MONTE DE LEITURAS: blog do Alfredo Monte

27/05/2012

A FICÇÃO DO POETA BENEDETTI

 

“Não é boa uma vida sem fantasmas, uma vida cujas presenças sejam todas de carne e osso ”

“Existem matizes, não? (Mario Benedetti)

(uma versão da resenha abaixo foi  publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em  06 de junho de 2009)

      UM ESPELHO POLIFÔNICO EM 45 FRAGMENTOS

    Quem escreve periodicamente sobre qualquer assunto, percebe, ao longo do tempo, que a tarefa não fica mais fácil, que o maior desafio é encontrar ganchos diferentes, formas diferentes de abordagem, e que na verdade estas últimas se reduzem a umas poucas variações. Por isso, acaba sendo providencial e confortável um gancho fornecido pelas efemérides da vida. Exemplo: a morte de Mario Benedetti, em 17 de maio, que coincidiu com o lançamento da tradução de Primavera num espelho partido (Primavera con  una esquina rota, em tradução de Eliana Aguiar para a Alfaguara).

O Uruguai tem um gênio: Juan Carlos Onetti, autor de romances que eu considero obrigatórios como A vida breve; Junta-Cadáveres; O estaleiro; Deixemos falar o vento e de contos igualmente notáveis (Tão triste como ela). Não conheço quase nada da prolífica obra poética de Benedetti (o que conheço não é de molde a me fazer um admirador), porém um romance como A trégua (1960) é suficiente para que ele não fique ofuscado pelo responsável por colocar nosso país vizinho no mapa da literatura.

mario benedetti

A trégua (ver resenha abaixo) era um exercício modelar da narrativa em primeira pessoa, imitando a forma de diário e ocultando, numa superfície de simplicidade, requintes psicológicos e de estilo.

Primavera num espelho partido é mais diversificado e ambicioso, um espelho polifônico (são muitos os narradores) estilhaçado em 45 fragmentos. Polifonia era a técnica que permitia o que o grande pensador russo Mikhail Bakthtín denominava “texto dialógico”: várias vozes na montagem das quais não havia hierarquia ou predominância (a nossa outra leitura da semana, As meninas, também pratica isso, embora ambos sejam aplicações mais simples do dialogismo bakthiniano que tem os romances de Dostoievski como a grande referência e cuja textura discursiva é bem mais complicada).

O núcleo do romance é uma família cujo pai “caiu” em decorrência do golpe de estado de 1973 (e a transformação do país naquela nossa velha conhecida latino-americana, a Ditadura) e a qual tem de se exilar na Argentina. Em torno desse núcleo, o autor constrói e diversifica  seis segmentos narrativos:

–Intramuros (mais tarde, Extramuros), com a narrativa em 1ª. pessoa de Santiago, o pai,  preso por “cinco anos,  dois meses e quatro dias”, e depois anistiado (“intra”, articulada, linear; “extra”, desarticulada, primavera num espelho partido). São oito capítulos;

–Feridos e contundidos, em 3ª.pessoa, e muito caracterizado pela abundância de diálogos, onde Graciela, a esposa de Santiago, é focalizada em sete capítulos;

–Don Rafael, com a narrativa em 1ª. pessoa feita pelo pai de Santiago (num dos capítulos há uma longa carta do próprio Santiago narrando ao pai o único assassinato que cometeu em sua militância política), em sete capítulos;

— Exílios, no qual às vezes Mario Benedetti é o personagem, às vezes ele se refere a compatriotas exilados (há até uma linda história de solidariedade, no capítulo chamado “Adeus e Boas-vindas”), em nove capítulos;

–Beatriz, na qual a narrativa em 1ª. pessoa é feita pela filha de nove anos de Santiago e Graciela, em sete capítulos;

–O outro, no qual o foco narrativo é um discurso indireto livre focalizando Rolando Asuero, useiro e vezeiro em citar versos de tangos, também exilado em Buenos Aires, como a família de Santiago (seu velho amigo) e que se torna o novo amor de Graciela,  em sete capítulos.

Portanto, o problema é que Graciela já não consegue mais amar o Santiago, e se culpa porque a condição de preso político do marido se arrasta durante anos, o que faz com que sua vida fique emperrada até que resolve declarar sua paixão por Rolando. Um dos aspectos mais pungentes na alternância de vozes do livro é que ao mesmo tempo temos acesso às cartas de Santiago, com sua paixão por Graciela, e conhecemos o embate que se passa dentro dela (o marido ficando a cada ano mais e mais fantasmático). Não haverá mais Penélopes à espera dos desterrados Ulisses? “Ah, se pudesse jogar no imperialismo a culpa por essas olheiras”, diz outro personagem. Também conhecemos o papel secundário que os maridos militantes (Rolando é um caso à parte, um solteirão inveterado, don juan) reservam às mulheres, o machismo-leninismo dos ilustres varões”.

Até voltar em 1983 ao Uruguai Benedetti viveu na Argentina, no Peru (de onde foi expulso). Durante alguns anos sua obra girou em torno da descompressão do golpe (com todos os sentidos que a palavra pode ter), o “desexílio”, como chamava.

Primavera num espelho partido, que é de 1982, se situa nessa fase, entre os poemas de Vento do exílio (1981) e os ensaios de O desexílio e outras conjeturas (1984). “O exílio (interior, exterior) será uma palavra-chave desta década”. O título tem sua justificação interna (fora sua justificação poética) no relacionamento entre Santiago e a mãe. Dom Rafael lembra: “Quando tínhamos apenas dois anos de casados, em um dos seus infreqüentes impulsos de confidência, que eram como uma concessão que nos fazia às vezes (a ela e a mim), disse que bom seria morrer ouvindo alguma das Quatro Estações, de Vivaldi. E muitos anos depois, exatamente em dezessete de junho de mil novecentos e cinqüenta e oito, quando estava lendo e de repente ficou imóvel para sempre, no rádio (não era sequer um toca-discos) estava tocando a Primavera.  Santiago ficou sabendo e talvez por isso essa palavra, primavera, tenha se ligado para sempre à sua vida.  É como o seu termômetro,  seu padrão, sua norma”…

Todos os personagens e situações do romance são interessantes, porém Benedetti é particularmente feliz na criação da pequena Beatriz. Além do tour-de-force da linguagem (mimetizando a lógica infantil, por isso é sensacional o capítulo em que ela confunde “poluição” com “polução”), há a perplexidade (que eu nunca vi ser tão bem colocada) da criança que tem um pai preso e de quem se diz que é um herói e não um criminoso. Como ajustar isso a uma percepção incipiente da realidade? “Liberdade quer dizer muitas coisas. Por exemplo, se você não está presa se diz que está em liberdade. Mas meu pai está preso e no entanto está em Liberdade, pois é assim que se chama a prisão onde está há muitos anos… Meu pai é um preso, mas não porque tenha matado ou roubado ou chegado tarde à escola. Graciela diz que meu pai está em Liberdade, ou seja, preso, por suas idéias. Parece que meu pai era famoso por suas idéias. Eu também tenho idéias, às vezes, mas ainda não sou famosa. Por isso não estou em Liberdade, ou seja, não estou presa… De forma que liberdade é uma palavra enorme. Graciela diz que ser um  preso político como meu pai não é nenhuma vergonha. Que é quase um orgulho. Por que quase? É orgulho ou é vergonha? Gostaria que eu dissesse que é quase vergonha? Estou orgulhosa, não quase orgulhosa, de meu pai, porque teve muitíssimas idéias, tantas e tantas que foi preso por causa delas. Acho que agora  meu pai vai continuar tendo idéias, idéias espetaculares, mas é quase certo que não fale sobre elas com ninguém, porque se falar, quando sair da Liberdade para viver em liberdade, podem fechá-lo outra vez na Liberdade.  Estão vendo como é enorme?”. Com uma realidade como a latino-americana (espelho partido) essa é uma lógica de rigor impecável.


   

24/05/2012

A tessitura da genialidade: “O pássaro de cinco asas” e “A trombeta do anjo vingador”

(as anotações e citações abaixo são excertos de apontamentos da leitura, em agosto de 2007 da edição conjunta—pelo Círculo do Livro—de A trombeta do anjo vingador e O pássaro de cinco asas, quando então planejava um curso sobre a obra de Dalton Trevisan que se chamaria “Curitibenses”, usando a palavra em lugar do correto “curitibanos” por causa de James Joyce e seu Dublinenses; ao todo, são 41 textos de um universo fabuloso e peculiaríssimo)[1]

“Quanto mais ele se humilhava, mais era exaltada: égua branca de fogo, terceiro olho na testa, querubim de cinco asas, não de seis dedos, boca de sete espirros.

   Negava-lhe o menor carinho:

__ A boca é para beijar meu filho!”

Dalton Trevisan é o gênio mimetizador de uma época em que o rural e o urbano ainda conviviam ostensivamente, em que a hipocrisia criava todo um fetichismo sexual, em que fantasia e realidade podiam conviver na linguagem (e ele mostra isso de forma magistral). Nele, o kitsch se revela como requinte autoral.

Veja-se o trecho abaixo do paradigmático Mister Curitiba (de A TROMBETA DO ANJO VINGADOR, 1977):

“Monstro de mil máscaras, desta vez quem seria? O confessor na cela da freirinha, de sete saias, a madre escutando atrás da porta? Um estropiado de guerra, a enfermeira suspensa no pescoço, girando sem parar na cadeira de rodas? O noivo de pé no corredor, rasga em tira a calcinha, os pais da menina .circo… Ela a domadora de botinha preta e chicotinho?

     Zumbia no ouvido um chorrilho de meigos palavrões…”

Ou este outro trecho, de As setes pragas da noiva:

“Em agonia, pedindo água, tapa nas costas, colher de azeite. E tossia, o maldito caroço entalado na garganta.

   Por mais que ela apontasse o olhinho negro espinho no bolso do pijama…”

Ou ainda (de Durma, gordo):

“Você sabe, não é? Então me diga, dona Chica: Por que a segunda empadinha nunca é tão gostosa? Por que o garçom não serve a segunda antes da primeira?”

