MONTE DE LEITURAS: blog do Alfredo Monte

31/10/2014

A IMUNDA EXPERIÊNCIA DO SAGRADO: os 50 anos de “A Paixão Segundo G.H.”

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“De que Deus estava querendo me lembrar? Não sou pessoa que precise ser lembrada de que dentro de tudo há o sangue! Não só não esqueço o sangue de dentro como eu o admito e o quero, sou demais o sangue para esquecer o sangue, e para mim a palavra espiritual não tem sentido, e nem a palavra terreno tem sentido… Então era assim? eu andando pelo mundo sem pedir nada, sem precisar de nada, amando de puro amor inocente, e Deus a me mostrar o rato? A grosseria de Deus me feria e insultava-me. Deus era bruto…” (do “Fundo de gaveta”, A legião estrangeira, 1964)

“Vida irremediável, mas não concreta. Na verdade era uma vida de sonho. Às vezes, quando falavam de alguém excêntrico, diziam com a benevolência que uma classe tem por outra: Ah, esse leva uma vida de poeta. Pode-se talvez dizer, aproveitando as poucas palavras que se conheceram do casal, pode-se dizer que ambos levavam, menos a extravagância, uma vida de mau poeta: vida de sonho.

     Não, não é verdade. Não era uma vida de sonho, pois este jamais os orientara. Mas de irrealidade. Embora houvesse momentos em que de repente, por um motivo ou outro, eles afundassem na realidade. E então lhes parecia ter tocado num fundo de onde ninguém pode passar.” (trecho de “Os obedientes”, A legião estrangeira)

(uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 28 de outubro de 2014)

(uma versão da resenha abaixo foi publicada no LETRAS IN.VERSO E RE.VERSO, em 29 de outubro de 2014, VER http://letrasinversoreverso.blogspot.com.br/2014/10/1964-annus-mirabilis-de-clarice.html)

capa de G.H.

1964- ANNUS MIRABILIS CLARICEANO

Se 1956 foi um ano-chave para Guimarães Rosa, com o aparecimento de suas maiores obras (Corpo de baile e Grande sertão: veredas), 1964 o foi para Clarice Lispector: não só lançou dois títulos essenciais da nossa literatura, A Paixão segundo G.H. e A legião estrangeira, como também na segunda parte deste último, intitulada “Fundo de gaveta”, atualmente publicada em separado[1], sinalizou os rumos futuros da sua produção, isto é, uma escrita pautada pelo fragmentário, sobretudo pela flexibilidade dos textos, os quais puderam ser variamente utilizados, assumindo a forma de crônica, de parte de um conjunto maior (assim é formada, por exemplo, a tessitura de Água Viva), reaparecendo aqui e ali.

Esse processo acentuou-se à medida que, premida por dificuldades financeiras, ela passou a colaborar regularmente para jornais. Os fragmentos clariceanos se pulverizaram tanto que são incontáveis os apócrifos atribuídos a ela fazendo seu caminho enganoso pelas redes sociais e pela internet — afora os livros espúrios que vêm aparecendo, utilizando seu nome[2].

De minha parte, prefiro francamente sua primeira fase, que chegou ao ápice há 50 anos. Antes dos livros publicados (ambos pela Editora do Autor) naquele sombrio 1964 em que o Brasil entrou num prolongado regime ditatorial foram quatro romances (Perto do coração selvagem, 1944; O lustre, 1946; A cidade sitiada, 1949; A Maçã no Escuro, 1961— este último meu predileto dentro da produção clariceana) e duas reuniões de contos (Alguns contos, 1952; Laços de família, 1960).

Daí a importância do relançamento de A Paixão segundo G.H. numa edição comemorativa, mesmo porque libera essa obra-prima das horrendas e constrangedoras capas que a Rocco impingiu ao leitor de Clarice, e cujo objetivo nunca consegui discernir: algo infanto-juvenil ?; edições “para moças”?, autoajuda cor-de-rosa? De todo modo, um atentado contra a estética e o bom-senso.

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A AMOSTRA DE CALMO HORROR VIVO

“Mas se nós, que somos os reis da natureza, não havemos de ter medo, quem há de ter?” (do “Fundo de gaveta”, A legião estrangeira)

A Paixão segundo G.H. parece ter sido escrito para dar vida, numa linguagem de cair o queixo, ao que Octavio Paz descreve (em O arco e a lira) como a experiência do sagrado: “… é uma experiência repulsiva. Ou melhor, convulsiva. É um pôr para fora o interior e o secreto, um mostrar as entranhas. O demoníaco, dizem todos os mitos, brota do centro da terra. É uma revelação do oculto, implica uma ruptura do tempo e do espaço: a terra se abre, o tempo se parte; pela ferida ou abertura, vemos o outro lado do ser”.

