O texto abaixo, na verdade uma leitura comentada, foi escrito em 2008, como parte do material de leitura para meus alunos do curso As margens derradeiras: textos do limite, que abordava oito textos curtos e paradigmáticos do século XIX: O médico e o monstro, Bartleby, Memórias do Subsolo, A morte de Ivan Ilitch, O alienista, O mandarim, O coração das trevas & A volta do parafuso; em torno de cada um, analisei outros: William Wilson, O homem invisível, O duplo, O capote, A tumba dos ancestrais, O horla, O homem da areia, A vida privada, etc
“O maravilhoso e estranho dessa aventura arrebatou minh´alma, e eis por que, caro leitor, eu precisava despertar em você a inclinação para o fantástico, o que não é nada fácil, e me esforçar para começar a história de Natanael de forma significativa, original, surpreendente: Era uma vez, o mais belo começo para qualquer história, mas muito tímido… Não me ocorreu nenhum discurso que pudesse, pelo menos, refletir o brilho colorido do quadro que eu elaborara no espírito. Decidi então simplesmente não começar…”
(E.T.A. Hoffmann, O Homem da Areia, 1815)
Der Sandmann- O Homem da Areia, foi escrito em 1815 por E.T.A. Hoffmann, autor estudado por Freud, justamente pelo ponto de vista do umheimlich, o inquietante, o insólito, o sinistro até. Ernst Theodor nasceu em Königsberg (pertencente então ao Império Prussiano), em 24 de janeiro de 1776. Depois de muitos anos doente, e completamente paralisado, Hoffmann morreu em 25 de junho de 1822, aos 46 anos. Ele ficou famoso por suas histórias fantásticas e geralmente se associa à influência de Poe nos escritores que se aventuraram por esse caminho, embora o alemão tivesse a divulgação do inglês.
O Homem da Areia (e não “de” areia) é uma história de cerca de 30 páginas divididas em duas epístolas de Natanael a seu amigo Lotar, com uma curta carta intercalada entre ambas, de Clara a Natanael, e depois da 3ª. missiva, o narrador assumindo o relato de forma abrupta. O gênero epistolar, aliás, está estreitamente ligada às origens da narrativa moderna “sentimental”, leia-se psicológica.
Natanael inicia a narrativa desculpando-se com seu amigo Lotar por não se comunicar com ele e a família já há bastante tempo: “Ah, mas como poderia escrever-lhes com o estado de espírito tão dilacerado que vem me confundindo todos os pensamentos! Algo de terrível aconteceu em minha vida! Sombrios pressentimentos de um cruel e ameaçador destino estendem-se sobre mim quais sombras de nuvens negras, impenetráveis a qualquer benevolente raio de sol” [1] . Aqui temos o mote, o leitmotiv padrão para esse tipo de ficção: esse clima de angústia, “algo de terrível aconteceu ou vai acontecer”, “minha vida está destruída ou ameaçada”. O Horla segue justamente essa linha.
O acontecimento terrível foi o aparecimento de um vendedor de barômetros no seu quarto de estudante, no dia 30 de outubro, exatamente ao meio-dia. Por que a pessoa desse “funesto caixeiro-viajante” teve tal efeito pernicioso? Porque faz retornar temores e terrores da infância, ocasionando o já clássico “retorno do reprimido” freudiano. A originalidade de O Homem da Areia é que justamente o acontecimento mais terrífico está perdido na infância e portanto muito mais difuso e onipresente na vida adulta, ao contrário dos relatos em que o herói tem de enfrentar o medo como “novidade”.
