MONTE DE LEITURAS: blog do Alfredo Monte

29/12/2011

DESTAQUES DE 2011 (primeira parte)

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(publicado, de forma mais condensada e sem notas de rodapé, em A TRIBUNA de Santos, em 27 de dezembro de 2011)

Arrolo, aqui, destaques entre as novas traduções de livros importantes (foram muitas), até como uma homenagem ao trabalho dos tradutores: é preciso enfatizar como é essencial para o leitor de um país a existência de legítimos (e em tantos casos, apaixonados) profissionais?

Claro, é preciso advertir: não se pode ler tudo nem gostar de tudo, sempre digo que as minhas listas refletem os limites de uma experiência pessoal, e as lacunas são inevitáveis. Assim, por exemplo, em 2010 deixei escapar a tradução de Francis Petra Jansen e a maravilhosa edição da CosacNaify paraO Outono da Idade Média (1919), o magistral estudo do historiador holandês Johan Huizinga1. Mas fica a dica.

De saída, a mais festejável entre as versões recentes foi a de Bruno Gambarotto (Ed. Hedra) para Folhas de relva- Edição do Leito de Morte, que permite ao leitor brasileiro ter acesso à organização final que Walt Whitman deu à maior e mais original obra—na área poética—do continente americano, de forma rigorosa e confiável.

Também se destacaram, sem qualquer ordem hierárquica (e desculpem os comentários genéricos):

Guerra e Paz (CosacNaify)- Rubens Figueiredo traduziu diretamente do russo o maior de todos os romances e a editora arrasou no aparato gráfico (só não o considero o maior lançamento do ano porque já havia boas traduções, mesmo que indiretas, como a de João Gaspar Simões, e a comparação entre as traduções  deixou isso mais claro);

Divina Comédia (Ateliê/Unicamp)- Uma das mais bonitas edições nacionais do monumental poema cosmogônico-florentino de Dante, na tradução de João Trentino Ziller, com desenhos de Sandro Botticelli. E bilíngüe ainda por cima.

Odisséia– O poema épico fundamental do Ocidente ressurgiu em duas novas versões, uma delas ousada e polêmica (de Trajano Vieira, para a Ed.34) e outra mais “certinha”, de Frederico Lourenço para a coleção de clássicos da Penguin/Companhia. É um prazer comparar as duas;

O Eu e o Id, “Autobiografia” e outros textos (1923-1925)– A Companhia das Letras e Paulo César de Souza prosseguem na publicação de uma nova versão das Obras Completas de Freud, em vinte volumes (em ordem não-linear). Esse volume 16 contém alguns dos mais seminais textos freudianos, incluindo sua admirável autobiografia.

O Clube do Suicídio e outras histórias (CosacNaify)- importantíssima seleção de alguns das mais paradigmáticos e geniais textos curtos de Robert Louis Stevenson. Tradução de Andréa Rocha.

A letra escarlate (Penguin/Companhia)- Há décadas não aparecia uma tradução do grande romance norte-americano, um mergulho sobre o empedernimento puritano. Tradução de Christian Schwartz2.

Vida e Proezas de Aléxis Zorbás (Ed.Grua)- Versão direta do grego (por Marisa Ribeiro Donatiello & Silvia Ricardino), finalmente, do famoso elogio de Nikos Kazantzakis à vitalidade, que deu origem a um clássico cinematográfico de Michael Cacoyannis, falecido em 2011 (filme no qual o grande Alan Bates está inesquecível).

Vinte mil léguas submarinas– linda edição da Zahar com as ilustrações originais para o muito amado clássico de Jules Verne (que rendeu uma bela interpretação do grande James Mason no cinema), em tradução mais arejada de André Telles.

Sobre a revolução (Companhia das Letras)- O magnífico ensaio de Hannah Arendt (publicado aqui no Brasil no final dos anos 80) sobre os descaminhos dos processos revolucionários, com sua eloqüente demonstração de que o grande desafio da humanidade é o exercício da liberdade,  ganha uma nova e bela tradução de Denise Bottmann.

Origem do drama trágico alemão (Autêntica)- Uma versão surpreendente do português João Barrento (a anterior e pioneira, de Sérgio Paulo Rouanet, saiu em meados dos anos 80) para o estudo revolucionário do grande amigo de Hannah Arendt, Walter Benjamim, que entrelaçou teoria literária, história e filosofia e criou conceitos utilizados até hoje pela crítica.

Herzog (Companhia das Letras)- Enfim, após décadas, uma nova tradução (de José Geraldo Couto) da obra-prima que confirmou Saul Bellow como o provavelmente mais notável romancista da 2ª. metade do século XX nos EUA. Em tempo: que capas horrorosas essas da Companhia para os livros de Bellow!

O duplo (Ed.34)- Embora considerado um Dostoiévski menor, esse texto da juventude (foi seu segundo romance) é uma ótima introdução ao seu universo febril e visceral, em tradução direta do russo de Paulo Bezerra.

O olho (Alfaguara)- Outro caso de texto considerado menor, e no caso lançado no Brasil numa obscuríssima edição, que tentava vendê-lo como livro policial (como O olho vigilante). Trata-se de um dos primeiros textos de Vladimir Nabokov e, assim como outros recentes relançamentos nabokovianos (caso das obras-primas A verdadeira vida de Sebastian Knight & Lolita), traduzido pelo experiente José Rubens Siqueira.

Peter e Wendy seguido de Peter Pan em Kensington Gardens (L&PM)—A tradução de Rodrigo Breunig traz de volta o menino que não queria crescer. O primeiro romance, que se originou de uma peça, e que é conhecido no mundo inteiro (no Brasil, com a clássica versão de Monteiro Lobato) comemorou seu centenário em 2011.

Fiquei tão decepcionado com O sonho do celta, o mais recente Vargas Llosa que até esqueci que a Alfaguara vem publicando novas traduções de suas obras, e neste ano foi a vez do esplêndido Lituma nos Andes, talvez sua última obra-prima até agora, em tradução de Paulina Wacht e Ari Roitman.

Por último, mas não menos importante, embora não sendo uma nova tradução, todos concordarão comigo que a nova edição de Angústia (Record), comemorativa dos 75 anos do extraordinário romance de Graciliano Ramos, tem que estar nesta lista, mesmo como hors concours. É a roupagem que um dos melhores textos da nossa literatura merecia.

 

1 A minha desculpa é que não o tinha visto ainda nas livrarias até o início deste ano. Por princípio, não recebo regularmente livros de editoras (para não criar um círculo vicioso, aquela obrigatoriedade de comentar um livro porque está sendo lançado naquele momento). É perambulando por elas que fico sabendo o que sai, geralmente.

2 Há vários títulos dessa coleção de clássicos que a princípio mereceriam menção, entretanto alguns deles já têm diversas traduções recentes (caso de Orgulho e Preconceito, Ilusões Perdidas & Outra volta do parafuso) e não queria inflacionar minha lista.

21/12/2011

Contra as paredes ideológicas: “O homem revoltado”, de Camus

VER TAMBÉM NO BLOG:

https://armonte.wordpress.com/2013/01/09/a-ratificacao-do-absurdo-a-morte-de-albert-camus/

https://armonte.wordpress.com/2011/10/27/a-vida-apos-a-morte-de-albert-camus-o-primeiro-homem/

https://armonte.wordpress.com/2009/12/14/o-sim-e-o-nao-de-albert-camus/

https://armonte.wordpress.com/2009/12/14/o-processo-e-a-peste-a-culpa-e-a-inocencia-da-humanidade/

 

(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos,  em 31de dezembro de 1996)

    Ficou o mais importante lançamento do ano para encerrar esta coluna em 1996: O HOMEM REVOLTADO [ tradução de Valérie Rumjanek, editora Record], ensaio publicado em 1951 e duramente combatido, entre outros, pela equipe da revista que Jean-Paul Sartre dirigia na época, “Temps Modernes”

Camus foi acusado de reacionário e incompetente filosoficamente na sua tentativa de historiar as conseqüências ideológicas da atitude de revolta, o dizer Não ao Criador e aos senhores deste mundo, nos últimos dois séculos principalmente..

Para entender melhor a idéia da revolta, é preciso lembrar que ela complementa a idéia de absurdo, exposta em outro ensaio famoso de Camus, O MITO DE SÍSIFO [ tradução de Mauro Gama, editora Guanabara]. O absurdo reside no divórcio que há entre o homem e o mundo. O homem e nasce num mundo que é indiferente a seu destino. Por isso, para o grande autor franco-argelino,a questão primária da filosofia era o suicídio, se valia a pena compactuar com a condição absurda do ser humano.

Pelo desenvolvimento das idéias de Camus, o absurdo transformava-se em revolta: “A revolta nasce do espetáculo da desrazão diante de uma condição injusta e incompreensível. Mas seu ímpeto cego reivindica a ordem nomeio do caos e a unidade no próprio seio daquilo que foge e desaparece. A revolta clama, exige,ela quer que o escândalo termine…” Fazendo um recorte bem arbitrário na história européia, Camus distingue os que se revoltaram metafisicamente, renegando Deus, e depois matando-o (e as conseqüências que Nietzsche tirou dessa morte, propondo uma super-humanidade), e os que se revoltaram na práxis histórica, agindo, primeiro matando a encarnação do divino na terra (o rei) e, por fim, substituindo a salvação proposta pelo Cristianismo no final dos tempos pela redenção do homem escravizado dentro da sociedade capitalista, quando a Revolução triunfasse (e Revolução, aqui, temo sentido marxista-leninista). Para ele,a Revolução é uma degradação da revolta por amar uma humanidade futura, que ainda não existe. Para triunfar, ela teria que se tornar totalitária, justificar os meios pelos fins, como aconteceu com a URSS, transformando-se em império e legitimando o assassinato em massa.

É persuasivo o texto de Camus, não fosse ele um escritor extraordinário. O seu maior mérito é apontar para as paredes ideológicas que nos cercam há duzentos anos, e mostrar como a glorificação da História limitou nosso horizonte mental. Tanto que nem hesitaríamos em concordar imediatamente, quase sem pensar, com a seguinte declaração de Sartre: “A burguesia, cortando-nos os laços com os nosso contemporâneos, encerra-nos no casulo da vida privada e define-nos, às tesouradas, como indivíduos. O que significa, como moléculas sem história que se arrastam de um instante  para o outro. Pela contingência do nosso ancoramento na Natureza e na História, isto é, pela aventura temporal que nós somos no interior da aventura humana, descobrimo-nos singulares. Assim, a história nos faz universais na medida exata em que a fazemos particular”.Camus desconfia da História como ponto de referência absoluto. Só fato de nos fazer desconfiar de uma coisa que parece tão óbvia para a nossa mentalidade já torna relevante e original O HOMEM REVOLTADO.