E esta imagem genial (do extraordinário Questão de herança): “Sem responder, uma funda tragada, as bochechas murchas se beijaram”. E até o mundo dos michês adolescentes ele captura (em O caçador furtivo). E num dos meus contos prediletos, Meu pai, meu pai podemos ler: “Fim de noite um chorou nos braços do outro, pai e filhos bêbados. Se Pedro, que era Pedro, por três vezes negou a Jesus, por que não podia ele negar o pai?”

A tessitura da genialidade:

“Perdido de casa, sem dinheiro para o táxi, fugitivo do último inferninho…”

“…no fundo azedo das entranhas, floresce o lírio vermelho da azia…”

“Na adoração das nascidas rainhas da noite aberto o saco de presentes e distribuídos seus tesouros. Os três magos num só, em busca da estrela do Oriente, a quem ofertou o reloginho de pulso? Todo o ouro para a gorda do Tiki Bar? A mirra para a que era o palácio dos prazeres? O incenso para a Ritinha dos quatro mosqueteiros?”

“Na boca os mil beijos da paixão, sabendo uns a amendoim torrado, outros a batatinha frita…” (são todos trechos da obra-prima que é A longa noite de natal)

E do conto-título, “as mil pulgas da insônia”. E em O despertar do boêmio, “o  lírico e maldito rei da noite, maior tarado da cidade, último vampiro de Curitiba… À procura do sapato perdido na famosa viagem ao fim da noite… Enfia o roupão de seda azul com bolinha branca—lembrança da lua-de-mel… No mapa da babugem a rosa-dos-ventos indica os sete inferninhos da paixão… araponga louca do meio-dia…Tateia o pulso e, ó surpresa, ali está—um relógio à procura de uma bailarina?… Um noivo toucando-se para as núpcias com o sol…”

Achei uma anotação minha, da primeira leitura, já há quase vinte anos, no final de Galinha pinicando na cabeça: “conto genial, o melhor da coletânea inteira”. Não sei se afirmaria isso agora, contudo sei o que me atraiu: a crueza, a rapidez, a eficiência sintética e lapidar. Três páginas concisas que valem por dez: “De noite a gente quer se chegar. Mulher não é para isso? O calorzinho gostoso. Toda a alegria do pobre. Mãezinha do céu, por que ela não deixa? São oito filhos, o que é mais um?

   Essa traidora, depois de velha, não me quer na cama. Sou cachorro sem dono na chuva?”

E o eterno “doutor”, onipresente, ouvindo todas as torpezas, em tantos contos? E os eternos joões e marias. E tem o eterno amigo, André, que às vezes come a Maria.

“Se não vem, Maria, deixa eu…

   Guardada pelas verdes asas do dragão na parede.

__ Dormir com você?

    Fez biquinho, estalou a língua, tão pouco-caso.

__ Ah, é? Ah, é?

   Maria arregalou os grandes olhos putais. Não é que ele já de pistolinha na mão?

__Me acuda, Nossa Senhora. Me salve.

               (…)

   Abrindo a blusa em desafio:

__Atire, covarde. Atire em peito de mulher!” (A pombinha e o dragão vermelho).

E as deliciosas referências intertextuais: “Mudou o natal ou mudei eu?” “Janeiro é o menos cruel dos meses”. “outros barões assinalados”. E tem até um que sonha ser o “Fellini de Curitiba”, enquanto arruína uma puta, mas já estamos em O pássaro das cinco asas (1974):

“…a fabulosa égua do carro do Faraó (…) e se for gaguinha? Ou fanhosa? (…)Amor tão furioso, carro de bombeiro com a sirena uivando, a pobre Laura não podia ignorá-lo—a simples bolinha de papel que ela pisava era escorpião abrasado de fogo.

(…) No álbum de retratos antigos o calvário de sua perdição—normalista seduzida pelo próprio tio (…) Entre beijos soluçando que a crucificava de pequenas delícias, ó gostosão de todos o mais fogoso. Menos doida de paixão estivesse, não falaria assim, obrigado a recordar-se de quantos tipos a desfrutaram.

(…) Caçula mimado, o rapaz quase nos 30 anos, não trabalhava e sua mesada mal dava para o cigarro, o jornal, o cinema…”

Aliás, esse conto-título introduz um elemento novo, salvo engano: o intelectualizado, fã de Fellini e Bergman. Mas agarrado ás saias da mãe [e das putas, claro]. E há a narrativa sofisticada (no quesito tempo narrativo) em A segunda volta da chave. Já O gatinho perneta pressagia o rumo do hai-kai narrativo que o grande escritor curitibano trilharia.

E mais trechos:

“Sofria as noites curitibanas, cálice de conhaque na mão (…) á sua espera no final do corredor o sórdido quartinho de pensão.

   Era a mulher da minha vida. Por que é que eu não sabia? Como é que ninguém me contou? (…) Não tivesse ela casado com o garçom eu a esquecia. Hoje estava com outra. Agora fiquei preso a ela para sempre.” ( Noites de Curitiba)

“(…)barata leprosa

    Cambaleando ou não, os bêbados são o verdadeiro mistério do mundo (…) Ou como você explica que, por mais labirintos em que se enveredem, nunca se percam no caminho, encontrem sempre a porta exata, que fecham atrás de si com a segunda volta da chave?

 (…) O triste da noite é dormir com uma mulher”. (O guardador de bêbados)

“Esfregava o bigodão na perna gorducha, deliciando-se ao ver a pele que se arrepiava e os pelinhos que se eriçavam. Tivesse ali na coxa uma pinta de beleza? Não é—intuição? Visão do paraíso? Milagre?—que tinha mesmo, olho negro de longas pestanas.” (Peruca loira e botinha preta)

“(…) a moça pagou o táxi e o hotel.

   Alisava a costeleta e exibia a falha do pré-molar—o galã penteia mil vezes o fulgurante cabelo negro, sempre esquece de escovar os dentes…” (um dos melhores entre os melhores: A noite não tem segredos)[2]

  Adoro A rosa despedaçada, um daqueles contos mini-biografias em que ele é mestre:

“…um gigante de 18 anos, dono da única moto da cidade.

(…) Em bacanal no famoso quarto de espelhos, surpreendida no uniforme de normalista.

   À saída, preveniu o rapaz que de nada lhe valia conhecer as 64 posições do KAMA SUTRA, gritar de amor só com o infame Josias, arrebatada para sempre na garupa da moto, franguinha ao vento.

  O moço chorou de ódio, assim mesmo casou.”

Tem o telefonema-paradigma para a esposa, após a noitada de farra e excesso, e não ter chegado no “santo lar”: “Insistiam os amigos que dona Maria era uma santa, ele rato piolhento de esgoto. Santa podia ser, mas imprestável na cama.” E a frase-paradigma da mulher sobre o homem “desgracido”: “Assim que ele morra eu começo a viver”.

Entre os contos que eu destacaria, estão  Que fim levou o vampiro de Curitiba?, narrado pelo indefectível Nelsinho, e Eu, bicha:

“…que foi feito do inocente menino?

(…) O corpo de moço bonito, mais bem construído que o da mulher, não pode ser altar de sacrifício?

(…) corredor do Cine Curitiba (ali era chão sagrado)

…Django

…barata leprosa de olho pintado

(…)observavam de mão no bolso…”

   Trevisan sempre capricha nos seus títulos. Mas Última corrida de touros em Curitiba é quase insuperável.

Cito agora os dois extraordinários parágrafos finais de Moela, coração e sambaquira:

“Todas as noites do velho são dores, eis que vem o fim. No tempo das aflições minha alma é uma lesma aos uivos que retorce os chifres e se derrete no pires de sal. Devo catar as migalhas debaixo da mesa? Morder a pelanca do meu braço?

  (…) Que gosto tem a gota de sangue na gema do ovo (…) se não posso ter a minha sopa de bucho com dois aperitivos e um pão, só me cabe morrer (…) O rei da terra, quando a peticinha oferecia, erguendo um canto da saia e exibindo a grossa coxa nua: Aqui tem bastante, meu velho, para a tua fome?”

Agora: terrível mesmo é Ó doce cantiga de ninar, no qual a mãe “satisfaz” o filho, mostrando que até no aleijamento e retardo a gente não se livra do desejo e do instinto sexual, é a nossa maldição, pelo menos das formas que vivemos isso.

E Os velhinhos é o fecho perfeito para a coletânea, com seu malicioso título que evoca qualquer coisa de cândido e com um sopro nostálgico, e mostra o inferno humano, a falta de sabedoria mesmo na avançada idade:

“…única diferença de um para outro quarto é a morrinha de cada velho, ali a catinga de cachorro molhado, aqui a tristura de papagaio piolhento.

…lambem as migalhas esses que, um dia, poderosos e terríveis, foram os reis da terra… Mais que se enfeitem, não passam de velhinhos sebosos (…) A primeira janela que se ilumina no edifício vizinho encontra-os no canto escuro, passando o binóculo um para o outro (…) É suficiente olhar, espiar, frestar. Não sozinho, na doce companhia tenebrosa dos outros (…) enxame fervente de baratas leprosas na cinza do fogão…”


[1] Sou eternamente grato à coleção “Literatura Comentada” da Abril Cultural que me apresentou, entre outras, a obra de Dalton Trevisan. Foi no volume dedicado a ele que me apaixonou por Virgem louca, loucos beijos; logo depois, li Cemitério de elefantes e então o mal já estava feito.

[2] Aliás, naqueles dias de leitura do livro de Trevisan assisti numa madrugada qualquer, no Canal Brasil, um filme dos anos 1970, Bordel-Noites proibidas, que me ajudou deveras a entender ainda mais esse clima sórdido, com seus atores velhos em cenas de cama deprimentes, maus tratos às mulheres, babujando, com ar de taradas, e assim mesmo, com toda essa caíção, refletindo o gosto do público. Por que, em caso contrário, por que fariam tal filme? A que demanda ele atendia?