Quando Natanael era menino, após o jantar toda a família (os pais, ele e o irmão) iam para o gabinete do pai, o qual fumava seu cachimbo e bebia um grande copo de cerveja. Soando as nove horas, a mãe entristecia-se e dizia: “E agora, crianças, para a cama, para a cama.! O Homem da Areia está chegando, já posso sentir seus passos”. O Homem da Areia é uma figura do tipo Bicho-Papão ou o Homem do Saco, com o qual minha mãe ou minha avó assustavam a mim e meus irmãos (será que a garotada de hoje ainda se assustaria? Difícil crer). E de fato, Natanael sempre ouvia passadas pesadas e lentas subindo a escada, algum tempo depois. Quer dizer, algo real acontece na vida dessa família e a mãe criou uma explicação sobrenatural que virou um mito infantil pessoal e ameaçador. Um dia, a mãe explica que não existe nenhum Homem da Areia: “Quando digo que o Homem da Areia está chegando, isso quer dizer apenas que vocês estão com sono e não conseguem manter os olhos abertos, como se alguém tivesse jogado areia neles”. Alguém acredita? Natanael, pelo menos não: “em meu espírito infantil desenvolveu-se claramente a idéia de que mamãe só negava a existência do Homem da Areia para que não ficássemos amedrontados”. Ele fica obcecado pela figura do Homem da Areia ligado à noite, à vulnerabilidade do dormir, e, pior ainda, a uma possível relação do pai com esse ser fantasmagórico. Ele nutre o projeto de ver com os próprios olhos esse ente misterioso: “Ele me conduzira para o caminho do maravilhoso, do romanesco, que com muita facilidade instala-se na alma infantil. Nada me agradava mais do que ouvir ou ler aterrorizantes histórias de duendes, bruxas e anões”. Natanael se define então, para o amigo Lotar e para o leitor, como um homem da imaginação. Aliás, ele desenha a possível figura do Homem da Areia com giz ou carvão.
Aos dez anos, Natanael resolve esconder-se no gabinete do pai, atrás da cortina que cobria um armário aberto ao lado da porta. Ele então descobre a identidade do Homem da Areia: o advogado Coppelius (podemos lembrar de O relógio, de Turgueniêv, dos negócios escorregadios do pai do narrador, inclusive com aquele padrinho escuso que lhe dá o relógio de presente que movimenta todo o relato): “a mais aterrorizante figura não me teria provocado tanto horror quanto aquele Coppelius”. Segue-se um retrato meio anti-semita, que nos dá uma espécie de judeu errante: “A figura no conjunto era medonha e abjeta; para nós, crianças, o que nos chocava mais eram suas grandes mãos, ossudas e peludas, tanto que evitávamos pegar no que tocassem. Ele notara essa repugnância, e então se divertia em bolinar com as mãos, sob esse ou aquele pretexto, um pedaço de bolo ou uma fruta que a boa mamãe deixara furtivamente em nosso prato. Nós, com lágrimas nos olhos, não conseguíamos mais desfrutar, por nojo e aversão, as gulodices antes destinadas ao nosso prazer”. Coppelius é um desmancha-prazeres; mais profundamente porém é um envenenador da inocência, e (sei que mais uma vez demonstro meu lado malicioso) não consigo deixar de ver uma atmosfera sexual, de abuso latente, na última passagem citada, toda fundamentada em imagens hipertrofiadas de toque e repugnância. Feio e hostil, Coppelius estraga as reuniões familiares e Natanael nota o ódio e asco da mãe. Já o pai… “Papai comportava-se como se fosse ele um ser superior, com cujos maus costumes devia-se ter paciência e conservar o bom-humor”.
Então a realidade junta no gabinete do pai duas figuras de Bicho-Papão, duas presenças ameaçadoras à vida familiar: o repugnante advogado, conviva de almoços, e o ser misterioso, companhia do pai a desoras. Natanael observa, “enfeitiçado” o pai e o visitante vestirem longas túnicas negras e descortinarem um laboratório alquímico: “Ao inclinar-se em direção ao fogo, meu pai parecia outro. Uma dor cruel e convulsiva parecia metamorfosear seus traços na mais horrenda e repugnante imagem diabólica. Ele se assemelhava a Coppelius!” Durante os experimentos estranhos daquela estranha associação que desmoraliza totalmente o pai aos olhos do filho, Coppelius repete aos gritos: “Que venham os olhos, que venham os olhos!” Aterrado, Natanael berra e sai do seu esconderijo; agarrado pelo advogado, é jogado sobre o fogão e sente seus cabelos chamuscados. Coppelius diz: “Agora temos olhos, olhos, um lindo par de olhos infantis” (note-se que ele ia pagar o pato com o órgão que rege a sua vontade de saber a respeito do Homem da Areia: a visão). O pai implora “Mestre, Mestre”, e Natanael desmaia, acordando com a mãe inclinada sobre ele (e, significativamente, “beijando e acariciando o filho predileto”, agora inimigo do pai).
