MONTE DE LEITURAS: blog do Alfredo Monte

23/11/2013

A moralidade de best seller de Rubem Fonseca

 

José Joaquim Kibir é um ex-seminarista (adora citar frases feitas em latim) que resolve se aposentar. Até então, era um assassino profissional, o Especialista, cujo contratante ele conhecia como o Despachante. Só que um dos sujeitos que ele executou tinha em seu poder um CD comprometedor com relação a um tal Ziff, figurão da sociedade (recebido pelo presidente sem que precise marcar audiência), detalhando sua participação no narcotráfico, e por isso, tanto José quanto o Despachante, e mais a filha deste (Kirsten), por quem o primeiro se apaixona, estão marcados para morrer. José procura a ajuda de um ex-colega de seminário, D.S., um importante editor, enquanto investiga a situação na qual vai ficando cada vez mais implicado (há alguns crimes dos quais ele é o principal suspeito), tentando permanecer vivo, constantemente mudando de esconderijo, com Kirsten, após o assassinato do Despachante…

Além de ter nascido no mesmo ano (1925), Rubem Fonseca tem em comum com Dalton Trevisan a maestria no conto. Lamentavelmente, em algum momento aziago da sua (e para a nossa) vida, ele decidiu que também era romancista. E o admirador da sua formidável obra como contista (A coleira do cão, Feliz ano novo, O buraco na parede) teve então de aturar textos bisonhos e ruins como O caso Morel, A grande arte, Bufo & Spallanzani, Vastas emoções e pensamentos Imperfeitos. Eu desisti de ser masoquista, após ler Agosto. Deveria ter mantido minha decisão, já que seu novo romance, O seminarista, é tão irritante e frustrante quanto os outros. Parece escrito por um imitador inepto dos piores defeitos de Rubem Fonseca, ou por um imitador iniciante, que não tem a própria voz e não sabe o que quer.

Eu não vejo necessariamente como um problema um texto trazer informações eruditas ou discussões intelectuais. Mas, e esse é um vício recorrente nos romances anteriores (e, sejamos honestos, até nos seus contos menos felizes), desde as citações latinas, até a leitura compartilhada de alta poesia pelo ridículo casal José-Kirsten, sem falar na rotina do seminarista-matador profissional (que percorre sebos e assiste filmes de Kuruosawa, Fellini ou Kubrick), o que aparece de “intelectual” em O Seminarista é uma perfumaria rasa, que só torna a história mais fraca e irreal. E previsível: qualquer pessoa, menos o idiota do herói-narrador, percebe de cara que o verdadeiro vilão da história é o mascarado amigo D.S, e não o suposto Ziff.

Não bastasse isso, há também o fato de que os antecedentes familiares de Kirsten (que é alemã) nunca poderiam ser “prosaicos”. Assim como os que fazem regressão a vidas passadas, e descobrem que foram Cleópatra, Napoleão ou Ivan, o Terrível, o avô da dita cuja não poderia ser ninguém menos do que um participante da Operação Valquíria contra Hitler (aquela mesma do filme com Tom Cruise). Quando comecei a ler “Meu avô era um jovem oficial da Wermacht, primeiro-tenente, em 1944. Fazia parte do staff do coronel Claus Von Stauffneberg, e participou da chamada Operação Valquíria”, eu, que já não estava levando o texto a sério, matei a charada: Rubem Fonseca está tão seguro na sua posição de  “medalhão” que não tem mais o menor pudor de escrever qualquer besteira que lhe ocorra. Vejam a inútil passagem (num romance de apenas 180 páginas) em que o dono de um restaurante descreve seu cardápio: Estão todos muito bons, disse o seu João com  um forte sotaque, mas o bacalhau à Gomes de Sá eu mesmo preparei; comecei ontem, pu-lo de molho numa bacia de água, trocando a água seis vezes, depois escorri o bacalhau, retirei-lhe as peles e as espinhas e desfi-lo em pequenas lascas que coloquei numa panela funda, cobri-a com leite bem quente e deixei ficar em infusão por três horas. Enquanto isso, cortei as cebolas em rodelas e o dente de alho e levei a alourar ligeiramente numa frigideira de ferro com um trisco de azeite, até que ficassem translúcidas e levemente amarronzadas, em seguida juntei as batatas, que haviam sido cozidas com a pele e depois peladas e cortadas também em rodelas, e juntei o bacalhau escorrido, mexi tudo ligeiramente, mas sem deixar refogar, temperei com sal e pimenta, coloquei num tabuleiro de barro e levei-o a um forno bem quente durante quinze minutos, o Joaquim deixa ficar vinte, mas eu prefiro quinze minutos, com o forno a duzentos graus...”etc, etc e etc… Se ele ainda estivesse fazendo um painel oitocentista e balzaquiano da sociedade brasileira, concorrendo com o registro civil…

Ele continua tentando satirizar os novo-ricos. Só que os cacoetes de classe alpinista, ostentações, tudo o que supostamente desmascara neles é justamente o que ele demonstra como escritor. Quando satiriza uma personagem que fala da sua adega chique um texto decorado e kitsch, ele está descrevendo o seu próprio estilo: “Perguntei-lhe qual o vinho branco que devia comprar para acompanhar aquelas iguarias… podia ser um Riesling, mas tinha que ser dos melhores, ou então, se eu optasse pelo tinto,  um Spätburgunder,  cuja origem eram cepas Pinot Noir que importaram da Borgonha. Não foi fácil achar esses vinhos,  aqui, quando se toma branco alemão há o costume de tomar o Liebfraulmich, raramente bom, e os tintos são difíceis de ser encontrados.” etc, etc e etc.

E, diga-se de passagem, que ricos e poderosos são esses do livro, que não convencem ninguém? Parecem mais caricaturas de personagens de Orson Welles. Só para dar uma idéia da completa ausência de senso de realidade de O seminarista, basta citar um trecho da incursão de José Joaquim Kibir no apartamento de uma viúva, que serve como “casa de encontros”: … fingindo que prestava atenção ao que ela dizia, enquanto olhava as pessoas no salão. Alguns contatos ainda estavam na fase dos prolegômenos, mas outros haviam sido estabelecidos com tal rapidez que casais acordantes já se retiravam discretamente. E as mulheres não eram evidentemente garotas de programa, se não todas, pelo menos na maioria eram donas de casa ricas e enfadadas em busca de um enredo romanesco que acrescentasse um pouco de elã às suas vidas.”!!!! “Donas de casas ricas e enfadadas em busca de romance”: ele deve estar lendo o mundo atual com os olhos da Jacqueline Susann de O vale das bonecas ou de Harold Robbins. Rubem Fonseca chegou à moralidade dos best sellers. Pior para nós.

(resenha publicada originalmente em “A Tribuna” de primeiro de dezembro de 2009)

https://armonte.wordpress.com/2013/11/23/quitutes-do-caldeirao-do-bruxo/

https://armonte.wordpress.com/2013/11/23/o-genial-rubem-fonseca-dos-primeiros-tempos/

https://armonte.wordpress.com/2013/11/23/amalgama-um-rubem-fonseca-pifio-para-50-anos-de-carreira/

https://armonte.wordpress.com/2013/11/24/parcas-emocoes-e-romances-imperfeitos-a-fastidiosa-ficcao-longa-de-rubem-fonseca/

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08/09/2013

Procurando o ângulo do encontro com “Os Malaquias”

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Pode-se fazer uma leitura “esquizofrênica” de Os Malaquias (2010), de Andréa del Fuego. Numa delas, acompanhamos uma linda formulação moderna do tema da dissolução familiar. Até por razões eufônicas pode-se associá-lo a Os Malavoglia (1881), de Giovanni Verga.

Um grupo familiar que é apresentado, a princípio, “unido”, no Brasil “profundo”, desagrega-se ao sabor das circunstâncias, de uma propensão fatídica, de eventos históricos, até da vilania humana. Mortos os pais, três irmãos, Nico, Júlia e Antônio são separados, e espoliados da sua herança. Nico se torna peão do latifundiário local; Antônio—que sofre de nanismo—é adotado pelas freiras de um orfanato; Júlia, após algum tempo na instituição, é levada para a cidade por uma senhora, Leila, que a usa como empregada.

Mesmo escapando de Leila, e mesmo se mantendo ao corrente da vida dos irmãos (como o casamento de Nico com Maria), por motivos vários, Júlia jamais reencontra os irmãos. O que é deles, em termos materiais, sempre é embolsado por alguém, mesmo assim Nico, com a ajuda de Antônio (que vai morar com ele após o casamento), sempre luta para manter a família unida e prosperar.

As moradias da região onde se passa parte da história (Serra Morena), paralelamente à cidade grande para onde foi levada Júlia, são inundadas devido à construção de uma hidrelétrica. Muitos se mudam para a cidade grande, não os Malaquias. Fora da casa de Leila, Júlia trabalha na rodoviária da cidade (com vários imbroglios ligados a bebês que mudam de mãos ali), depois no armazém de Messias, que tem uma queda por ela. Júlia se torna modista, fica grávida, dá à luz um anão, e por isso é rejeitada pelo comerciante,  desconfiado de traição (ela não sabe que o irmão é anão também, o que indicaria uma propensão genética, como também não sabe que é filha de Geraldo, o latifundiário, e portanto sua herdeira natural).

O que vemos nessa sucessão de acontecimentos, onde não há a necessidade de muita descrição de locais e regiões, onde os traços são primordialistas e concisos, quanto a detalhes espaciais e temporais, são os universos persistentes e duráveis da sucessão de gerações, do trabalho, da interação problemática entre roça e cidade, entre o atraso e o progresso, imobilismo e mobilidade, entre a racionalização da vida através da conquista tecnológica e a explicação mágica do mundo de quem não tem acesso aos códigos “científicos”, a relação entre pais e filhos, entre irmãos, entre maridos e esposas, relação que não elide a solidão, o isolamento ou a taciturnidade, e um outro nível de relação, o de patrões e empregados, onde os afetos não estão ausentes, mas estão todos corrompidos, entre exploradores e explorados, entre autoridades constituídas e vozes populares, entre origens étnicas diferentes (se atentarmos para os nomes Leila, Fuad, Messias).