A ferida ou abertura da narradora G.H. para o outro lado do ser é o quarto de empregada do seu apartamento, que ela resolve arrumar numa certa manhã. Lá é surpreendida por uma barata (e a esmaga com a porta do guarda-roupa, expondo justamente entranhas, literais e metafóricas) e esse encontro, tão doméstico, será a sua “paixão”, a desagregação e aniquilação da vida alienada, “humanizada demais”, rumo à identificação com a Vida, “pré-humana”, o que lhe dará nojo, causará náusea, como ela nos conta sob a forma cristã da confissão penitente (quando coloca a barata na boca, para prová-la, evocamos o ato de comungar), para se livrar do agônico, do “demoníaco”, no sentido das formulações de Paz.

Ou, nas palavras de G.H. (ao falar do neutro, do insosso, do inexpressivo que é o estado bruto do ser):“Pois o inexpressivo é diabólico. Se a pessoa não estiver comprometida com a esperança, vive o demoníaco. Se a pessoa tiver a coragem de largar os sentimento, descobre a ampla vida de um silêncio extremamente ocupado, o mesmo que existe na barata, o mesmo nos astros, o mesmo em si próprio — o demoníaco é antes do humano.

Há uma assimilação muito forte entre o sagrado e o imundo (a barata é chamada, entre outras coisas, de “amostra de calmo horror vivo), nessa narrativa onde se tenta, com um estilo “tateante”, interrogativo , mostrar “a verdade que não se quer. Pois a verdade é o horror de ter que admitir que o Ser passa pelo não-Ser, essa é a metamorfose de G.H, de mim em mim mesma”, ali, presa no quartinho de empregada com uma barata.

Para atingir esse estado é preciso perder tudo, em especial as extensões que nós criamos no mundo para registrar nossa identidade e que nos tornam objetos de nós mesmos (construções, cômodos, artefatos, sentimentos, conceitos). Para então abismar-se: Cada vez mais eu não tinha o que pedir. E via, com fascínio e horror, os pedaços de minhas podres roupas de múmia caírem secas no chão, eu assistia à minha transformação de crisálida em larva úmida… Eu havia prendido defronte de mim o imundo do mundo — e desencantara a coisa viva”.

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DEPOIS DO INDIZÍVEL

“A linguagem é o meu esforço humano. Por destino tenho que ir buscar e por destino volto com as mãos vazias. Mas — volto com o indizível. O indizível só me poderá ser dado através do fracasso de minha linguagem. Só quando falha a construção, é que obtenho o que ela não conseguiu.” (trecho de A Paixão segundo G.H.)

Clarice escreveu ainda muita coisa boa, antes de sua morte prematura em 1977: é o caso de Água viva, de suas reminiscências de infância (que aparecem em Felicidade clandestina), além da criação da inesquecível Macabéa de A hora da estrela, sem falar da ousadia em experimentar contos “grossos” e crus, em A via crucis do corpo[3].  Contudo, A Paixão segundo G.H. permanece seu texto mais brilhante. Melhor dizendo: cintilante.

VER AQUI NO BLOG:

https://armonte.wordpress.com/2010/07/27/a-barata-monolito-a-paixao-segundo-g-h/

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NOTAS

[1] A primeira parte, composta por treze contos, muitos dos quais podem ser incluídos entre os melhores da autora (nascida em 1920): “Os desastres de Sofia”, “A repartição dos pães”, “A mensagem”, “Macacos”, “O ovo e a galinha”, “Tentação”, “Viagem a Petrópolis”, “A solução”, “Evolução de uma miopia”, “A quinta história”, “Uma amizade sincera”, “Os obedientes”, “A legião estrangeira”.

A separação ocorreu com a publicação nos anos 1970 de dois volumes pela Ática, um mantendo o título e os contos da coletânea de 1964; outro, com a maioria dos textos da seção “Fundo de Gaveta” (alguns como o relativamente longo “A pecadora queimada e os anjos harmoniosos” não foram incluídos, e reapareceram apenas na coletânea póstuma Outros escritos) e com o lamentável título de Para não esquecer.