Em contrapartida,há dois senões graves: um quanto ao livro em si; outro, com relação à sua crescente revalorização. Quanto ao livro, pode-se perdoar (porque todo mundo faz isso) o recorte arbitrário e admirar sua argumentação, mas jamais sua conclusão. O autor de O estrangeiro desemboca numa constrangedora polarização entre a cultura mediterrânea, ligada à vida, à medida e ao sol, e uma cultura (ou melhor, ideologia) germânica, ligada aos livros, à desmesura e a uma nostalgia do absoluto, e aconselha a primeira como opção para a condição absurda e revoltada do homem. É um conselho dispensável, que “sobra” no livro (o qual poderia terminar no capítulo “Revolta e Revolução”, 50 páginas antes). É a mesma coisa que um escritor brasileiro decretar  que a cultura baiana é mais ligada à vida e positiva do que a cultura mineira. Quanto à revalorização do livro, à restauração da sua reputação internacional,ela me irrita porque implica, muitas vezes, numa atitude de rebaixamento deliberado da estatura de Jean-Paul Sartre, um dos escritores mais admiráveis do século, e justamente porque nunca teve medo de errar; aliás, independentemente da grandeza, a meu ver, inegável de O HOMEM REVOLTADO,Sartre escreveu uma magnífica carta para Camus (terminando  a amizade entre eles), a propósito das idéias do livro e das atitudes do outro, e da qual vale transcrever um trecho: “Você queria realizarem si mesmo e por si próprio a felicidade de todos por uma tensão moral. A multidão anônima que nós começávamos a descobrir pedia-nos que deixássemos de ser felizes para que ela se tornasse um pouco menos infeliz… Diziam que esse absurdo, essa revolta, esse não e esse sim, eram jogos de príncipe. Outros iam mesmo ao ponto de dizer: jogos de circo”.

Ambos foram gênios e incômodos. Só que o gênio de Sartre ultrapassa de maneira avassaladora suas obras (apesar de tantas serem extraordinárias, basta lembrar de A idade da razão e de As palavras, no plano literário). E o de Camus está todo nas suas obras (por isso, O HOMEM REVOLTADO muitas vezes parece “literário” demais). Valorizar um em detrimento do outro é empobrecer mentalmente. É como optar entre Dostoiévski e Tolstói, ou, mais domesticamente  entre Chico e Caetano. Eu admiro e amo Camus como escritor e pensador,mas o empenho gigantesco de Sartre em enfrentar todas as questões do século às vezes me emociona muito mais. Mas não escolho entre eles, fico com ambos.

Destaque do Blog: SOBRE A REVOLUÇÃO

(resenha publicada, de uma forma ligeiramente mais condensada, sem a nota de rodapé e o anexo, em A TRIBUNA de Santos, em ’16 de agosto de 2011)

Já tendo atrás de si textos importantes (As origens do Totalitarismo, de 1951; A condição humana, de 1958, e Entre passado e futuro, de 1961), Hannah Arendt viveu em 1963 um momento especialmente fecundo publicando dois livros. O problema é que enquanto um, Eichmann em Jerusalém causou furor e polêmica, o outro, destinado a ser a sua obra-prima (trata-se, certamente, do seu trabalho mais vibrante, e só não é o melhor porque os títulos mencionados se ombreiam com ele), Sobre a revolução (On revolution), passou quase em branco e só foi ganhando  a sua reputação de clássico da reflexão política aos poucos (especialmente após a morte da autora, em 1975). Esperemos que a tradução notável de Denise Bottmann (ver ANEXO), uma das melhores de 2011, não sofra a mesma injustiça.

Em Sobre a revolução, Arendt procura rastrear a tradição revolucionária, com a premissa de que revolução é a instauração da liberdade, e não apenas libertação de um estado opressivo. Que fique bem claro, já que a agudíssima pensadora alemã gosta de definir bem as palavras: liberdade para ela é a participação no espaço público, no ato político[1], não aquela acepção de liberdade que gostamos de acalentar um tanto comodamente, de ausência de freios ou repressões. A revolução se tornou um “tesouro perdido” ao tentar garantir esse equívoco, confundindo libertação e liberdade.

Entre as duas grandes revoluções inaugurais, a Francesa (1789) e a Americana (que acarretou a independência dos EUA em 1776), ela—contrariamente ao estabelecido—dá mais valor à última, ainda que a primeira tenha sido a que estabeleceu o paradigma para a tradição revolucionária, cujo clímax será a ideologia marxista e a Revolução Russa (1917).

O fracasso da Revolução Francesa, pela ótica arendtiana, foi ter, muito cedo, deturpado seu rumo: ao invés de fundar uma forma de governo (a república) e estabelecer uma constituição, ela se deixou levar pelo apelo dos miseráveis, confundindo o futuro político com a questão social, indo na direção do estado do “bem estar”, que cabe mais à mera administração da coisa pública, e pervertendo a tarefa política da revolução, que é garantir o espaço público de liberdade para a participação do cidadão, não como uma vaga “opinião pública” ou mera  formulação de “direitos humanos”, como se a tarefa do estado fosse proteger a liberdade privada do cidadão contra ele mesmo (o poder constituído). Abriu-se um fosso entre governantes e governados e o antigo absolutismo real foi substituído pela idéia do estado-nação como um corpo único, representando “o povo”. O pior é que as ilações filosóficas de \Hegel a partir dos acontecimentos da França fizeram com que todo o pensamento da esquerda girasse em torno do conceito da necessidade, como se o processo histórico tivesse de passar irresistivelmente pelas mesmas etapas dialéticas, tanto que a Revolução Russa repetiu os desmandos e erros da Francesa.

Por outro lado, vindo de uma tradição colonial em que foram firmados pactos e promessas mútuas para a sobrevivência no novo continente, a Revolução Americana consolidou-se através do sistema federativo, a divisão entre os poderes e a promulgação de uma sólida Constituição, o que para Arendt representa um feito fabuloso e inédito na esfera política, embora algo igualmente tenha desandado pelo caminho: não obstante os cuidados dos Pais Fundadores (e ela nos faz admirar John Adams de uma maneira que  os cansativos capítulos de uma super-premiada minissérie que retrata sua vida sequer arranharam) em não confundir a instauração de uma verdadeira República com uma equivocada democracia (entendida  como a tirania da maioria): a representatividade, ou seja, o quociente de participação do cidadão (reduzido a mero votante) no espaço público, o verdadeiro exercício de sua liberdade, também ficou comprometido.

Assim como outra obra única que vai contra todo o senso comum e a divisão entre esquerda e direita, O homem revoltado (1951), de Albert Camus, Sobre a revolução, não fosse por mais nada, já seria obrigatório só por nos desincrustar dos blocos ideológicos habituais com que os acontecimentos foram olhados (com petrificados-petrificantes olhos de medusa) e interpretados ao longo destes últimos 200 anos. Nossas idéias de república, democracia, liberdade, representatividade, partidos e participação política são, todas elas, revolucionadas por um exercício de reflexão no mínimo originalíssimo e, no limite, transfigurador.


[1] A concepção de “espaço público” de Arendt, derivada da polis e da atividade política entre os gregos, é magnificamente desenvolvida em A condição humana.

      

                  ANEXO

A tradução de Fernando Dídimo Vieira (com revisão de Caio Navarro de Toledo), publicada em co-edição Ática/UNB, em 1990, é muito correta e funcional, como se pode ver pelos exemplos abaixo (e afinal serviu ao leitor brasileiro, sozinha por vinte anos)

. A meu ver, no entanto, a de Denise Bottmann (Companhia das Letras) é muito mais fluente, flexível e vívida, segue mais de perto a cadência do estilo e do pensamento de H.Arendt, e inclusive é mais atenta à sua peculiar pontuação, de alemã escrevendo em inglês.

Só há um trecho em que acho que a solução de Dídimo foi melhor: no final do primeiro capítulo (O significado da Revolução), no qual são comentados os erros desastrosos da Revolução Russa, Denise traduz da seguinte forma: “Foram enganados não porque as palavras de Danton e Vergniaud, de Robespierre e Saint-Just, e de todos os outros ainda ressoassem em seus ouvidos, foram enganados pela história, e se tornaram os bobos da história”; é o único caso em que dou preferência à solução de Dídimo: “Foram ludibriados, não em razão das palavras de Danton e Vergniaud, de Robespierre e Saint-Just, e de todos os outros que ainda soavam em seus ouvidos; foram ludibriados pela História e se tornaram os tolos da História”.

em negrito- tradução de Denise Bottmann

em itálico- tradução de Fernando Dídimo Vieira

Aqui, a dificuldade é que a revolução, tal como a conhecemos na era moderna, sempre esteve relacionada com a libertação e com a liberdade. E, como a libertação, cujos frutos são a ausência de restrição e a posse do “poder de locomoção”, é de fato uma condição da liberdade —ninguém jamais poderia chegar a um lugar onde impera a liberdade se não pudesse se locomover sem restrição —freqüentemente fica muito difícil dizer onde termina o simples desejo de libertação, de estar livre da opressão, e onde começa o desejo de liberdade como modo político de vida. O cerne da questão é que o primeiro, o desejo de estar livre da opressão, podia ser atendido sob um governo monárquico —mas não sob a tirania e muito menos sob o despotismo— ao passo que o segundo demandava a instauração de uma forma de governo que fosse nova, ou pelo menos, redescoberta ela exigia a constituição de uma república. Com efeito, não existe nada mais verdadeiro, mais claramente corroborado pelos fatos —que, infelizmente, têm sido totalmente negligenciados pelos historiadores das revoluções— do que a afirmativa de “que as disputas daquela época foram disputas de princípio, entre os defensores do governo republicano e os defensores do governo monárquico.”

O problema aqui é que a revolução, como a conhecemos na Idade Moderna, sempre esteve envolvida tanto com a libertação, como com a liberdade. E desde que a libertação, cujos frutos são a ausência de constrangimento e a posse da “faculdade de locomoção”, é, de fato, uma condição da liberdade —ninguém jamais seria capaz de chegar a um lugar em que impera a liberdade, se não pudesse se locomover sem restrições— torna-se amiúde muito difícil dizer onde termina o mero desejo de libertação, de ser livre de opressão, e onde começa o desejo de liberdade como opção política de vida. O ponto em questão é que, enquanto o primeiro, o desejo de ser livro da opressão, poderia ser realizado sob regime monárquico —embora não o fosse sob um poder tirânico, e muito menos despótico— o último necessitava da formação de uma nova, ou antes, redescoberta forma de governo, exigia a constituição de uma república. Nada, certamente, é mais verdadeiro e mais corroborado pelos fatos —os quais, infelizmente, têm sido negligenciados pelos historiadores das revoluções— do que a afirmação “de que as disputas daquela época eram disputas de princípio entre os defensores de um governo republicano e os de um regime monárquico”.

[…] essa segunda parte da tarefa da revolução, encontrar um novo absoluto para substituir o absoluto do poder divino, é insolúvel porque o poder sob a condição da pluralidade humana nunca pode chegar à onipotência, e as leis baseada no poder humano nunca podem ser absolutas.

{…} essa última parte da tarefa da revolução —encontrar um novo absoluto para substituir o absoluto do poder divino— é insolúvel, pois o poder, sob condição da pluralidade humana, nunca pode atingir a onipotência,  e leis que se baseiam no poder humano nunca podem ser absolutas.

Se  a libertação da pobreza  e a felicidade do povo eram os verdadeiros e únicos objetivos da revolução, então a tirada jocosa e blasfema de Saint Just: “Nada se assemelha tanto à virtude  quanto um grande crime” não passava de um comentário trivial, pois o que de fato se seguia era que tudo devia ser “permitido aos que atuam na direção revolucionária”.

   Seria difícil encontrar em toda a oratória revolucionária uma frase mais exata sobre as questões compartilhadas pelos fundadores e pelos libertadores, os homens da Revolução Americana e os homens da França. O rumo da Revolução Americana continuava comprometido com a fundação da liberdade e o estabelecimento de instituições duradouras, e aos que atuavam nessa direção não era permitido nada que estivesse fora do escopo do direito civil. O rumo da Revolução Francesa, quase desde o início, foi desviado desse curso de fundação pela imediaticidade do sofrimento; ele foi determinado pelas exigências de libertação não da tirania, e sim da necessidade…

Se a felicidade do povo e a libertação da pobreza eram as verdadeiras e exclusivas metas  da revolução, então a observação imaturamente blasfema de Saint-Just, de que “nada se assemelha mais à virtude do que um grande pecado”, seria algo de corriqueiro, pois que a ela se seguiria, de fato, que tudo deve ser “permitido aos que agem na direção da revolução”.