Veja-se um capítulo[1] do qual gosto muito:

“Geraldo estava de leito há dias. Respirando pouco, pé inchado voz raleando. Sentia peso nas cadeiras, peso no peito. O coração era maior que o pé, inchaço maior, artéria larga para pouca seiva. A casca toda seca, rachadura nas solas, na nuca, no cotovelo. Tizica, velhinha de pele fina feito biju, agridoce no hálito.

__ Geraldo, capaz de você ir e me deixar, não morro mais.

__ Pega água para mim, Tizica. Ande!-grunhiu Geraldo….   

Tizica foi buscar. Não deixou que a moça, enfermeira de casa, fosse ligeira até a cozinha. Ia ela, Tizica, obedecer por gosto a ordem de Geraldo. Lenta, o sol das janelas varrendo as tábuas de madeira, a canela fina interrompendo a luz. A casa na cidade era tão grande quanto a sede da Fazenda Rio Claro. Tizica pegou copo de alumínio, encheu com água da moringa. O rádio da cozinha falava sozinho, tocando propaganda de leite de magnésia. Voltou na velocidade que foi, as canelas cortando a luz dois graus mais baixa que na ida. Entrou no quarto, a enfermeira batendo com as duas mãos cruzadas o peito de Geraldo, os braços dele pendidos pela beirada da cama. O sentido dos pés opostos, direita e esquerda, cada um apontando o seu. O copo caiu no chão, a água pousou na madeira encerada, foi roliça atrás de um sulco pra se esconder e alcançou o pé da cama, onde se dividiu em filetes. Tizica caiu. A enfermeira deixou o corpo de Geraldo e levantou Tizica, fraquinha.

__Pega meu corpo–ordenou Tizica.

__ A senhora precisa deitar.    

O corpo de Geraldo foi velado no cemitério da nova e pequena cidade. O túmulo dele foi um dos primeiros. Tizica pediu que ficasse perto do portão de entrada, assim ela podia ver, quando passasse pela rua, a ponta da derradeira cama do patrão, sem que para isso precisasse entrar no jardim dos mortos. Não foi ao enterro, acompanhado por Timóteo na dianteira do caixão. Tizica teve um sono de raiz, sedada por injeções de agulha grossa. Dormiu e acordou senil. Geraldo teve enterro anunciando pelos sinos da igreja. Nico compareceu, rezou e não chorou.”

Tudo isso perpassa Os Malaquias. Ao se prestar atenção na sua espinha dorsal narrativa, é o que dá força ao livro, um aspecto a um tempo primevo e ainda assim muito moderno pela economia de meios. O livro ganhou o prêmio José Saramago, o que não deixa de ser pertinente, nesse sentido, pois se havia um autor que se apropriava do tempo passado sem necessidade de badulaques descritivos ou da demonstração de “pesquisas” era ele. E também seus livros “contemporâneos” administravam uma relação muito especial entre instâncias “duráveis” e a dissolução que a modernidade tornava obrigatória.

Por outro lado, sobreposta a essa leitura, há outra: há eventos “fantásticos”: um trovão que “cozinha”, por assim dizer, os pais dos Malaquias; uma matriarca, Geraldina, a mãe de Geraldo, que ao morrer se torna uma entidade que se prende ao mundo dos vivos e acompanha os eventos; há uma caverna onde há um navio pronto a zarpar pelo mundo, quando as águas da represa hidrelétrica baixarem; há personagens como duas velhas gêmeas que aparecem aqui e ali; uma cadela que está aqui, mas também está acolá; mais ainda do que esses eventos saramandaiescos há uma obsessão com imagens “poéticas”, inusitadas (não que isso seja impossível de alcançar, é só lembrar da obra daquele que assina a edição brasileira de Os Malaquias, José Luís Peixoto).

O efeito desse segundo Os Malaquias é diluir e esgarçar o poder daquele primeiro descrito lá atrás. O que poderia ser a originalidade e singularidade do livro, parece mais a procura exaustiva e laboriosa, e não muito bem-sucedida, da originalidade e singularidade a qualquer custo. Vejamos o trecho de uma matéria [que saiu na Espanha] onde a própria autora fala sobre seu processo de escrita:

Una vez que pone el punto final, Andréa del Fuego le da a sus textos un largo periodo de reposo. Luego, ya con cierto desapego, vuelve a ellos y corrige. El exceso de lirismo, para empezar. Las largas metáforas, para seguir. Se esfuerza para que las cosas, por más fantásticas que sean, parezcan reales. Quita y quita, como si para ella un escritor valiera más por lo que quita que por lo que deja. Y lo que deja son frases cortas llenas de acción y ritmo poético. Se propone, en suma, que el texto sea menos artificioso y más transparente.

La creación es vecina de la locura. Creares abrir puertas que el tiempo cierra por no entrar em  las convenciones cotidianas

Hace este ejercicio poco a poco, sin prisa. Entrando y saliendo del texto para desechar arrebatos, improvisaciones y barroquismos. Deja, al final, una puntuación a veces telegráfica, pero no por ello menos efectiva. “La reescritura”, dice, “es la parte que más tiempo me lleva en mi trabajo. Y la que más me preocupa. Puedo tardar un mes en escribir una novela y más de seis años en reescribirla, por ejemplo. Corrijo todo aquello que el tiempo me deja ver que es superfluo. Me parece que la creación es vecina de la locura, en el sentido de que crear es abrir puertas que el tiempo cierra por no caber en las convenciones cotidianas. En la escritura vamos domando esas voces. Y esto no es puro placer, tiene sus dolores”.

Gracias a este empeño, asegura, ha descubierto las limitaciones que posee al escribir. “Creo que tengo un exceso de prosa poética y un exceso de realismo mágico. ¡Sencillamente, no consigo escribir sin estas características! También tengo una especie de ansiedad porque en la narración acostumbro a revelar pronto lo que tal vez sería mejor revelar más tarde”. También, reconoce, se da cuenta de lo arriesgada que es su labor y por eso, en algunos momentos, exhibe cierta inseguridad. “Siento que corro el riesgo de ser peor de lo que creo. De repetirme. Riesgo de no ser publicada, de no ser leída. Riesgo de morirme sin escribir determinado libro”.

Certamente não faltará quem vincule essa feição ao “realismo fantástico”, que desabrochou tão fatídica quanto maravilhosamente com Cem anos de solidão e o prestígio mundial de García Márquez. Pode ser. A minha impressão é a de o fantástico não se coaduna com o tecido narrativo do livro de Andréa del Fuego porque ela o mescla com aquele “frase a frase” preciosista e postiço, e portanto tudo fica com um ar kitsch (“__ Você quer a Maria?–Dário a entregaria naquele momento, cardume de lambaris que Nico tinha nas duas represas do rosto, as escamas refletindo Dário”  ).

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       Na ficção brasileira, há algumas maldições. Há a maldição Guimarães Rosa, há a maldição Clarice Lispector, há a maldição Rubem Fonseca, ou seja a presença abusiva e cancerígena desses grandes autores nos textos de certos “discípulos”. Também há a maldição dos autores que não são, a meu ver, nem um pouco do porte daqueles. É o caso da maldição Lúcio Cardoso e da maldição Nélida Piñon. Esta última vitima Andréa del Fuego. É uma maldição que envolve um trato pernóstico e quase parnasiano da frase, que agrega uma espécie de “moto contínuo” do Feminino, que desvendaria as dobras e costuras do mundo patriarcal, assumido ideologicamente, e não organicamente, dentro da linguagem, de uma espécie de gratuidade do inusitado, do paradoxal e do fantástico nas referências fabulares. Eu sou avesso às obras da austregésila senhora que nos deu Fundador, A Casa da Paixão, Tebas do meu coração,  Vozes do Deserto, entre outros, e acho que o mal que mina Os Malaquias está aí. Na verdade, é uma incompatibilidade que outros não têm, e pode ser que muitos vejam aí a qualidade específica do livro.

Para mim, é na utilização da entidade-Geraldina após a morte que fica mais evidente essa feição deletéria da composição da narrativa:

“Uma vez morta, Geraldina pôde circular  onde bem quisesse. Caso fosse aumentada milhares de vezes, se veria a composição da matriarca: uma cadeia molecular , bolinhas capazes de se mover com certa autonomia e poder de decisão. Ela chegou ao colégio levada por um caixeiro viajante, sujeito que atravessava as fazendas e os povoados. Geraldina foi assentada entre garrafas de melado. Ficou na cozinha do colégio até se ambientar, depois flanou pelo pátio até alcançar os quartos, um carrapato procurando perna(…)

Geraldo tem medo dela até hoje, do charco que era a mãe, lugar onde botas não marcam pegada, o alagadiço prende o movimento. Geraldina, num instinto separatista, se faria perturbadora ao se aproximar de Geraldo, para que ele saltasse do charco materno, feito pulga expulsa pela pata do animal.”   

   Em outro trecho, ligado à mesma personagem ectoplásmica, a questão se complica:

“Todas as mínimas partes da mãe se uniram à fórmula da água. Geraldina era elemento da represa, mas tinha propriedades como toda substância. Passando das margens de Serra Morena, a água era só a água do mundo e ela poderia se juntar outra vez. Na represa Geraldina era um veneno que, de tão diluído, teria efeito improvável.”