MISÉRIAS MINIMALISTAS: Dalton Trevisan

(resenha publicada originalmente em “A Tribuna”, em 24 de novembro de 2009)

      A primeira coletânea “’oficial” (parece que havia uns volantes anteriores, uma espécie de literatura-mimeógrafo avant la lettre, que se tornaram famosos na Curitiba da época) de Dalton Trevisan, Novelas nada exemplares, foi lançada em 1959. Neste meio século, ele publicou uma seqüência extraordinária de títulos (Cemitério de elefantes; O vampiro de Curitiba; A guerra conjugal; O rei da Terra; O pássaro de cinco asas; A trombeta do anjo vingador; Virgem louca, loucos beijos, para citar alguns), fazendo jus, após a morte de Guimarães Rosa e Clarice Lispector, ao posto de nosso maior prosador vivo, pelo menos para mim, que o adorei de cara, assim que comecei a ler seus textos. Em meados dos anos 80, estava no apogeu quando publicou o inusitado romance A polaquinha, que nasceu com vocação de obra-prima.

Já na época em que minha coluna em “A Tribuna” se iniciou (1993), depois de livros como Dinorá e Ah, é?, eu me perguntava se o grande escritor curitibano não ficara em “ponto morto”. De fato, colocando no mercado praticamente uma obra por ano, a impressão que, ligado o piloto automático, cada uma delas era a mesma com novo título. Por esse motivo, fazia alguns anos que nem me dava ao trabalho de ler seus últimos textos, como Macho não ganha flor ou O maníaco do olho verde.

Violetas e pavões  (não confundir com o belo Violetas e caracóis, de Autran Dourado) se tornou assim, uma bela surpresa. Como já confessei, não li a produção mais recente de Dalton Trevisan e não posso avaliar se as qualidades dessa coletânea estavam presentes nas anteriores; baseando-me apenas nela, no entanto, afirmo que nosso maior contista está dando conta da realidade do século 21. É lógico que parte dos 22 textos ainda se voltam para suas obsessões recorrentes com os fetiches sexuais da pequena burguesia, o que nos proporciona deliciosas, porém manjadas (para o leitor habitual de Trevisan) brincadeiras como, por exemplo, “Lábios vermelhos de paixão”: “Minha putinha é o encontro místico das ondas do céu e das nuvens do mar. Já lambida do licor de abelha rainha –os pentelhos emaranhados, os grandes lábios trêmulos, o vale das sombras no portal das coxas fosforescentes”).

O surpreendente em Violetas e pavões é a substituição dos filhinhos de boa família que se pervertem em fantasias sexuais delirantes, nos bas-fonds de Curitiba, ou dos egressos de um mundo ainda rural insistindo nos seus direitos de macho e vivendo em perpétua e sórdida guerra conjugal, pela terrível realidade que inunda o noticiário atual. Temos agora vidas regidas pelo tráfico onipresente, pela necessidade incessante de drogas como o crack, pelas passagens na polícia, pelas prisões inúteis, pelo flerte com a bandidagem e a contravenção, mesmo de empregadinhos “honestos”. Nesses contos ou nos micro-textos (que ironicamente imitam a diagramação da poesia) é que Trevisan renova sua obra, de uma forma aterradora.

Ainda temos a modernização das temáticas mais antigas: a velha professora que mergulha num inferno dantesco ao ser internada num hospital público (“’Misericórdia”), a filha obrigada pelo pai a substituir a mãe (que se mandou com o amante) como parceira de cama, o que evoca o mundo constitucionalmente patriarcal da obra daltontrevisiniana (“Ele”), a sordidez miserável da guerra conjugal no caso do marido que joga álcool na mulher e a deixa toda queimada, e que, saído da cadeia, a obriga a aturar sua presença sempre por perto e ameaçadora (“Cachaça e pamonha”).

Mas os contos verdadeiramente renovadores são aqueles que, como “A desgraça de Zeno”, “Aprendiz de traficante”, “Não sou o Buba”, “Tenha uma boa noite!” ou “Elas cantam só pra mim”, nos proporcionam numa impressionante miniatura, verdadeiros short cuts os contornos da nossa atualidade. Nesses contos, Trevisan consegue o milagre de chegar quase ao “grau zero de escritura”: geralmente são em primeira pessoa, mas em certo ponto parece que essa voz se torna anônima, e estamos ouvindo conhecidos, gente que escutamos de passagem, jornalistas relatando fatos que adquirem contorno de  “lendas urbanas”.

Parece que chegamos a um estado de mito, em que tudo é ritualizado e reatualizado: a mulher que resolve ir à Bolívia e traficar, e que é roubada por falsos (falsos?) policiais, o rapaz que recebeu seu salário e que, após uns chopes, tem de voltar para casa (e para as reclamações da mulher grávida) através de uma área “barra pesada”, o rapaz que tem de reconhecer o corpo do irmão abatido por traficantes a quem devia, o fotógrafo que gosta de fumar seu baseadinho e que é pego num excesso de zelo por guardas municipais e que se complica porque tem fotos comprometedoras de menores em seu laptop…

Vejamos um exemplo:

“A polícia sabia da casa 749 do tráfico ali perto. Foram até lá. Direto pelo caminho de sangue e os sinais de luta.

     No quarteirão escuro a única de luz acesa.

      A equipe rodeou quietinha. Daí um grito lá dentro: A polícia, turma. Sujou, é a polícia!

     Um deles quis pular a janela e quando viu o cerco, voltou. A casa foi invadida. Tinha ali dois tipos de olho vidrado, três mulheres e uma ou duas crianças. A tevê ligada, um monte de latas de cerveja pelo chão. Até salgadinho e pipoca.

    No canto uma calça jeans –epa! A barra ainda molhada de sangue. Numa gaveta um revólver 38, outro 22, bastante munição.Armas e calça foram apreendidas.  Isso pelas duas e meia da manhã.” (Esse trecho faz parte do relato em primeira pessoa do irmão do assassinado personagem título de “A desgraça de Zeno”; note-se o relato impessoal, em tom de noticiário, que poderia ser feito por qualquer um).

É quase um trabalho de linguagem invisível porque tão parecido com o que se conta e reconta por aí, nas ruas, nos jornais, nos botecos. Dalton Trevisan, o Homero minimalista das pequenas guerras de Tróias compostas por corrupção policial, balas perdidas, dívidas de tráfico e salários curtos.

Aos 50 anos de carreira, o mestre renova sua fórmula.

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22/05/2012

Destaque do Blog: ADÃO NO ÉDEN, de Carlos Fuentes (1928-2012)

“O narrador é um empresário muito poderoso que vê como o país está sendo minado pelos narcotraficantes, por diversas formas de corrupção, e que decide ganhar dos narcotraficantes e dos criminosos em seu próprio jogo, sendo mais criminoso que eles.”

“Se não houvesse a demanda norte-americana, não haveria a oferta mexicano… não creio que mesmo Obama, que é um político bem-intencionado, se atreva a descriminalizar a droga nos Estados Unidos.”

Adão no Éden se baseia nas notícias que qualquer um lê todos os dias no México nestes tempos. É o romance de um leitor de periódicos e as notícias têm a ver com execuções, violência, crime organizados e chefões da droga.”

“Um primeiro plano grotesco nele no qual a atualidade (mexicana) se cola por muitos lados. Há duas maneiras de ler um romance: o que se diz e o que se deixa de dizer.”

“Dou minha opinião política em meus artigos jornalísticos e todo mundo a conhece, porém um romance é um espaço muito mais amplo, uma vez que nele se intenta dar escopo a muitas vezes, inclusive as divergentes.”

“Nesta novela  intentei mesclar gêneros, há de saída uma relação crucial com o que se chama em literatura a pequena história, que é de fato a notícia da imprensa, grandes romances têm se baseado na pequena história.  Há uma relação entre o romance e a imprensa.”

“É possível nela como um noticiário da realidade mexicana, há uma pequena história inserta na grande história da nossa atualidade, uma atualidade que poderia ser vista como um dramalhão, porém a melhor definição de dramalhão que escutei é que o dramalhão é a comédia sem humor. Prefiro a comédia com horror e é o que ofereço neste romance, a fim de deixar claras as convenções que regem tanto a imprensa  como a história, e mesmo a ficção, a fim de explorar constantemente, e creio que é uma das missões do romance, a outra maneira de dizer as coisas e ao fim e ao cabo de usar uma linguagem, a do romancista, que ilumina outra linguagem que é a da imprensa, da política, do crime e do sexo.”

“O romance é um conjunto de elementos de horror e humor, uma mescla de gêneros que na literatura se chama ´a pequena história’, que são notícias da imprensa que servem de inspiração para compor um romance.”

“Este é um romance do que nos assola no México: o crime, o narcotráfico, a presença carcerária.”

(declarações de Carlos Fuentes sobre Adão no Éden)[1]

“…Que tudo isso passou pela cabeça de Adão Gorozpe (que sou eu, o que narra, mas que não sou eu, o que antes fui) é indubitável, tão indubitável como a celeridade do pensamento, unido á velocidade do ato previsto ao introduzir o pênis na nada virginal Zoraida. Não é isto o extraordinário, mas o que então ocorreu, sem intervenção alguma de Zoraida ou de Adão.

Tremeu. Foi o grande tremor de 19 de setembro de 1985, quando boa parte da Cidade do México foi destruída, sobretudo a área edificada sobre antiquíssimos lagos e canais que naquela manhã em que eu estava deitado com Zoraida retornaram para reclamar seu fluxo soterrado.

Mexiam-se as luminárias, os tetos, os móveis,  soavam os cabides dentro dos armários, caíram no chão as imagens da Virgem de Guadalupe neste quarto e em todos os do bordel de Durango,a louça e as vaginas troaram, as pontes e as estradas se desvaneceram e fora do prostíbulo a cidade despertou sobressaltada consigo mesma, abertos os olhos para tudo o que a metrópole era e havia sido, como se o passado fosse  o fantasma adormecido do México, o grande Deus da Água que ressuscita de vez em quando e, como não encontra leito, chega agitadamente, sacode seu corpo capturado entre cimento e adobe […]

O fato é que eu, Adão Gorozpe, no ato de penetrar uma bela mocinha de olhos verde-cinza e cabelo solto, fiquei preso dentro de seu sexo.

Assim mesmo. Preso. A vagina de Zoraida se contraiu com o medo e com a simples sensação de que algo estranho estava acontecendo, e eu fiquei prisioneiro num sexo transformado em cadeado.