   Seria difícil encontrar, em todo o conjunto da oratória revolucionária, uma frase que apontasse, com maior precisão, quais os temas sobre os quais os fundadores e os libertadores, isto é, os homens da Revolução Americana e os homens da França, estivessem em dissensão. A direção da Revolução Americana permaneceu comprometida com a implantação da liberdade e o estabelecimento de instituições duradouras, e, àqueles que atuavam nessa direção, nada era permitido que estivesse fora do âmbito da lei civil. O rumo da Revolução Francesa foi desviado desse curso original, quase desde o início, pela urgência do sofrimento; isso foi ocasionado pelas exigências da libertação, não da tirania, mas da necessidade…

Como não existiam sofrimentos ao redor capazes de lhes despertar as paixões, não existiam carências avassaladoramente prementes que os tentassem a se submeter à necessidade, e nenhuma piedade que os desviasse da razão, os homens da Revolução Americana se mantiveram homens de ação do começo ao fim, da Declaração de Independência à montagem da Constituição. Seu sólido realismo jamais foi submetido à prova da compaixão, seu bom senso nunca foi exposto à esperança absurda de que o homem, que o cristianismo dizia ser pecador e corrupto por natureza, ainda pudesse se revelar um anjo…

Já que não existia, em torno deles, nenhum sofrimento que pudesse ter despertado suas paixões, nem carências avassaladoramente prementes que os levassem a submeter-se à necessidade, nem piedade para desviá-los da razão, os homens da Revolução Americana permaneceram homens de ação do princípio ao fim, da Declaração de Independência à organização da Constituição. Seu sólido realismo nunca foi submetido à experiência da compaixão, seu senso comum nunca foi exposto à absurda esperança de que o homem, que o cristianismo tinha como pecador e corrupto por natureza, podia ainda revelar-se ser um anjo…

E o problema é que essa paixão pela liberdade pública ou política pode ser facilmente confundida com o profundo ódio aos senhores, talvez muito mais veemente, mas essencialmente estéril em termos políticos. Esse ódio, sem dúvida, é tão antigo quanto a história documentada, e provavelmente até anterior, mesmo assim ele nunca resultou em revolução, porque é incapaz sequer de captar, e quanto mais entender,  a idéia central da revolução, que é a fundação da liberdade, isto é, a fundação  de um corpo político que garante o espaço onde a liberdade pode aparecer…

E o problema é  que essa paixão pela liberdade pública ou política pode ser facilmente confundida com o ódio exaltado pelos senhores, um ódio provavelmente muito mais veemente, porém, em essência, politicamente estéril. Esse ódio, sem dúvida, é tão antigo como a História, e talvez ainda mais antigo; ele nunca resultou em revolução, por ser incapaz de ao menos vislumbrar, quanto mais compreender, a idéia central da revolução, que é a instituição da liberdade, ou seja, a criação de um corpo político que assegure o espaço onde a liberdade possa aparecer…

… o poder é ainda público e está nas mãos do governo, mas o indivíduo perdeu o poder e deve ser protegido contra ele. A liberdade, por sua vez, trocou de lugar; não reside mais na esfera pública, e sim na vida privada dos cidadãos, e por isso precisa ser defendida contra o público e s seu poder. A liberdade e o poder se afastam, e assim tem início a fatídica equiparação entre poder e violência, entre política e governo, entre governo e mal necessário.

…o poder ainda é público e está nas mãos do governo, porém agora o indivíduo se tornou impotente, e deve ser protegido contra esse governo. Por outro lado, a liberdade mudou de lugar, não mais reside na esfera pública, mas na vida particular dos cidadãos, e, assim, deve ser defendido contra o público e seu poder. A liberdade e o poder se apartaram, e a fatal assimilação do poder com a violência, da política com o governo, e do governo como um mal necessário, começou.

…Para nós, é difícil entender tudo o que estava em jogo nessa passagem inicial da república para a forma democrática de governo, porque geralmente igualamos e confundimos o governo da maioria com a decisão da maioria. Esta, porém, é uma questão técnica, passível de ser adotada quase automaticamente em todos os tipos de assembléias e conselhos deliberativos, correspondam eles a todo o eleitorado, a reuniões de uma câmara municipal ou a pequenas comissões de conselheiros seletos para os respectivos governantes. Em outras palavras, o princípio da maioria é inerente ao próprio processo de tomada de decisões e, assim, está presente em todas as formas de governo, incluindo o despotismo, com a possível exceção somente da tirania. Apenas quando a maioria, depois de tomada a decisão, passa a liquidar politicamente —e, em casos extremos, fisicamente— a minoria adversária é que o mecanismo técnico da decisão da maioria degenera em governo da maioria.

…Torna-se difícil, para nós, perceber tudo o que estava em jogo nessa primeira transformação da república em uma forma democrática de governo, porque geralmente equiparamos e confundimos o governo da maioria com a decisão da maioria. Entretanto, essa última é um artifício técnico, suscetível de ser adotado quase automaticamente em todos os tipos de conselhos e assembléias deliberativas, quer seja o conjunto do eleitorado, quer sejam reuniões distritais ou pequenos conselhos de assessores escolhidos pelos respectivos governantes. Em outras palavras, o princípio da maioria é inerente ao próprio processo de tomada de decisão, e, portanto, está presente em todas as formas de governo, inclusive no despotismo, com a possível exceção, apenas, da tirania. Apenas onde a maioria, após a decisão ter sido tomada, começa a liquidar politicamente, e, em casos extremos, fisicamente, a minoria oponente, é que o artifício técnico da decisão da maioria degenera em governo da maioria.

…o endeusamento do povo na Revolução Francesa foi conseqüência inevitável da tentativa de derivar a lei e o poder da mesma fonte. A invocação dos “direitos civis” em que se fundava a monarquia absoluta moldara o governo secular à imagem de um deus onipotente e legislador do universo, ou seja, à imagem do Deus cuja Vontade é Lei. A “vontade geral” de Rousseau ou de Robespierre, ainda é essa Vontade divina, à qual basta querer para criar uma lei. Historicamente, não existe maior diferença de princípio entre a Revolução Americana e a Revolução Francesa do que a convicção unânime desta última de que “a lei é a expressão da vontade geral”, formulação que buscaríamos inutilmente na Declaração de Independência e na Constituição dos Estados Unidos.

 

…a deificação do povo, na Revolução Francesa, foi a conseqüência inevitável da tentativa de fazer derivar a lei e o poder de uma mesma fonte. A pretensão da monarquia absoluta  de estar fundamentada em “direitos divinos” havia dado origem a uma concepção de domínio secular segundo a imagem de um Deus cuja vontade é a lei. Historicamente, não existe diferença de princípio mais significativa, entre as Revoluções Americana e Francesa, do que o fato de que essa última afirmava, unanimemente, que “a lei é a expressão da vontade geral”, uma formulação que se pode procurar, em vão, tanto na Declaração de Independência, como na Constituição dos Estados Unidos…

19/12/2011

O labirinto do puritanismo e do empedernimento do espírito: “A LETRA ESCARLATE”

 

(o que se lê abaixo é a combinação de duas resenhas, ambas publicadas originalmente em A TRIBUNA de Santos: uma, em 05 de dezembro de 1995; a outra, em homenagem aos 150 anos do livro, em 25 de abril de 2000)

Alguém em Hollywood impressionou-se talvez com o sucesso do estapafúrdio O piano (uma das maiores abobrinhas já vistas nas telas) e pensou: por que não filmar A LETRA ESCARLATE (The Scarlet Letter, 1850), um dos romances mais geniais da literatura, geralmente considerado a maior obra de ficção dos EUA? Afinal, nele também aparecem roupas pretas, uma mulher que luta contra as convenções e os homens, puritanismo e hipocrisia vs. desejo, e indígenas por perto.

Por desgraça ou castigo dos céus, a tarefa coube ao ridículo Roland Joffé, que já cometera atentados como Os gritos do silêncio, A missão, Cidade da esperança. O resultado é um samba do crioulo doido, uma hecatombe de ruindade, versão picaretíssima e demagógica, certamente um dos piores filmes da década, com Demi Moore, Gary Oldman e Robert Duvall em caracterizações que nada têm a ver com o espírito da história criada por Nathaniel Hawthorne.

Esqueçamos o horror, o horror cinematográfico. O livro se inicia em Boston, no século XVII, com o castigo infligido a Hester Prynne, enviada à América pelo marido, homem bem mais velho e pelo qual esperou em vão por longo tempo. Engravida e é presa. Exposta em praça pública, recusa-se a revelar o nome do cúmplice e é obrigada doravante a carregar no peito a letra A de adúltera.

Justamente no dia em que é marcada dessa forma,aparece seu marido, que exige dela silêncio sobre sua identidade e passa a atuar como médico, com o nome de Roger Chillingworth. Seu objetivo: descobrir a identidade do amante de Hester e vingar-se dele. Sua vítima é o reverendo mais querido da cidade, Arthur Dimmesdale. Chillingworth torna-se seu amigo íntimo, passa a dividir casa com ele e assim inicia-se uma trama que abrange anos de torturas psicológicas e dilemas morais.

Pode-se ler A LETRA ESCARLATE sob esse prisma de discussão a respeito da moralidade convencional e puritana. Já na impactante (só ela já valeria a leitura) Introdução à sua obra-prima, Hawrhorne investe de forma dissolvente contra o conservadorismo paralítico e a mediocridade da Nova Inglaterra. Há, no livro, uma visão ácida, embora ambígua em sua crítica, do puritanismo enquanto empedernimento religioso, sufocando as possibilidades da América como o tão apregoado Novo Mundo.

No entanto, o triângulo Chillingworth-Hester-Dimmesdale e mais a menina que surge da união ilícita entre os dois últimos, Pearl (que o leitor brasileiro só encontrará com seu nome original na tradução de Sodré Viana, publicada pela José Olympio; as duas outras traduções que conheço, a de Elaine Farhart Sírio, pelo Círculo do Livro, e a de A. Pinto Carvalho, a única encontrada nas livrarias no momento1—na sua edição pela Ediouro, tendo sido lançada originalmente na antiga Coleção Saraiva—apresentam-na como Pérola), oferecem mais ao leitor atento.

Tal como O morro dos ventos uivantes, Moby Dick ou os contos de Poe, A LETRA ESCARLATE transcende o Romantismo convencional e projeta-se dentro da nossa época com uma surpreendente modernidade: através do aprisionamento mental do casal Hester-Dimmesdale à sufocante Nova Inglaterra do século XVII, o leitor vai percebendo coisas mal resolvidas dentro do coração humano (não é à toa que Dimmesdale liga-se à Chillingworth), que inconscientemente fazem com que procuremos o sofrimento ou laços que nos angustiam.