A princípio, como não estava gostando da leitura do romance como um todo, pelos motivos apontados, achei a passagem acima muito ruim. Com sua agudeza habitual, Denise Bottmann me chamou a atenção para a formulação muito bonita da “água era só a água do mundo e ela poderia se juntar outra vez”. A minha impaciência com a coisa postiça toda que é a exploração “fantástica”, “inusitada”, da condição da mãe, me impediu de ver que, nesse caso, o trabalho mínimo do frase a frase, atingia um ponto pertinente e feliz de limpidez e beleza de dicção. Pena que, na frase seguinte, a voltagem caia, com “um veneno que, de tão diluído, teria efeito improvável”.

Curiosamente, quando não está preocupada com esse “dizer bonito”, o elemento “fantástico” em Andréa del Fuego, é um dado muito bem-colocado e instigante, como aquele não-ver uns aos outros dos irmãos no porto (quem dera fosse sempre assim). Talvez seja também a minha relação de leitor com o seu universo, essa fatalidade que gera equívocos e desencontros:

“Ficaram próximos, Júlia e os irmãos. Entre eles havia um passageiro, girando o pescoço com facilidade, procurava parentes. O homem vestia casaco longo e chapéu. Um passageiro foi suficiente para impedir que Júlia e Nico se vissem. Quando um Malaquias dava um passo, o passageiro dava outro, quase ensaiados (…) Antônio parou parra amarrar o cadarço de Anésia. Júlia viu o anão de costas, aos pés da menina (…) Nico olhava para um lado, Júlia para outro. Os olhares fizeram duas retas paralelas, ele por cima, ela por baixo. Havia uma chance de insersecção, mas Nico deu um passo à frente e o ângulo do encontro foi desfeito…”

   Talvez a chance de intersecção, e sem procurar cair em nenhuma condescendência, que o livro não precisa disso, seja a afirmação de que é um livro em aberto para mim. Odiando a leitura no primeiro impacto, muito porque vi na autora mais uma continuadora dos disparates piñonescos, devido às primeiras páginas, reconhecendo—com o prosseguimento da leitura e até pelas intervenções de amigos—que era um texto a não se desprezar, com uma força peculiar, mas mantendo um pé atrás e a sensação de que algo ali desandou ou que não encontrou o “tom”. Um livro discutível, como se diz tantas vezes, mas estranhamente impossível de colocar de lado com muxoxos críticos. Um veneno de efeito improvável, esse Os Malaquias.

(setembro de 2013)


[1] Os 73 capítulos de Os Malaquias são bem curtos.

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23/09/2012

O desastre de “DOIS RIOS”: maldição do segundo romance, zombaria das ondas ou pose demais e ficção de menos?

(uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em primeiro de maio de 2012)

Como tantas outras pessoas, apreciei o primeiro romance de Tatiana Salem Levy, A chave de casa (2007). Ali estava uma escritora promissora, apesar da atmosfera sufocante e áspera do texto. Como o li mais ou menos na mesma época de Homem no escuro (2008), de um dos meus autores favoritos, Paul Auster (a condição de impotência, entre física e espiritual, dos protagonistas, dá um ar de parentesco aos dois livros que já pensei em explorar em alguma resenha ou estudo), e junto do qual ela não fez nada feio, a comparação lhe rendeu mais pontos favoráveis ainda, caso precisasse.

Eis que de repente assisto a uma entrevista da jovem autora (nasceu em 1979) com Maurício Melo, no programa “Leituras” da TV Senado, e o que me parecia rispidez talentosa durante a leitura do romance começou a soar mais como uma postura afetada, enjoadinha, um ar de o mundo não merece esse ser inefável que sou: Tatiana Salem Levy se me afigurou como aquelas pessoas que minhas tias, numa infância povoada delas, anatematizavam como “entojada”. Mais do que antipática,  porém,sua atitude (ou melhor, sua pose) na entrevista me deixou entrever algo que só posso diagonosticar como uma anorexia espiritual que me tirou qualquer vontade de voltar a lê-la.

Por motivos que não vêm ao caso, seu segundo romance, Dois rios, acabou nas minhas mãos. Não obstante a autora enjoadinha, não mereceria uma lida, em vista da promessa de A chave de casa?

O pequeno introito acima é para o leitor que detectar má vontade a priori no meu comentário a seguir, embora eu mesmo, fazendo um exame de consciência, não ache que li Dois rios com má disposição (por exemplo, sempre tive a maior antipatia pela figura de Rachel de Queiroz, o que não me impediu de me encantar com seus romances tardios, Dôra Doralina & Memorial de Maria Moura: a leitura de um bom texto sempre me conquista), saiba dos possíveis motivos, caso chegue a tal conclusão.

Dois rios (que, a princípio, ao que parece, tinha o título Em silêncio) apresenta como protagonistas os gêmeos Joana e Antônio: nascidos e criados em Copacabana, passavam as férias no lugarejo da Ilha Grande que dá título ao romance. Muito unidos, em Dois Rios houve um episódio incestuoso que coincidiu com a morte repentina do pai. A partir daí, os irmãos começaram a se afastar até de uma forma hostil (como se uma presumível “culpa” pelo ocorrido com o pai impedisse o relacionamento de fluir): Joana ficou em casa, cuidando da mãe, portadora de transtorno obsessivo-compulsivo, e Antônio caiu no mundo como fotógrafo free-lance. Do pacto infantil que os unira, só restaram  ressentimento e incomunicabilidade.

O livro é estruturado em duas partes, cada uma focada num dos irmãos. Na primeira, narrada por Joana, que está presa ao apartamento onde nasceu, com a mãe disfuncional, com a vida estagnada, aparece uma francesa, Marie-Ange, por quem ela se apaixona, iniciando um processo de libertação. Há alguns bons momentos[1], Salem Levy sabe utilizar habilidosamente as técnicas de ficção (desdobramento do tempo e do espaço). O que não impede que essa parte seja muito ruim. Somos obrigados a ler passagens do tipo “Nossos olhos se cruzaram, e num único segundo, senti aflorar a minha intimidade mais secreta”. Pior ainda, quando Joana e Marie-Ange encetam uma viagem reparadora a Dois Rios, e seu amor se funde à descrição da natureza, temos trechos que—tirando o tom mais moderninho—poderiam ter sido escritas por Cassandra Rios (penso em Macária, por exemplo), sem o seu charme kitsch. A própria Marie-Ange, a qual parece egressa do universo de Roberto Freire (o chatíssimo escritor reichiano de Cléo e Daniel e Coiote, não o político), como um anjo liberador das repressões, diz coisas hilárias do tipo: “Só o real importa, Joana. O mar, a areia, o sussurro da mata. Esquece o resto. Seus medos tolos, sua ansiedade, essa fantasia que, em vez de te soltar, te prende. Escuta o vento, as ondas que rebentam zombeteiras…”!!!??? Por que, cargas d água, as ondas rebentariam zombeteiras? Talvez porque a natureza, em Tatiana Salem Levy, pareça tanto um “cenário”, não evocando nada de vital ou verdadeiro.

Na segunda parte, ela faz um truque narrativo à David Lynch (o de A estrada perdida & Cidade dos sonhos), e é Antônio quem, na França, conhece Marie-Ange, a qual, ao invés de vir ao Brasil, o leva para a Córsega, sua terra natal, onde os dois têm tórridas experiências amorosas, depois das quais ela desaparece. O errante, o desenraizado, então, sofre um processo contrário ao da irmã, permanecendo ali, numa postura de espera impotente, no povoado corso, no meio de gente rústica e simples, ligada ao mar.

Duas coisas ficam claras, então: o leitor comum, que costuma se atrapalhar com experiências  “ousadas”, não precisa ficar inquieto, porque apesar do truque adotado, a autora explica tudo tintim por tintim (além de todo o desenrolar da narrativa ser mais ou menos previsível, inclusive o final), e essa parte, em que Antônio, ao narrar, está se dirigindo à ausente Marie-Ange, é extremamente fake: soa falso em todos os seus aspectos, de tal forma que acabamos até preferindo a primeira, que era fraca, mas parecia mais crível. Apesar de ausente, Marie-Ange não é menos chata: “Foi você quem me disse que todos os dias ele [o pai dela] faz a mesma coisa, como os animais que dormem, comem, vão ao riacho procurar água e nunca se colocam em desacordo com o mundo. Meu pai faz parte da paisagem como os calhaus da praia, você dizia. E continuava. Quando ele morrer, não haverá mais pescadores no vilarejo, pois os homens passaram a achar, num determinado momento, que ser humano é entrar em desacordo com o mundo…”

E como essa literatura “sofisticadinha” acabou roçando a auto-ajuda? “Nenhum dos dois conseguiu cumprir nem descumprir seus destinos, eles apenas esqueceram de ser felizes. Era uma coisa ou outra: seguir à risca a trajetória planejada, ou dar espaço para a felicidade. O erro deles foi achar que o amor os salvaria das desavenças. Mas o amor não salva.”

Dizem que há a maldição do segundo romance, que muitas vezes ele pode ser um passo em falso mesmo numa carreira posteriormente  bem-sucedida. Portanto, fica em aberto se Tatiana Salem Levy vai seguir o caminho fecundo, ainda que difícil, da sua estréia, ou vai capitular de vez rumo às falsidades oportunistas (pois convenientes à sua “pose” entojadinha ou portadora de anorexia espiritual) delineadas por esse seu segundo (e mero) “exercício” romanesco. Talvez dependa das ondas zombeteiras. Mas que não dependa das Marie-Anges da vida, por favor !


[1] Gosto do personagem da mãe, da narração das verdadeiras viagens que são as visitas da avó e do pai dos protagonistas ao presídio da Ilha Grande, onde está preso o tio por motivos políticos; gosto também da descrição da intimidade física entre os irmãos.

