
À GUISA DE INTRODUÇÃO
Na sua produção octogenária, por assim dizer, Saramago de certa forma retomou de forma mais ”leve”, mais fluida, procedimentos de livros anteriores: assim, Ensaio sobre a lucidez (2004) retomava Ensaio sobre a cegueira (1995) e ao mesmo tempo sua produção baseada num núcleo alegórico, visivelmente político (caso também de A jangada de pedra); por sua vez, As intermitências da morte (2005) enriquecia uma outra faceta dessa tendência alegórica: o enlace com o mito. A morte apaixonada por um mortal fazia companhia à releitura de Orfeu em clave burocrática de Todos os nomes (1997). O ponto de encontro dessas duas facetas da tendência estaria no livro da virada do milênio, A caverna (2000).
A viagem do elefante (2008) retoma as diabruras com o romance histórico, exercitadas com rara maestria em Memorial do convento (1982). E agora CAIM (2009) faz uma releitura do Antigo Testamento, paralela à feita do Novo Testamento em O evangelho segundo Jesus Cristo (1991).
O romance é o mais curto de Saramago em toda a sua produção e como boa parte dos seus trabalhos pós-Nobel (em 98) apresenta uma certa irregularidade, ainda que a leitura valha a pena e o saldo seja positivo
Então, aqui vão algumas resenhas sobre a produção de Saramago:



NOBEL DESCOBRE A LÍNGUA PORTUGUESA.
FINALMENTE.
(resenha publicada em A TRIBUNA de Santos, em 13 de outubro de 1998)
Finalmente o Nobel descobriu que existe a língua portuguesa. Pelo menos, a primeira escolha foi feliz. Já no ano passado, José Saramago era o favorito, entretanto ridiculamente escolheram Dario Fo, após deixar que morressem quase todos os maiores ficcionistas italianos do século: Italo Svevo, Carlo Emilio Gadda, Leonardo Sciascia, Dino Buzatti, Italo Calvino, Alberto Moravia, Elsa Morante, Cesare Pavese, para citar os mais óbvios, sem premiá-los.
Além de sua obra como dramaturgo (In nomine Dei; Que farei com este livro?), poeta, contista (Objecto quase), observador da “realidade” (A bagagem do viajante; Viagem a Portugal) e auto-cronista (nos dispensáveis e desagradáveis Cadernos de Lanzarote), o prolífico e notável primeiro autor nobelizado da nossa língua vem destacando-se, desde o início da década de 80 como romancista, um dos maiores da atualidade.
Levantado do chão (80) já prefigura, ao que parece, o grande Saramago. A explosão acontece com Memorial do convento (82), para muitos o seu melhor romance e que já tem o status de clássico, adotado inclusive por vestibulares. Nessa obra extraordinária, Saramago realizou um feito de concepção e de linguagem, feito que se repetiu no romance seguinte, O ano da morte de Ricardo Reis (84), no qual imagina o heterônimo mais conservador de Fernando Pessoa sobrevivendo ao seu criador e voltando a Portugal, justamente quando os países europeus estão sendo dominados pelo fascismo. Dos livros de Saramago, esse (que eu li em primeiro lugar) é o meu favorito, o mais rico, aquele em que os seus recursos narrativos se casaram melhor. Logo nas primeiras páginas, o leitor encontra uma homenagem a Jorge Luis Borges, pois uma das leituras de Reis no navio que o leva à pátria é um livro de Herbert Quain, criação do grande escritor argentino; assim, o jogo de espelhos das autorias se adensa e ao mesmo tempo se amplifica.
Em compensação, são artificiosos e forçados demais A jangada de pedra (86) e História do cerco de Lisboa (89). A idéia que norteia o primeiro é genial (a Península Ibérica aparta-se geologicamente da Europa e fica à deriva) e o livro é importante porque dá o primeiro passo para um desenvolvimento posterior de sua obra romanesca (uma situação alegórica inicial que se espraia pela narrativa toda), mas História do cerco de Lisboa parece concentrar o que de pior podemos dizer da obra saramaguiana, se não gostamos dela: certa tendência à monocórdia, à monotonia mesmo, um humor forçado e sisudo (se se aceitar a contradição de termos), e sobretudo uma aridez\ cortante.
