza. O fogo ardente procria a cinza fria e sem força…”

. Quando finalmente, Okonkwo pode voltar e reconquistar sua posição na tribo, essa posição tão almejada já não tem o prestígio de antes, principalmente diante das autoridades brancas, e ele é levado a um ato extremo, após uma humilhação que é infligida a ele e a outros líderes locais. Já censurado pelos mais velhos, antes da nova era, pela sua dureza e intransigência, ao ver seu mundo se despedaçar, ele ainda tenta um último (e absurdo) feito guerreiro…

O que torna especialmente admirável (e, a meu ver, uma obra-prima) O mundo se despedaça é a sua cabal confirmação de que o romance foi a suprema forma literária do último século, capaz de enciclopedicamente nos dar não só a psicologia individual de um protagonista de estofo literário impressionante (desfazendo  todos os clichês quanto à psique africana, como integrada à natureza e harmônica, apesar das beleza narrativa de que se revestem os costumes: “Na realidade, não existia uma distância muito grande entre a terra dos vivos e o domínio dos ancestrais. Havia sempre idas-e-vindas entre os dois mundos, especialmente durante os festivais e quando um homem idoso morria, porque os velhos estão muito próximos dos ancestrais. A vida de um homem, desde o nascimento até a morte, era uma série de ritos de transição que o aproximavam cada vez mais de seus antepassados…”), como também a etnologia, a sociologia, enfim, toda a mentalidade daquele determinado grupo social, e sem nenhum olhar externo (como o do comissário inglês, que recolhe material para um livro denominado “A pacificação das tribos primitivas do Baixo Níger”, no irônico final);  mais ainda, consegue em 200 páginas, dar conta, com um simbolismo e uma força quase miraculosos, um feito verdadeiramente mágico num escritor de apenas 28 anos, unindo o lírico, o épico e o dramático,  de um processo histórico terrível e cujas consequências todos os povos, nesse período pós-colonial, ainda estamos vivendo. Como as melhores obras que surgiram das Américas, o romance do colonizado se torna capaz de revitalizar o gênero do colonizador.

resenha publicada, de forma condensada, em “A Tribuna” de Santos em 08 de junho de 2010

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