QUESTÃO DE GÊNERO: O “Inferno Provisório” de Luiz Ruffato

“O  todo          igual para todos          destino uno

para o justo e para o iníquo

para o bom          e para o puro e para o impuro

e para quem oferenda

e para aquele           que não faz oferendas

Tanto o bom           quanto o que peca

quem jurou

igual           a quem refugou o juramento

 

Eis o mal          em tudo o que é feito           sob o sol

pois é um o destino           para todos

E também no coração dos filhos do homem

infla-se o mal          e a loucura no seu coração

enquanto vivos

e o após de cada um          junto aos mortos

 

Pois aquele          que se vincula

ao todo dos viventes          segura-se à esperança

Pois cachorro vivo          é melhor

que leão            morto”

(Qohélet-O-que-sabe, o Eclesiastes, na versão de Haroldo de Campos)

“Por volta das nove horas, encorajando-se, rumou para a MG-285. O farol do Gol varria o matagal que abraçava a estreita faixa de asfalto. Milhares de estrelas ardem o breu da noite. Em breve, numa curva, o rio Pomba se entremostraria, indolente, e Cataguases, precários favos cinza mal iluminados, emergiria, açulando recordações. Trepado na garupeira da bicicleta do Toninho, o vento cálido acaricia seu rosto… A mão macia da Júlia conduz o espanto das letras no caderno-de-caligrafia… A volta na Kombi do Armazém do Lino, que o Lalado entregava compras, a molecada hidrófoba… A mãe, cheiro de querosene do fogareiro vermelho na tarde excluída do tempo… A viagem com o pai para São Paulo, uma semana cravada em seu coração simples, a certeza de que, a partir de então, Cataguases afundaria, lenta e inexoravelmente, numa terrível agonia, até morrer  um dia, agora talvez, quando, sorrateiro, corta a cidade deserta…”  (Luiz Ruffato, Domingos sem Deus)

(a resenha abaixo é uma versão ampliada da publicada em A TRIBUNA de Santos, em 22 de novembro de 2011):

Domingos sem Deus encerra a série Inferno Provisório, iniciada em 2005.  Seu criador, Luiz Ruffato, afirma que é um painel romanesco. É direito dele classificar como quiser seu projeto. Eu me permito—como leitor—discordar: a categorização como romances, o excesso de títulos, subtítulos, epígrafes e dedicatórias prejudicaram cinco típicos livros de contos e novelas (mesmo se levando em conta a recorrência de personagens), que seriam melhor avaliados sem essa pirotecnia editorial toda. Imagine se Dalton Trevisan decretasse que cada uma das suas coletâneas é parte de um romance em progresso. De qualquer forma, os textos emperiquitados das orelhas  e certos comentários sobre a série me fazem crer que Ruffato embrulhou bonitinho seu peixe para fazer as delícias e delírios do povo do mundo acadêmico, onde estudarão os “jogos semióticos” e os palimpsestos contidos nos cinco volumes. Mesmo sabendo que o romance é um gênero-terreno baldio que aceita tudo, é muita forçação de barra.

O mesmo se pode dizer da intenção que moveu a escritura de Inferno Provisório. O autor mineiro tem enfatizado se tratar de um resgate da história do proletariado brasileiro no último meio século, sem o maniqueísmo ideológico de praxe, e com uma linguagem inovadora, não-naturalista. Ora, ora. O que eu vi sempre, oculto sob as dobras de veleidades tipográficas maçantes[1], foi um ótimo escritor tradicional, de veia realista (e não há problema nenhum nisso), que continua a tradição dos escritores católicos (Otto Lara Rezende, Gustavo Corção) ou dos injustamente esquecidos mestres da sondagem psicológica, como João Alphonsus ou Antonio Olavo Pereira. Não é inovação, é a posse de uma memória afetiva, de uma ambientação, de um miasma próprio e autêntico, e muitos recursos expressivos para trazê-los à tona.

No saldo final, dos cinco volumes apenas o segundo, O mundo inimigo (2005), me parece totalmente bem realizado, Mamma, son tanto Felice (2005) e Vista parcial da noite (2006) apresentam altos e baixos gritantes, e O livro das impossibilidades (2008) vale basicamente por uma das suas três histórias, a última (“Zezé e Dinim”), muito superior às outras duas, não obstante as irritantes e desnecessárias firulas tipográficas que me lembram o pior lado de Cortázar (por exemplo, no Jogo da Amarelinha aquele tipo de capítulo frívolo onde se lia uma linha sim, outra não…).

Domingos sem Deus é o mais fraco do conjunto, o mais decepcionante, sem comparação. Ele apresenta seis histórias. É sempre a mesma coisa na maioria delas; pega-se um personagem num momento “presente” (a série não ultrapassa 2002, permanecendo na soleira do governo Lula) e a partir daí se reconstitui o passado (às vezes num estilo “relatório” monocórdio muito chato), sempre com a perda da referência (a região rural de Rodeiro, a cidade de Cataguases, em Minas, como ponto de passagem do rural para o operário e o lúmpen, e as fugas para os grandes centros: Rio, São Paulo, o ABC), imposta ou almejada, os vínculos familiares desfeitos, os sonhos frustrados, a criminalização cada vez maior de parte da sociedade, o aburguesamento caracterizado pelo consumo e pelos eletrônicos de ponta…

Vemos isso em “Trens”, “Sorte teve a Sandra”, “Outra fábula” (de onde tirei a epígrafe acima, e que seria uma espécie de ponto-de-fuga da série, atando as pontas com a primeira história de Mamma, son tanto felice. “Uma fábula”, que nos apresenta o mundo rústico de Rodeiro de forma brutal[2], e em “Mirim”, a fotografia de formatura da quarta série é o que dá a um velho num asilo o sentimento de ter existido, por isso é o melhor momento da sua vida”.

O ponto alto da coletânea, no entanto, é “Milagres”, uma das melhores coisas que Ruffato já escreveu: uma família relativamente próspera, em viagem (os pais tiveram que chantagear os filhos adolescentes com presentes caros), tem de fazer uma parada para consertar um pneu rasgado, e o borracheiro conta ao pai a sua trajetória de vida, como foi parar ali naquele fim de mundo. Aquela famosa dicotomia dos “dois brasis” dialoga em poucas e notáveis páginas, prova de que Ruffato é um escritor de grande talento que está desperdiçando seu vigor em grifes estilosas. O desfile pode ser chique, mas não muda a qualidade do tecido ou do material usado.


[1]  O leitor do meu blog talvez estranhe tal afirmação, uma vez que há alguma semanas elogiei a exuberância tipográfica de Minha irmã, meu amor, de Joyce Carol Oates. Só que, ali, fazia todo o sentido, e era expressão da personalidade-performance do narrador, Skyler Rampike (assim como tais recursos fazem sentido em Sterne ou Machado). Na maior parte das vezes, a meu ver, os recursos tipográficos aplicados em INFERNO PROVISÓRIO são gratuitos e inúteis, e me fazem lembrar maldosamente de um comentário de Ernesto Sábato (em O escritor e seus fantasmas). Sem ter o texto à mão, o argentino afirmava mais ou menos o seguinte, sobre Joyce e seus “seguidores”: o sujeito inventa o boeing e os demais se preocupam em mudar o tamanho das janelinhas, a melhoria dos assentos, a posição dos cinzeiros etc.

Embora Ruffato tenha realmente experimentado com êxito uma narrativa heterodoxa e multifacetada em Eles eram muitos cavalos, uma das mais importantes obras da ficção nacional recente e que está completando dez anos.

[2] “Na tarde em que avistou, do alto do estreito caminho que, abandonando a estrada de chão que liga Rodeiro à Serra da Onça, levava àquele fundo de grotão, a casa seis-cômodos náufraga no fundo da perambeira, a ampulheta da vida de Chiara Bicio, a Micheletta velha, inverteu-se: ela começou a morrer. E esgotou-se hora a hora, a saúde murchando na sangria estúpida de partos, e o juízo escapando por entre as fímbrias das úmidas árvores que uivavam nas noites intermináveis. De começo, pensava, pelo menos a visitaria a família, mas, desatinou, o Pai rompeu com os Bicio, assenhorando-se de que parente nenhum viria rondar coisas suas, algemando-a nos cordões umbilicais de gravidezes sem-fim, largando-a desamparada, minguando num quarto de portas e janelas trameladas por fora, de onde saiu, trinta e cinco anos, rija, enrolada numa toalha-de-mesa, tão pássara que até o vento insistia em carinhá-la em sua derradeira viagem de carro-de-boi cantador até a Igreja de São Sebastião, quando, para comparecer decente à missa de corpo-presente, vestiram-na em madeira…”

   

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 REMORSOS E RANCORES- antologia de trechos de “Inferno Provisório“:
“Seu Zé Pinto, com a desculpa de aprumar uma parede que ameaçava desabar, empurrou Dusanjos para um dois-cômodos, nos fundos do beco, na verdade temeroso até de que não desse conta de pagar o aluguel. Mas ela havia tomado uma resolução: não era justo para o José Batista que continuasse assim, amofinada, morta-viva. Voltou à lavagem de roupas, passou a dar pensão-de-comida para duas mulheres da Ilha, pegou um capado para criar à-meia. Mas, quando o beco submergia na noite, não conseguia pregar os olhos. Ouvia o cricri dos grilos, o coaxar dos sapos, o barulho das corredeiras, e de novo era menina-moça deitada no colchão-de-pena a sonhar outra vida, longe da lavoura que detestava, que engrossava suas mãos pretas de enrolar fumo, nunca arranjaria um namorado assim, a planta dos pés esgravatada, meu deus, a mesma tristeza, a mesma sensação de abandono, se ao menos soubesse,  tivesse certeza do que aconteceu, mas não, ninguém sabia de nada, acordava, passos lá fora, É ele! O coração disparava, alguma porta abria, o silêncio, a solidão, horas em que achava que estava ficando louca, podia ´sentir´ a presença do Donato, ele chegando à tardinha, encostando a bicicleta na sala, sentado no banco da cozinha e falando Dusanjos, ó Dusanjos, ela vinha, enchia a bacia de alumínio com água temperada, ele perguntava, enquanto tirava o conga, E o menino, Dusanjos?, ela se abaixava para lavar seus pés, Passou bem o dia, só quer saber de mamar. Esse menino!, ele comentava, ensaboando as mãos e o rosto. Ah, queria morrer e não queria.  Onde estaria ele agora? Deus, acaba logo com essa agonia!” (Mamma, son tanto felice)

Segundo Ruffato, em Mamma, son tanto Felice ele incorporou textos de dois livros anteriores (que eu não li), Histórias de remorsos e rancores e (os sobreviventes). Dos seis contos que compõem o primeiro volume de Inferno Provisório, escolhi um trecho de “O alemão e a puria”.