Hester poderia ir para outro lugar, outro continente, mas prefere ser a mulher da letra escarlate (como, mais tarde, outra personagem marcante preferirá ser a mulher do tenente francês, a figura feminina mal falada de outra cidadezinha): “…existe uma fatalidade, um sentimento que se impõe a nós, irresistível e inevitável, que quase invariavelmente compele os seres humanos a freqüentar e a rondar, como almas do outro mundo, os locais onde algum notável acontecimento influiu de modo decisivo em suas existências… O pecado e a ignomínia de Hester eram as raízes que a apegavam ao solo. Foi como um segundo nascimento, com maior poder de assimilação do que o primeiro, houvesse convertido a terra das selvas, com a qual outros peregrinos e imigrantes ainda não se tinham compatibilizado, em lúgubre e fatídico lar onde essa mulher transviada tinha de passar os restantes dias de vida…”

Esqueça-se o antiquado da linguagem, embora ela tenha a ressonância da retórica bíblica que faz da grande literatura norte-americana (e William Faulkner, para não falar de Herman Melville, é o maior exemplo disso) um assombro de beleza. Atente-se para a capacidade de escavar as motivações do ser humano, capacidade que torna um dos capítulos mais famosos e extraordinários do romance, O ministro no labirinto (que já foi traduzido também como O ministro confuso, por Farhart Sírio, e como O pastor no labirinto, por Sodrá Viana2), um dos grandes picos na região da sondagem psicológica. E pensar que em 1850, aqui no Brasil, os leitores tinham Joaquim A moreninha Manoel de Macedo para fazer frente à trinca norte-americana Hawthorne-Poe-Melville. Mas nos vingaríamos de forma avassaladora, décadas depois, com o riso de escárnio vindo do Além que povoa as memórias póstumas de Brás Cubas. Antes tarde do que nunca.

 

Adendo- O final acima segue a resenha de 2000. Na de 1995, era assim: Teríamos que aguardar ainda, em matéria de escavação do essencial, por Machado de Assis. Talvez o lado positivo da telenovelesca (a)versão de Joffé para A LETRA ESCARLATE seja fazer o leitor entrar em contato com um autor que escreveu outras coisas geniais, como o romance A casa das sete torres e contos como Os retratos proféticos e O véu negro do ministro.

1 Nota de 2011- A Companhia de Letras (em associação com a Penguin ) lançou, enfim, uma nova versão do romance neste ano, em tradução de Christian Schwartz; nela encontramos também Pearl. A tradução de A. Pinto Carvalho foi lançada também pela Matin Claret.

   Quanto ao filme de Joffé, ele só existe para mim, atualmente,  em associação mental  á engraçadíssima sátira ao Oscar e à loucura de ser indicado, realizada por Christopher Guest em For your consideration (2006), um dos melhores filmes dos últimos anos. Apesar de os “alternativos”–filme e atrizes—não conseguirem a indicação, nós conhecemos  os oficialmente indicados, e um deles é uma produção chamada, impagavelmente, de  O orgulho do rochedo de Plymouth, que resume o espírito dos filmes à  Joffé.

 

2 Na edição recente, foi traduzido como O pastor num labirinto.

14/12/2011

QUANDO ABEL MATA CAIM: os valores absolutos e as “instituições duradouras” em BILLY BUDD

  Nos títulos lançados em “Prosa do Mundo” da Cosac & Naify, os idealizadores da coleção cultivaram o elogiável vezo de colocar, no final de cada volume, “sugestões de leituras”, indicando textos indispensáveis, célebres ou simplesmente curiosos, que trataram da obra em questão.

    Me causou surpresa, por isso, ao ler BILLY BUDD dentro da coleção (em tradução de  Alexandre Hubner), não encontrar nas “sugestões de leitura” a informação de que Hannah Arendt havia abordado o maravilhoso romance de Herman Melville em Sobre a Revolução (1963), em páginas que—a meu ver—são clássicas, não fosse a pensadora alemã uma voraz leitora de literatura (também escreveu poemas, principalmente na juventude). Não consigo conceber uma fortuna crítica de BILLY BUDD em que não constem as considerações de Arendt.

    Portanto, antes de eu mesmo fazer algumas observações sobre o texto e algumas de suas traduções brasileiras, transcrevo o (longo) trecho de Sobre a Revolução onde são abordadas as questões principais do romance. Pensei, a princípio, em parafrasear, mas achei preferível deixar a própria Arendt (na impecável tradução de Denise Bottmann) “falar”.

    Estamos no capítulo  2 de Sobre a Revolução, A questão social, e além de BILLY BUDD, a autora também aborda (mais brevemente) “O Grande Inquisidor”, a famosa passagem de Os Irmãos Karamázov.

  Abaixo o texto, em negrito:

Era talvez inevitável que o problema do bem e do mal, com o impacto de ambos sobre os destinos humanos, posto em sua simplicidade franca e direta, perseguisse o espírito dos homens no exato momento em que eles estavam afirmando ou reafirmando a dignidade humana, sem qualquer recurso à religião institucionalizada. Mas a profundidade desse problema dificilmente poderia ser captada por quem confundia bondade com a “repugnância inata do homem em ver o semelhante sofrer” (Rousseau) e por quem achava que o egoísmo e a hipocrisia eram o suprassumo da maldade. E, ainda mais importante, nem se poderia colocar a pavorosa questão do bem e do mal, não pelo menos no quadro das tradições ocidentais sem levar em conta a única experiência realmente válida, realmente convincente do amor ativo pela bondade como princípio inspirador de todas as ações que a humanidade ocidental teve ocasião de conhecer, isto é, sem levar em conta a figura de Jesus de Nazaré. Esse aspecto veio a surgir na esteira da revelação, e, embora seja verdade que Rousseau e Robespierre não estiveram à altura das questões que a doutrina de um e a ação do outro trouxeram à pauta das gerações seguintes, talvez também seja a verdade que, sem eles e sem a Revolução Francesa, Melville e Dostoiévski não se atreveriam a trazê-lo de volta ao mundo humano—um em Billy Budd, o outro em O Grande Inquisidor—e a mostrar abertamente, concretamente, embora de maneira poética e metafórica, é claro, a que empreendimento trágico é fado à ruína haviam se lançado os homens da Revolução Francesa, quase sem o saber. Se quisermos entender o que significa a bondade absoluta para o curso dos assuntos humanos (enquanto esfera distinta dos assuntos divinos), mais vale recorrermos aos poetas, o que podemos fazer com bastante segurança desde que lembremos as palavras de Melville: “O poeta apenas coloca em versos aquelas exaltações do sentimento que uma natureza como a de Nelson, tendo a oportunidade, encarna em ações.” Pelo menos podemos aprender com eles que a bondade absoluta é quase tão perigosa quanto o mal absoluto[1], e que ela não consiste no altruísmo, pois certamente o grande inquisidor  é bastante altruísta, e está além da virtude, mesmo da virtude do capitão Vere. Nem Rousseau nem Robespierre eram capazes de sonhar com um bondade além da virtude, assim como eram incapazes  de imaginar que o mal radical “nada tem de sórdido ou de sensual” (Melville), e que pode existir maldade para além do vício.

   Na verdade, o fato de que o homem da Revolução Francesa não fossem capazes de pensar nesses termos, e portanto nunca tenham realmente chegado ao cerne do problema que surgiu em decorrência de suas próprias ações, era praticamente esperado. Evidentemente, eles conheciam muito bem os princípios que inspiravam suas ações, mas não o significado da história que viria a resultar delas. Sem dúvida, Melville e Dostoiévski, mesmo que não tivessem sido os grandes escritores e pensadores que de fato foram, estavam numa posição melhor para saber do que se tratava. Melville, em especial, pois podia recorrer a um leque muito mais amplo de experiência política do que Dostoiévski; ele sabia como falar diretamente com os homens da Revolução Francesa e com seu conceito de que o homem é bom no estado de natureza e se torna mau em sociedade. Foi o que ele fez em Billy Budd, é como se dissesse: vamos supor que vocês estejam certos e que o  “homem natural”, nascido fora da sociedade, um “enjeitado” dotados apenas de bondade e inocência “bárbara”, voltasse  à terra—pois certamente, seria uma volta, uma segunda vinda sem dúvida, vocês lembram que isso já aconteceu uma vez não podem  ter esquecido a história que ele se tornou a lenda de fundação da civilização cristã. Mas,caso tenham esquecido, deixem-me contá-la de novo, no contexto em que vocês vivem e inclusive na terminologia que vocês usam.

     A compaixão e a bondade podem ser fenômenos relacionados, mas não são iguais. A compaixão desempenha um papel, e até importante, em Billy Budd, mas seu tema é a bondade além da virtude o mal além do vício, e o enredo da história consiste no confronto de ambos.A bondade além da virtude é a bondade natural e a maldade além do vício é “uma depravação de acordo com a natureza” que “nada tem de sórdido ou sensual”. Ambas estão fora da sociedade, e os dois homens que as encarnam não vêm de lugar nenhum, falando socialmente. Billy Budd é um enjeitado;Claggart, o antagonista, também é de origem desconhecida. Não há nada de trágico no confronto em si; a bondade natural, embora “tartamudeie”  e não se consiga fazer ouvir e entender, é mais forte do que a maldade porque a maldade é depravação da natureza, e a natureza “natural” é mais forte do que a natureza depravada e pervertida. Essa parte da história é grandiosa porque a bondade, por ser parte da “natureza”, não age com brandura, mas se afirma com força e até com violência, de maneira que ficamos convencidos: apenas o ato de violência com que Billy Budd golpeia até a morte o homem que levantou falso testemunho contra ela é cabível, eliminando a “depravação” da natureza. Mas este não é o final, e sim o começo da história. Ela se desenrola depois que a “natureza” seguiu seu curso, com o resultado de que o mau está morto e o bom prevalece. O problema agora é que o homem bom, por ter se deparado com o mal, também se tornou um malfeitor; e isso mesmo que suponhamos que Billy Budd tenha conservado sua inocência, que tenha continuado a ser “um anjo de Deus”. É neste ponto que a “virtude” na pessoa do capitão Vere se introduz no conflito entre o bem absoluto e o mal absoluto, e aqui começa a tragédia. A virtude—que é menos, talvez, do que a bondade, mas ainda assim a única capaz “de se encarnar em instituições duradouras”—deve prevalecer em detrimento também do homem bom; a inocência natural e absoluta, na medida em que só consegue agir com violência, está “em guerra com a paz do mundo e o verdadeiro bem-estar da humanidade”, de maneira que a virtude finalmente intervém não para impedir o crime do mal, e sim para punir a violência da inocência absoluta. Claggart foi “golpeado por um anjo de Deus!Todavia o anjo deve ser enforcado!”. A tragédia é que a lei foi feita para os homens, e não para anjos ou demônios. As leis e todas as “instituições duradouras” desmoronam não só sob o assalto do mal elementar como também sob o impacto da inocência absoluta. A lei, movendo-se entre o crime e a virtude, não pode reconhecer o que está além de si, e, embora não disponha de nenhuma punição cabível para o mal elementar, ela não pode deixar de punir a bondade elementar, mesmo que o homem virtuoso, o capitão Vere, reconheça que apenas a violência dessa bondade é adequada ao poder depravado do mal. O absoluto—e, para Melville, os Direitos do Homem haviam incorporado um absoluto—quando é introduzido na esfera pública, traz a ruína a todos.

