AS PERIGOSAS PAISAGENS EXÓTICAS DE PAUL BOWLES
Paul Bowles, cujo centenário é comemorado neste 30 de dezembro de 2010, notabilizou-se, quando começou a ficar conhecido, no após-guerra, em meados dos anos 40, na ficção norte-americana por introduzir territórios “exóticos” (África, Ásia, América Latina), quando tais espaços ainda eram rotas de evasão, tanto que suas histórias marcaram época por mostrar o choque de personagens diante de paisagens e culturas nas quais os problemas individuais contam muito pouco. Aliás, em muitos textos de Bowles (por exemplo, o mais famoso deles, o romance O céu que nos protege), personagens “civilizadas” são expostas a experiências violentas, ultrajantes, degradantes e aniquiladoras (pelo menos do ponto de vista da nossa noção de subjetividade e dignidade humanas, o que sempre é muito relativo) à mercê de povos que não têm compromisso ou vínculo com os chamados valores ocidentais.
Essa é uma das características predominantes dos treze textos traduzidos por José Rubens Siqueira e reunidos no volume Um Episódio Distante: pela Alfaguara, que vem nos últimos tempos republicando Bowles no Brasil (nos anos 90, sua ficção foi muito traduzida pela Rocco, e a Martins Fontes lançou sua autobiografia cabotina, Tantos Caminhos[1]).
No conto-título de Um episódio distante, um lingüista é seqüestrado por uma tribo nômade que lhe corta a língua e o transforma num “bobo da corte”; em O pastor Dowe em Tacaté, o pároco protestante é obrigado a se adaptar aos costumes do povoado: até a maneira de pregar è determinada pelo chefe da comunidade, que lhe oferece a filha impúbere como esposa[2]; em No quarto vermelho, o narrador recebe a visita dos velhos pais, em Sri Lanka, e os três são meio que forçados a visitar o local de um assassinato passional, transformado numa espécie de ritual pelo assassino; na história mais recente (escrita nos anos 90, enquanto a maioria é dos anos 40), Muito longe de casa, a personagem principal, que teve um colapso após o divórcio, divide a casa com o irmão na África e se sente “obrigada” a ter determinados sonhos pela imposição de um negro que ocupa uma posição ambígua na criadagem que serve os americanos.
Mesmo quando os personagens pertencem, aparentemente, à mesma cultura, o estranhamento e o ódio estão presentes: no excepcional Em Paso Rojo, uma das irmãs do dono de um rancho tenta seduzir um índio e, ao ser repelida, arranja um modo de se vingar sub-repticiamente; no terrificante A presa delicada, uma caravana com três mercadores é atraiçoada por um viajante que se unira a eles, e que após assassinar os dois mais velhos, castra e violenta o mais novo. E em Parada em Corazón, que se passa numa barca gigantesca e infernal, que atravessa a selva sul-americana levando um casal norte-americano em lua-de-mel, o marido não hesita em abandonar a esposa ali naquele ermo, ao surpreendê-la, adormecida e embriagada, junto a um nativo, após uma noite de pesadelo, em que caracteristicamente, as fibras morais e éticas a que nos condicionamos, parecem afrouxar uma a uma, em passo cadenciado.
Às vezes, são os “estrangeiros” que trazem inquietação e desagregação a um determinado lugar, como acontece no extraordinário Páginas de Cold Point, em que um pai (o narrador) se isola com o filho de 16 anos, num lugar paradisíaco no Caribe, e o adolescente assedia todos os homens do lugar, criando um clima de revolta. O pai, ao saber de tudo, acabará seduzido pelo filho, ou pelo menos, é o que tentará nos fazer crer, já que sua versão dos fatos é extremamente suspeita e tendenciosa, fazendo desse texto uma obra-prima no gênero narrador não-confiável.
Paul Bowles não acreditava muito na civilização ocidental, a qual acreditava encontrar-se decadente e moribunda. Mas ele, essa mistura estranha de André Gide com Graham Greene e Flannery O´Connor, com um toque hemingwayano, não mitifica ou romantiza os lugares de evasão de suas personagens, nem poupa a estes de pulsões, obsessões e angústias nas paisagens mais edênicas. A terrível impressão que fica da leitura de seus contos, mais ainda do que a proporcionada pelo angustiante O céu que nos protege, é de que nada realmente nos protege e que o mundo é uma vasta armadilha para incautos. No entanto, há um lado que me incomoda profundamente em Paul Bowles e que sempre me impediu de tê-lo como um dos meus autores favoritos, mesmo após ter ficado impactado com a leitura de O céu que nos protege (na esteira do filme de Bertolucci, é certo, que é admirável também): sempre tenho a impressão de que ele se compraz com seus episódios cruéis, de que eles representam uma fantasia masoquista (ou sadomasoquista), que ocuparam aliás a imaginação de escritores gays numa determinada fase da literatura (basta lembrar de Tennessee Williams e Carson McCullers). Isso não o enfraquece literariamente, decerto, mas sempre me faz pensar em auto-complacência (a mesma que sua autobiografia parece transpirar) e me causa certa antipatia. Não sei se, no fundo, no fundo mesmo, ele está distante das reflexões do seu narrador de Páginas de Cold Point:
“Os criados são limpos e quietos, e o trabalho parece ser realizado quase automaticamente. Os bons criados negros são outra bênção das ilhas; os britânicos nascidos aqui neste paraíso não fazem idéia da sorte que têm. Na verdade, eles não fazem nada além de reclamar. É preciso ter vivido nos Estados Unidos para avaliar a maravilha deste lugar. Porém, mesmo aqui as idéias estão mudando todo dia. Logo as pessoas vão resolver que querem que sua terra faça parte do monstruoso mundo de hoje e, quando isso acontecer, estará tudo acabado. Assim que você tem esse desejo, você está contaminado pelo vírus mortal, e começa a mostrar sintomas da doença. Passa a viver em termos de tempo e dinheiro, e a pensar em termos de sociedade e progresso. Então tudo o que lhe resta é matar as outras pessoas que pensam do mesmo jeito, junto com muitas que não pensam, uma vez que essa á a manifestação final da doença. Aqui, de momento, de qualquer modo, se tem uma sensação de estabilidade: a existência deixa de ser como aqueles últimos segundos da ampulhetas quando o que resta de areia de repente começa a correr para o fundo de uma vez. De momento, isso parece em suspenso… O desastre é certo, mas acontecerá de repente, só isso. Até então, o tempo fica parado.”