Natanael fica de cama por várias semanas. Coppelius sumira. Diziam que deixara a cidade.
O narrador adverte seu destinatário: “Devo contar-lhe ainda o mais terrível momento de meus anos de infância; então ficará convencido de que não é culpa de meus olhos se agora tudo me parece descolorido, que realmente uma fatalidade cobriu minha vida com um denso céu de nuvens, que só com minha morte, talvez, se dissipará”.
Transcorre um ano, e uma noite, justamente às nove horas, ouvem-se os passos lentos e pesados de Coppelius. A mãe diz ao pai: “Meu amigo, meu amigo! Precisa ser assim?” “Pela última vez”, responde o pai.
No seu quarto, Natanael não consegue dormir. Ouve, então, a porta da frente batendo ruidosamente e um lamento horrível no gabinete do pai, para o qual ele se precipita: “Diante do fogão fumegante, no chão, encontrava-se meu pai, morto, com o rosto terrivelmente desfigurado e queimado” e a mãe ao lado do cadáver, desmaiada. Natanael grita: “Coppelius, maldito Satã, você assassinou meu pai!” Coppelius desaparecera, entretanto. Até ressurgir na figura do vendedor de barômetros, com o nome de Giuseppe Coppola: “Estou decidido a enfrentá-lo e vingar a morte de meu pai, aconteça o que acontecer”.
Na segunda carta, Clara, irmã de Lotar, escreve a Natanael. Logo de início, percebemos que ela é o oposto de seu interlocutor: ele se deixa arrastar pela imaginação, e ela é sensata: “se a casa desabasse, eu agiria como aquela mulher que, antes da fuga rápida, ainda arrumou as cortinas da janela”. Uma afirmação desconcertante deixa isso mais claro ainda: “Não me leve a mal, meu querido, se Lotar lhe disser que eu, apesar do seu estranho pressentimento de que Coppelius irá prejudicá-lo, estou tão serena e despreocupada como sempre”. Isso porque ela acredita que a sensibilidade exacerbada de Natanael criou a maior parte do incidente, e principalmente as associações (Homem da Areia/advogado repugnante/desprezo pelo pai) fez com que mantivesse no espírito um crime imaginário: “As práticas sinistras com o seu pai, à noite, nada mais eram senão experiências alquímicas secretas, com os quais sua mãe se afligia, já que certamente muito dinheiro era desperdiçado… Seu pai, com certeza, por um descuido qualquer, causou a própria morte, e Coppelius não poderia ser acusado”. Eis a voz da razão, e nossa amiga poderia ser crítica literária.
E então começa a segunda carta de Natanael, que afirma já não acreditar que Coppelius/Coppola são a mesma pessoa, principalmente pela garantia do professor de física Spalanzani, com o qual ele tem aulas, um tipo esquisito. Mais uma vez há uma cortina escondendo algo, nesse caso na casa do professor. Natanael, que pelo visto não aprendeu a lição da infância, resolve espiar através dela: “Uma moça alta e muito magra, esplendidamente vestida, estava sentada no quarto diante de uma mesinha, sobre a qual pousava os braços, com as mãos cruzadas. Estava sentada diante da porte, de forma que pude ver com clareza o seu belo rosto angelical. Ela pareceu não me notar, e seu olhar tinha algo de fixo, diria até que não via nada, como se ela dormisse de olhos abertos”. Logo de saída, percebemos na filha de Spalanzani, Olímpia, o atributo da imobilidade e do quietismo excessivo.