   Notamos acima que a  paixão da compaixão estava curiosamente ausente das reflexões e sentimentos dos homens que fizeram a Revolução Americana. Ninguém duvidaria de que John Adams estava certo ao escrever que “a inveja e rancor da multidão contra os ricos é universal e reprimida apenas pelo medo ou pela necessidade. Um mendigo nunca há de compreender a razão pela qual um outro anda de carruagem enquanto ele não tem pão”, e mesmo assim ninguém que conheça a miséria deixará de se chocar com a peculiar frieza e “objetividade” indiferente desse seu juízo. Por ser americano, Melville sabia debater melhor a proposição teórica dos homens da Revolução Francesa—o homem é bom por natureza—do que avaliar a preocupação apaixonada e crucial por trás das suas teorias, a preocupação com a multidão sofredora. Não à toa, a inveja em Billy Budd não é a inveja do rico pelo pobre, e sim da integridade natural pela “natureza depravada”—é Claggart quem inveja Billy Budd—e a compaixão não é o sofrimento  do homem poupado à visão do homem ferido na carne; pelo contrário, é Billy Budd, a vítima, quem sente compaixão pelo capitão Vere, o homem que o envia a seu destino […]

   Como a compaixão abole a distância, o espaço terreno entre os homens onde se situam os assuntos políticos, ou seja, toda a esfera dos assuntos humanos, ela não tem pertinência nem importância em termos políticos. Nas palavras de Melville, a compaixão é incapaz de estabelecer “instituições duradouras”. O silêncio de Jesus em “O grande Inquisidor” e o tartamudeio de Billy Budd indicam a mesma coisa, a saber, a falta de capacidade (ou de disposição) de ambos para qualquer espécie de discurso predicativo ou argumentativo, em que alguém fala a alguém sobre alguma coisa que é de interesse para ambos, porque é inter-esse, é algo entre ambos. Esse interesse discursivo e argumentativo no mundo è inteiramente alheio à compaixão, que se dirige exclusivamente, e com intensidade apaixonada, ao próprio sofredor; a compaixão fala apenas na medida em que tem de responder diretamente aos meros sons e gestos de expressão por meio dos quais o sofrimento se faz audível e visível no mundo. Como regra, não é a compaixão que se lança a transformar as condições terrenas e mitigar o sofrimento humano, mas, se o faz, ela evitará os longos e cansativos processos de persuasão, negociação e acordo, que são os processos da lei e da política, e emprestará sua voz ao próprio sofrer, que deve reivindicar uma ação rápida e direta, ou seja, a ação por meio da violência.

    Aqui também é evidente a relação entre os fenômenos da bondade e da compaixão. Pois a bondade que está além da virtude e, portanto, além da tentação,  ignorando o raciocínio argumentativo com que o homem afasta as tentações e, durante esse processo, vem a conhecer os caminhos da maldade, também é incapaz de aprender as artes da persuasão e da argumentação. A grande máxima de todos os sistemas jurídicos civilizados—o ônus da prova sempre cabe ao acusador—deriva da percepção de que apenas a culpa pode ser provada irrefutavelmente. A inocência, ao contrário, enquanto algo mais do que o veredicto de “não culpado”, não pode ser provada e deve ser aceita em fé, e o problema é que essa fé não pode se apoiar na palavra dada,pois esta pode ser uma mentira.Billy Budd podia falar a língua dos anjos, e não seria capaz de refutar as acusações do “mal elementar” que lhe foram lançadas; a única coisa que podia fazer era erguer a mão e abater o acusador.

    Melville inverteu claramente o crime lendário primordial—Caim matou Abel—,que desempenhou um papel tão gigantesco em nossa tradição de pensamento político, mas essa inversão não foi arbitrária; ela provinha da inversão que os homens da Revolução Francesa tinham imprimido à proposição do pecado original, substituindo-a pela proposição da bondade original. O próprio Melville apresenta no prefácio a pergunta que norteia sua história: como foi possível que, depois “da retificação dos erros hereditários do Velho Mundo (…) logo a própria revolução se tornou malfeitora, mais opressiva do que os reis?” Ele encontrou a resposta—o que, aliás, é bastante surpreendente, se considerarmos a habitual equiparação da bondade com a brandura e a fraqueza—no fato de que a bondade é forte, talvez ainda mais forte do que a maldade, mas ela partilha com o “mal elementar” a violência elementar inerente a toda força, em detrimento de todas as formas de organização política. É como se ele dissesse: Suponhamos que, daqui por diante,  a pedra fundamental de nossa vida política seja que Abel matou Caim. Vocês não vêem que deste ato de violência decorrerá a mesma cadeia de erros, só que agora a humanidade não terá sequer o consolo de que a violência a que deve chamar de crime é característica apenas dos maus?

    Creio que Hannah Arendt toca em todos os pontos nevrálgicos desse romance, o último  escrito por Melville (o manuscrito tem como data de conclusão abril de 1891 e o autor de Moby Dick morreu em 28 de setembro), e só viria a ser publicado em 1924 (quando começou a “reabilitação” melvilliana, após décadas ignorado) com o título de Billy Budd, foretopman, com o subtítulo What Befell Him In The Year Of The Great Muting. Uma das traduções que possuo, de Octavio Mendes Cajado (Ediouro, mas publicada antes na Coleção Saraiva[2], é baseada nessa versão; em 1962, foi publicada uma edição mais acurada, e o título foi rebatizado para Billy Budd, sailor (as diferentes versões não discrepam só no título, mas também na divisão dos capítulos). É nessa versão que se baseiam as traduções de Hubner e de Cássia Zanon (L&PM).

   Pode parecer que Hannah Arendt extrapolou na sua interpretação da história, ao vincular os acontecimentos de BILLY BUDD à sua interpretação “negativa” dos rumos da Revolução Francesa. No entanto, o texto é uma alegoria inequívoca da era revolucionária. Senão vejamos: Billy é o Belo Marujo[3] (é adorado por todos os companheiros, é o centro das atenções e, segundo o capitão do navio, o pacificador dos conflitos—não entrarão aqui as possíveis ilações homoeróticas da história, mesmo porque, na minha opinião, é uma coisa óbvia em se tratando de homens confinados juntos por muito tempo, em qualquer época ou latitude, e a beleza extrema é sempre algo perturbador, basta assistir Tabu, de Oshima, talvez a palavra final sobre o assunto), cujo passado—embora ele tenha traços nitidamente aristocráticos— é ignorado por ele mesmo, um enjeitado, e que serve num navio chamado “Direitos do Homem”. Quer coisa mais rousseauniana? É quase o “bom selvagem” num disfarce europeu.

  Ora, o Belo Marujo é alistado à força num navio da marinha inglesa (o ano é de 1797, e a história ocorre na esteira de graves motins a bordo de navios da frota real)[4]. Ali, levaria a mesma existência que levava no “Direitos do Homem”—uma vida meio inconsciente, analfabeta, “pura”—não fosse pela inveja que consome o chefe de armas, Claggart, cujo passado também é envolvido em brumas, contudo brumas bem menos benignas que as de Billy Budd: talvez ele tenha cometido um crime ou um ato desonroso. Claggart é a beleza sombria, a beleza que deixa os outros incomodados, é o cara pálido, que nunca pega sol,  que parece ficar nos desvãos escuros do navio; enquanto Billy e a tez bronzeada, o saudável, o que reflete o mar em seus olhos.

   Para chegar ao conflito entre os dois (conflito de que Billy, em sua “pureza”, mal tem consciência[5], ainda que receba a advertência de um dos veteranos a bordo, que logo percebe o jogo, mas que tem o péssimo hábito de falar em termos oraculares[6]), Melville parece que vai à deriva, iniciando, mas interrompendo, prosseguindo um pouco, mas abrindo um novo parêntese, até realmente cerrar-se na narrativa, já mar alto, lá pelo meio do texto. Só que todas essas digressões e interrupções são todas estratégicas e deliberadas, preparam muito bem o leitor para a primordialidade e essencialidade do que acontece a bordo do “Indômito” (desculpem, mas vou dispensar o “Belipotente” hubneriano): Claggart, após tentar prejudicar de mil comezinhas maneiras a tranqüilidade do Belo Marujo, acaba optando por uma atitude radical: denuncia o gajeiro como fomentador de um motim (assunto dos mais delicados naquele momento). O capitão, que, como Arendt demonstrou, exercerá o papel da virtude e não das qualidades inatas, não acredita no relato de Claggart, e resolve fazer um acareamento. Nesse momento, ao saber da acusação, vem à tona o calcanhar-de-aquiles de Billy: ele tartamudeia quando fica sob pressão. Não podendo dar um resposta verbal, articulada, ele parte para a violência e abate Claggart com um único golpe. Nunca um golpe mereceu tanto o epíteto de fulminante!

   Apesar da simpatia que inspira a todos (e a ninguém mais do que ao capitão Vere), a corte marcial só pode pronunciar um único veredicto: o assassino do delator mentiroso deve ser enforcado, para bem da disciplina e da moral da marinha inglesa, nesse período conturbado e perigoso. Apesar de todos os protestos, Vere é firme em tomar o julgamento em suas mãos, no intuito de levá-lo a essa conclusão: Billy é bom, foi caluniado infamemente, porém se voltou contra um oficial superior, quebrou a espinha dorsal da hierarquia, abriu a porta do caos, da desordem, da semente de revolta e transformação:

“Suas firmes convicções serviam de dique contra as águas invasoras das novas idéias políticas e sociais que, de outra forma, levavam naqueles dias tantas cabeças de roldão—cabeças de natureza não inferior à sua. Enquanto outros membros da aristocracia, à qual por natureza pertencia, exasperavam-se com os renovadores porque suas teorias eram hostis às classes privilegiadas, o Capitão Vere[7] opunha-se a elas com isenção, não apenas porque não lhe parecerem suscetíveis de tomar corpo em instituições duradouras, mas ainda por serem contrárias à paz entre os homens e ao verdadeiro bem-estar da espécie humana”.

 Todo o final do livro é devotado a cenas hieráticas, em que a ordem e a disciplina são reafirmadas, e o Belo Marujo ganha um status quase sobrenatural e lendário (a não ser no relato deturpado dos fatos feito por um periódico), ainda mais por causa da benção que grita ao capitão (ecoada por todos) e pela linguagem corporal, por assim dizer, após a execução: seu corpo enforcado não fica balançando. Ele é o Belo Marujo até o fim, uma figura impossível de inserir na “vida normal” e corriqueira:

“Billy estava de frente para a popa. No penúltimo momento, suas palavras, as únicas que proferiu, palavras que saíram com pronúncia completamente desobstruída, foram estas: Deus abençoe o Capitão Vere!

   (…) Independente da volição, como se o populacho da nau não fosse mais que o veículo de uma corrente elétrica vocal, a uma só voz, vinde de baixo e de cima, um eco estrondoso e compassivo soou: Deus abençoe o Capitão Vere!

   E, contudo, naquele momento, no coração dos marinheiros, assim como em seus olhos, só deve ter havido lugar para Billy.

    (…) Recobrando-se lentamente do balanço periódico para sotavento o casco do navio acabava de recuperar a posição horizontal quando o último sinal foi dado—um gesto mudo, conforme previamente combinado. No mesmo instante, o velo brumoso que pairava no oriente foi atravessado por um esplendor suave, como o do velo do Cordeiro de Deus entrevisto em visão mística. Simultaneamente, observado pela massa cuneiforme de faces voltadas para cima, Billy ascendendo, recebeu em cheio a luz do arrebol.

  Para assombro de todos, na figura manietada que chegou à ponta da verga. Não havia nenhum movimento aparente, exceto o provocado pelo lento balanço do casco em mar calmo, esse balanço que é tão majestoso nas naus poderosamente canhonadas.”

    Na tradução de Cássia Zanon, o trecho fica assim:

“…Billy ficou  de pé, virado em direção à popa. No penúltimo momento, suas palavras, suas únicas palavras, perfeitamente articuladas, foram as seguintes: Deus abençoe o capitão Vere!