“Vanin sentiu um calafrio. E agora? Tramelou a porta, tirou os sapatos, deitou na cama. Ia sentir falta daquela gente, ah, ia. E das telhas pretas de fumaça, da cumeeira cheia de picumã, do barulho das corredeiras do rio Pomba, dos passarinhos (Preciso trocar a água e o alpiste deles, não posso esquecer), da bicicleta, da… da Zazá. Em cima da penteadeira, o retrato deles dois, dia do casamento, ela sorrindo, parecia tão feliz, ele sério, preocupado. Meu deus, é certo o que estou fazendo? Ah, mas logo logo, se tudo corresse direito, voltaria. Chamaria o Ditão e o Ditinho, o Natanael e a Mariinha, o Zico e o Zeca, fariam uma serenata para a Zazá, traria um monte de presentes, um vestido novo, um par de sapato, perfume, uma noite inesquecível! Olha o Vanin aí, Zazá, como está diferente o danado… Peste ruim! Desgraçado! Ih, lá vem a Zazá com aquele nervosismo. Sai, sai. Não, ela ia adorar, um monte de gente tocando violão, cantando só pra ela, quem não gosta?, quem? A Zazá ia ficar fula da vida, pegar um caldeirão de água fervendo e jogar em todo mundo. Que gênio, essa mulher, que gênio! Adormeceu.

 

    Ansioso, comprou passagem, cedo ainda, tentou se distrair olhando a televisão da rodoviária, tomou um café, dois. Na bolsa, duas mudas de roupa, o violão a tiracolo. Três vezes perguntou se demorava muito ainda. Queria entrar, dormir, acabar logo com aquela agonia. E se a Zazá aparecer aqui? Nossa senhora, vai ser um deus-nos-acuda! Deus me livre! Suor nas mãos, as pernas vara verde. Mastigou um pacote de biscoito-maria, andou de um lado para o outro, pensou em tirar uns acordes, os dedos duros.

   O ônibus encostou, a porta abriu, Vanin percorreu afoito o corredor, observando a fisionomia de cada um, ninguém conhecido, Graças a Deus, sentou, o motor roncou. Ê meu povo, vou embora, adeus!, as luzes se apagaram, atravessou a Ponte Nova, cortou a Vila Minalda, Meu deus, o quê que estou fazendo?, pegou a estrada rumo à Leopoldina, Cataguases sumiu atrás dos morros, o breu da noite, vontade de levantar, falar para o motorista que tinha esquecido os documentos em casa,  Vê se pode, não sei onde estou com a cabeça, pode parar aí mesmo, seguir viagem, tem problema não, e descer, voltar no beco, conversar com o seu Zé Pinto, Vamos esquecer aquele negócio, seu Zé, pensei melhor, bobagem minha, ele ia entender, seu corpo não se mexeu, Meu deus, a Zazá vai querer me matar…

   No meio da escuridão o ônibus engolindo o asfalto.”

              (O mundo inimigo)

Assim como o anterior, segundo o autor, há o reaproveitamento de textos de Histórias de remorsos e rancores e (os sobreviventes). Dos doze contos de O mundo inimigo, escolhi um trecho de “A decisão”.

“O delegado, doutor Aníbal Resende, apertou a mão do meu pai (camarada) Obrigado, seu Sebastião, por ter aceitado o nosso convite. Isso só me dar mais convicção de que se trata de um grande equívoco… e é o que, aliás, nós vamos esclarecer agora… (acende um cigarro) Pode se sentar, seu Sebastião, fique à vontade. Bom, pra não me estender muito, seu Sebastião, vamos direto ao ponto:  (irônico, a voz alterada) Que raio de história é essa que o senhor anda espalhando por aí, seu Sebastião, de que Cataguases vai ser invadida pelos alemães? Quem foi que inventou uma besteira tão grande, seu Sebastião? (compreensivo, a voz mais baixa) Seu Sebastião, deixe-me explicar uma coisa para o senhor: o senhor, a sua família, são pessoas de bem, conhecidos, ordeiros, cumpridores do dever, todo mundo sabe… Agora, o senhor já ouviu falar dos comunistas? (didático) Existe em nosso país gente que quer implantar o terror, irmão matando irmão, (a voz amplifica-se, o suor escorre da testa) (As mãos gesticulam, teatrais) quer ver o Brasil nas mãos dos comunistas, da Rússia!, seu Sebastião, da Rússia!, onde os valores cristãos  de nada valem, onde os homens dividem as mulheres com os amigos, as filhas dormem com os pais, os padres são enforcados por pura diversão, onde não há lei, onde reinam a anarquia, a bagunça, a perdição… (gritando) São esses comunistas, seu Sebastião, que divulgam notícias como a que o senhor anda espalhando, com o objetivo de provocar o pânico, a desordem, a desconfiança… (esmurra a mesa) (Levanta-se, acende outro cigarro, acalma-se) Seu Sebastião… seu Sebastião…deixe-me fazer uma pergunta pro senhor e queria que  o senhor me respondesse com toda sinceridade: (fixa seus olhos nos olhos do meu pai) Seu Sebastião, o senhor conhece algum comunista? Já viu um? Não? O senhor sabe quem é comunista? Não? (Senta-se, limpa o rosto com um lenço, enfia-o de novo no bolso de trás da calça) (sarcástico) Nem nós, seu Sebastião… Nem nós, da polícia… Sabe por quê? Porque comunista não traz isso escrito na testa… Como posso ter certeza de que o senhor, seu Sebastião, não é comunista, se o senhor está agindo como um? Bom, então vamos da um voto de confiança pro senhor, seu Sebastião. (autoritário). Agora, a partir de hoje o senhor está proibido, proibido, entendeu?, de abrir a boca pra falar sobre isso. Proibido! Outra coisa: vamos confiscar, temporariamente apenas, todos os aparelhos de rádio e televisão que o senhor possua em casa… (gritando) Eu não tenho nada com isso! Se o senhor ainda está pagando a televisão, problema seu! Estou sendo seu amigo, seu Sebastião, não sei se o senhor percebeu? (Acende mais um cigarro pega um papelzinho na gaveta) (a voz mais mansa, confidente) O senhor tem um filho… Reginaldo?, Reginaldo… tinha um tio meu que chamava Reginaldo… Bom, o Reginaldo trabalha na Manufatora, não é mesmo? E tem uma filha… Mirtes… a Mirtes trabalha na sala-de-pano da Industrial?, belo emprego, heim, seu Sebastião?, belo emprego! Os filhos bem-encaminhados, graças a Deus… (camarada) Pois é, e tem gente que jura que o senhor é comunista, só pra ver os seus filhos serem mandados embora, só pra ver a família do senhor passando dificuldades… Que mundo, esse, seu Sebastião, que mundo! (amigo) Ah, não esquece  de levar o menino no psiquiatra, como recomendou o professor Guaraciaba…” (Vista parcial da noite)

Dos onze contos de Vista parcial da noite, escolhi um trecho de “O ataque”.

“__ Era? Caralho, Zezé, você lembra de cada coisa!

(pausa)

Dinim: Como você lembra dessas coisas?

Zezé: Eu lembro de tudo…

__ De tudo?

__De tudo…

__ Eu não lembro de porra nenhuma…

__ Bom pra você…

__ Bom?

__ É

__ Por quê, bom?

__ Pelo menos assim você não sofre…

__ Não sofro?

__ Eu lembro de tudo… E isso machuca a gente… Eu lembro da primeira chinelada que a minha mãe, coitada, deu na minha bunda… Eu lembro quando eu vi uma mulher pelada lá na Ilha, lembra da Ilha? Lembro de todas as vezes que neguim olhou pra mim com desprezo, aqui, no Rio… E da régua que a dona Ângela, nossa professora no quarto ano, quebrou na minha cabeça, Ô criolim burro!, ela falou, a sala inteira rindo… E da tabuada que ganhei uma vez, toda despedaçada… arrumei com durex, encapei ela… E tudo… um monte de coisas… (pausa) Por isso que eu digo, feliz é você, que não lembra de nada…

(pausa)

Dinim: É… você lembra… eu penso… Toda noite eu não consigo dormir… Na minha cabeça fica martelando que eu tomei o caminho errado, que eu desviei em algum lugar… E que não tem mais jeito… E que eu estou fodido… E que todo mundo que fica perto de mim se fode…

(pausa)

Dinim: Pra nós não tem saída, cara, não tem…

Zezé? Do que você está falando, cara?

__ Porra, Zezé, só durmo na base de Valium, tenho úlcera no estômago, colesterol alto, pressão alta, estou gordo, fumo pra caralho, bebo pra caralho, cheiro pra caralho… (pausa)… Velho, cara… me sinto um velho… E estou com trinta e cinco anos, você também, não é?, trinta e cinco anos…

(pausa)

Dinim: Cara, todo dia penso numa solução… todo dia…

Zezé: Que solução?

__ Não sei… ainda… Mas tem que ter alguma…”

(O livro das impossibilidades)

   Segundo Ruffato, foi reaproveitada nesse quarto volume de Inferno Provisório uma das histórias de (os sobreviventes). Dos três contos longos (dois podem ser considerados novelas), escolhi um trecho de “Zezé e Dinim”.