Natanael informa que passará algum tempo com a família de Lotar e Clara, e aí o relato passa para as mãos do narrador anônimo (que se dirige ao “caro ou benevolente leitor”), amigo do pobre estudante Natanael: “Devo confessar, caro leitor, que ninguém me pediu que contasse a história do jovem Natanael; mas você bem sabe que pertenço à peculiar espécie de autores que, carregando consigo algo como o que acabei de descrever, tem a sensação de que todos que se aproximam, e ainda o mundo inteiro, perguntam: O que aconteceu? Conte, meu caro! Foi essa força que me arrastou a contar o fatal destino que assaltou a vida de Natanael” [2] .
Ele nos explica que Lotar e Clara, órfãos de um parente afastado, foram acolhidos pela mãe de Natanael, e que este último cultivava afeição (correspondida) por Clara, ou seja, aquele tipo de círculo íntimo padrão na época. Cresce-se junto, apaixona-se no grupo, há uma amada, há um amigo especial. É a continuação da família na vida adulta.
O narrador diz que para muita gente Clara era fria, insensível e prosaica. Natanael fica muito contente em reencontrá-la e aos seus, mas nem por isso a sombra da repugnante figura do vendedor de barômetros Coppola deixa de ser evidente: “logo começou a agir de modo estranho, como ninguém vira antes. Tudo, toda a vida era para ele sonho e pressentimento: falava sempre que toda pessoa, julgando-se livre, só fazia servir a poderes obscuros, num jogo cruel, contra os quais é inútil revoltar-se; devia-se submeter humildemente àquilo que designara o destino”. Para a sensata Clara aquelas exaltações eram desagradáveis, principalmente a idéia de Natanael de que sua alma fora maculada pelo Espírito do Mal (Coppelius) ao espreitar atrás da cortina na infância (Freud deve ter se deliciado com essa imagem). Ela lhe dá um conselho bastante razoável: Coppelius terá poder sobre ele enquanto não o banir do espírito: “Enquanto acreditar nele, ele existirá e agirá; sua credulidade é a força dele”. O Homem da Areia continua agindo, vindo da remota infância. Natanael irrita-se com a insistência de Clara em atribuir a existência do Mal apenas ao seu fraco espírito, à sua débil força de vontade em libertar-se e passa a considerá-la uma “natureza inferior”, não-apta a aprofundar-se ou compreender os mistérios do espírito. Ele quer ler passagens de livros místicos e ela o repele: “Outrora ele alimentara um talento especial para a composição de histórias encantadoras e graciosas, as quais Clara ouvia com o maior prazer; agora seus textos eram sombrios, incompreensíveis, disformes, de modo que, mesmo quando Clara não o dizia, ele mesmo sentia que eles pouco lhe haviam interessado. Nada era para Clara pior do que o tédio; em seu olhar e em suas palavras expressava-se uma invencível sonolência mental. Ora, as composições de Natanael eram de fato entediantes. Seu desgosto para com o espírito frio e prosaico de Clara aumentou, e esta não podia superar a sua irritação com o sombrio, obscuro e entediante misticismo de Natanael e, sem perceber o fato, ambos se distanciavam cada vez mais um do outro” [é o gosto romântico aflorando, sendo incompreendido, no início do século XIX].
Natanael resolve escrever uma história sobre Coppelius e olhos. Ela fica horrorizada quando a ouve e aconselha-o a queimá-la: “Indignado, Natanael levantou-se abruptamente e gritou: Maldito autômato sem vida!”. A moça boazinha e insípida realmente não pode apaziguar alguém dominado pelo retorno do reprimido. Lotar, ofendido por causa da irmã com o comportamento de Natanael, desafia-o para um duelo. Na hora H, Clara intervém conseguindo reconciliar os amigos e fazer renascer (melancolicamente, diz o narrador) o amor de Natanael por ela.
Ele tem de voltar para mais um ano (o último) de estudos em G. (possivelmente Glogau, onde o próprio Hoffmann viveu certa época de sua vida, aos vinte anos, após a morte da mãe).