Parece um diagnóstico crítico do nosso tempo, mas a apologia e nostalgia de um estado senhorial, de aproveitar o paraíso com bons criados negros,, invisíveis (a não ser no plano sexual) já que o trabalho parece se realizar quase automaticamente, anula o que há de crítico e severo nesse julgamento da civilização para se transformar em auto-justificação de uma condição predatória. Não é um julgamento literário, Paul Bowles é um grande escritor, mas é um dado que não dá para ignorar e não sei se não levará sua obra a tornar-se datada…
(o texto acima foi publicado de forma mais condensada em 21 de dezembro de 2010, em A TRIBUNA de Santos)
[1] A Alfaguara lançou até agora, além de Um episódio distante, os romances O céu que nos protege e Que venha a tempestade; a Rocco já lançara traduções anteriores dos dois, feitas por Roberto Grey, e publicou os Contos Reunidos de Bowles, em dois volumes: Chá nas montanhas & Um amigo do mundo (tradução de Rubens Figueiredo). Quem traduziu a autobiografia Without Stopping para a Martins Fontes foi Hildegard Feist.
Dos treze textos reunidos em Um episódio distante, salvo engano só dois são inéditos, os mais recentes, No quarto vermelho e Muito longe de casa. Dez já tinham aparecido em Chá nas montanhas, justamente os mais famosos: o conto intitulado Chá nas montanhas, O escorpião, À beira da água, Um episódio distante, Parada em Corazón, Páginas de Cold Point, Em Paso Rojo, O pastor Dowe em Tacaté, A presa delicada, Allal; o pior conto entre os escolhidos, na minha opinião, Ele da Assembléia, aparecera em Um amigo do mundo como Ele, o Congregado.
Nas duas edições há discrepâncias gritantes em relação à datação dos contos. O problema mais grave, todavia, está na discrepância de informações, como no caso de Um episódio distante. Veja-se o seguinte trecho na tradução mais antiga, a de Rubens Figueiredo:
“A Uled Nail viu o sangue, gritou, correu para fora de sua tenda, entrou na tenda seguinte de onde logo emergiram quatro jovens que correram juntas para o bar e contaram ao cauaji quem havia assassinado o Reguiba. Cerca de uma hora depois, a polícia militar francesa iria prendê-lo na casa de um amigo e arrastá-lo para as barracas.”
Na versão de José Rubens Siqueira, o trecho ficou assim:
“A uled nail viu o sangue, gritou, correu de sua tenda para a vizinha, e logo apareceu com quatro moças que correram juntas para o café e disseram que o quoauji tinha matado o Reguiba. Era questão de uma hora para a polícia militar francesa pegá-lo em casa de um amigo e arrastá-lo para o quartel.”
[2] Inserido bem no meio da seleção (não sei se de propósito, se o foi, parabéns para a estratégia inteligente), O pastor Dowe em Tacaté acaba por cumprir uma função simbólica, expondo de forma paradigmática o que desmorona nos protagonistas de Bowles: há um momento em que o pastor resolve dar uma caminhada e encontra dois nativos, os quais o levam para visitar a caverna do deus deles:
“Começaram uma jornada que quase imediatamente o pastor Dowe se arrependeu de ter iniciado. Seguiram rapidamente para a frente, mas já na primeira curva do rio ele desejou ter ficado para trás, onde podia estar nesse momento subindo a ravina. E, enquanto seguiam depressa pela água silenciosa, ele continuava a se censurar por ter vindo sem saber o porquê. A cada curva do rio que parecia um túnel, ele se sentia mais distante do mundo. Viu-se fazendo uma força ridícula para deter a jangada,; ela deslizava com facilidade demais por cima por cima da água negra. Para mais longe do mundo, ou ele queria dizer mais longe de Deus? Uma região como essa parecia fora da jurisdição divina. Quando chegou a essa idéia, fechou os olhos. Era um absurdo, evidentemente impossível, de qualquer modo inadmissível, no entanto tinha lhe ocorrido e continuava com ele em sua cabeça. Deus está sempre comigo, disse a si mesmo em silêncio, mas a fórmula não surtiu nenhum efeito. Ele abriu os olhos depressa e observou os dois homens. Estavam de frente para ele, mas tinha a impressão de ser invisível para os dois; ele viam apenas as ondas que logo se dissipavam deixadas na água atrás da jangada e o teto em arco irregular da vegetação sob o qual tinham passado (…) Ele tentou a dizer a si mesmo que não havia razão para esse súbito colapso espiritual, mas ao mesmo tempo parecia-lhe sentir as fibras mais íntimas de sua consciência no processo de relaxar. A jornada rio abaixo era um monstruoso abandono, e ele lutou contra isso com toda a sua força. Perdoe-me, ó Deus, por tê-Lo deixado para trás. Perdoe-me por tê-Lo deixado para trás. Suas unhas fincaram nas palmas das mãos enquanto rezava…”