[2] Numa advertência a “Fundo de gaveta”, ela nos diz: “Por que publicar o que não presta? Porque o que presta também não presta. Além do mais, o que obviamente não presta sempre me interessou muito. Gosto de um modo carinhoso do inacabado, do malfeito, daquilo que desajeitadamente tenta um pequeno voo e cai sem graça no chão”. Mas é algo bem distante do espúrio e do oportunismo editorial, como a sequência de títulos póstumos e caça-níqueis, os quais só revelam uma deplorável incúria dos herdeiros.

[3] Cujo embrião já pode ser encontrado num dos fragmentos de “Fundo de gaveta”:

“__ Este aqui, disse ela apontando o filho menor com um sorriso de carinho, eu só tive porque descobri tarde demais e já não havia mais jeito de tirar fora.

     O menino abaixou os olhos e sorriu com modéstia.”

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30/10/2014

Destaque do Blog: RETRATO DO ARTISTA QUANDO JOVEM CÃO no centenário do nascimento de Dylan Thomas

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“A geada tem conhecimento

por rumores dispersos no vento

que o gênio solitário de minhas raízes

gerou frutos de todos os matizes

e plantou um ano verde, para consolo

dos meus dias futuros.” (de A luta)

“…e eu tinha mais amor em mim do que poderia querer ou poderia usar…” (de Quem você queria que estivesse conosco?)

“Eu era um solitário andarilho noturno e um viciado em esquinas.” (de Como se fossem cãezinhos)

(o texto abaixo foi escrito especialmente para o blog, em outubro de 2014)

I

Um dos maiores poetas do século XX, Dylan Thomas foi também um grande prosador: aos 26 anos, publicou Retrato do artista quando jovem cão [Portrait of the artist as young dog, 1940, que comento na excelente tradução de Hélio Pólvora][1], cujo título ganhou uma aura de dupla derrelição: por um lado, incita a pensar numa posição artística epigonal e subalterna com relação ao Retrato do artista quando jovem (1916), de Joyce, mesmo com a extensão paródica do título (jovem “cão”); por outro, trata-se do retrato de um artista que, a rigor, nunca deixou de ser jovem, pois morreria precocemente, aos 39 anos (em 1953, depois de entrar em coma num bar no Greenwich Village novaiorquino).

Todavia, os dez contos do livro são extremamente peculiares e, caso possamos legitimamente aproximá-los do universo joyceano (no sentido da formação do escritor provinciano, oriundo de um ambiente no qual o rural e o urbano ainda estão estreitamente próximos, dentro do território do Império Britânico)[2], eles também têm o seu quê de Dublinenses: é uma comunidade e sua mentalidade a emergir dessas evocações de infância, adolescência e início da vida adulta[3]. Nelas, acompanhamos um garoto vivenciando de forma plena as experiências (os problemas e intrigas dos adultos chegam ao leitor através da sua percepção limitada do alcance deles), “alguns anos antes que eu soubesse que era feliz”[4] , um “cãozinho”, brincalhão, turbulento e indomável, até que se torne o jovem  cão inquieto e desgarrado naquele ambiente de pasmaceira, andarilho noturno solitário, “viciado em esquinas” (“Não quero ir pra casa, não quero sentar à lareira. Nada tenho a fazer quando estou em casa e não quero dormir. Gosto de andar sem rumo, de ficar assim, sem ter o que fazer, no escuro”), o qual, numa excursão pelo campo com um amigo, ao se afastar da cidade, bate em cada portão,”para dar a terrível benção de andarilho às pessoas das casas sufocantes”; e, por fim, o cão já na fronteira do mundo adulto, profissional da escrita (trabalhando na imprensa), varado de solidão e insatisfação, nos dois últimos relatos, A velha Garbo e Um sábado quente, vivendo — como um Pessoa galês — uma “tragédia inverídica e sincera”, “na solidão povoada que lhe desculpava o desespero, buscando a companhia embora a recusasse (…) Mais velho e mais sábio, mas não melhor, ele olhou-se no espelho para ver se sua descoberta e perda lhe estavam marcadas no rosto”.[5]

O ponto unificador, que faz com que os dez contos possam até ser tomados como dez capítulos de um romance orgânico, mas de estrutura algo solta, é que todas as vivências servem para alimentar o trabalho interno do escritor:

     “Quando mostrei esta história ao sr. Farr, muito tempo depois, ele disse:

__ Está errado, você misturou as pessoas. O menino do lenço dançava no Jersey. Fred Jones cantava no Fishguard. Mas não importa. Venha esta noite tomar um gole no Nelson. Tem uma moça lá que lhe mostrará onde o marinheiro mordeu-a. E tem um policial que conheceu Jack Johnson.