Quando chega ao seu dormitório, encontra tudo queimado. O fogo começara no laboratório do boticário que morava no andar abaixo. Natanael instala-se em outro quarto, em frente à casa do professor Spalanzani: “de sua janela podia olhar diretamente no quarto onde freqüentemente Olímpia sentava-se solitária, de modo que agora podia nitidamente contemplar sua silhueta, ainda que as feições do rosto permanecessem indistintas e confusas. Finalmente, pôde notar que Olímpia sentava-se à pequena mesa muitas vezes horas a fio na mesma posição e sem qualquer ocupação [e ele não acha estranho? Não, não acha, só fica deslumbrado com a beleza dela], do mesmo jeito que a vira, tempos atrás…”
Batem à porta e quem é? Coppola, que não vende mais barômetros e sim “olhos”, belli occhi”. Chocado, Natanael pergunta como alguém pode vender olhos? [segundo o que li, olhos são uma obsessão que ataca esquizofrênicos]. Coppola tira do bolso do sobretudo lornhões, óculos, lunetas e outros produtos ópticos: “Milhares de olhos olhavam e piscavam convulsivamente, dardejando Natanael; este não conseguia desviar o olhar da mesa, e Coppola continuava tirando cada vez mais óculos, e cada vez com mais voracidade olhares inflamados saltavam uns sobre os outros [estamos numa atmosfera de sonho ou pesadelo, não acham? O clima é mais onírico do que real. Como alguém poderia ter milhares de aparelhos ópticos consigo; e sua transformação em olhares inflamados?]atirando no peito de Natanael seus raios vermelhos de sangue. Dominado por um terror delirante, ele gritou: Pare, pare com isso, homem terrível!”. É a lembrança de Clara que acalma Natanael e o restitui à razão: “reconheceu que todas aquelas aparições eram fruto de seu cérebro, como também que Coppola era um mecânico e ótico extremamente respeitável e de forma alguma o maldito sósia ou fantasma de Coppelius”. Para compensar, compra um pequeno binóculo de bolso do sujeito: “Nunca em sua vida vira uma lente que trouxesse aos olhos os objetos de forma tão pura, límpida e nítida”. É assim que ele contempla o semblante de Olímpia do outro lado da rua: “Apenas os olhos pareciam-lhe estranhamente hirtos e mortos. Mas à medida que a contemplava com mais cuidado, tinha a sensação de que dos olhos de Olímpia saíam úmidos raios de luar”. E, é óbvio, apesar de Clara, ele fica “enfeitiçado” com a inebriante visão.
Haverá festa na casa do professor Spalanzani, com concerto e baile, e metade da Universidade fora convidada. Era a apresentação em sociedade, pela primeira vez, da filha. Natanael recebe convite: “Olímpia apareceu vestida ricamente e com muito bom gosto. Seu rosto e seu corpo, de belas formas, foram inevitavelmente admirados”. Mas muitos a acham rígida e comedida demais. Só Natanael está completamente deslumbrado, principalmente quando ela toca piano e canta uma ária (com voz límpida, evidentemente, com a “sonoridade de um sino de cristal”).
Na hora do baile, ele dança com ela: “A mão de Olímpia estava gelada, o que fez com que sentisse um arrepio mortal. Fitou-a nos olhos, que só lhe transmitiam amor e desejo, e naquele momento, foi como se as artérias de sua mão começassem a pulsar e o sangue da vida corresse ardente por suas veias glaciais. Ardendo de paixão [notem as antíteses, típicas do alto Romantismo], Natanael enlaçou a bela Olímpia pela cintura e deslizou com ela por entre os pares do salão”. Ele se declara a ela, que sofre uma estranha indiferença por parte dos outros rapazes. Quem parece satisfeito com a situação é o professor Spalanzani. Na hora de partir, Natanael beija a mão de Olímpia (que ainda não ouvimos dizer nada), a qual, “inclinando-se sobre a sua boca, tocou-a com seus lábios frios como gelo! Assim como quando tocara as mãos frias de Olímpia, viu-se penetrado por um profundo terror: repentinamente lembrara-se da lenda da Noiva Cadáver; mas Olímpia o abraçara com ternura e o ardor de seu beijo fazia com que seus lábios ganhassem vida”. Ele pergunta se ela o ama e ela responde duas vezes: “Ah, ah!”. Muito eloqüente, nossa amiga Olímpia [que já tem esse nome “olímpico”, distante, inacessível].