Não é à toa que muitos consideram o livro praticamente ilegível. Não é o caso, evidentemente, porque nada do que José Saramago escreve como ficção pode ser descartado muito facilmente; aliás, agora, depois do Nobel, ou pelo menos daqui a algum tempo, a revisão de suas obras será natural e muitos juízos serão refeitos.
O vigor retornaria com o soberbo O evangelho segundo Jesus Cristo (91), a maior requisição contra Deus que já se fez num romance. Não é improvável que no curso dos próximos anos esse livro venha a se estabelecer como o ponto alto de toda a produção ficcional de José Saramago. Nunca é demais lembrar que ele fez milagres (se é que se pode usar uma palavra pela qual ele parece ter aversão) com um assunto tão batido.
Se Memorial do convento e O evangelho segundo Jesus Cristo demonstraram ser os livros mais prestigiados do Nobel de 1998, permitam-me uma impertinência: mesmo com toda a sua grandeza, eu admiro mais os dois últimos romances, que trabalham com uma situação ao mesmo tempo alegórica e contemporânea, tal como A jangada de pedra prenunciava. São eles Ensaio sobre a cegueira (95) e Todos os nomes (97). Talvez não tenham o virtuosismo dos outros, mas, resgatando mitos, pensando a situação atual, discutindo barbárie e civilização, caos e ordem, pessimismo e esperança, são obras emocionantes, candentes, memoráveis, que fazem pensar em autores como Albert Camus, Thomas Mann ou Doris Lessing, que exercitaram a difícil arte de persistir no humanismo, mesmo com toda a reprovação da vanguarda e do engajamento político mais evidente. Apressadamente declarou-se que a obra dos dois primeiros caducara e hoje percebe-se que estão mais vivos do que nunca. Mais próximo de Mann do que de Kafka, o objetivo de Todos os nomes e especialmente Ensaio sobre a cegueira, a meu ver, é mostrar horrores e situações-limite não de forma a reiterar o absurdo da existência e a desesperança, e sim, de forma a transformar a literatura numa experiência pedagógica (palavra tão ao gosto do autor de A montanha mágica, mas que não causaria estranheza aos autores de A peste e Shikasta).Ou seja, o ser humano precisa aprender.
Apesar da constrangedora vaidade que desnorteia o leitor dos Cadernos de Lanzarote é esse aspecto da obra de José Saramago que o torna proeminente (no sentido de um entrelaçamento do fazer literário com uma postura ética), mesmo em meio a seus pares igualmente merecedores do Nobel, nessa literatura tão ignorada no Brasil como é a de Portugal: Agustina Bessa-Luís, José Cardoso Pires, António Lobo Antunes e Eugênio Andrade.
Há outro aspecto digno de se destacar do prêmio deste ano: foi dado a um escritor que ainda está produzindo, que ainda está no melhor da sua forma; em suma, que ainda está vivo, no sentido amplo da palavra. Sabemos que nem sempre foi assim nas premiações do Nobel.
Atenção- Todos os livros de Saramago destacados nesta resenha estão publicados no Brasil e acessíveis. Com exceção de Memorial do Convento e Levantado do chão, publicados pela Difel-Bertrand Brasil, todos os demais foram lançados pela Companhia das Letras.

SARAMEGO
José Saramago é um dos grandes ficcionistas atuantes. Pelo menos dois romances seus são leituras básicas e obrigatórias do nosso tempo, Memorial do convento (82) e O evangelho segundo Jesus Cristo (91). Seu romance mais recente, Ensaio sobre a cegueira (95), mostrou que, além da estatura literária, o autor português (que completa 75 anos agora em 97), ainda alcançou uma estatura ética digna de um Thomas Mann.
Por isso, é uma desagradável surpresa a leitura dos CADERNOS DE LANZAROTE, diários que cobrem três anos (93, 94, 95) da vida do autor de O ano da morte de Ricardo Reis em Lanzarote, uma das Ilhas Canárias, ara onde se mudou. Nesses diários, Saramago se compraz num narcisismo chocante, numa masturbação discursiva auto-centrada que só se pode chamar de senil.
O leitor tem de agüentá-lo cultivando o jardim encantado (para ele) do elogios e lisonjas, recolhendo trechos de críticas que falam em dele, transcrevendo cartas que falam bem dele, transcrevendo recados da secretária eletrônica que… falam bem dele, exaltando a invenção do fax, de onde espoucam papéis que, ufa, falam bem dele!!!