Não sei o que aconteceu. Por um lado, senti o terror combinado de um terremoto e de uma prisão. Eu não era dono de minha virilidade. Zoraida tampouco de sua feminilidade. Meu corpo de homem e o corpo da mulher juntos como os de dois cães vira-latas que não conseguem se soltar, isso me enchia de pavor […]

Aconteceram então três coisas.

Parou de tremer e os corpos se separaram com um suspiro, não sei se de alívio ou de pesar. Em todo caso, com agonia.

Eu me levantei da cama e abri as cortinas. O ar ululava de sirenes. Havia poeira por todas as partes e alguns soluços distantes.

Olhei para fora. Havia tremido. Passou um astro. A manhã foi violada por um terremoto e redimida por um cometa que seguia a órbita do sol nascente. Sua cauda luminosa abarcava a cidade, o país, o mundo inteiro […]

Eu me afastei da janela.

Zoraida havia acordado.

Olhou meu corpo nu, primeiro com uma espécie de aprovação dorminhoca.

Depois, deu um grito…”

(trecho de Adão no Éden)

(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, de forma mais condensada, em 22 de maio de 2012)

Recentemente, na minha coluna de A TRIBUNA e neste blog  comentei Aura, um dos dois grandes textos de Carlos Fuentes (o outro é A morte de Artemio Cruz) que chegaram em 2012 ao cinquentenário e o projetaram entre as figuras de proa do chamado boom latino-americano, o qual tornou conhecidos mundialmente nomes que são ainda referência tanto na ficção (Borges, Garcia Márquez, Vargas Llosa…) quanto na poesia (Neruda, Octavio Paz…).

Mas que bom que haja um lançamento recente, Adão no Éden (Adán en Edén, 2009, em tradução de Carlos Nougué editada pela Rocco), para homenagear o escritor mexicano, falecido no último dia 15 (seria difícil abarcar sua produção: só em traduções brasileiras contamos com cerca de 22 títulos, muitos deles traduzido por Nougué e lançados pela Rocco).

Nele, o narrador Adão Gorozpe guarda um segredo momentoso, verdadeiramente bíblico, só sabido por uma prostituta (após uma relação traumática para ele, pois interrompida por um terremoto que assusta tanto a parceira que ela contrai o seu sexo e aprisiona o do amante de forma férrea, como podemos ler na citação acima) e por seu grande amor, chamado de Ele, com quem se encontra às ocultas, e com o qual vive o “presente”, sem as prisões do vivido: “Decidi carecer de memória, e já é hora de o leitor sabê-lo. O que lembro não desejo. O que desejo não lembro.” Talvez só assim se possa ser de fato Adão no Éden.

Gorozpe é um eminente empresário, que se fez na vida dando o proverbial golpe no baú. Não suporta a esposa (cujos hábitos encantadores são a flatulência em eventos sociais e esbofetear as empregadas) nem o sogro (o Rei do Pão, dono de uma cadeia de panificadoras, católico desabrido). No momento em que a narrativa se inicia, sente palpavelmente que perdeu as rédeas da sua vida, que seus funcionários já não mais lhe são leais (passam de uma hora para outra a usar óculos escuros que lhes escondem as expressões), que o país mergulhou no caos do narcotráfico, e que, portanto, o poder constituído, a Ordem, que já não era lá muito justa e harmônica, se deixou arrastar para veredas modernosas e globalizantes ainda mais tenebrosas de corrupção, de invasão do crime organizado em todas as esferas da vida social e política; não bastasse isso, surge outro Adão, sobrenome Góngora, que lhe quer usurpar o status, assim como se apossou da “legalidade” no país, sendo o chefe de polícia e ao mesmo tempo o principal gângster.

Como em Terra Nostra (mas sem as dimensões oceânicas deste seu outro romance muito famoso, de 1975, pois Adão no Éden é curto), Fuentes manipula presságios e referências esotéricas (curiosamente, omitidas pelo autor na sua caracterização do livro, como podemos ler acima): há a discussão sobre a passagem dos cometas ao longo da história e um menino-Deus interrompe o tráfego na capital do país pregando uma regeneração espiritual. A ironia é que o milagroso não está no que se proclama, mas no que se esconde.

O que me encantou foi a surpreendente molecagem de Carlos Fuentes, que à época do lançamento do livro, chegara aos 80 anos. Como outros macróbios audazes da grande literatura (Saramago, com Caim, Nadine Gordimer, com De volta à vida), ele se apresenta irreverente, subversivo, manejando com fluência a matéria atual com um frescor de linguagem que, tivesse lançado o romance com pseudônimo, seria atribuído a um autor com muitas décadas a menos nas costas. Há uma vitalidade no ritmo de Adão no Éden que o torna, de saída, bem acima da média.

Porém, eu sempre tive um pé atrás com Fuentes, por desconfiar de que poderia estar levando gato por lebre na leitura da maioria das suas obras, devido a certos truques de araque, certas veleidades metalinguísticas rançosas, certos jogos de linguagem inúteis (pelo menos, na tradução; mas, como é uma constante na sua produção, acho que não é culpa de Nougué), que a mim certamente nunca agradaram. Depois do capítulo 25 (num total de 43), esse infeliz vezo fuentesiano vai se disseminando aqui e ali e prejudica em larga medida a parte final de Adão no Éden: a mixórdia espreita onde se pensava que o autor iria dar conta da tentacular realidade da desmoralização da sociedade mexicana. É uma lástima porque nas primeiras cem páginas do romance eu acreditava que Fuentes iria realizar o feito de sintetizar seu país no início do século XXI.

Ao fim e ao cabo, talvez a grande síntese esteja na totalidade problemática e fascinante da sua obra, que se torna o espelho fiel desse país tão multifacetado. Como se diz no livro (aliás, num dos seus momentos mais discutíveis):

“__Necessidade de adiar os desfechos:

__ Não há desfecho. Há leitura. O leitor é o desfecho.”


[1] «El narrador es un hombre de empresa muy poderoso que ve como está siendo minado el país por los narcotraficantes, por formas diversas de la corrupción y que decide ganarles a los narcotraficantes y a los criminales en su propio juego siendo más criminal que ellos»

«Si no hubiese la demanda norteamericana no habría la oferta mexicana…no creo que ni siquiera Obama, que es un político bienintencionado, se atreva a despenalizar la droga en los Estados Unidos.»

«Adán en Edén está basada en las noticias que uno lee todos los días en México en estos tiempos. Es la novela de un lector de periódicos y las noticias tienen que ver con ajusticiamientos, violencia, crimen organizado y capos de la droga.»

«Un primer plano grotesco en el que la actualidad (mexicana) se cuela por muchos lados. Hay dos maneras de leer una novela: lo que se dice y lo que se deja de decir.»

«Yo doy mi opinión política en mis artículos periodísticos y todo mundo la conoce, pero una novela es un espacio mucho más amplio, en el que uno intenta dar cauce a muchas voces, incluso aunque sean voces divergentes.»

«En esta novela intenté mezclar géneros, hay desde luego una relación crucial con lo que se llama en literatura la pequeña historia, que  es realmente la noticia de prensa, grandes novelas se han basado en la pequeña historia. Hay una relación entre la novela y la prensa. »

«Es posible ver en ella como un noticiero  de la actualidad mexicana, hay una pequeña historia inserta en la gran historia de nuestra actualidad, una actualidad que podría ser vista como un melodrama, pero la mejor definición de melodrama que he escuchado es que melodrama es la comedia sin humor. Yo prefiero la comedia con horror y es lo que ofrezco en esta novela, a fin de hacer conscientes las convenciones que rigen tanto a la prensa, como a la historia, como a la ficción misma, a fin de explorar constantemente, y creo que es una de las misiones del novelista, la otra manera de decir las cosas y al fin y al cabo de usar un lenguaje, el del novelista, para iluminar otro  lenguaje que es el de la prensa, el de la política, el del crimen y el del sexo.»

«La novela es un conjunto de elementos de horror y humor, son una mezcla de géneros que en la literatura se llama ‘la pequeña historia’, que son noticias de prensa que sirven de inspiración para hacer una novela.»

«Esta es la novela de lo que nos está asolando en México: el crimen, el narcotráfico, la presencia carcelaria. »

Oncologia, Ecologia, Ontologia: “De volta à vida”, de Nadine Gordimer

nadine

Em Get a Life-De Volta à Vida (em tradução de Ivo Korytowski para a Companhia das Letras), Nadine Gordimer relata uma série de eventos dramáticos envolvendo a família de seu protagonista, Paul Bannerman: ele passa por uma “quarentena” obrigatória, após a operação de extração de um tumor maligno na tireóide e a aplicação de iodo radiativo; seu pai, numa viagem ao México, conhece outra mulher, apaixona-se e nunca mais volta para sua mãe, a qual, por sua vez, adota uma menina negra (é a África do Sul pós-apartheid) de três anos, que fora estuprada, contaminada com o vírus HIV e abandonada; sua própria esposa engravida novamente, contra a sua vontade.

Além disso, há a luta do grupo de ambientalistas do qual Paul faz parte contra projetos governamentais ecologicamente ruinosos: a destruição de dunas e de um delta cuja extensão o faz ser identificável até do espaço. A humanidade, a “civilização” como tumor maligno na natureza, desafiando sua capacidade de recuperação, uma “quarentena” muito além da capacidade imaginativa do indivíduo.

Não faltam, portanto, elementos para compor mais um vigoroso painel contemporâneo, com a musculatura narrativa que a grande escritora sul-africana alega ter desenvolvido tarde em sua carreira (mais especificamente, a partir de O Falecido Mundo Burguês, de 1966), em reação à sua “sensibilidade aguçada”, mais propensa a envolver a vida num envelope transparente na esteira de uma Virginia Woolf. Numa das famosas entrevistas da “Paris Review” ela declara: “minha luta tem sido para não perder a agudeza de captar nuances de comportamento e casá-las com sucesso a um talento narrativo. Porque a espécie de assuntos que estão ao meu redor, que me atraem, que vejo e me motivam, exige uma forte habilidade narrativa”.