“Eu estou aqui há mais de trinta anos… Uma vida…E foi por acaso que vim pra cá, acredita? Puro acaso… Eu tinha dezoito, dezenove anos, a roça não dava mais sustento pra todo mundo, a gente estava passando um aperto danado, aí meu irmão Valério mudou pra Ubá, conseguiu emprego numa fábrica de móveis e acabou me carregando com ele. A gente morava nos fundos da casa da dona Maria Bicio, de uma família conhecida nossa lá de Rodeiro. Eu arrumei trabalho numa oficina de lanternagem, aprendiz de pintor, e as coisas iam encaminhando bem. Aí comecei a sair com a filha caçula da dona Maria. A Arlete andava com todo mundo, tinha uns quinze anos, mas era muito avançada, ela, assim, facilitava bastante, não sei se entende… E vai que um dia ela apareceu grávida e começou a me pressionar pra assumir o filho. Sinceramente não sei se era verdade ou não, mas meu irmão me convenceu de não casar com ela de jeito nenhum, ele falava que ela era uma vagabunda e que ia me botar chifre com a cidade inteira, e que todo mundo ia rir da minha cara, porque eu era um ingênuo, um capiau… Eu fiquei intimidado, outra época, outros costumes, isso dava cadeia, dava morte… Aí a Arlete amarrou uns panos na cintura e escondeu o inchaço até não poder mais. E no dia que ela desmaiou na rua, e descobriram tudo, fugi pro Rio de Janeiro. Fiquei lá um ano, morrendo de medo, sem contato com ninguém… Achava que logo-logo o episódio ia ser esquecido, e as coisas voltavam aos eixos. Mas…

    Nilo, as mãos suadas, esticava as pernas, agitado.

__ Eu trabalhava num restaurante, de garçom, e uma noite, voltando pra pensão, em Guadalupe, cismei que tinha um sujeito me seguindo, e a partir daí perdi a razão, minha vida virou um inferno, passei a achar que todas as pessoas sabiam da minha falta, me olhavam e me condenavam, não conseguia mais comer, nem dormir, e a situação ficou tão insuportável que um dia, desesperado, desci na rodoviária só com os documentos e a roupa do corpo, e comprei passagem pro primeiro ônibus de saída. Arranchei em Feira de Santana uns meses, sobrevivendo de biscate, até que conheci um rapaz, gerente desse posto, já até morreu, coitado, que Deus o tenha!, que perguntou se não queria tocar uma borracharia aqui… No começo ainda imaginei, escondo uns tempos, espero a poeira baixar, volto, mas me sentia um covarde, decepcionei minha família, envergonhei a família de Arlete, falta de cabeça, quando a gente é jovem faz umas besteiras, depois não tem como ajeitar. Aí vai ficando, ficando… me acomodei…

    Cabeludo levantou. Nilo caminhou apressado rumo ao Siena preto.

__ O resto é o que está vendo… Ninguém me incomoda, não incomodo ninguém…” (Domingos sem Deus)

Dos seis contos de Domingos sem Deus, escolhi um trecho de “Milagres”.

 

A CULPADA É A LITERATURA; “K.”, de B. Kucinski

“… ao tentar reuni-los numa narrativa coerente, algo não funcionou. Não conseguia expressar os sentimentos que dele se apossaram em muitas das situações pelas quais passara, por exemplo no encontro com o arcebispo.

  Era como se faltasse o essencial; era como se as palavras embora escolhidas com esmero, em vez de mostrar a plenitude do que ele sentia, ao contrário, escondessem ou amputassem seu significado principal. Não conseguia expressar sua desgraça na semântica limitada da palavra, no recorte por demais preciso do conceito, na vulgaridade da expressão idiomática. Ele, poeta premiado da língua iídiche,  não alcançava pela palavra a transcendência almejada (…)

  Aos poucos K. foi se dando conta de que havia um impedimento maior. Claro, as palavras sempre limitavam o que se queria dizer, mas não era este o problema principal; seu bloqueio era moral, não era lingüístico: estava errado fazer da tragédia da sua filha objeto de criação literária, nada podia estar mais errado. Envaidecer-se por escrever bonito sobre uma coisa tão feia. Ainda mais que foi por causa desse maldito iídiche que ele não viu o que estava se passando bem debaixo de seus olhos, os estratagemas da filha para evitar  que ele a visitasse, suas viagens repentinas sem dizer para onde.

   Lembrou o dia em que ela, apressada—talvez assustada—, irrompeu em sua reunião de sábado com os escritores e ele a admoestou, sem olhar para seus olhos, sem tentar saber o que ela queria. Imagine, fazer literatura com um episódio desses. Impossível.”

(

(uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos de 18 de setembro de 2012)

Um dos livros que   mais causaram “sensação” no último ano  foi o romance de estreia do jornalista B. Kucinski, K., por abordar o tema dos “desaparecidos” na época do regime militar.

Aproveitando a inicial de seu sobrenome, ele evoca uma atmosfera kafkiana (a própria edição da Expressão Popular, inacreditavelmente barata—15 reais—tem,  em sua capa e ilustrações—de Enio Squeff—, um timbre expressionista, que lembra ilustrações para livros de Dostoiévski ou Graciliano Ramos, autores igualmente angustiantes) para contar a história do périplo do pai, a partir de 1974, tentando saber do paradeiro da irmã, sequestrada por agentes do famigerado delegado Sérgio Paranhos Fleury (que morreu “afogado” em 1979), junto com o marido.

Judeu (é um importante escritor na moribunda língua iídiche) oriundo da Polônia, o sr. K. sequer sabia ser a filha casada, de tal forma ela se distanciara dele por conta de um segundo matrimônio e da sua dedicação obsessiva à literatura (voltarei a isso).

Assim como em Missing, de Costa Gavras, onde acompanhávamos a descida aos infernos de um extraordinário Jack Lemmon como o norte-americano típico que não queria acreditar que seu país conspirara com a ditadura de Pinochet e ajudara a executar seu filho ativista, acompanhamos agora essa travessia agônica por etapas terríveis—porque, em primeiro lugar, o Governo negava que mantinha presa (e provavelmente assassinara) a caçula (tanto que, numa reunião abjeta, uma comissão da USP—na qual ela trabalhava como professora de química—a demite por “abandono de cargo”); a partir daí, ainda na esperança de que esteja viva, ele admoesta autoridades nacionais e estrangeiras, aciona a Anistia Internacional, até que, aos poucos, convence-se de que está morta, e então se preocupa em localizar seu corpo, o que nunca será possível, e suporta o assédio de gente que quer extorquir dinheiro para dar informações, todas falsas, sobre o paradeiro dela, viva (há telefonemas, correspondência de outros países, etc) ou do seu cadáver.

E por acompanhar esse percurso ao mesmo tempo tão trágico e tão sórdido, o leitor que já considerava (como eu) que ficou muito mal resolvido o acerto de contas do Brasil com sua ditadura militar, por conta da anistia para todos, inclusive para os torturadores, não pode deixar de considerar K. um livro da maior importância.

O aspecto mais bem resolvido do texto, a meu ver, é a demonstração das camadas perceptivas que o tempo interpõe entre os fatos e as reações a eles. Um exemplo: quando o sr. K. procura um rabino para que se coloque uma lápide para a filha no cemitério israelita, mesmo não havendo corpo: “…o rabino não só rejeita o pedido, como demonstra frieza frente ao seu drama. Alguns meses mais e isso mudará, depois que outro rabino… oficiar na missa ecumênica do jornalista judeu assassinado pelos militares. K. está um pouco adiante do seu tempo”.[1]

Como disse, K. tem impacto e importância legítimos. Nem por isso o deixa de apresentar graves defeitos. Kucinski optou por uma estrutura flexível muito interessante, seguindo a linha do romance “desmontável” a la Sherwood Anderson (Winesburg, Ohio) e Vidas Secas, permanecendo numa linha tênue entre narrativas curtas soltas e uma narrativa geral mais sistemática: assim, ele imagina o delegado Fleury em ação; a fala da amante do torturador-mor, execrada por todos, porém apaixonada por ele; uma faxineira que testemunhou o destino que se dava aos corpos dos torturados, numa sessão de terapia, enfim toda uma engrenagem ficcional que—supostamente—enriqueceria o drama do sr. K. Não é o que acontece. Os personagens são caricatos, esses capítulos são óbvios e medíocres do ponto-de-vista narrativo e não acrescentam nada à nossa percepção do período ditatorial. E o texto muitas vezes recorre aos lugares-comuns mais deploráveis: “Seu traço dominante era o maxilar projetado para fora, compondo uma imagem de determinação e intransigência…” (caracterização do genro); “Jesuína põe-se a soluçar, de início um gemido surdo; logo o choro se acelera e ela é tomada por convulsões, escorregando lentamente da cadeira; a terapeuta a agarra antes que desabe a põe de pé, abraçando-a. Ambas choram”. Há momentos bons, como o capítulo que dá a fala ao pai do genro, mas a maioria deixa a desejar.

Também quando quer ser especulativo, mais reflexivo, Kucinski revela uma tendência à banalidade que chega a ser aflitiva, caso do capítulo no qual discorre sobre a culpa dos sobreviventes. Não bastasse, há ainda erros de informação grosseiros: quando se refere à Escolha de Sofia e nos diz que ela se suicida já anciã (!!!??—de onde ele tirou isso?), ou quando se refere ao final de O processo, e diz que Joseph K. vai se enforcar (!!!??—idem). Aliás, é singularmente deplorável que, dentre os textos kafkianos, Kucinsci escolha O veredicto  e O processo para comentar, e não as premonições sobre o totalitarismo como Na colônia penal.

