Uma propriedade pode ser “presenteada” devido a uma intuição de afinidade espiritual? A história de um presente inapropriado, de um legado inusitado, é contada em Howards End. A editora Globo está fazendo um mais-que-bem-vindo relançamento das obras de E. M. Forster e o leitor brasileiro pode apreciar uma nova tradução, de Cassio de Arantes Leite, desse romance de 1910. A anterior (de Ruy Jungmann, lançada pela Ediouro) ocorrera por conta do sucesso, em 1992, da irretocável versão cinematográfica de James Ivory (que rendeu o Oscar a Emma Thompson)., o qual já fizera duas outras incursões no mundo do grande escritor inglês: o também inesquecível A room with a view-Uma janela para o amor; e o interminável (parece durar umas dez horas) périplo de um homossexual inglês descobrindo e revelando seu segredo de Brockeback Mountain que é Maurice.
Em Howards End, as irmãs Schlegel, Margaret e Helen, intelectuais e moderninhas, conhecem a caretíssima família Wilcox, a qual está em franca ascensão social, simplesmente pelo fato de possuir dinheiro. Num primeiro momento, Helen (a mais passional das irmãs) envolve-se com Paul, o caçula. Não dá certo.
Depois, Margaret (mais ponderada que Helen, numa relação que não deixa de evocar a relação Elinor-Marianne de Razão e Sentimento, de Jane Auster) aprofunda a amizade com mrs. Wilcox (no filme, uma outonalmente majestosa Vanessa Redgrave), solitária na própria família, e que num arroubo a convida um dia a conhecer a casa onde nasceu e que dá título ao livro. Não dá certo.
Mrs. Wilcox morre e seu marido recebe um bilhete no qual ela pede que se dê Howards End a Margaret (que terá de sair da sua própria casa natal). A família queima o bilhete. Anos depois, mr. Wilcox casa-se com Margaret, que de nada sabia. Dá certo?
Não foi à toa que Forster escreveu um ensaio famoso sobre a arte do romance. Seu narrador é um mestre de cerimônias que nenhuma adaptação poderia transpor (e sabemos os estragos que uma tentativa de fazer isso literalmente pode acarretar, Martin Scorsese e seu Época da Inocência que o digam). Ele conversa com o leitor, o provoca e o guia com brilhantismo pelo complexo painel social do período eduardiano, que sucedeu a Era Vitoriana. E esta não foi só a era da repressão sexual, como é de praxe mostrar. Foi também o cenário de imensas e decisivas transformações sociais. Em Howards End, Foster discute suas conseqüências, principalmente o desenvolvimento da metrópole, que desaloja as irmãs Schlegel e aliena mrs. Wilcox, provinciana, apegada às suas raízes. É por isso que Howards End, a propriedade, acaba por ser o símbolo da tensão entre os valores mais antigos (associada como é à terra e à natureza) e os valores conflitantes do capitalismo puro e selvagem e do idealismo não tão puro. E se achamos apaixonantes os dilemas de sensibilidade e éticos de Margaret e Helen, defrontadas com a crueza do materialismo da família Wilcox (tanto quanto a pobre Irene com relação ao marido no paradigmático O Proprietário, de John Galsworthy, contemporâneo de Forster e o único escritor da sua geração premiado com o Nobel), não podemos deixar de notar sua alienação e como todos, chamem-se Schlegel ou Wilcox, são parteiros do verdadeiro drama, cuja vítima é Leonard Bast, o representante dos desvalidos nesse casamento entre prosperidade e civilização (para quantos?).
Já se descartara antes a telúrica, quase visionária, mrs. Wilcox. Ela representa um tipo de mulher que Forster desenvolverá quase que até a santidade (leiga) na mrs. Moore do seu maior romance, Uma passagem para a Índia (filmado de forma tão cafona por David Lean). Mrs. Moore, que se encarnou com perfeição na genial atriz Peggy Ashcroft, outra vencedora de um merecido Oscar, é a minha personagem feminina preferida, como já contei aqui algumas vezes.
De todo modo, seja mrs. Wilcox, seja Len Bast, sejam as Schlegel, seja o narrador entretecido na tentativa de descobrir, já que o dinheiro é a trama do mundo, qual seria a tessitura, todos expressam perplexidades que ainda continuam. E como ficção, em Howards End trama e tessitura se entrelaçam levando o realismo à sua melhor forma.
(resenha publicada originalmente em 29 de abril de 2006, em A TRIBUNA de Santos, a partir de uma anterior, de 30 de maio de 1993)