Os resultados dessa luta não podiam ser melhores: o mosaico de uma sociedade repressiva e dividida, e sua posterior e conflituosa superação (“mas, é claro, num certo sentido você é ‘sortudo’ se tem grandes temas”), em romances já clássicos como The Conservationist- O Amante da Natureza (ganhador do Booker Prize em 74, publicado no Brasil apenas em 82), A Filha de Burger, O Pessoal de July. Neles, e em trabalhos mais recentes, como Ninguém para me acompanhar ou A Arma da Casa, a determinação é quase balzaquiana, mesmo com a apurada sofisticação técnica: é uma realidade social específica que está sendo delineada diante de nossos olhos (evidentemente, daí advém a sua eficácia universal, a velha história de que falando da nossa aldeia…).

Pois bem, com todos os conflitos que permeiam o livro, com toda essa tarimba, Nadine Gordimer manda tudo às favas em De Volta à Vida, desossando a tal musculatura narrativa desenvolvida por ela, desencarnando-a mesma, e nada ficando a dever a mestres da insubstancialidade contemporânea: Don DeLillo, Bernardo Carvalho, Paul Auster, João Gilberto Nöll. Acompanhando o estado fantasmático que cerca Paul Bannerman desde sua “quarentena”, ela nos apresenta a realidade sul-africana num puro “envelope transparente”, digno de Virginia Woolf, num estilo quase a ponto de se desfazer, de se volatilizar, que eu só tinha visto até hoje, com essa intensidade, nos romances de Joan Didion, Democracia e A Última coisa que ele queria, uma espécie de má vontade com o material que tem de lidar (e que visto do espaço, em escala cósmica…) e frases-refrão que reaparecem e reaparecem, dando ritmo a esse estranho sussurro narrativo, que persiste na reticência intransigente do que poderia ter sido um grande romance tradicional.

Mas que romance tradicional poderia surgir quando se lida com o inconcebível, quando as pessoas têm de se acomodar ao intolerável (esse “tema” que é tão caro ao compatriota de Gordimer, J.M. Coetzee, e que rendeu uma obra-prima como Disgrace-Desonra): “… O que aconteceu —essa formulação implica o passado, o que existe agora é um presente sem existência no domínio das experiências fornecidas…”?

Se Doris Lessing, aos 82 anos, impressionou com o fôlego épico de O Sonho Mais Doce (2001), também de certa forma mostrou-se estática (mesmo com toda a sua autoridade) na exploração do mesmo universo das  obras anteriores (é que o universo lessinguiano é rico e vasto), Gordimer (que também chegava aos 82 no ano da publicação original de De Volta à Vida, 2005) surpreende e faz um dos romances mais atrelados, ou entrelaçados, ao que conhecemos pelo nome vago de pós-modernidade. E assim como o corpo de Paul Bannerman irradia invisivelmente seu perigo, e assim como falamos em escombros (da tradição narrativa, da África do Sul do apartheid, do meio ambiente), falemos também de um talento, ainda que inaparente, que irradia perigo (“açula a atenção, isca-a com o risco”, como no poema de João Cabral de Melo Neto): o leitor pode ficar tão fascinado por ele que não aceite mais outro tipo de texto representativo de nosso zeitgeist, do espírito da nossa época. Assim, com uma simplicidade alucinante (que parece ser típica dela), essa senhora octogenária se torna a escritora mais moderna, up to date, do mundo.

(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos,  em  27 de outubro de 2007)

get a life nadine gordimer

20/05/2012

ATOS DE INSURREIÇÃO ÉTICA (primeira parte): “Ensaio sobre a cegueira”

O novo romance de José Saramago, Ensaio sobre a lucidez (que vem  sendo recebido com reservas pela crítica), vem formar dupla com o belíssimo Ensaio sobre a cegueira (1995), o qual, para mim, representou um marco na obra saramaguiana, e ainda é o livro do grande escritor de que mais gosto (embora tenha uma admiração especial e diferente, mais do ponto de vista literário mesmo, por O ano da morte de Ricardo Reis).

Saramago já escrevera coisas extraordinárias (Memorial do convento, o próprio Ricardo Reis), já havia hiper-humanizado Cristo e levado a cabo a mais terrível acusação a Deus em O Evangelho segundo Jesus Cristo. A partir de Ensaio sobre a cegueira começou a se operar na obra dele uma tendência definitiva à alegorização: um núcleo alegórico central e desenvolvido até as últimas conseqüências.

Em contrapartida, assiste-se a um processo pedagógico, através do qual –entre perdas e danos— algo se aprende e fica com o leitor para sempre. Assim foi também com Todos os nomes e A caverna. Essa série de livros representa o encontro mais conseqüente entre o ético e o estético na contemporaneidade e causa espanto que as pessoas se preocupem mais com a suposta estranheza da pontuação e do uso das maiúsculas no estilo saramaguiano.

Ensaio sobre a cegueira narra uma epidemia de “cegueira branca”, que leva o governo a isolar, num manicômio, os atingidos que, ali, vivenciarão os horrores daquilo que se convencionou chamar de “universo concentracionário” (o século XX, com os campos de concentração nazistas, stalinistas etc, proporcionou experiências mais que suficientes para a imaginação). Falta de respeito, descaso, estupidez e violência. Falta de higiene, querelas e quizilas, a tomada de poder por uma quadrilha de cegos, que passa a extorquir pertences e favores sexuais (há estupros coletivos).

Duas pessoas ali estão e não são vítimas da “cegueira branca”: a esposa de um oftalmologista que cegou, a qual insistiu em permanecer com o marido afetado, e um cego “normal”, que faz parte da quadrilha. Um incêndio no manicômio, abandonado pelas autoridades, jogará no mundo essa mulher e um pequeno grupo nas ruínas da cidade, pois o mal se alastrou.

É um grupo pungente, que tem o acréscimo de um cão que passa a acompanhá-lo para o que der e vier e   que bebe lágrimas (Saramago e um dos autores que mais pertinentemente incorporaram animais ao seu universo narrativo, não por acaso um dos pontos mais fortes de seu “processo contra Deus” em O evangelho segundo Jesus Cristo seja a crueldade para com eles).

É um grupo que, apesar de ninguém ser nomeado, vai personalizando-se cada vez mais para o leitor, transcendo o horror da massa, tal como vemos pelas terríveis cenas no manicômio e depois nas ruas da cidade até que uma “cura” tão gratuita quanto a aparição do mal chegue. Porém, como já afirmei outras vezes, é improcedente pensar em Kafka e seguidores ou em autores do teatro do absurdo, entre os quais a cegueira e um assunto curiosamente recorrente. A leitura de Saramago não leva ao desespero nem ao sentimento de impotência. Isso se deve principalmente aos seus personagens femininos. Ao lançar agora Ensaio sobre a lucidez, e isso veremos na próxima seção, ele faz surgir novamente a mulher do médico que não perdeu a visão. Fez bem, é a maior personagem feminina da ficção de nosso tempo.

nota versão de artigo anterior [de 12 de dezembro de 1995]  publicada de forma ligeiramente diferente, em 4 de maio de 2004; haveria ainda uma outra versão, em 13 de setembro de 2008,  em A TRIBUNA de Santos, como as anteriores, por conta do lançamento do filme de Fernando Meirelles. Essa versão termina da seguinte maneira: 

A leitura de Saramago não leva ao desespero nem ao sentimento de impotência. Isso se deve principalmente a essa esposa de médico, que não perde a visão e mesmo assim se submete ao apartheid sofrido por eles. Qualquer um que tenha passado a amá-la, ficou felicíssimo quando soube que seria interpretada pela fantástica Julianne Moore (que além de ser uma grande estrela, ainda tem o hábito de roubar os filmes em que é coadjuvante), já que se trata da maior personagem feminina da ficção de nosso tempo.

VER NO BLOG:

https://armonte.wordpress.com/2012/06/09/atos-de-insurreicao-etica-segunda-parte-ensaio-sobre-a-lucidez/

https://armonte.wordpress.com/2012/05/20/entre-a-insurreicao-etica-e-a-vaidade-jose-saramago-1922-2010/

Orfeu e o inferno do Arquivo Morto: “Todos os nomes”, de José Saramago

A burocracia foi um dos pesadelos que mais assombraram a imaginação do século XX. O esmagamento do indivíduo em meio a corredores intermináveis, seções, departamentos, repartições,  tornou-se ainda mais horrível com a formalidade burocrática  que norteou a organização dos campos de extermínio nazistas. De Kafka & George Orwell a Joseph Losey (o de  Mr.KleinCidadão Klein, um dos grandes filmes dos anos 70) e Danilo Kîs, esse pesadelo burocrático assolou livros e filmes, pondo em xeque a identidade pessoal, a nossa preciosa individualidade, tanto quanto os direitos do mero cidadão, pois muitas vezes rimou com totalitarismo. Talvez nenhuma imagem seja tão eloqüente quanto a do subversivo (vivido por Robert de Niro) sendo literalmente aniquilado por papéis, em Brazil, de Terry Gillian.

José Saramago retomou a imaginário burocrático (desprezando a moderna tecnologia, na qual a informática, com o seu inquietante universo virtual, faz o mundo ainda mais abstrato e vulnerável do que a papelada em arquivos físicos) consagrado pelo século que está em vias de terminar. Em Todos os nomes, ele apresenta a Conservatória, uma repartição gigantesca do serviço público em que convivem, separados, os verbetes das pessoas que nascem e os das pessoas que morrem. Os corredores dos mortos formam um labirinto e é preciso levar um fio de ariadne para orientar-se.

O herói, chamemo-lo assim, senhor José,é um oficial de baixo escalão que mora numa casa pegada à Conservatória (e, portanto, pode entrar no edifício à noite, detalhe essencial à trama) e cujo hobby é colecionar informações sobre celebridades. Um dia, ele tem a idéia de copiar informações dos verbetes da Conservatória para enriquecer sua coleção e, por acaso, acaba tendo em mãos o verbete de uma mulher desconhecida. Desinteressando-se da sua coleção de celebridades, ele passa a infringir regras, faltar ao serviço, invadir propriedades, tudo para coligir informações sobre a desconhecida, até descobrir que ela deixou o arquivo dos vivos e foi colocada no labiríntico arquivo dos mortos (se nesse resumo parecem confundir-se a existência do indivíduo com a sua documentação, isso é decorrência do enredamento que a narrativa de Saramago faz dos dois; bizarramente, porém, em uma narrativa que se chama Todos os nomes, nenhum personagem tem nome, exceção feita ao senhor José).