E, pasme, leitor, isso não é o pior: digladiando com o regime militar, o sr. K. acaba colocando a culpa toda da trajetória trágica da filha (como se ela não tivesse vontade própria, não fosse um indivíduo) na sua ausência como pai e na sua absorção ao projeto literário. Poderia ser o caso de uma percepção equivocada do protagonista, mas a narrativa deixa tudo tão mal definido e equívoco (pois parece que o destino do Sr. K. vai ganhando uma tonalidade subjetiva demais, muito judaica, por sinal, em que toma para si, como coisa individual, um pathos que é coletivo; creio, inclusive, que por isso ele se concentrou em O veredicto e O processo, e se esqueceu de Na colônia penal),  que, no final, não se sabe propriamente quem tirou a filha da vida do pai, a literatura ou a ditadura. E esta última ganha mais um tento no eterno jogo de negaceios e esquivas em se lidar com ela.


[1] No entanto, há algo de mal resolvido no episódio. Eu não entendo porque pessoas não-religiosas vão procurar autoridades religiosas para pedir algo que vai contra os dogmas da religião e se chocam com isso. Pelo que se depreende, o Sr. K. se distanciou da religião judaica. Por que o rabino teria de atender a um pedido dele? Todas as ilações subseqüentes a respeito da atitude do rabino são esdrúxulas e só seriam compreensíveis se K. nos falasse de dentro da religião, como alguém sufocado por dogmas injustos. De fora, não faz sentido: “Embora rejeitando a religião, conhece seus preceitos”“Revoltado, retoma o veredito de seus tempos de juventude, do saber rabínico como um jogo de palavras de raízes medievais e sem relação com a realidade.” Então por que procurar um representante desse saber rabínico e esperar dele algo que viole os preceitos?

12/07/2012

A diversão inócua de O EVANGELHO DE BARRABÁS

Gostei muito dos dois primeiros livros de José Roberto Torero, O Chalaça & Xadrez, truco e outras guerras, assim como de sua associação com Marcus Aurelius Pimenta em Terra Papagalli. Depois. confesso que, à exceção de Pequenos Amores, não me interessei particularmente pelos rumos da produção de Torero, individual ou em dupla.

Quando soube que os dois lançariam um novo romance, após muitos anos, e que seria um Evangelho de Barrabás (apesar de haver uma obra-prima sobre o assunto, Barrabás, de Pär Lagerkvist, que li quando garoto e que tem a mesma atmosfera de crucificação existencial dos livros de Kazantzakis, só que num estilo mais sintético e límpido), fiquei na maior expectativa, já que, na avalanche dos últimos anos de evangelhos “encontrados” (além de inúmeras obras de ficção; uma de que nunca mais ouvi falar e que achei excelente foi um Evangelho de Lázaro –1972-,de Orígenes Lessa) de tantos personagens do Novo Testamento, eles seriam, decerto, os mais capazes de lidar com o desafio de produzir um com a irreverência e o mesmo espírito moleque de um Saramago, em Caim.

  Criando uma narrativa picaresca sobre a vida do bandido que foi poupado pela multidão, os dois fazem da trajetória de Barrabás uma espécie de vida de Jesus em negativo: ambas as famílias viajam para o censo romano e ambos nascem ao mesmo tempo, num lugar humilde, de uma mãe “virgem”, Maria, e de um pai chamado José, são tidos como “ungidos”, sobrevivendo à ordem de execução de todos os meninos, decretada por Herodes.

  Ao longo do relato, os eventos da vida de Barrabás sempre tangenciam os da vida nosso salvador: temos os discípulos, na verdade asseclas de um bando burlesco (e ele, pilantra que é, se torna um falso profeta, realizando curas de araque, venda de relíquias sagradas, enfim, toda a parafernália que a igreja católica instituída tornaria respeitável mais tarde), Maria Magdalena, seu grande amor, parábolas, famosos episódios bíblicos, milagres e trechos dos evangelhos, dos Cântico dos Cânticos, colocados na boca dos personagens com um tom de troça, e até uma referência ao episódio do almocreve de Memórias Póstumas de Brás Cubas, para que não nos esqueçamos do pai literário, pelo menos de Torero.

   O grande problema é que se, em Caim, houve irreverência e molecagem, é porque o assunto era levado a sério, através de um gume bem machadiano. Tive a impressão o tempo todo de que Torero-Pimenta não tiveram coragem de levar sua irreverência a sério, de realmente entrar fundo no texto bíblico e parodiá-lo de fato, subvertê-lo. Lê-se O evangelho de Barrabás como se lê as gracinhas de um adolescente ou como se consume o agora onipresente tipo de humor de tevê, muito chegao do ao chulo e ao óbvio. Não há um momento em que nos afastamos da diversão inócua e inofensiva, da molecagem (no sentido retardatário, de descompasso com a idade dos autores, que são da minha geração, a dos quarentões), e há passagens realmente muito bobas, como a cena em que Barrabás, “andando sobre as águas”, se transforma num surfista: “Usando de habilidade, ele conseguiu se equilibrar sobre o madeiro, pondo-se de joelhos. Depois ficou em pé, abriu os braços em forma de cruz e começou a deslizar sobre a crista da onda…” As últimas páginas, que poderiam ser muito fortes, perdem muito na comparação com o final, similar, de O perfume, de Patrick Süskind. Mesmo assim, é um momento que nos dá a nostalgia do que O Evangelho de Barrabás poderia ter sido.

   Se a intenção de Torero-Pimenta, era essa, contentando-se com algo engraçadinho e bonitinho (embora muito próximo do besteirol), tanto quanto os “mandamentos” da quarta capa (por falar nisso, a edição traz ótimas ilustrações de Paulo Brabo), tudo bem. Mas para a aguardada volta deles ao romance, e com o estilo e talento que eles têm de sobra, é muito pouco e principalmente decepcionante.

(uma versão da resenha acima foi publicada originalmente em “A Tribuna” de Santos, em 21 de setembro de 2010)

26/02/2012

EM TORNO DE UM CORPO: “Se eu fechar os olhos agora”

(VER TAMBÉM NO BLOG:

https://armonte.wordpress.com/2012/02/26/em-torno-de-um-corpo-dalia-negra/)

“Paulo  observava o irmão, diante do espelho…

__ Vai sair, Antonio?

__ Vou… O Mauro, o Zé Paulo e eu vamos comer a empregada do Mauro… O Mauro já comeu. E avisou que se não der para nós, conta aos pais que ela é uma puta.

__Ela cobra quanto?

__ Que cobrar o quê, neguinho! Pegaram ela na roça para criar. Não tem onde cair morta. Quero comer aquele cu. Vou arrombar aquele cu.

__ Quantos anos ela tem?

__ Uns quatorze, quinze. É cabaço, ainda. Só deixa botar no cu…

__ E se ela não quiser?… Hein, Antonio? E se ela não quiser?

__Já te disse que ela é cria da casa.

__Mas pode não querer.

__ A gente come à força e quebra ela de porrada.”

Esta cena (na qual eu dei uma condensada), entre um dos protagonistas de Se eu fechar os olhos agora, Paulo (a essa altura com doze anos), e seu irmão mais velho, está quase na metade do livro, e demonstra de forma eloqüente e cabal a mentalidade que o romance (o seu primeiro) de Edney Silvestre pretende desmascarar, fundada no machismo sem limites, no patriarcalismo, na desfaçatez de quem manda, faz o que quer e “quebra de porrada”, mesmo que seja exemplificada pelo pueril e boçal filho de um açougueiro (como é o caso de Antonio) até chegar às camadas superiores da nossa sociedade, a elite que manda no país, com os mesmos “princípios” e a mesma cara-de-pau.

O enredo se inicia como uma espécie de Dália Negra do interior do Rio de Janeiro (cujo passado remonta à glória da cafeicultura): dois meninos, Paulo e seu amigo Eduardo encontram o cadáver extremamente mutilado de uma mulher, em 12 de abril de 1961, dia em que Iuri Gagárin deu a volta à terra no espaço. Estamos às vésperas de acontecimentos momentosos: o assassinato de Kennedy, no plano mundial; a revolução de 64, no plano nacional…

Logo se descobre que a morta,Anita, era a “vagabunda” da cidade (“uma mulher permanentemente aberta à visitação pública”): casada com um dentista muito mais velho que ela (que confessa o crime e depois se suicida na prisão, tudo mentira, é claro), transava com todos os poderosos do local. Paulo e Eduardo resolvem investigar o crime e contam com a ajuda de  Ubiratan, um forasteiro que mora no asilo de velhos local, e que durante a ditadura de Getúlio Vargas fora torturado por ser comunista. É ele quem descobre (com a ajuda dos meninos, mais ágeis fisicamente) que Anita  na verdade chamava-se Aparecida, e nascera na fazenda da família do prefeito, como fruto do estupro de uma criada negra praticado pelo pai dele, senador da república. Como sua tez branca era reveladora do absuso, fora enviada a um orfanato. Mas, como boa “cria da casa”,  fora obrigado a se casar com o dentista, um pervertido que firmara um pacto de cumplicidade com ex-colegas de seminário, de forma a explorar sexualmente a mulher de todas as maneiras.