E não apenas isso, há que se agüentar igualmente as palestras, conferências, seminários, nos quais se fala da obra dele, nos quais o elogiam, nos quais encontra outros escritores (como Jorge Amado ou Gonzalo Torrente Balléster, autor de O rei pasmado e a rainha nua), de quem ele gosta e que gostam dele. Resultado: uns falam bem dos outros, recomendam uns aos outros para prêmios. E assim 650 páginas se acumulam inutilmente.
O mistério de CADERNOS DE LANZAROTE é como a ironia afiada de Saramago, tão deslumbrante em seus romances, não se apercebeu da ridícula empreitada representada por esses diários? Alguém levantará a mão e dirá, mas moço, ele previu essa acusação de narcisismo desenfreado, de prima-donismo, no seu prefácio (“gente maliciosa vê-lo-á como um exercício de narcisismo a frio”). Explicação há para tudo, os políticos brasileiros que o digam. Difícil é engolir.
Outro constrangimento da papelada que migrou das Ilhas Canárias, numa arribação dispensável, é verificar como o pensamento que brilha na ficção fica com a cara deslavada de filosofia de praça de aposentados, sem graça, quando vertido em papel como “mera idéia”: “O destino, isso a que damos o nome de destino, como todas as coisas deste mundo, não conhece a linha reta. O nosso grande engano, devido ao costume que temos de tudo explicar retrospectivamente como uma flecha apontada diretamente a um alvo que, por assim dizer, a estivesse esperando desde o princípio, sem se mover. Ora, pelo contrário, o destino hesita muitíssimo, tem dúvidas, leva tempo a decidir-se” etc,etc. É tão banal que nem parece o mesmo homem que exercita um dos estilos mais entranhadamente pessoais da literatura contemporânea.
O que salva o tempo de leitura e o dinheiro investido nesses troços e destroços oriundos de um desastre nas Canárias são algumas (raras) observações sobre a feitura do belo Ensaio sobre a cegueira, entre um e outro afago para o saramego, e também o povoamento da casa com cães que o destino (tão banalizado no trecho citado) encarrega-se de trazer para a família. É o único momento em que ele parece ser humano, gente como a gente, não um senhor enfatuado e “medalhão” (ainda por cima com o complexo de inferioridade dos portugueses com relação ao resto da Europa, ou melhor, com relação a Europa que não é considerada “resto”): “Agora são três os cães que andam pela casa. De vez em quando Pepe irrita-se com Greta que é o mais impertinente dos seres vivos, persegue-a com toda a ferocidade de que é capaz; mas é a fingir, não chega nunca a morder-lhe. A descarada responde ladrando num tom de tal maneira agudo que parece perfurar-nos o os ouvidos. Por fim, rende-se, e fazem as pazes. A tudo isso assiste impávido Chico, com a serenidade de quem já viu muito mundo e comeu o pão que o diabo dos cães amassou… Digo que são três o cães, mas de vez em quando aparece-nos no jardim a cadela preta, aquela grande, de pernas altas. Por mim, acho bem. Uma amizade não se acaba só por os amigos estarem a viver em casas diferentes.”
O resto é um estupor que beira o delírio, em trechos como “Descubro que seria perfeito poder reunir em um só lugar, sem diferença de países, de raças, de credos e de línguas, todos quanto me lêem, e passar o resto dos meus dias a conversar com eles”!!!! Deus nos livre.
Depois dessa viajada da maionese, a inquietante questão suscitada pelos CADERNOS DE LANZAROTE é a seguinte: dá para continuar tendo uma alta idéia da estatura moral e ética de José Saramago, diante de tanta auto-complacência?
(resenha publicada em A TRIBUNA de Santos, em 25 de março de 1997)
A EDUCAÇÃO DO SER HUMANO PELO ABSURDO
Uma das contradições mais tristes e ridículas do ser humano é o fato de que todo mundo sempre pensar, a priori, o pior do próximo e ter uma visão por baixo da índole humana (“amigo é dinheiro no bolso”), e, no entanto, as pessoas sempre ficarem chocadas, escandalizadas, quando, numa situação-limite, vem à tona justamente esse lado pior da nossa natureza.