Não há ninguém mais rebaixado em termos de condição humana do que esse senhor José. Trata-se de um sujeitinho insignificante, burocrática e socialmente (lembra até o protagonista do clássico O capote, de Gógol). Porém, ao investigar a vida de uma mulher que ele não conheceu, porque ela se suicida, subverte toda a sua irrelevância e dá um novo sentido à conservação da memória praticada pela sua repartição (que, na verdade, não conserva nada, transforma tudo em papel morto).

Nenhum momento da bela narrativa de Saramago deixa isso mais claro do que a noite em que o senhor José penetra no labirinto do arquivo dos mortos para resgatar o verbete da desconhecida. Nesse momento, ele deixa de ser o burocrata reles e atrapalhado para se tornar um Orfeu, descendo aos infernos em busca de sua Eurídice. Não será, aliás, a única vez em que ele vagará pelos mortos, pois Todos os nomes ainda tem uma memorável cena em um cemitério, o qual, na sua expansão desmesurada, espelha o crescimento desenfreado da cidade onde vive o senhor José. É ali que ele descobre a outra última morada da suicida desconhecida, além dos arquivos dos mortos. E descobre que, também ali, seu nome está perdido (porque um pastor tem o hábito de trocar os números das lápides):

“Tinha procurado a mulher desconhecida por toda a parte, e veio encontrá-la aqui, debaixo deste montículo de terra, fecharam-se para ela todos os caminhos do mundo, andou o que tinha de andar, parou onde quis, ponto final, porém o senhor José não consegue libertar-se dessa idéia fixa, a de que mais ninguém, a não ser ele, poderá mover a derradeira pedra que ficou no tabuleiro, a pedra definitiva, aquela que, se for movida na direção certa, virá a dar sentido real ao jogo, sob pena, não o fazendo, de o deixar empatado para a eternidade. Não sabe que mágico lance será esse, se aqui se decidiu a passar a noite não foi por ter esperança de que o silêncio lho viesse segredar ao ouvido nem que a luz da lua amavelmente lho desenhasse entre as sombras da árvore, está apenas como alguém que, tendo subido a uma montanha para alcançar a paisagem de além, resiste a regressar ao vale enquanto não sente que nos seus olhos deslumbrados já não cabem mais vastidões”.

Como os heróis mitológicos, o senhor José é auxiliado por forças superiores, e esse é outro detalhe surpreendente e matreiro de Todos os nomes.  Quem o ajuda é o supremo chefe da repartição, o Conservador, por motivos que é melhor deixar em segredo, apenas adiantando que esse sorrateiro personagem é um dos achados do romance.

Assim, nesse jogo entre vida e morte, memória e esquecimento, autoridade e rebelião, profanação e sagração, caos e ordem (um jogo que é também uma corda bamba perigosa entre alegoria e realismo), José Saramago mostra, mais uma vez, o dom de conduzir as palavras certas com o fio de ariadne da maestria literária para trazer à luz nossos medos e desacertos. E alguma esperança.

(resenha publicada, com ligeiras modificações, em  A TRIBUNA de Santos, em 11 de novembro de 1997)

SARAMAGO E AS PAISAGENS ALEGÓRICAS

Uma tendência audaciosa da obra de José Saramago, exercitada em A jangada de pedra, Ensaio sobre a cegueira, Todos os nomes, e que reaparece agora em seu novo romance, A caverna, é o uso de um núcleo alegórico que determina os rumos da narrativa. E é preciso realmente ser um autor do quilate de Saramago para se aventurar nas paisagens alegóricas, em geral pobres e áridas, e obter êxito.

Dessa vez, o núcleo alegórico é o Centro, um mega-shopping que absorveu toda a vida quotidiana para dentro de suas paredes e no qual, além das compras e do lazer, as pessoas vivem e morrem (há moradias e crematórios). Saramago radicaliza ao extremo a visão de que hoje em dia não há mais indivíduos, há consumidores. É o “segredo de abelha” referido no texto: “reside em criar e impulsionar no cliente estímulos em sugestões suficientes para que os valores de uso se elevem progressivamente na sua estimação, passo a que se seguirá em pouco tempo a subida dos valores de troca, imposta pela argúcia do produtor a um comprador a quem foram sendo retiradas pouco a pouco, sutilmente, as defesas interiores resultantes da consciência da sua própria personalidade, aquela que antes, se alguma vez existiu um antes intacto, lhe proporcionaram, embora precariamente, uma certa possibilidade de resistência e auto-domínio”. É um mundo em que o capitalismo torna-se totalitário: ou se está dentro ou se é excluído inapelavelmente. Enfim, é a globalização.

Como se sabe, o título vem do mito criado por Platão: o homem contenta-se com simulacros, com uma impostura da realidade, vivendo numa caverna apartada da verdadeira realidade. E esse título terá sua função explicada plenamente na parte final.

Por sua vez, o Centro, tal como o conhecemos, só chegando à orla dos pequenos funcionários, do baixo escalão que o serve, nos remete a Kafka. Pode-se até acusar Saramago de utilizar por vezes um tom sub-kafkiano, como o diálogo entre o herói da narrativa, o oleiro Cipriano Algor, e um funcionário do Centro: “O Senhor é um chefe. Sou um chefe, de fato, mas só para aqueles que estão abaixo de mim, acima há outros juízes. O Centro não é um tribunal. Engana-se, é um tribunal, e não conheço outro mais implacável”!!!! Ou ainda esta tentativa de humor negro, noutro diálogo entre os mesmos personagens: Será caso para proclamar que o Centro escreve direito por linhas tortas, se alguma vez lhe sucede de tirar com uma mão, logo acode a compensar com a outra. Se bem me lembro, isso das linhas tortas e de escrever direito por elas era o que se dizia de Deus, observou Cipriano Algor. Nos tempos de hoje vai dar praticamente no mesmo…”

São momentos infelizes (e pode haver os que não pensarão assim, antes o contrário), porém perfeitamente diluíveis num romance longo e belo. Pois o verdadeiro, o grande Saramago, não está tanto na aproximação com o universo kafkiano,  na apreensão de um vasto mundo desumanizado,  e sim nas minúcias com que trata o avesso, isto é, o mínimo mundo humano que restou, simbolizado pelo núcleo familiar e Cipriano Algor.

Quem ler A caverna notará que nele se narra, à exaustão, todos os processos ligados à olaria, embora tudo o que acontece se origine na recusa do Centro de continuar comprando os artefatos artesanais de Cipriano Algor, que já não encontram consumidores. Não é por acaso que procede assim  o grande escritor português: à gigantesca irrealidade do Centro, ele contrapõe a mínima, mas intensa e gritante realidade de Cipriano Algor, de sua filha Marta e de seu marido Marçal,  da viúva Isaura Madruga e do cão Achado. Vale acrescentar, aliás, quanto às personagens do romance, que não é de hoje que as figuras femininas roubam a cena no universo saramaguiano. Tivemos a Blimunda de Memorial do convento, a Joana Carda de A jangada de pedra e a mulher sem nome de Ensaio sobre a cegueira. Agora temos Marta, que simplesmente congrega em si o que de melhor o livro tem a oferecer, e Isaura Madruga, no pouco que aparece, também é muito forte. Quanto ao cachorro Achado, mais uma vez Saramago cria uma grande figura canina, que vem fazer companhia ao Mr. Bones, de Timbuktu, de Paul Auster, e ao cão que bebia as lágrimas da mulher que o adotou em Ensaio sobre a cegueira, como continuador de uma grande linhagem de cães e outros animais da ficção, que não passa pelo xampu de embelezamento e pieguice do mundo disney ou simulacros similares.

É por isso, por acompanhar gestos, palavras, sentimentos e pequenos atos desse grupo tão humano (Achado incluído), que não se pode colocar de maneira tão fácil o autor de A caverna, como já repeti tantas vezes, entre os escritores da desesperança, como Kafka (que ele evoca aqui tão canhestramente) ou Beckett. Crítico, sombrio, sim, mas um autor da esperança, talvez porque torne seus livros, com a riqueza humana dos seus personagens, atos de insurreição ética, como os que ele solicitou ao público na inesquecível entrevista que deu a Jô Soares no dia 04 de dezembro, não permitindo que seu entrevistador o “globalizasse”, levando-o para um terreno seguro, afável, cheio de gracinhas fáceis e digeríveis.

José Saramago, um dos mestres do final do milênio, exige que a vida social seja um pouco mais humana. Ela não o é, dificilmente o será, mas seus livros são uma grande ajuda para imaginá-la assim.

(resenha publicada originalmente, com ligeiras alterações, em A TRIBUNA de Santos, em em 12 de dezembro de 2000; era o primeiro romance de Saramago pós-Nobel).

O FEITIÇO SARAMAGUIANO

(resenha publicada em “A Tribuna” de Santos, em  22 de junho de 2010)

Para a minha geração, José Saramago (16 de novembro de 1922- 18 de junho de 2010) é, sem dúvida, o gênio da literatura da língua portuguesa. Eu tinha 17 anos quando ele lançou Memorial do Convento (1982) e começou a ser um autor-referência. Mas o primeiro livro que li dele, em 1985 (só li o Memorial no ano seguinte), ainda em edição portuguesa, O ano da morte de Ricardo Reis (ele o lançara no ano anterior) foi a ratificação absoluta: ali havia um feitiço, um uso inconfundível da linguagem (que só se confirmaria, pois, pró ou contra, quem não reconhecia de imediato o modo de escrever saramaguiano? E pensar que as pessoas perdem tempo implicando com a pontuação pouco ortodoxa, os diálogos indiferenciados nos longos parágrafos, enfim, miuçalhas,  coisas superficiais), e ao mesmo tempo, um domínio da arte da narração, que fazia com que seus romances fossem ao mesmo tempo tão exigentes e tão límpidos, tanto ‘alta literatura’  quanto obras carismáticas, que se tornaram populares, grandes sucessos de venda. E a prova desse feitiço é que ele criou uma legião de leitores apaixonados, assim como detratores passionais, porque era o nosso ponto-de-fuga, enquanto escritor (e infelizmente nenhum brasileiro se ombreou a ele no período): gostando ou não dele, Saramago nos definia para o mundo.