__ Em breve eu os porei num conto—disse.”[6]

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II

Avatares ficcionais do autor de Retrato do artista quando jovem cão: Dylan (Os pêssegos); sr. Thomas—no sentido respeitoso de um “jovem senhor” (Uma visita ao avô); filho da sra. T.[7] (Patricia, Edith e Arnold); sr. Thomas—no sentido zombeteiro de aluno chamado às falas pelo professor (A luta); o rapaz de “nome galês” (O extraordinário Tossidela)[8]; o rapaz que mora perto do Cwmdonkin Park—endereço “de categoria” (Como se fossem cãezinhos); o jovem sr.Thomas—intelectual que discute socialismo e literatura (Onde o Tawe corre); o andarilho de 1, 52 m e 51 kg (Quem você queria que estivesse conosco?); Thomas—o aprendiz de repórter (A velha Garbo); Jack—como uma moça por quem se encanta insiste em chamá-lo (Um sábado quente).

Sete dos relatos são narrados em primeira pessoa: assim, em Os pêssegos (um dos momentos antológicos do livro), temos o pequeno Dylan em visita ao mundo rural dos tios, fazendo com que os mínimos detalhes e sensações do mundo físico se apresentem de forma aguda para o leitor, e que entreouve uma discussão a respeito da mãe de um colega mais afortunado (uma dívida que não se tem coragem de cobrar explicitamente, a forma despreziva e superior de sua atitude para com os parentes dele, sinalizada pela recusa em aceitar um prato com pêssegos).

Temos, por um lado, o encantamento com o mundo: “… senti o meu corpo jovem semelhante a um animal excitado que me cercava, os joelhos feridos querendo dobrar-se, o coração aos arrancos, aquele calor profundo por entre as pernas, o suor ardendo nas mãos, túneis cavados nas membranas do tímpano, bolotas de sujeira entre os dedos dos pés, os olhos quase fora das órbitas, a voz entrecortada, o sangue disparando, eu pensava apenas em fugir, pular, nadar e esperar o instante de cair em cima da presa. Ali, brincando de índios ao entardecer, tinha consciência de estar eu mesmo exatamente no meio de uma história viva, meu corpo sendo a minha aventura e o meu nome”.

Por outro, a tensão das relações adultas:

“Então a voz de Annie ficou tão suave que não pudemos ouvir as palavras, e o tio disse:

__ Ela pagou os trinta xelins?

__ Estão falando da sua mãe—eu disse a Jack.

    Annie falou baixo por muito tempo, de modo que só pegávamos uma palavra ou outra. A sra. Williams e automóvel e Jack e pêssegos. Imaginei que ela estivesse chorando, pois a voz faltou-lhe na última palavra.

    A cadeira de tio Jim rangeu outra vez, ele devia ter esmurrado a mesa, e nós o ouvíamos gritar:

__ Pois eu lhe darei pêssegos! Pêssegos, ora pêssegos! Quem ela pensa que é? Os pêssegos não são dignos dela? Para o inferno seu maldito automóvel e seu maldito filho! Humilhando a gente…”

    Esse mundo de meninice (no que a palavra engloba da criança e do adolescente) é narrado pelo protagonista  também  em Uma visita ao avô, A luta, O extraordinário Tossidela. Ele começa a se afastar explicitamente dele em Como se fossem cãezinhos. E talvez o conto que represente o “rito de passagem” mais explícito seja Quem você queria que estivesse conosco?, no qual ele narra uma excursão vagamente libertária até a Cabeça do Verme, um rochedo inóspito, levada a cabo na companhia do enlutado amigo Ray, que perdeu quase todos os parentes mais próximos, devido a doenças longas e terríveis.

É uma perambulação revestida de explícito significado simbólico para ambos: “Fugíamos a toda, ou caminhávamos, com orgulho e malícia, e arrogantemente, para longe das ruas que nos prendiam, rumo ao imprevisível campo (…) Uma ovelha baliu baa! Em algum lugar, o que prenunciava as Terras Altas. Qual o prenúncio, isso eu ignorava…”

A meio caminho essa energia libertária esmorece, eles acabam desistindo da caminhada a pé, e tomam um ônibus. O encantamento com a aventura perdura, entretanto, nos primeiros instantes que passam no objetivo da excursão, o Cabeça do Verme: “Em vez de me tornar pequeno no grande rochedo colocado entre o céu e o mar, senti-me do tamanho de um edifício respirando, e no mundo inteiro somente Ray poderia igualar meu admirável berro quando eu disse: Por que não viver aqui para sempre? Sempre e sempre. Construir uma maldita casa e viver como se fôssemos uns malditos reis! Esta palavra ecoou entre as aves grasnadoras, que a transportaram para as terras não lavradas nos tambores de suas asas”.