  (…) Aparentemente sem intervenção da vontade, como se de fato o pessoal do navio fosse apenas o veículo de alguma corrente elétrica vocal, a uma só voz, de todas as partes da embarcação, ouviu-se o ressonante e compassivo eco: Deus abençoe o capitão Vere!

   No entanto, naquele momento, apenas Billy devia estar em seus corações, assim como estava em seus olhos.

   (…) O casco que se recuperava deliberadamente do giro periódico a sotavento estava começando a retomar o equilíbrio, quando foi dado o último sinal: um sinal mudo e pré-combinado. No mesmo instante, calhou que o vaporoso céu que pairava baixo a leste estava entrelaçado com uma suave glória, como a do velo do Cordeiro de Deus vislumbrado em mística visão, e simultaneamente com isso, observado pela massa compacta de corpos voltados para cima, Billy subia. E, subindo, recebeu por completo o esplendor do alvorecer.

    Para espanto de todos, na figura manietada chega à ponta da verga não se percebeu qualquer movimento, nenhum salvo aquele criado pelo balanço do navio, que com o tempo tranqüilo é tão majestoso numa grande embarcação pesadamente carregada de canhões.”

   E, finalmente, na tradução de Octavio Mendes Cajado:

“Billy, em pé, olhava para a popa. No penúltimo momento, as suas palavras, as suas últimas palavras, perfeitamente articuladas, foram estas: Deus abençoe o Capitão Vere!

   (…)Sem intervenção da vontade, por assim dizer, como se o pessoal do navio fosse o simples veículo de uma corrente elétrica vocal, a uma voz, de cima e de baixo, ouviu-se  o eco sonoro: Deus abençoe o Capitão Vere!

   E, todavia, naquele instante,  somente Billy estaria no coração como estava nos olhos de todos.

   Voltando[8] do balanço periódico para sotavento o casco recuperara a posição horizontal, quando se fez o último sinal, o sinal mudo e previamente concertado. Nesse mesmo instante, o vaporoso velo que pairava no Oriente, quase à flor das águas, foi repentinamente iluminado por uma luz suave como a do velo do Cordeiro de Deus vislumbrado em mística visão, e nisso, simultaneamente observado pela massa compacta de rostos voltados para cima, Billy subiu, e, subindo, recebeu em cheio o rubor da madrugada.

  (…) Na figura manietada, chegada à ponta da verga, para assombro geral, não se percebeu movimento nenhum senão o que produzia o lento balanço do casco, tão majestoso, quando o tempo é sereno, num grande navio carregado de canhões.”


[1]  O sublinhado é meu, assim como em todas as próximas passagens em que ocorrer.

     Quem explorou maravilhosa e ludicamente esse tema foi Italo Calvino em O visconde partido ao meio

[2]  Como em várias outras ocasiões similares, Denise Bottmann me socorreu com informações valiosas sobre o histórico das traduções, e muito de seus percalços, como vem fazendo no indispensável (nunca é demais reiterar essa afirmação) blog www.naogostodeplagio.blogspot.com. Através dela, descobri mais duas traduções de BILLY BUDD, uma delas para uma coletânea da Cultrix (feita por Eurico Dowens), a outra lançada pela Bruguera (e feita por Pedro Ramires). Agradeço a ela a ajuda, inclusive no envio das capas da Cultrix e da Saraiva, que incluí neste post.

   Não se pode deixar de lembrar a adaptação cinematográfica, um grande momento de Terence Stamp, antes de ele se despersonalizar por completo. Ela é exibida de vez em quando no TCM, e vale a pena.

[3] Na tradução de Cássia Zanon, “Belo Marinheiro” e na de Octavio Mendes Cajado um poético (mas que hoje em dia soa brega), “Guapo Marinheiro”.

[4] O navio se chama “Indômito”, que já conota um sentido de vontade humana, de estar além da natureza, simbologia muito importante no entrecho  dramático.

   Talvez tenha baixado em Alexandre Hubner o espírito de Odorico Mendes, o tradutor rococó da Odisséia, da Ilíada e da Eneida, pois ele batizou o navio com o nome pernóstico e desnecessário de “Belipotente”.

   E aqui já posso falar do que tenho contra essa tradução: é certo que Melville é um escritor “do mais”, de estilo altissonante, e particularmente em BILLY BUDD ele criou algo intrincado, sobrecarregado. As cem páginas do texto são um tecido de referências, citações, ressonâncias bíblicas, digressões, simbolismos.. É o mesmo caso de O coração das trevas, de Conrad. Por isso, traduzi-lo é um tour-de-force meritório. Mas se Cássia Zanon optou por enfraquecer o texto com uma tradução mais pedestre e corriqueira (mais palatável ao gosto médio), a versão de Hubner se ressente de um preciosismo excessivo que mais atrapalha do que ajuda. No final das contas, apesar de enormemente datada, a de Mendes Cajado talvez seja a menos discutível entre as três, e mesmo assim…

   Diga-se de passagem, há uma curiosa discrepância entre a tradução de Hubner e as demais.  No capítulo 3, após Melville comentar os motins que estão na base da história tanto quanto o período pós-Revolução, lemos: “Esse episódio da grandiosa história naval da ilha, seus historiadores naturalmente abreviam; um deles, William James  [sic] reconhece candidamente que o omitiria de bom grado…”

  Na tradução de Cássia Zanon: “Os historiadores britânicos abreviam tal episódio na grandiosa história naval da ilha. Um deles (G.P.R. James) confessa sinceramente que simplesmente o ignoraria…”

    Na tradução de Mendes Cajado: “Tal episódio, na grandiosa história naval da ilha,é naturalmente abreviado pelos seus historiadores: um deles (G.P.R. James), candidamente confessa que de bom grado o deixaria de lado…”

[5] “…os músculos de Billy nada tinham de compatíveis com o tipo de organização espiritual sensível que, em determinadas circunstâncias, adverte instintivamente a inocência ignorante, avisando-a da proximidade do maligno. Parecia-lhe às vezes que o mestre-d´armas agia de modo esquisito. Mas isso era tudo. A sinceridade de maneiras e a gentileza das palavras surtiam efeito desejado sobre o jovem marujo, que, até então, nunca ouvira falar dos ´homens de fala melíflua´’.

[6] E aqui mais uma vez temos a chance de conferir o que chamo de excessivo preciosismo de Hubner: por causa de queimaduras, esse marinheiro tem a alcunha de (na versão de Mendes Cajado), “Aborda-o na fumaça”; na de Cássia Zanon, “Abordagem na fumaça”; na de Hubner, “Balroa-pau-de-fumo”:

“… da primeira vez em que seus diminutos olhos de fuinha deram com Billy Budd, certa cruel hilaridade interior fez todas as suas vetustas rugas saltarem num esgar travesso. Teria sua excêntrica, impassível e velha sapiência, de tipo primitivo, visto ou entrevisto algo que, em contraste com o ambiente da belonave, parecesse singularmente impróprio no Belo Marujo? No entanto, depois de vez por outra estudá-lo  furtivamente, o velho Merlim do mar alterou a hilaridade equívoca; pois se agora, nas ocasiões em que a dupla se encontrava, aflorava-lhe ao rosto um olhar zombeteiro, este não senão momentâneo, e algumas vezes dava lugar a uma expressão de curiosidade, como se especulasse sobre o que por fim sucederia a uma índole como aquela, despejada num mundo a que não faltam alçapões e contra cujas sutilezas a coragem simples, desprovida de experiência, sagacidade ou qualquer traço da feiúra defensiva é de pouca utilidade, e onde, em situações de emergência moral, toda a inocência de que o homem é capaz nem sempre se presta a aguçar as faculdades ou alumiar a vontade.”

[7] Também na alcunha do capitão Vere, “Brilhante Vere”, Hubner se excedeu: no seu texto, é o Estelar Vere, que poderia fazer par com o Guapo Marinheiro.

[8] No texto  publicado pela Ediouro a ordem de parágrafos no trecho apresenta-se invertida (e não por que se baseia numa outra versão, mas por erro de revisão mesmo).

12/12/2011

DESTAQUE DO BLOG: Há cinquenta anos era diagnosticada a Banalidade do Mal

 

resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos em 9 de agosto de 2011, sem a nota de rodapé)

Em 1961, ocorreu um dos julgamentos mais importantes do século passado, o de Adolf Eichmann, alto funcionário nazista encarregado da deportação e, mais tarde, do envio de judeus para os campos de extermínio na Segunda Guerra. Ele fora seqüestrado (uma ação ilegal, sob qualquer ponto de vista, realizada por um estado espúrio), no ano anterior, por agentes do governo de Israel na Argentina.

A judia alemã (mas vivendo nos EUA) Hannah Arendt, célebre por As Origens do Totalitarismo(1951), foi cobrir o evento para “The New Yorker”. Suas reportagens, se é que podem ser chamadas assim (ela vai muito além do mera documentação e narração de eventos, enlaçando jornalismo e ciência política), tiveram uma repercussão polêmica e renderam um livro, dois anos depois: Eichmann em Jerusalém cujo subtítulo é Um relato sobre a banalidade do Mal1. Nestes último meio século a expressão “banalidade do Mal” foi esvaziando-se num clichê. A concepção arendtiana original, porém, é aterrorizante.

Talvez o aspecto que mais tenha causado escândalo foi o relato desmistificador de Arendt a respeito da colaboração consciente das autoridades judaicas com o nazismo, e a passividade em geral do povo judeu durante a sua desgraça. Ainda assim, o cerne de Eichmann em Jerusalém  é a inadequação do foco (para não falar, do fórum propriamente dito) do julgamento em Israel. Pois ainda que Eichmann fosse um “especialista em assuntos judeus” do Terceiro Reich, o crime que ele ajudou a perpetrar não foi apenas contra o povo judeu, não foi um pogrom antissemita gigantesco, aumentando exponencialmente as vítimas, como houve tantos ao longo da história européia, e sim um crime contra a humanidade (ou melhor, contra a diversidade humana). Mais ainda: uma modalidade totalmente nova. Pela primeira vez, sem razão prática, sem lucro e sem qualquer outro motivo racional (embora fosse executada racionalmente) um estado com status legal procedeu à eliminação de raças e povos inteiros (há capítulos e capítulos com detalhes acachapantes).

Por outro lado, quando se analisava a figura do acusado, era impossível dizer que ele era um monstro demente, um nazista como as caricaturas hollywoodianas adoram retratar. Podia ser culpado de mitomania e de bazófia, mas jamais de monstruosidade ou degeneração. A banalidade do Mal, a essência mais apavorante do novo crime contra a humanidade, era que Eichmann—sem ser ideólogo das idéias de extermínio e erradicação de um povo—foi um funcionário exemplar, seguidor das ordens e diretrizes: realizou seu trabalho com eficiência, colocou milhares de judeus em trens que seguiam rumo à morte certa, mas dentro de uma rotina de trabalho, cumprindo seu papel numa burocracia de indivíduos que não eram loucos nem facínoras, que “cumpriam seu dever” (estavam dentro da “legalidade”). Sem odiar os judeus, ele “fez a sua parte” como zeloso burocrata (não especialmente brilhante nem bem-sucedido), assim como a esmagadora maioria da população alemã continuou a fazer a sua, enquanto as coisas mais abomináveis e inomináveis eram levadas a cabo.