O aspecto mais curioso dessa sua eminência na minha geração é que esse sucesso todo lhe veio aos 60 anos. Era, portanto, um jovem gênio sessentão que despontava com Memorial do Convento e O ano da morte de Ricardo Reis. E isso também faz parte do enfeitiçamento em que ficávamos ao ler a primeira linha que nos caísse aos olhos desse português tão sisudo e tão apegado às suas convicções comunistas: não era um velho no sentido de ser um autor já com uma obra realizada (um João Cabral, ainda vivo na época), não era um autor mais antigo e já morto (como Guimarães Rosa), cujas obras descobríamos: era um autor que estava fazendo a sua obra naquele mesmo momento em que a minha geração se formava.

E que obra! Nem nos recuperáramos da magia daqueles dois livros, e logo vinha o deslumbrante O evangelho segundo Jesus Cristo (1991). Mal acabava a perplexidade de ele ter feito milagres com assunto tão batido, e sendo ateu, ainda por cima, vinha o lindíssimo Ensaio sobre a cegueira (1995), e logo depois a reatualização da lenda de Orfeu em Todos os nomes (1997). E então vinham os equívocos, como a aproximação de Saramago com Kafka (e mesmo com Borges). Certamente foi uma influência, mas se tivéssemos de alinhar o autor português a alguma tendência seria àquela representada por nomes como Thomas Mann, Albert Camus,  Marguerite Yourcenar, Doris Lessing, representantes da vilipendiada literatura humanista, com propósitos nitidamente pedagógicos (mesmo Camus, com seu conceito de absurdo). É por isso que não o considero um autor pessimista, como afirmam, no sentido que é, dentro da linhagem de William Faulkner, pelo peso do fatalismo e do atávico,um António Lobo Antunes (e é curiosa essa continuidade que, pelo menos como eu vejo, se mantém na dupla Saramago-Antunes, da tensão, da brecha existente entre meus dois autores favoritos, justamente Mann & Faulkner).

E depois do Nobel, quando as exigências se complicaram, ainda mais pela presença de um universo tão assombroso quanto o dele, como acabou se provando o de António Lobo Antunes, mesmo assim, de vez em quando tínhamos o grande Saramago, em boa parte de A caverna, Ensaio sobre a lucidez, na maior parte de As intermitências da morte e na totalidade absoluta de um romance tão lindo e raro como A viagem do elefante. E que molecagem deliciosa, aos 86 anos, essa de sacudir a autoridade do Velho Testamento em Caim!

O único senão é a mania de querer transforma rum grande autor em “pensador”. Dono de uma autoridade estética e ética indiscutível, o pensamento de Saramago, o Thomas Mann de nossos dias,  brilha é nas suas narrativas, na sua arte, no seu estilo. Querer extrair “frases”, “pensamentos”, uma filosofia da sua obra é uma tolice. O feitiço está em outra parte. E alimentará outras tantas gerações.

Entre a insurreição ética e a vaidade: José Saramago (1922-2010)

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À GUISA DE INTRODUÇÃO

Na sua produção octogenária, por assim dizer, Saramago de certa forma retomou de forma mais ”leve”, mais fluida, procedimentos de livros anteriores: assim, Ensaio sobre a lucidez (2004)  retomava  Ensaio sobre a cegueira (1995) e ao mesmo tempo sua produção baseada num núcleo alegórico, visivelmente político (caso também de A jangada de pedra); por sua vez, As intermitências da morte (2005) enriquecia uma outra faceta dessa tendência alegórica: o enlace com o mito. A morte apaixonada por um mortal  fazia companhia à releitura de Orfeu em clave burocrática de Todos os nomes (1997). O ponto de encontro dessas duas facetas da tendência estaria no livro da virada do milênio,  A caverna (2000).

   A viagem do elefante (2008)  retoma as diabruras com o romance histórico, exercitadas com rara maestria em Memorial do convento (1982). E agora CAIM (2009) faz uma releitura do Antigo Testamento, paralela à feita do Novo Testamento em O evangelho segundo Jesus Cristo (1991).

O romance é o mais curto de Saramago em toda a sua produção e como boa parte dos seus trabalhos pós-Nobel (em 98) apresenta uma certa irregularidade, ainda que a leitura valha a pena e o saldo seja positivo

Então, aqui vão  algumas resenhas sobre a produção de Saramago:

lanzarote-7713

 

                                    ricardo reismemorial do convento

NOBEL DESCOBRE A LÍNGUA PORTUGUESA.

                                   FINALMENTE.

(resenha publicada em A TRIBUNA de Santos, em 13 de outubro de 1998)

Finalmente o Nobel descobriu que existe a língua portuguesa.  Pelo menos, a primeira escolha foi feliz. Já no ano passado, José Saramago era o favorito, entretanto ridiculamente  escolheram Dario Fo, após deixar que morressem quase todos os maiores ficcionistas italianos do século:  Italo Svevo, Carlo Emilio Gadda,  Leonardo Sciascia, Dino Buzatti,  Italo Calvino, Alberto Moravia, Elsa Morante, Cesare Pavese, para citar os mais óbvios, sem premiá-los.

Além de sua obra como dramaturgo (In nomine Dei; Que farei com este livro?), poeta, contista (Objecto quase), observador da “realidade” (A bagagem do viajante; Viagem a Portugal) e auto-cronista (nos dispensáveis e desagradáveis Cadernos de Lanzarote), o prolífico e notável primeiro autor nobelizado da nossa língua vem destacando-se, desde o início da década de 80 como romancista, um dos maiores da atualidade.

Levantado do chão (80) já prefigura, ao que parece, o grande Saramago. A explosão acontece com Memorial do convento (82), para muitos o seu melhor romance e que já tem o status de clássico, adotado inclusive por vestibulares. Nessa obra extraordinária, Saramago realizou um feito de concepção e de linguagem, feito que se repetiu no romance seguinte, O ano da morte de Ricardo Reis (84), no qual imagina o heterônimo mais conservador de Fernando Pessoa sobrevivendo ao seu criador e voltando a Portugal, justamente quando os países europeus estão sendo  dominados pelo fascismo. Dos livros de Saramago, esse (que eu li em primeiro lugar) é o meu favorito, o mais rico, aquele em que os seus recursos narrativos se casaram  melhor. Logo nas primeiras páginas, o leitor encontra uma homenagem a Jorge Luis Borges, pois uma das leituras de Reis no navio que o leva à pátria é um livro de Herbert Quain, criação do grande escritor argentino; assim, o jogo de espelhos das autorias se adensa e ao mesmo tempo se amplifica.

Em compensação, são artificiosos e forçados demais A jangada de pedra (86) e História do cerco de Lisboa (89). A idéia que norteia o primeiro é genial (a Península Ibérica aparta-se geologicamente da Europa e fica à deriva) e o livro é importante porque dá o primeiro passo para um desenvolvimento posterior de sua obra romanesca (uma situação alegórica inicial que se espraia pela narrativa toda), mas História do cerco de Lisboa parece concentrar o que de pior podemos dizer da obra saramaguiana, se não gostamos dela: certa tendência à monocórdia, à monotonia mesmo,  um humor forçado e sisudo (se se aceitar a contradição de termos), e sobretudo uma aridez\ cortante.

Não é à toa que muitos consideram o livro praticamente ilegível. Não é o caso, evidentemente, porque nada do que José Saramago escreve como ficção pode ser descartado muito facilmente; aliás, agora, depois do Nobel, ou pelo menos daqui a algum tempo, a revisão de suas obras será natural e muitos juízos serão refeitos.

O vigor retornaria com o soberbo O evangelho segundo Jesus Cristo (91), a maior requisição contra Deus que já se fez num romance. Não é improvável que no curso dos próximos anos esse livro venha a se estabelecer como o ponto alto de toda a produção ficcional de José Saramago. Nunca é demais lembrar que ele fez milagres (se é que se pode usar uma palavra pela qual ele parece ter aversão) com um assunto tão batido.

Se Memorial do convento e O evangelho segundo Jesus Cristo demonstraram ser os livros mais prestigiados do Nobel de 1998, permitam-me uma impertinência: mesmo com toda a sua grandeza, eu admiro mais os dois últimos romances, que trabalham com uma situação ao mesmo tempo alegórica e contemporânea, tal como A jangada de pedra prenunciava. São eles Ensaio sobre a cegueira (95) e Todos os nomes (97). Talvez não tenham o virtuosismo dos outros, mas, resgatando mitos, pensando a situação atual, discutindo barbárie e civilização, caos e ordem, pessimismo e esperança, são obras emocionantes, candentes, memoráveis, que fazem pensar em autores como Albert Camus, Thomas Mann ou Doris Lessing, que exercitaram a difícil arte de persistir no humanismo, mesmo com toda a reprovação da vanguarda e do engajamento político mais evidente. Apressadamente declarou-se que a obra dos dois primeiros caducara e hoje percebe-se que estão mais vivos do que nunca. Mais próximo de Mann do que de Kafka, o objetivo de Todos os nomes e especialmente Ensaio sobre a cegueira, a meu ver, é mostrar horrores e situações-limite não de forma a reiterar o absurdo da existência e a desesperança, e sim, de forma a transformar a literatura numa experiência pedagógica (palavra tão ao gosto do autor de A montanha mágica, mas que não causaria estranheza aos autores de A peste e Shikasta).Ou seja, o ser humano precisa aprender.

Apesar da constrangedora vaidade que desnorteia o leitor dos Cadernos de Lanzarote é esse aspecto da obra de José Saramago que o torna proeminente (no sentido  de um entrelaçamento do fazer literário com uma postura ética), mesmo em meio a seus pares igualmente merecedores do Nobel, nessa literatura tão ignorada no Brasil como é a de Portugal: Agustina Bessa-Luís,  José Cardoso Pires, António Lobo Antunes e Eugênio Andrade.