Ray, todavia, parece deslocado ali na amplitude: “Não conseguia relaxar e esticar-se ao sol e rolar de lado para olhar um precipício que descia até o mar, ao contrário, tentava sentar-se na vertical, como se estivesse numa cadeira dura e nada lhe restasse fazer com as mãos. Brincava com a bengala domada e esperava que o dia transcorresse em ordem e que a Cabeça produzisse caminhos, que surgissem gradis nas bordas escarpadas”.[9]

Isso se deve a algo que Joyce, Faulkner e William Kennedy nos fizeram sentir com muita força ao longo da sua ficção: a presença dos mortos no cotidiano dos vivos, que exorbita na vivência do jovem Ray (respingando, por assim dizer, em seu companheiro—afinal, ele não é um jovem escritor à toa). Ao evocarem o jogo indicado pelo título, essa presença se torna opressiva, ocupando mais espaço do que deveria, principalmente numa excursão libertária: “O vento rodeou a Cabeça e resfriou nossas camisas de verão, e o mar começou a cobrir rapidamente o nosso rochedo, já coberto de amigos,  cheio de vivos e mortos, investindo contra as trevas”.

Quando reencontrarmos o “jovem cão”, nos dois derradeiros textos do livro, ele já será praticamente um adulto e muito diferente do menino cujo corpo era sua aventura e seu nome.

Retrato do Artista quando jovem cão

III

Os três relatos em terceira pessoa permitem que o leitor veja o “jovem cão” de outra forma, em idades distintas: ainda bastante menino (em Patricia, Edith e Arnold, que poderia ser incluído em qualquer antologia dos melhores contos do século passado); já saindo da adolescência e envolvido em discussões intelectuais e literárias — além de postado frente a opções radicais do modo “adulto” de ser, como a engrenagem da vida conjugal (que ele testemunha em Onde o Tawe corre: temos aí o homem casado que recebe jovens em sua casa, entre eles o sr. Thomas, para discutir socialismo e criar um romance coletivo, uma experiência bem “moderna”, decerto, mas num horário estrito, imposto pela sensata esposa, após o qual ele deve colocar o gato para fora e se recolher); e já um cão movimentando-se como “adulto” (Um sábado quente), apesar de o narrador se referir a seu protagonista ora como “menino”, ora como “rapaz”, mas sempre de uma forma elegiacamente irônica, como um réquiem daquele mundo todo explorado pelos relatos anteriores.

    Patricia, Edith e Arnold, assim como Os pêssegos, mostra uma intriga adulta acontecendo em paralelo aos apaixonados interesses momentâneos do protagonista: temos a descoberta por parte de duas criadas de que mantêm um relacionamento com um mesmo homem, e ambas — levando o menino— partem para um confronto (para o menino, uma aventura: “Ele sabia que aquela seria uma tarde em que tudo poderia acontecer”; e também, aqui, o escritor já está praticamente formado—como diz a criada de sua casa, Patricia, para a “rival”: “Ele observa tudo”). É um texto esplêndido, inclusive pela maneira como ele consegue caracterizar tudo de uma forma definitiva (linguagem corporal, personalidades): “Patricia sacudiu a cabeça, e o chapéu pendeu sobre um olho. Enquanto endireitava o chapéu, ela disse com sua voz de botar tudo em pratos limpos…” E, para coroar, ainda arremata com uma frase perfeita — que não revelarei aqui.

    Um sábado quente é, e não só por ser o conto derradeiro, o clímax de Retrato do artista quando jovem cão. Temos a solidão e carência do protagonista perambulando por uma cidade que é sua e ao mesmo tempo já não é (com seu destino de “poeta” assumido): “Ele pensou: poetas vivem e andam com seus poemas; um homem com visões não requer companhias; sábado é um dia terrível: devo ir para casa e sentar-me no meu quarto junto ao aquecedor. Mas ele não era um poeta vivendo e andando, era um rapaz numa cidade marítima, num quente e concorrido feriado, com duas libras para gastar. Não tinha visões, somente duas libras e um corpo pequeno com os pés na areia tumultuada; serenidade era coisa para velhos; e o rapaz se afastou, sobre as agulhas da ferrovia, rumo à estrada dos trilhos do bonde”.