Portanto, o escopo que embasava a visão de Hannah Arendt ia muito além da mera retaliação do povo judeu. Era uma questionamento à consciência individual e ao estar-no-mundo, em termos éticos, de cada um daqueles milhões (entre eles,os próprios judeus ou seu líderes) de alemães e cidadãos de países “anexados” ou invadidos pelo Terceiro Reich que mantiveram o edifício nazista em pé por 12 anos.

O mais incrível (e doloroso) é que Eichmann em Jerusalém nada perdeu de seu caráter de advertência. Por mais esgotada que esteja a expressão, a banalidade do Mal nos ronda e assedia: “Faz parte da própria natureza das coisas que cada ato cometido e registrado pela história da humanidade fique com ela como uma potencialidade (…) a despeito do castigo, uma vez que um crime específico apareceu pela primeira vez, sua reaparição é mais provável do que poderia ter sido sua irrupção inicial”.

_______________________

1Há uma edição pela Companhia das Letras, traduzida pelo geralmente muito compentente José Rubens Siqueira, o qual entretanto não estava muito inspirado aqui. Há trechos que ficaram incompreensíveis ou capengas (também foram mal revisados) e a palavra “julgamento” é usada indiscriminadamente, inclusive nos momentos em que se deveria usar “veredito” ou “sentença”. Deve-se acrescentar que não é praxe de Siqueira um trabalho tão aquém do texto original.

HANNAH ARENDT

(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos,  em 18 de setembro de 2001)

       Há 50 anos, Hannah Arendt (1906-1975) publicou o célebre As Origens do Totalitarismo.

      David Watson escreveu uma breve introdução sobre vida e obra de Arendt, lançada agora na série “Mestres do Pensamento” pela Difel, onde demora bastante na questão de como caracterizá-la:  era uma filósofa, uma historiadora de idéias, uma especialista em ciência política? Ou nada disso? Boa parte dessa dificuldade, segundo Watson está no fato de que ela “não era rigorosa, nem consistente, nem acurada”, ou ainda no fato de que ela se dava ao prazer de “conferir significados pouco convencionais às palavras, criando um sistema carente de referência externa a si mesmo”, enquanto que, para outros,  o problema está no fato de ela ter “o pendor para grandes esquemas filosóficos que brotam justamente de seu desdém pelas evidências históricas”.

     Para mim, leigo em todas as áreas citadas,  quem escreveu um livro como A CONDIÇÃO HUMANA (1958) pode não ser fácil de caracterizar e apreciar num determinado nicho de especialização, mas será sempre uma das mentes pensantes mais estimulantes que já existiram.

      A própria Arendt afirma singelamente que nasceu “para pensar”: “Vou admitir que sou interessada primordialmente na compreensão. Isso é absolutamente verdadeiro. E vou admitir que há outras pessoas que estão prioritariamente interessadas em fazer alguma coisa. Eu não estou. Posso muito bem não fazer nada. Mas eu não posso viver sem tentar ao menos compreender o que quer que aconteça”.

    “Viver para pensar” quer dizer também “compreender o que aconteça”. Hannah Arendt foi uma pessoa cujo pensamento foi sendo construído e empurrado, por assim dizer, pelo que acontecia no mundo.

     De origem judaica, nascida na Alemanha, primeiro se imbuiu da tradição filosófica germânica que atingia seu auge com Heidegger (seu professor e com o qual manteve um romance). Daí sua famosa frase na polêmica a respeito do seu livro Eichmann em Jerusalém: “Se for possível dizer que eu tenha vindo de algum lugar, terá sido da tradição da filosofia alemã”.

     Porém, ao invés de se preocupar com o Ser e o Nada, a sua obra, sobretudo quando emigrou para os EUA, em função da Segunda Grande Guerra (e lá ficou, inclusive escrevendo em inglês suas obras mais famosas), voltou-se para a historia das idéias e para aspectos predominantemente políticos.

      Seu grande engajamento foi com relação ao sionismo (As Origens do Totalitarismo ficou famoso por redefinir a noção de anti-semitismo, essencial ao contexto histórico que leva aos grandes totalitarismos do século XX): “se você é agredido como judeu, deve revidar como judeu. Não se pode dizer: Desculpe, mas não sou um judeu, sou um ser humano. Isso é estupidez (…) Sempre entendi minha condição de judia como algo inegável da minha vida e jamais pretendi mudar isso ou rejeitar tal condição…”

     Até a publicação (1963) de Eichmann em Jerusalém, ela se manteve como uma “estrela” nos meios intelectuais judeus que dominam considerável parte da cultura norte-americana. Por conta da sua investigação sobre a “banalidade do mal” (termo que depois ficou tão batido), na qual se coloca contra a maneira como o carrasco nazista foi julgado em Israel, Arendt acabou isolada e vilipendiada. Não a perdoaram por tentar pensar até os limites do acontecimento impensável, o holocausto, dele tirando conclusões desconfortáveis, como por exemplo a hipótese de que, sem a cumplicidade e auxílio dos próprios judeus, o número de pessoas assassinadas nos campos de concentração teria sido bem menor. Como se pode ver, Hannah Arendt não veio ao mundo a passeio.

     No final da vida, ela se dedicou à contrapartida do seu magnífico estudo (A CONDIÇÃO HUMANA) sobre a “vida ativa” do ser humano: um livro sobre a “vida contemplativa”, A Vida do Espírito, o qual ficou incompleto por causa da sua morte repentina, e que foi editado por sua amiga, a grande ficcionista de Pássaros da América (1973), um dos maiores romances norte-americanos, Mary McCarthy, outra figura feminina que não fugia de uma polêmica (Lillian Hellman que o diga) e que não temia de ser acusada de utilizar a “perversidade da inteligência”.

     Simplificando, A CONDIÇÃO HUMANA hierarquiza três categorias  de atividade humana: “labor” (processo biológico), “trabalho” (produção de coisas), “ação” (história).  No seu prólogo, ela explica que a atividade de pensar foi deixada de fora do livro. E para ela se volta A Vida do Espírito, que também apresenta três categorias: “pensar”, “querer”, “julgar”(Arendt só conseguiu escrever sobre as duas primeiras).

     Watson, que parece ter um apreço especial por essa última fase da obra arendtiana, a associa à preocupação contumaz dela com o pensamento de Santo Agostinho, o descobridor da vontade humana, associada à idéia de liberdade: “…uma liberdade que nenhum dos povos da Antiguidade—gregos, romanos ou hebreus—jamais conheceu, isto é, não descobriu que existe uma faculdade própria do homem em virtude da qual, deixando de lado a compulsão e a necessidade,  lhe permite dizer sim ou não, concordar ou discordar com o que é dado pelo mundo, incluindo aí seu ser e sua existência, e que essa faculdade pode determinar o que ele irá fazer”.

     Daí vem uma oportuna e lapidar distinção da vontade/liberdade enquanto querer e poder, que se articula na existência com os outros, isto é, politicamente: “A liberdade política é distinta da liberdade concebida pelos filósofos por ser claramente uma qualidade do eu-posso, e não do eu-quero”.

      Para terminar, e só para o leitor ter um gostinho a mais do brilhantismo de Hannah Arendt, veja-se a magnífica caracterização  que ela faz do significado da consciência: “Seus critérios de ação não serão, normalmente, regras reconhecidas pelas multidões e sobre os quais a sociedade tenha chegado a concordar, mas se eu serei capaz de ficar em paz comigo mesmo, quando chegar a hora de avaliar minhas palavras e atos. A consciência é a antecipação daquele que aguarda você se e quando você chega em casa”

10/12/2011

A INSPIRADA TRADUÇÃO DE UM DOSTOIÉVSKI MOLIÈRESCO

(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 15 de janeiro de 2002)

Ainda mais uma vez, Dostoiévski, leitor. Nas últimas semanas, comentei o reaparecimento nas livrarias dos seus dois livros mais famosos, Crime e Castigo & Os Irmãos Karamázov. Coube á tradutora Klara Gouriánova e à Nova Alexandria tirar o quase desconhecido A aldeia de Stiepântchikov e seus habitantes do limbo das Obras Completas (tanto da José Olympio quanto da Nova Aguilar), possibilitando um destaque maior um texto delicioso que passara até então despercebido (pelo menos por mim) em meio à “primeira fase” do grande autor russo.

Serioja, o narrador de A aldeia de Stiepântchikov, mora em Petersburgo e recebe um estranho pedido de seu tio viúvo (que o sustenta), Iégor Ilitch: casar-se com Nástienka, a preceptora de seus filhos. Por isso, vai a Stiepântchikov e descobre que a casa do tio virou uma “arca de Noé”.

Iégor Ilitch é oprimido pela mãe, a Generala, e seus agregados, e todos são tiranizados por uma figura insólita, grotesca, molièriana, e literariamente inesquecível: Fomá Fomitch, homenzinho insignificante e recalcado que é tratado como uma sumidade, sempre a gritar “estão me ofendendo, estão me ofendendo” (e que mesmo aparecendo pessoalmente só na página 86 é o centro da narrativa). Um exemplo da liderança de Fomá na casa do tio de Serioja: decreta que a 5ª. Feira seja tomada como 3ª. Feira.

Por que o tio permite esse estado de coisas? Homem bom e ingênuo, submete-se à mãe louca e ao degenerado Fomá porque “não sei ainda que falta exatamente cometi, mas, sem dúvida, sou culpado”. Iégor Ilitch, na verdade, ama a preceptora, perseguida por Fomá e a Generala, os quais planejam o casamento dele com a esdrúxula Tatiana Ivanovna (a qual é raptada por outro, e é chamada por Serioja de “a verdadeira heroína da história”).

Já se disse que a diferença entre tragédia e comédia reside no fim, pois os elementos são os mesmos (quem leu Romeu e Julieta e Sonho de uma noite de verão perceberá isso muito bem). Em A aldeia de Stiepântchikov, encontramos as mesmas situações intoleráveis e degradantes que povoam os grandes romances dostoievskianos, ou mesmo textos anteriores, como O sósia (ou O duplo, conforme a tradução). Só que a ênfase é no humor e o autor segue a máxima da comédia shakesperiana: “tudo é bom quando acaba bem”. Ou seja, estamos no mundo de Sonho de uma noite de verão, não de Romeu e Julieta.

Para o leitor brasileiro, há um charme extra e irresistível. Klara Gouriánova deu à sua versão um inconfundível sabor machadiano, aproveitando-se magistralmente das similaridades temáticas e narrativas entre o gênio russo e o gênio brasileiro.

Além dos agregados e parasitas que vivem (e fazem intrigas) em torno do tio de Serioja, há as deliciosas conversas do narrador com o leitor, que fazem com que nos lembremos do autor de Dom Casmurro: “antes que eu prossiga minha história, permita-me, querido leitor, que eu lhe apresente nominalmente todo aquele círculo de pessoas no qual fui parar”. Ou ainda: “Quanta atenção o leitor dará a ele não vou dizer: é mais conveniente e mais oportuno que o próprio leitor resolva essa questão”.

Outro prazer perverso é embarcar na malícia do narrador, como na caracterização da “relutância” da Generala em se mudar para a casa do filho, ao ficar viúva: “Rodeada de seus agregados, de seus cachorrinhos, ela dizia, entre soluços e gritinhos, que preferia comer pão duro, regado, é claro, com suas lágrimas, que preferia andar com uma bengala, pedindo esmola debaixo das janelas, a aceitar o pedido do filho desobediente para morar com ele em Stiepântchikov, que nunca, nunca poria os pés na casa dele! (…) É preciso notar que durante esses gritinhos, já devagarinho estavam se fazendo as malas para a mudança.”