O professor convida o aluno a visitá-los com freqüência, já que ele conversou “animadamente” (sim, esse é o termo usado) com a filha. E os comentários sobre a festa espalham-se: “Não obstante o professor tivesse feito tudo para receber a todos com magnificência, as pessoas mais atentas puseram-se a contar toda espécie de fatos singulares, falando principalmente da inerte e muda Olímpia, a quem se atribuía, a despeito da formosura, uma total estupidez. Viam nisso a razão pela qual Spalanzani a mantivera isolada por tanto tempo”. Sigmund, um colegas, provoca Natanael por se entusiasmar por uma “boneca de madeira”. Ele replica: “Talvez a vocês, pessoas prosaicas, Olímpia possa parecer sinistra. Apenas ao espírito poético revelam-se tais personalidades… e só no amor de Olímpia posso reencontrar o meu ser!” E a essa altura ele esqueceu completamente de Clara: “ele só vivia para Olímpia, na casa de quem ficava diariamente horas a fio”. Olímpia o ouve, a seus textos, essas horas a fio, a ouvinte perfeita, não manifestando opiniões contrárias e críticas como Clara: “Ó, alma esplêndida e profunda, somente você me compreende” [esse Natanael parece tão bobão que até tem algo de cômico, como acontece com personagens de Goethe como Werther e Wilhelm Meister].
Natanael quer pedir Olímpia em casamento e é encorajado pelo pai dela. Resolve ofertar um anel que sua mãe lhe dera na despedida: “Naquele momento, as cartas de Clara e de Lotar lhe caíram às mãos, e ele com indiferença repeliu-as; encontrou o anel, guardou-o e correu à casa de Olímpia”. Ao chegar lá, percebe uma agitação tremenda no gabinete de trabalho do professor: “Arrastar de pés, um estranho ruído, batidas, golpes contra a porta, em meio a maldições e imprecações” . Ouve o seguinte diálogo (entre Spalanzani e Coppola): “Largue-a” “Não foi assim que combinamos” “Eu, eu fiz os olhos”, “E eu, o mecanismo” “Aos diabos com o seu mecanismo, cão maldito, relojoeiro simplório” etc. Adentrando ali, angustiado, vê o professor segurando Olímpia pelos ombros, e esta sendo puxada e arrastada por Coppola para outro, os dois brigando pela sua posse: “Coppola virou-se com uma força gigantesca e, arrancando o corpo de Olímpia das mãos do professor, aplicou-lhe, com a própria moça, um terrível golpe na cabeça, de forma que este cambaleou e caiu de costas sobre uma mesa cheia de retretas, tubos de ensaio, garrafas e cilindros de vidro; tudo aquilo se partiu em mil cacos. Coppola lançou então a figura feminina nos ombros e correu pela escada gargalhando horrível e estridentemente, fazendo com que os pés daquela miserável figura humana, dependurados desordenadamente, fossem quicando pelos degraus, estalando como madeira. Natanael estava atônito, com muita clareza pôde ver que o rosto de cera mortalmente pálido de Olímpia era desprovido de olhos, cavidades negras ocupavam seu lugar: era uma boneca inanimada”.
O sangue jorra do professor como se ele fosse um chafariz, em meio aos vidros quebrados, mas ele grita: “Coppelius, Copellius, você me roubou o meu melhor autômato, trabalhei nele durante vinte anos, dediquei-me de corpo e alma, o mecanismo, fala, andar, são meus, os olhos, os olhos, roubei de você, aqui estão os olhos… Natanael então percebeu no chão um par de olhos ensangüentados fitando-o fixamente”. Será que por ter espiado as atividades do pai aos dez anos ele sofrerá sempre esse castigo? Ele tenta matar o professor, mas chega uma multidão que salva Spalanzani e Natanael, dando golpes ao redor com os punhos cerrados (precisa-se de muita gente para contê-lo) e vociferando palavras sem sentido é encaminhado para o manicômio.