José Saramago dramatiza magistralmente esse choque, esse escândalo tragicômico no seu Ensaio sobre a cegueira (Companhia das Letras), o qual segue a trilha das grandes obras anteriores do autor português, como Memorial do convento (82), O ano da morte de Ricardo Reis (84) e O evangelho segundo Jesus Cristo (91), que compensam na sua prolífica e incessante produção coisas chatíssimas como A jangada de pedra (desperdício de uma idéia genial) e História do cerco de Lisboa.
Ensaio sobre a cegueira narra uma epidemia de cegueira que leva o governo a isolar os atingidos num manicômio. Lá, vivenciarão os horrores daquilo a que se denominou universo concentracionário: descaso, estupidez e violência por parte das autoridades (o Salazarismo deixou fantasmas na ficção portuguesa), picuinhas pessoais, falta de higiene, uma quadrilha de cegos que toma o poder e extorque dinheiro, pertences e favores sexuais.
Duas pessoas estão ali e não são vítimas da tal “cegueira branca”: a esposa de um oftalmologista, que quis permanecer com o marido, e um cego “normal”, membro da quadrilha. Um incêndio jogará a mulher do médico e um grupo de cegos nos escombros da civilização, pois o mal se alastrou pelo mundo.
É um grupo comovente, acrescido de um cão que os acompanha e bebe lágrimas. É um grupo que, apesar de Saramago não nomear ninguém, vai personalizando-se cada vez mais para o leitor, transcendendo o horror da massa, tal como vemos em cenas como esta: “… o grotesco espetáculo teria feito rir à gargalhada o mais sisudo dos observadores, uns quanto cegos a avançarem de gatas, de cara rente ao chão como suínos, uns braços adiante rasoirando o ar… a vontade dos soldados era apontar as armas e fuzilar deliberadamente, friamente, aqueles imbecis que se moviam diante dos seus olhos como caranguejos coxos, agitando as pinças trôpegas à procura da perna que lhes faltava” (pág. 105).
Mas é improcedente pensar em Kafka, nos autores do teatro do absurdo (Ionesco; Beckett; o autor das peça Os Cegos), em Elias Canetti, o Nobel de 81, autor de um poderoso romance intitulado A cegueira (no Brasil, Auto-de-fé), até mesmo, em certo sentido, em Ernesto Sabato (que criou, em Sobre heróis e tumbas, uma conspiração de cegos, governando subterraneamente nosso mundo). Nesses autores, as parábolas que escrevem levam ao desespero, ao sentimento de inutilidade dos esforços humanos, ao lamento de Jozef K. (de O processo), ao ser executado, de estar morrendo como um cão, sem saber o porquê.
Saramago passa longe disso. Seu estilo, muito peculiar (como já se notou diversas vezes, fazendo da leitura dos seus livros uma das grandes experiências com a língua portuguesa em nossos dias), se alinha mais ao tipo de literatura humanista cujo expoente é Thomas Mann (outro grande representante é o Camus de A peste): mostrar os horrores não de forma a reiterar o absurdo, e sim de forma a transformar a literatura numa experiência pedagógica (palavra bem ao gosto de Mann). Trocando em miúdos, o ser humano precisa aprender.
É por isso que há a genial identificação do narrador com a mulher do médico que cegou: ambos mostram ao leitor o que é ver enquanto os outros são cegos. A mulher do médico nos leva além do narrador, pois ele apenas relata (tal como o velho cego da venda preta, outro personagem emocionante); ela não só vê como sente, desespera-se, solidariza-se, está no meio do caos. Seu olhar intacto não revela supremacia, mas um desejo de modificar o estado das coisas.
Essa mulher de um oftalmologista cego, essa mulher que o leitor aprende a amar, é a maior personagem feminina da literatura do nosso tempo.
(resenha publicada em A TRIBUNA de Santos, em 12 de dezembro de 1995, ano do lançamento do livro)
VER TAMBÉM AQUI NO BLOG:
https://armonte.wordpress.com/2012/05/20/atos-de-insurreicao-etica-primeira-parte-ensaio-sobre-a-cegueira/
https://armonte.wordpress.com/2012/06/09/atos-de-insurreicao-etica-segunda-parte-ensaio-sobre-a-lucidez/