Há outro aspecto digno de se destacar do prêmio deste ano:  foi dado a um escritor que ainda está produzindo,  que ainda está no melhor da sua forma; em suma,  que ainda está vivo, no sentido amplo da palavra. Sabemos que nem sempre foi assim nas premiações do Nobel.

Atenção- Todos os livros de Saramago destacados nesta resenha estão publicados no Brasil e acessíveis. Com exceção de Memorial do Convento e Levantado do chão, publicados pela Difel-Bertrand Brasil, todos os demais foram lançados pela Companhia das Letras.

cadernos de lanzarote

SARAMEGO

José Saramago  é um dos grandes ficcionistas atuantes. Pelo menos dois romances seus são leituras básicas e obrigatórias do nosso tempo, Memorial do convento (82) e O evangelho segundo Jesus Cristo (91). Seu romance mais recente, Ensaio sobre a cegueira (95), mostrou que, além da estatura literária, o autor português (que completa 75 anos agora em 97), ainda alcançou uma estatura ética digna de um Thomas Mann.

Por isso, é uma desagradável surpresa a leitura dos CADERNOS DE LANZAROTE, diários que cobrem três anos (93, 94, 95) da vida do autor de O ano da morte de Ricardo Reis em Lanzarote, uma das Ilhas Canárias, ara onde se mudou. Nesses diários, Saramago se compraz num narcisismo chocante, numa masturbação discursiva auto-centrada que só se pode chamar de senil.

O leitor tem de agüentá-lo cultivando o jardim encantado (para ele) do elogios e lisonjas, recolhendo trechos de críticas que falam em dele, transcrevendo cartas que falam bem dele, transcrevendo recados da secretária eletrônica que… falam bem dele, exaltando a invenção do fax, de onde espoucam papéis que, ufa, falam bem dele!!!

E não apenas isso, há que se agüentar igualmente as palestras, conferências, seminários, nos quais se fala da obra dele, nos quais o elogiam, nos quais encontra outros escritores (como Jorge Amado ou Gonzalo Torrente Balléster, autor de O rei pasmado e a rainha nua), de quem ele gosta e que gostam dele. Resultado: uns falam bem dos outros, recomendam uns aos outros para prêmios. E assim 650 páginas se acumulam inutilmente.

O mistério de CADERNOS DE LANZAROTE é como a ironia afiada de Saramago, tão deslumbrante em seus romances, não se apercebeu da ridícula empreitada representada por esses diários? Alguém levantará a mão e dirá, mas moço, ele previu essa acusação de narcisismo desenfreado, de prima-donismo, no seu prefácio (“gente maliciosa vê-lo-á como um exercício de narcisismo a frio”). Explicação há para tudo, os políticos brasileiros que o digam. Difícil é engolir.

Outro constrangimento da papelada que migrou das Ilhas Canárias, numa arribação  dispensável, é verificar como o pensamento que brilha na ficção fica com a cara deslavada de filosofia de praça de aposentados, sem graça, quando vertido em papel como “mera idéia”: “O destino, isso a que damos o nome de destino, como todas as coisas deste mundo, não conhece a linha reta. O nosso grande engano, devido ao costume que temos de tudo explicar retrospectivamente como uma flecha apontada diretamente a um alvo que, por assim dizer, a estivesse esperando desde o princípio, sem se mover. Ora, pelo contrário, o destino hesita muitíssimo, tem dúvidas, leva tempo a decidir-se” etc,etc. É tão banal que nem parece o mesmo homem que exercita um dos estilos mais entranhadamente pessoais da literatura contemporânea.

O que salva o tempo de leitura e o dinheiro investido nesses troços e destroços oriundos de um desastre nas Canárias são algumas (raras) observações sobre a feitura do belo Ensaio sobre a cegueira, entre um e outro afago para o saramego, e também o povoamento da casa com cães que o destino (tão banalizado no trecho citado) encarrega-se de trazer para a família. É o único momento em que ele parece ser humano, gente como a gente, não um senhor enfatuado e “medalhão” (ainda por cima com o complexo de inferioridade dos portugueses com relação ao resto da Europa, ou melhor, com relação a Europa que não é considerada “resto”): “Agora são três os cães que andam pela casa. De vez em quando Pepe irrita-se com Greta que é o mais impertinente dos seres vivos, persegue-a com toda a ferocidade de que é capaz; mas é a fingir, não chega nunca a morder-lhe. A descarada responde ladrando num tom de tal maneira agudo que parece perfurar-nos o os ouvidos. Por fim, rende-se, e fazem as pazes. A tudo isso assiste impávido Chico, com a serenidade de quem já viu muito mundo e comeu o pão que o diabo dos cães amassou… Digo que são três o cães, mas de vez em quando aparece-nos no jardim a cadela preta, aquela grande, de pernas altas. Por mim, acho bem. Uma amizade não se acaba só por os amigos estarem a viver em casas diferentes.”

    O resto é um estupor que beira o delírio, em trechos como “Descubro que seria perfeito poder reunir em um só lugar, sem diferença de países, de raças, de credos e de línguas, todos quanto me lêem, e passar o resto dos meus dias a conversar com eles”!!!! Deus nos livre.

Depois dessa viajada da maionese, a inquietante questão suscitada pelos CADERNOS DE LANZAROTE é a seguinte: dá para continuar tendo uma alta idéia da estatura moral e ética de José Saramago, diante de tanta auto-complacência?

(resenha publicada em A TRIBUNA de Santos,  em 25 de março de 1997)

 

A EDUCAÇÃO DO SER HUMANO PELO ABSURDO

Uma das contradições mais tristes e ridículas do ser humano é o fato de que todo mundo sempre pensar, a priori, o pior do próximo e ter uma visão por baixo da índole humana (“amigo é dinheiro no bolso”), e, no entanto, as pessoas sempre ficarem chocadas, escandalizadas, quando, numa situação-limite, vem à tona justamente esse lado pior da nossa natureza.

José Saramago dramatiza magistralmente esse choque, esse escândalo tragicômico no seu Ensaio sobre a cegueira (Companhia das Letras), o qual segue a trilha das grandes obras anteriores do autor português, como Memorial do convento (82), O ano da morte de Ricardo Reis (84) e O evangelho segundo Jesus Cristo (91), que compensam na sua prolífica e incessante produção coisas chatíssimas como A jangada de pedra (desperdício de uma idéia genial) e História do cerco de Lisboa.

Ensaio sobre a cegueira narra uma epidemia de cegueira que leva o governo a isolar os atingidos num manicômio. Lá, vivenciarão os horrores daquilo a que se denominou universo concentracionário: descaso, estupidez e violência por parte das autoridades (o Salazarismo deixou fantasmas na ficção portuguesa), picuinhas pessoais, falta de higiene, uma quadrilha de cegos que toma o poder e extorque dinheiro, pertences e favores sexuais.

Duas pessoas estão ali e não são vítimas da tal “cegueira branca”: a esposa de um oftalmologista, que quis permanecer com o marido, e um cego “normal”, membro da quadrilha. Um incêndio jogará a mulher do médico e um grupo de cegos nos escombros da civilização, pois o mal se alastrou pelo mundo.

É um grupo comovente, acrescido de um cão que os acompanha e bebe lágrimas. É um grupo que, apesar de Saramago não nomear ninguém, vai personalizando-se cada vez mais para o leitor, transcendendo o horror da massa, tal como vemos em cenas como esta: “… o grotesco espetáculo teria feito rir à gargalhada o mais sisudo dos observadores, uns quanto cegos a avançarem de gatas, de cara rente ao chão como suínos, uns braços adiante rasoirando o ar… a vontade dos soldados era apontar as armas e fuzilar deliberadamente, friamente, aqueles imbecis que se moviam diante dos seus olhos como caranguejos coxos, agitando as pinças trôpegas à procura da perna que lhes faltava” (pág. 105).

Mas é improcedente pensar em Kafka, nos autores do teatro do absurdo (Ionesco; Beckett; o autor das peça Os Cegos), em Elias Canetti, o Nobel de 81, autor de um poderoso romance intitulado A cegueira (no Brasil, Auto-de-fé), até mesmo, em certo sentido, em Ernesto Sabato (que criou, em Sobre heróis e tumbas, uma conspiração de cegos, governando subterraneamente nosso mundo). Nesses autores, as parábolas que escrevem levam ao desespero, ao sentimento de inutilidade dos esforços humanos, ao lamento de Jozef K. (de O processo), ao ser executado, de estar morrendo como um cão, sem saber o porquê.

Saramago passa longe disso. Seu estilo, muito peculiar (como já se notou diversas vezes, fazendo da leitura dos seus livros uma das grandes experiências com a língua portuguesa em nossos dias), se alinha mais ao tipo de literatura humanista cujo expoente é Thomas Mann (outro grande representante é o Camus de A peste): mostrar os horrores não de forma a reiterar o absurdo, e sim de forma a transformar a literatura numa experiência pedagógica (palavra bem ao gosto de Mann). Trocando em miúdos, o ser humano precisa aprender.

É por isso que há a genial identificação do narrador com a mulher do médico que cegou: ambos mostram ao leitor o que é ver enquanto os outros são cegos. A mulher do médico nos leva além do narrador, pois ele apenas relata (tal como o velho cego da venda preta, outro personagem emocionante); ela não só vê como sente, desespera-se, solidariza-se, está no meio do caos. Seu olhar intacto não revela supremacia, mas um desejo de modificar o estado das coisas.

Essa mulher de um oftalmologista cego, essa mulher que o leitor aprende a amar, é a maior personagem feminina da literatura do nosso tempo.

(resenha publicada em A TRIBUNA de Santos, em 12 de dezembro de 1995, ano do lançamento do livro)

VER TAMBÉM AQUI NO BLOG:

https://armonte.wordpress.com/2012/05/20/atos-de-insurreicao-etica-primeira-parte-ensaio-sobre-a-cegueira/

https://armonte.wordpress.com/2012/06/09/atos-de-insurreicao-etica-segunda-parte-ensaio-sobre-a-lucidez/

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