Como certos heróis de Scott Fitzgerald, ele se deixa levar, meio passivamente, por uma “aventura” com potencial tanto de alto romantismo (pois ele quer se apaixonar e se ligar a alguém) quanto de mundanismo um pouco sórdido e derrisório (“Ó amor!Ó amor! Ela não é uma dama com sua típica voz monótona, ela bebe que nem um mergulhador em águas profundas; mas Lou, escute aqui, eu sou seu, Lou, você é minha”).

Conduzido, junto com um grupo, para a moradia da moça por quem se apaixona (Lou), ele adentrará — quando sair do quarto dela para ir a um banheiro externo — como que em outra órbita narrativa, mais inquietante, menos figurativa (se posso me expressar assim), muito pressaga (bem distante do dia ensolarado, festivo e mundano que deu o “tom” a páginas e mais páginas) quanto ao futuro desse poeta em flor, errando pelos andares de uma edificação que se torna labiríntica, “passando por barulhos de vida secreta atrás de portas”:

    “Esperou muito tempo na escada, embora já não houvesse amor à sua espera, nem cama, senão a sua, a muitos quilômetros de distância, onde deitar-se, e somente o dia próximo para relembrar a sua descoberta. Ao seu redor, os perturbados moradores de casa de cômodos voltaram a cair no sono. Depois, ele saiu da casa para o vasto espaço sob os inclinados guindastes e escadas de mão. A luz de uma débil lâmpada enferrujada caía através dos montes de tijolos e de madeira partida e do pó que outrora fora uma casa, onde pessoas humildes e quase anônimas e jamais relembradas na cidade suja tinham vivido e morrido, todas elas, para todo o sempre, perdedoras”.

Maquette, Maquette of book cover design: Dylan Thomas, Portrait of a Young Artist as a Young Dog

IV

   “No centro seguro de sua própria identidade, o mundo familiar à sua volta, semelhante a outra carne, ele estava sentado triste e satisfeito na sala de um hotel comum e banal à beira-mar, na cidadezinha tediosa e espalhada onde tudo estava acontecendo. Não tinha necessidade do escuro mundo interior quando Tawe fazia pressão contra ele, e pessoas excêntricas e comuns irrompiam, violentas, e arrastavam-se com estrépito e cores para fora de suas casas, para fora de seus prédios feios, fábricas e avenidas, lojas brilhantes e capelas blasfemadoras, terminais e centros de convenções, becos decadentes e alamedas de tijolos, saindo dos arcos, abrigos e buracos atrás dos tapumes, saindo da inteligência comum e selvagem da cidade.” (trecho de Um sábado quente)

E após esse ligeiro percurso pelas linhas de força de Retrato do artista quando jovem cão, só uma inabilidade extrema de minha parte impediria o leitor de perceber com clareza por que Dylan Thomas não pode deixar de ser incluído também no rol dos prosadores (ou praticantes da “poesia da prosa”) de primeira.

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ANEXO

Abaixo, transcrevo um dos meus poemas prediletos de Dylan Thomas na tradução de Ivan Junqueira (Poemas Reunidos: 1934-1953, também editado pela José Olympio, como Retrato do artista quando jovem cão). É o último da coletânea Mortes e entradas (1946):

COLINA DE SAMAMBAIAS

Quando, junto à casa em festa, sob os ramos da macieira,

Eu era lépido e jovem, e feliz como era verde a relva,

     A noite suspensa sobre as estrelas do desfiladeiro,

          O tempo a permitir que eu gritasse e me erguesse,

    Dourado, no fulgurante apogeu de seus olhos,

Eu, venerado entre as carroças, era o príncipe da cidade das maçãs,

E certa vez, com orgulho, fiz com que as árvores e as folhas

            Se arrastassem com margaridas e cevada

     Até os rios iluminados pelos frutos caídos sobre a terra.

 

E como era moço e descuidado, famoso entre os celeiros

Ao redor do pátio feliz, e cantava, pois a fazenda era o meu lar,

   Sob o sol, que é jovem apena uma vez,

         O tempo deixava-me brincar e ser dourado

    Na misericórdia de seus bens,

E, verde e dourado, eu era caçador e pastor, mugiam os bezerros

Ao som de minha trompa, das colinas vinha o uivo claro e frio das raposas,

        E lentamente ecoava a celebração do domingo

    Nos seixos dos córregos sagrados.