     Nesse texto de 1859, Dostoiévski também já domina o dinamismo teatral com o qual constrói suas tramas: o diálogo é um elemento de destaque e o histrionismo dos personagens (e são bem marcantes vários deles) pode se exercitar à vontade nas grandes cenas armadas pelo autor-encenador.

Alguns erros de revisão atrapalham o inspirado trabalho da tradutora. Algumas passagens ficam incompreensíveis, como na página 70, quando Serioja, que acabou de ridicularizar o tio, percebe a censura no olhar de Nástienka: “…um rubor de indignação inflamou suas pálidas faces… com aquele meu baixo e pusilânime desejo de expor meu tio ao ridículo para eu mesmo parecer menos ridículo, ganhei muito da simpatia dessa moça…” ???!!! Será que não há uma “deixa” indicando que o final do trecho, absurdo, é uma ironia?

Volta e meia o leitor se depara com trechos contraditórios assim, e na página 206 há até um erro de concordância: “ele [Fomá] vai fazer os donos sair da casa”, não muito admissível porque não é um dos criados (pois o modo de falar deles é cuidadosamente registrado) quem afirma isso, e sim o senhor Bakhtchéiev (um dos grandes personagens secundários do romance).

Para usar o velho clichê, se o leitor está procurando uma obra de ficção para se divertir durante as férias, não poderia encontrar nada melhor do que  A aldeia de Stiepântchikov e seus habitantes.

09/12/2011

EM ROLETEMBURGO

(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 04 de fevereiro de 2003)

É impressionante como várias editoras estão publicando obras de Dostoiévski e como estas ainda vendem bastante. Neste ano de 2003 mesmo, entre os lançamentos figuram novas edições de O idiota e de O JOGADOR  (comentado —aqui— na tradução de Moacir Werneck de Castro), sendo este último particularmente apropriado para uma época onde tanta gente “comum” investe seu tempo e dinheiro no bingo.

Dostoiévski já tinha há anos a idéia de um romance sobre o vício do jogo, do qual ele mesmo era vítima. Apesar disso, a forma que tomou O JOGADOR, escrito em poucas semanas (num período em que ele terminava Crime e Castigo, portanto já estamos na sua grande fase), em 1866, aconteceu porque seu editor o pressionou para entregar um romance pronto dentro de determinado prazo. Isso explica a evidente pressa que marca o andamento do texto (cujos elementos demandariam talvez um vagar maior) e algumas discrepâncias da história. Há até passagens que parecem, num primeiro momento, cochilos do excelente tradutor, como na página 136, onde se lê: “não a encontrara nem uma vez depois do incidente”, contudo parece ser um engano do próprio autor, uma vez que na tradução de Oscar Mendes (nas Obras Completas da Aguilar), pode-se ler: “nem uma vez lhe havia dirigido a palavra depois do incidente” (na edição da José Olympio, Costa Neves parece ter corrigido por sua conta o deslize).

O resultado final de O JOGADOR ficou um pouco estranho: boa parte do tempo aprece uma daquelas histórias curtas, jocosas e humorísticas do tipo A aldeia de Stiepântchikov e seus habitantes; perto do final, entra no clima delirante, abeirando-se do trágico—que não se consuma aqui, mas é o tom que permeia O idiota, por exemplo.

Apesar do título, o narrador-protagonista, Aleksei Ivanovitch, só mergulha no mundo do jogo no capítulo 14 (num total de 17), de modo irreversível, ao que parece. Dostoiévski escapa daquele didatismo naturalista que sempre empana um pouco as histórias sobre vícios e que detalham sua gênese e seus momentos críticos, seja o alcoolismo, sejam as drogas ou outra coisa qualquer, como Farrapo humano, Diário de um adolescente e um vasto etc.

Antes de Aleksei tornar-se jogador, sua narrativa concentra-se na pequena comédia humana em que está envolvido, em Roletemburgo (a qual representa as estações de água onde se pratica a roleta, como Baden Baden ou Wiesbaden), agregado (como preceptor) ao clã de um General arruinado, explorado por gananciosos franceses (a visão xenófoba de Dostoiévski fica bem clara na caracterização de certos personagens não-russos). Todos aguardam a notícia da morte da “babulinka” Antonida Vassilievna, a vovó rica da família.

As pequenas conspirações em torno do General só ganham importância para Aleksei na medida em que envolvem sua enteada, Polina, por quem é apaixonado e que é a típica representante de uma categoria marcante de mulheres no universo dostoievskiano: meio histérica, dúbia, destrutiva e destruidora. Por sua casa, Aleksei se  comporta de modo absurdo, muitas vezes degradante, como se vivesse em estado febril e dissociativo, uma atmosfera que desde O sósia (1848) vai caracterizar o herói típico do grande escritor russo.

As coisas tomam um rumo burlesco quando ao invés de um telegrama anunciando seu esperado “passamento”, aparece em Roletemburgo a “babulinka” em pessoa, a qual, durante dias, joga obstinadamente, perdendo cem mil rublos, acompanhada muitas vezes por Aleksei, que dessa maneira faz o seu aprendizado como futuro jogador. Tirando os capítulos finais, nos quais toda a paixão pelo jogo é descrita com  minúcias admiráveis, a intervenção dessa extraordinária senhora é o grande achado de O JOGADOR e permite, ao leitor, aproveitar o Dostoiévski humorístico, tão fantástico quanto o Dostoiévski trágico. Talvez o romance não tenha saído como ele queria e sonhava. Talvez seja mesmo um livro “menor”. Se essa é uma parcela pequena do gênio do seu autor, na roleta da literatura seria considerada uma fortuna para qualquer outro.

(em 05 de fevereiro de 2005, em A TRIBUNA de Santos, foi publicada a resenha abaixo, a qual reproduzo “enxugada” das passagens que repetem informações do texto acima):

A editora 34 continua firme com as obras de Dostoiévski (1821-1881), e por isso podemos contar novamente com a versão de Boris Schnaiderman para UM JOGADOR[1], já publicada há muito tempo, e onde se contraria, com seu uso do artigo indefinido, a tendência geral em que o título fica mesmo O jogador (é o caso da tradução, também recentemente relançada, de Moacir Werneck de Castro). Isso dá um ar ainda mais universal à pequena tragicomédia do protagonista-narrador, Aleksei Ivanovitch.

Dostoiévski era vítima do vício da roleta e escreveu o pequeno romance às pressas para cumprir prazos de entrega assumidos com seu editor. O resultado final acabou meio dividido, híbrido: boa parte do tempo parece pertencer a um filão recorrente nas suas primeiras obras; aproximando-se do final, entra num clima quase trágico. Comédia de erros se transforma em O mercador de Veneza.

Aléksei Ivanovitch  leva quatorze capítulos para descer ao inferno do jogo (…)

E, de repente, “baboulinka” irrompe em Roletembergo muito viva, roubando a cena, jogando dias e dias obstinadamente, lançando fora cem mil rublos: “Ela trocara sucessivamente todos os seus valores, apólices de cinco por cento, títulos de dívida interna e ações. Cheguei a admirar-me de como ela suportava ficar na cadeira aquelas sete a oito horas, quase sem se afastar da mesa, mas Potapitch contou que, por umas três vezes, ela realmente começara a ganhar muito, e, entusiasmada novamente com a esperança, não conseguira mais afastar-se dali. Aliás, os jogadores sabem como uma pessoa pode passar quase vinte e quatro horas sentada com um baralho, sem desviar os olhos das cartas”.

A intervenção dessa extraordinária senhora continua a ser, para mim, o achado maior de UM JOGADOR, embora a intensidade dos capítulos finais, nos quais a paixão por jogar é descrita, seja algo de definitivo quanto ao tema.

E após toda a discussão a respeito do fechamento dos bingos que envolveu o país, nada mais atual.


[1] No meu exemplar da José Olympio, como tradutor consta Costa Neves, mas Schnaidermann afirma que a tradução lançada nas “Obras Completas” é dele, e não há motivo para duvidar.

O “tudo o que é sólido desmancha no ar” turguenieviano: PAIS E FILHOS

 

VER TAMBÉM:

https://armonte.wordpress.com/2011/12/09/o-tudo-que-e-solido-desmancha-no-ar-dostoievskiano-os-demonios/

(a resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em  12 de março de 2005)

Em Os Demônios, de Dostoievski , um dos personagens mais detestáveis é o escritor Karmazínov, com sua mania de cortejar os jovens terroristas que tumultuam a província onde se passa a história para se manter “na moda”. Nele, Dostoiévski projetou suas diferenças com Ivan Turgueniêv, a quem caricaturiza cruelmente. Em certo sentido também, Os Demônios polemiza com a obra mais famosa de seu rival, Pais e Filhos (mais um daqueles títulos antitéticos russos, como Guerra e Paz e Crime e Castigo), de 1861.

Por sorte, Pais e Filhos ganhou também uma recente tradução no Brasil, possibilitando ao leitor a comparação entre os dois.  Nesse romance, cunhou-se o termo niilista (de nihil, nada em latim) para designar o homem que nega tudo, como Bazárov, o protagonista.   O pai do seu amigo-discípulo, Arkádi, pergunta: “Quer dizer que essa palavra se refere ao homem que em nada crê ou nada reconhece?. E seu irmão (que se tornará ferrenho adversário de Bazárov) acrescenta: “Pode dizer: o homem que nada respeita”. Arkádi, por sua vez, o defende: “Aquele que tudo examina do ponto de vista crítico…O niilista é o homem que não se curva perante nenhuma autoridade e que não admite como artigo de fé nenhum princípio, por maior respeito que mereça…”

O próprio Bazárov, defendendo o princípio da utilidade e da praticidade, diz: “Um bom químico é vinte vezes mais útil que qualquer poeta”.

Um dos mestres do “enredo abafado”, isto é, aquele em que pouca coisa acontece, em que todo o encanto da leitura se deve às nuances e sutilezas, e adotando o princípio dinâmico do diálogo contínuo, Turgueniêv coloca o plebeu e dissolvente Bazárov no meio de uma família de fidalgos decadentes com mentalidade de outra geração. Isso nos proporciona um ótimo embate de idéias e também um retrato quase impressionista da vida rural na Rússia do século XIX, com a obsessão do romancista russo (ainda que ocidentalista, como era o autor de Ássia) de “encontrar o povo”(no caso, representado pela figura do mujique e toda a polêmica da sua libertação da condição servil).

Mais tarde, Pais e Filhos desenvolve um enredo romântico através do amor masoquista de Bazárov pela viúva Odíntsova. E apesar de ter desencadeado debates vários em sua época, na ponta dos quais está a vibrante refutação de Os Demônios ao espírito de negação e desconhecimento da realidade russa dos Bazárov (um precursor do destrutivo Piotr Stiepánovitch do romance de Dostoiévski, pois seu amigo Arkádi assim apresenta a geração niilista, replicando ao tio que diz: Os senhores agem? Pretendem agir?…. Sim, agir, destruir. Destroém sem saber para quê ?”: “Destruímos, porque somos uma força… somos uma força que age livremente”), o aspecto mais marcante do livro é aquela melancolia resignada que predomina nos textos turguenievianos que o autor deste artigo já leu e que se encontra bem sintetizada num trecho do capítulo que conta a vida pregressa do tio de Arkádi, Páviel Pietróvitch: “…entrava naquela idade crepuscular e agitada, de insatisfação e esperanças mortas, idade em que se sente que a mocidade passou e a velhice não chegou ainda”. Parece que Turgueniêv já nasceu nessa idade.

            

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