Spalanzani é obrigado a abandonar seu cargo na Universidade por causa do escândalo e da burla: “A fim de se convencerem por completo de que não estariam amando uma boneca de madeira, vários amantes exigiram que as amadas cantassem e dançassem um pouco fora do ritmo, que, ao ouvirem uma leitura, bordassem, tricotassem e brincassem com o cãozinho; mas sobretudo que não apenas ouvissem e falassem às vezes de uma maneira que as palavras demonstrassem o que realmente pensavam e sentiam… Nunca se pode saber com certeza, dizia um ou outro”.
E Natanael desperta como de um sonho pesado e horrível: “Abriu os olhos e percebeu que uma indescritível sensação de prazer o percorria com um calor suave e celestial. Estava na casa de seus pais, Clara se havia inclinado sobre ele, e não muito longe, estavam a mãe e Lotar”. Os sinais de loucura haviam desaparecido e ele recupera suas forças, graças aos cuidados da mãe, da noiva e dos amigos, Lotar e Sigmund. Acima de tudo, “reconheceu o espírito puro, divino e esplêndido de Clara. Ninguém fazia a menor alusão ao passado”.
Antes de mudarem todos para uma propriedade rural herdada, passeiam pela cidade e Clara propõe que subam até a alta torre da Prefeitura, para olhar as montanhas: “E lá estavam os dois namorados, de braços dados, na mais alta galeria da torre, olhando as profundezas dos bosques perfumados, atrás dos quais os picos das montanhas azuis erguiam-se como uma cidade de gigantes” . E, numa volta do parafuso, reentramos no elemento umheimlich, na atmosfera onírica ou de pesadelo: Natanael acha nos seus bolsos o binóculo vendido por Coppola (que é uma forma diferente de olhar, e sabemos os perigos dessa atividade para o nosso herói): “Clara estava diante das lentes! Um estremecimento convulsivo percorreu suas veias e seu pulso. Pálido, como a morte, fitou-a fixamente… De repente os olhos dela, girando em suas órbitas, expeliram raios de fogo; ele começou a uivar como um animal acuado… com uma violência formidável pegou Clara para precipitá-la lá de cima, mas ela, com medo de morrer, agarrou-se com firmeza à balaustrada”. Lotar assiste à cena e corre para socorrer a irmã. Ele arromba a porta: “Clara, erguida pelo furibundo Natanael, pairava no ar, do lado de fora da balaustrada… Rápido como um raio, Lotar pegou a irmã, atirou-a sobre a plataforma e no mesmo instante deu um soco no alucinado, de forma que esta cambaleou, soltando sua presa da morte. Lotar desceu correndo com a irmã desfalecida nos braços. Ela estava salva. Natanael corria pelo terraço, saltava no ar e gritava… Com essa gritaria selvagem, as pessoas acorreram, dentre elas o advogado Coppelius, que acabava de chegar à cidade… As pessoas queriam subir e dominar o louco furioso. Coppelius pôs-se a rir, dizendo: Esperem que logo ele vai descer sozinho, e, como os outros, olhou para cima. Subitamente, Natanael parou como que petrificado; então se debruçou, percebeu a presença de Coppelius, e com um grito, Ah, bonitos olhos, belli occhi, saltou por sobre a balaustrada. Enquanto Natanael, com a cabeça estraçalhada, jazia no chão, Coppelius havia desaparecido na multidão”.
O último parágrafo fala do destino da sensata e serena Clara: mais tarde encontrou um simpático homem, casou-se com ele, e numa bonita casa de campo criaram duas saudáveis crianças.

[1] Utilizo a tradução de Cláudia Cavalcanti para a coleção Lazuli da Imago, na coletânea Contos fantásticos que reúne ainda mais dois textos de Hoffmann.
[2] É um longo e digressivo titubear scherezadiano para chamar a atenção do leitor, simulando a dificuldade de narrar a história, após nos ter fisgado com as cartas. Uma observação deve ser citada: “Talvez, então, o leitor acredite que nada é mais fantástico e louco do que a vida real, e que o escritor só poderia apreender tudo isso como um reflexo confuso de um espelho mal polido”. Hoffmann acaba aqui com a idéia de mimesis enquanto “imitação”: a ficção apreende a vida na “deformação”, no reflexo confuso de um espelho mal polido.