 

Tudo fluía e era belo sob o sol: os campos de feno

Altos como a casa, a música das chaminés, tudo era ar

     E ecoava, cheio de água e sortilégio,

         E fogo era tão verde quanto a relva,

    E à noite, sob a luz das estrelas humildes,

Enquanto eu cavalgava rumo ao sono, as corujas subjugavam a fazenda,

E sob a lua, abençoado entre os estábulos, eu ouvia os noitibós

        Voando entre as medas, e os cavalos

    Que flamejavam em meio às trevas.

 

E então, ao despertar, a fazenda, como um vagabundo

Branco de orvalho, regressa com o galo sobre o ombro: tudo

    Fulgia, tudo era Adão e sua donzela,

       O céu se adensava outra vez

   E o sol crescia ao redor daquele dia imaculado.

Assim deve ter sido após o nascimento da luz elementar

No primitivo espaço giratório, e os ardentes cavalos encantados

       Saíam relinchando da verde estrebaria

   Rumo ao campos da celebração.

 

E na casa em festa, venerado entre raposas e faisões,

Sob as nuvens recém-formadas, e tão feliz quanto era grande o coração,

    Ao sol que renasce a cada dia,

       Eu corria por meus caminhos temerários,

   Meus desejos  se precipitavam pelo alto feno da casa

E nada me importava, em meu comércio celestial, pois o tempo

Em suas órbitas melodiosas, só concede raras canções matinais

         Antes que as crianças verdes e douradas

    O acompanham até o estertor da graça,

 

Nada me importava, nos dias brancos como cordeiros, que o tempo

                                                                                     [me levasse,

Pela sombra de minhas mãos, até o paiol cheio de andorinhas,

    Sob a lua que jamais deixa de galgar os céus,

      Nem mesmo, ao cavalgar rumo ao sono,

    Que chegasse a ouvi-la flutuar entre os altos campos

E acordasse na fazenda apagada para sempre nessa terra sem crianças,

Ah! Quando eu era lépido e jovem, na misericórdia de seus bens,

   Embora eu cantasse em meus grilhões como canta o mar.

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NOTAS

[1] De saída, é interessante notar que, pelo que depreende dos textos do livro, Dylan Thomas desde muito cedo se percebeu como escritor, e tanto autor de contos quanto de poemas:

“… a égua parecia uma estátua desajeitada a trotar, e todos os demônios dos meus contos, se trotassem ao lado dela ou se, reunidos, lhe fizessem caretas, encarando-a bem nos olhos, certamente não a fariam  sacudir a cabeça ou se apressar”, lemos no conto inaugural, Os pêssegos.

[2] Um universo que está presente ainda em Beckett, basta ler Molloy.

[3] Thomas nasceu em Uplands, parte de Swansea (em 27 de outubro de 1914). Sua família era oriunda dos condados de Carmarthen e Cardigan.

[4] Lemos em O extraordinário Tossidela.

[5] Lemos em Um sábado quente.

[6] É o final de A velha Garbo.

[7] “Quando ela se foi, Dan perguntou:

__Por que um homem tem sempre vergonha da mãe?

__ Talvez não tenha quando crescer—eu disse, mas em dúvida. É que, uma semana antes, eu descia a High Street com três meninos antes da escola e vi minha mãe com a sra. Partridge fora de Kardomah. Eu tinha certeza de que ela me chamaria na frente dos outros e diria: Vá para casa a tempo de pegar o chá, e desejei que a High Street se abrisse e me tragasse. Eu amava e repudiava minha mãe…” (trecho de A luta)

Com relação ao pai: “Recostei-me no balcão, entre um vereador e um tabelião, que bebiam cerveja amarga, desejando que meu pai me visse, e ao mesmo tempo feliz porque ele estava de visita ao tio A. em Aberavon. Ele não poderia deixar de ver que eu não era mais menino, nem deixar de zangar-se por causa do ângulo do meu cigarro e do meu chapéu e da maneira como agarrava a caneca de cerveja.” (trecho de A velha Garbo)

[8] No qual a mescla camaradagem/rivalidade das relações masculinas adolescentes às vezes ameaça uma atmosfera O Senhor das Moscas (1954), de William Golding, inclusive com um bode expiatório (o Tossidela do título, “zoado” pelos demais garotos, e um tanto patético).

[9] O que destoa decerto da atitude do início do relato: “Batíamos em cada portão para dar a terrível bênção do andarilho às pessoas das casas sufocantes”.

Dylan Thomas

21/10/2014

O DRÁCULA DE LÚCIO CARDOSO

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“Meus caros amigos—disse o mestre—, creio que é bom explicar com que espécie de inimigos temos de tratar. Os vampiros existem. Tivemos a prova. Sem falar no desgraçado exemplo desses últimos tempos, achamos a evidência no passado. Não pudemos salvar a nossa pobre amiga, mas podemos, no entanto, prevenir outras desgraças.