No final do labirinto, perversão sexual, exploração, resquícios da escravidão, e, coroando tudo, incesto (Dália Negra se converte um pouco em Chinatown, acho que os mais aficcionados por cinema lembrar-se-ão das revelações que Faye Dunaway faz a Jack Nicholson sobre sua família: a irmã que ela procurava era, de fato, a filha que tivera do próprio pai), são as motivações do crime, que será acobertado e marcará os futuros caminhos de Paulo e Eduardo (um dos melhores momentos do romance acontece quando os dois recebem uma advertência do diretor e Eduardo  tem o seguinte insight: “e se não houvesse futuro para ele? O futuro que até esta manhã, na sala do diretor do colégio, lhe parecera garantido? E se no Brasil, refletia, neste Brasil novo em que surgiam indústrias, estradas, empregos, e se neste Brasil novo, mesmo sendo uma democracia como os professores ensinavam, onde nós o povo, temos eleições livres e decidimos quem vai nos governar, e se neste Brasil houvesse  poderes, forças que ele não sabia dizer quais eram,ou o que eram, nem tampouco apontar onde estavam, e se as houvesse, essas forças, esses poderes capazes de decidir o destino dele, sem que ele pudesse intervir? Alterar tudo sem chance de retorno? Como no dia em que retiraram Aparecida do orfanato para casá-la com o dentista?”)…

Em tudo, vemos a mentalidade de Antonio, o irmão de Paulo: “Pegaram ela na roça para criar, não tem onde cair morta, vou arrombar aquele cu, a gente come ela à força e quebra de porrada”. E depois as pessoas acham que vivemos tempos infelizes e bárbaros. Assim como Leite Derramado, de Chico Buarque, para citar outro caso recente de romance que se debruça sobre nossa história, a desmoralização social brasileira não é de agora, nós estamos é purgando o passado. O caso da aluna da UNIBAN, achincalhada e acossada por uma massa de boçais (de ambos os sexos) mostra como os avanços são frágeis e como podemos retroceder rapidamente.

“__ Aparências enganam. Mais cedo ou mais tarde vocês irão aprender. Nada neste país é o que parece. E esta cidade é um microcosmo do Brasil.”

Além desse desmascaramento e acerto de contas , Se eu fechar os olhos agora também é um exercício proustiano, de memória afetiva. É por esse lado que se revela mais interessante, a meu ver, principalmente no seu início, onde o autor estreante utiliza com grande acerto e critério soluções narrativas que desestabilizam as certezas narrativas, o que nos traz à mente o estilo de uma Marguerite Duras ou de uma Joan Didion (ele também me lembrou um pouco, sem o virtuosismo dele, é claro, Mario Vargas Llosa, e seus acertos de conta com o passado peruano), como no caso do capítulo “Noche de Ronda”: “Alguém que ouvia um disco. Ou uma fita cassete. Havia fitas cassetes naquela época, em 1961. Havia? Naquela cidade? Quem as teria? Não um operário. Ninguém naquela rua poderia ter um toca-fitas. Um pai açougueiro tampouco. Naquela rua, seguramente, ninguém. Ou talvez sim…” e mais adiante: “Ouvi a canção mais tarde…Não. Não. Não. Tenho certeza: ouvi naquela noite. Uma voz  de homem. Acho que era…Uma voz masculina. Acho. Tenho certeza. Acho…”

Esses primeiros capítulos e, ao longo do romance, o que se refere ao mundo dos dois protagonistas-mirins, Paulo e Eduardo, provam que Edney Silvestre poderá ser um romancista de primeira, ele tem o talento para tanto. Os dois meninos esbarrando nos limites da sua experiência e tentando decifrar os códigos do mundo adulto , por mais que já tenhamos visto tudo isso, ainda assim são o melhor de Se eu fechar os olhos agora, é o caso das suas reações quando Ubiratan os leva para assistir à Doce Vida, de Fellini, ou quando discutem aspectos da personalidade de Anita/Aparecida e, não conseguindo explicações plausíveis, que combinem com sua percepção de menino, Eduardo pensa: “Mais uma vez não conseguiu fechar o raciocínio. Mais uma vez estacava diante do paredão do mundo adulto, por trás do qual havia regras que não tinha como entender”.

Infelizmente, a partir do momento em que a trama se concentra nas investigações e descobertas de Ubiratan, o romance enfraquece muito: em primeiro lugar, porque a depravação das elites é reiterada de tal forma que a solução do crime não apresenta o menor impacto, e em segundo porque o personagem Ubiratan não é lá muito bem desenvolvido ou interessante, além disso o autor parece não confiar muito na inteligência, ou pelo menos no conhecimento histórico dos leitores (ele parece nos ver com a idade mental dos dois meninos: 12 anos), e seu herói acaba fazendo paralelos e caindo em didatismos que, francamente, são meio empobrecedores… Era preciso fazer Ubiratan falar de Sagarana ou de Memórias do Cárcere, ou de Stálin e sua filha? Será que, em vez de se fixar na vida dos meninos, tão interessante (e uma parte dela fica na sombra, principalmente os pais de Eduardo), ele tem de nos fazer aturar falas de Ubiratan como a seguinte: “Sabem o que foi Guernica?  Sabem o que significou? A carnificina? O bombardeio? A matança de crianças, velhos e mulheres? Sabem? A ascensão do fascismo? Sabem da Guerra Civil Espanhola? Picasso?”

Por esse motivo, Se eu fechar os olhos agora enfraquece de forma considerável da metade em diante. E o seu final é chocho, a meu ver: ao focalizar Paulo adulto, tentando saber do destino de Eduardo, ele não consegue dar uma idéia de trajetória, de formação, e nada significativo vem à tona.

O momento Dália Negra, momento do mistério do mundo para os garotos, momento em que eles podem se imaginar detetives e reconstruir a cadeia de fatos, se mostra mais forte e vívido do que o momento do desmascaramento, onde tudo é revoltante, mas um tanto óbvio.

A DÁLIA NEGRA DOS TRÓPICOS

Uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente  em “A Tribuna” de Santos em 19 de janeiro de 2010

      Até a metade, Se eu fechar os olhos agora (romance de estreia do jornalista Edney Silvestre) é excelente: em 1961 (dia em que Iuri Gagárin deu a volta ao planeta no espaço), numa cidadezinha do interior do Rio, dois meninos de 12 anos, Paulo e Eduardo, encontram o cadáver mutilado da mulher do dentista, a qual era a “vagabunda” da cidade (“uma mulher permanentemente aberta à visitação pública”).

Paulo e Eduardo (este, o narrador da história) não conseguem acreditar na confissão (e em seguida, no “suicídio”) do marido de Anita e tentam investigar o crime mesmo não entendendo as motivações e códigos de conduta dos adultos: “Mais uma vez não conseguiu fechar o raciocínio. Mais uma vez estacava diante do paredão do mundo adulto, por trás do qual havia regras que não tinha como entender”.

Os dois aliam-se a um velho do asilo local, Ubiratan (que fora torturado pela ditadura getulista), um forasteiro, e aos poucos, se monta um desmoralizante painel de exploração sexual, de machismo, de racismo, de desfaçatez patriarcal (que remonta aos plantadores de café, os quais fizeram a antiga riqueza da região), de incesto. De uma espécie de Dália Negra tropical (cadáver de mulher encontrado, sugerindo perversões e motivações sexuais patológicas) vamos nos encaminhando para um Chinatown (os podres dos muito ricos e poderosos), a obra-prima de Polanski, na qual a protagonista procurava a irmã que era na verdade a filha que teve com o próprio pai.

A ignorância dos meninos, apesar da sua curiosidade, e a decisão coletiva de acobertamento do que está por trás do assassinato de Anita (na verdade, Aparecida, nascida na fazenda da família do prefeito, fruto do estupro de uma criada negra, efetuado pelo pai dele, um senador; como a filha nasceu com a tez muito branca, denunciando o abuso, mandaram-na para um orfanato, e depois a obrigaram a casar com o dentista, muito mais velho, que tinha um pacto de cumplicidade com ex-colegas de seminário e a partir do casamento explorou sexualmente, de forma sistemática, a jovem esposa, assistindo e fotografando as orgias de que ela fez parte).

É a participação de Ubiratan que estraga a segunda metade e enfraquece consideravelmente Se eu fechar os olhos agora. Por certo, seria preciso um adulto para reconhecer o fio da meada, já que isso era impossível à ingênua dupla de protagonistas. Mas o problema é que a narrativa, que começara de forma muito interessante, como exercício das incertezas e sensações da memória, escorrega no moralismo e na falta de confiança na inteligência do leitor, que ele coloca no nível de informação dos garotos de 12 anos.

O velho militante comunista fica a todo momento fazendo paralelos históricos e evocando injustiças e atrocidades do século XX, de uma forma irritante e até constrangedora: “Sabem o que foi Guernica?  Sabem o que significou? A carnificina? O bombardeio? A matança de crianças, velhos e mulheres? Sabem? A ascensão do fascismo? Sabem da Guerra Civil Espanhola?Picasso? Por incrível que pareça, Edney Silvestre, nós sabemos, sim, e não é desta maneira que uma ficção consegue dar conta dos fatos históricos. Basta lembrar da perícia com que Leite Derramado tocou na ferida do racismo (que também é muito presente em Se eu fechar os olhos agora), sem apelar para o didatismo ou o discurso inflamado. Como diz o verso maravilhoso de Drummond, “que tristes são as coisas quando consideradas sem ênfase”. A história de Anita/Aparecida é muito triste, sem precisar dessas diatribes melodramáticas.

     O final do livro é também decepcionante, ao mostrar Paulo já adulto, tentando localizar Eduardo. Não há nenhum dado novo, nada que dê ideia da formação dos personagens, a partir dos fatos que viveram em 1961, e cuja repercussão em suas vidas futuras, Eduardo intui, após a advertência do diretor da escola onde estudam:    “e se não houvesse futuro para ele? O futuro que até esta manhã, na sala do diretor do colégio, lhe parecera garantido? E se no Brasil, refletia, neste Brasil novo em que surgiam indústrias, estradas, empregos, e se neste Brasil novo, mesmo sendo uma democracia como os professores ensinavam, onde nós o povo, temos eleições livres e decidimos quem vai nos governar, e se neste Brasil houvesse  poderes, forças que ele não sabia dizer quais eram,ou o que eram, nem tampouco apontar onde estavam, e se as houvesse, essas forças, esses poderes capazes de decidir o destino dele, sem que ele pudesse intervir? Alterar tudo sem chance de retorno? Como no dia em que retiraram Aparecida do orfanato para casá-la com o dentista?”)… 

Mesmo com esses altos e baixos, tudo indica que temos um novo romancista na praça. E cheio de gás e talento…

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