    O nosferatu não morre, como a abelha, da sua própria mordida, mas vive, e ganha uma nova força. O vampiro que conhecemos tem a força de vinte homens reunidos. Ele ainda se vale da necromancia que significa, como a etimologia da palavra indica, a ciência dos mortos; e todos os mortos de que ele se aproximou obedecem ao seu comando. É um verdadeiro demônio. Pode tomar certas aparências e desaparecer como a nuvem. Como agir para destruí-lo? Onde apanhá-lo? A tarefa é rude, a luta pode ser trágica. Eu estou velho; mas eu, que importa, no entanto vocês, que são moços, ousariam afrontá-lo?”  (trad. Lúcio Cardoso)

(uma versão da resenha abaixo foi  publicada originalmente m A TRIBUNA de Santos, m 21 de outubro de 2014)

Com a estreia (esta semana) de Drácula- A História Nunca Contada, temos mais um capítulo da incessante retomada do mais famoso morto-vivo da cultura ocidental, desde a publicação (1897) do romance original do irlandês Bram Stoker, que, aos 14 anos foi para mim leitura apaixonante, daquelas de não largar o livro até terminá-lo. Com minha pouca experiência à época, o que fazia o relato ainda mais absorvente era a sua construção através dos diários e da correspondência dos personagens principais.

Ao longo dos anos, apesar de alguns filmes notáveis, nunca assisti a nenhum de fato fiel—o mais próximo, inclusive pelo título, foi o inventivo (e muito belo) Drácula de Bram Stoker (1992), de Coppola, e mesmo assim acrescentaram uma improvável ligação amorosa (um lance de almas unidas para além da morte!) entre o vampiro e a heroína da história, Minna Harker.

A Civilização Brasileira relançou uma tradução de Lúcio Cardoso[1] (que nasceu no ano da morte de Stoker, 1912) de 1943 (quando foi publicado Dias perdidos, a meu ver seu melhor romance): Drácula- O Homem da Noite.

Mais uma vez, e conhecendo à exaustão a história, li sem trégua, do começo ao fim, tão competente é o trabalho do escritor mineiro (que pode ser lido hoje sem sobressaltos, até pela moçada cuja iniciação ao mundo vampiresco se deu com a saga Crepúsculo—mesmo os anacronismos de expressão soam deliciosos: Mas não arrebite o narizinho, prometo não fazer tisanas”). Só me decepcionei, como saldo dessa nova leitura, com todos os personagens, inclusive sumidades científicas como Van Helsing e o alienista Seward, narrando do mesmo jeito das leigas donzelas Minna e Lucy, vítimas (a segunda delas, de forma fatal) de Drácula. Não se observa a mínima diferença intelectual nos registros, arrolam-se sobretudo ações e reações, e no final mesmo os cientistas parecem mais aventureiros de seriado.

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Fazendo uso de outra tradução à mão (a de Theobaldo de Souza, pela L&PM, também publicada pelo Círculo do Livro), verificamos a raiz do problema: na verdade, Lúcio Cardoso fez uma condensação do texto, tão pouco fiel a ele na letra (apesar de manter o “espírito”) quanto as inúmeras adaptações para o cinema[2]. Já era de estranhar o volume com 250 páginas, quando outras edições apresentam o dobro. Comparando as versões, constatamos a ausência de cinco capítulos, a supressão de parágrafos e trechos inteiros. É bem mais do que simplesmente “traduzir de forma peculiar”, como se afirma na orelha: “Esta singularidade justificou, para a presente edição, a escolha de interferir o mínimo possível nas decisões vocabulares e sintáticas do tradutor; ora, reduzir para 250 páginas um texto de 550 não é somente uma decisão vocabular e sintática, convenhamos! E há pelo menos um erro flagrante. No início do capítulo 6, Minna relata: “Fui apanhar Lucy e a mãe na gare”. É justamente o contrário: “Lucy me esperou na estação” (mais lógico, se é a narradora quem vai ficar como hóspede na casa da amiga).

O aspecto menos defensável é o já citado nivelamento levado a cabo pelo autor de Crônica da Casa Assassinada (1959), um dos nossos romances mais cultuados. Pois Stoker cuidou para que cada personagem tivesse seus traquejos de linguagem: por exemplo, as referências literárias, o estilo protocolar e administrativo de Jonathan Harker, que inicia a história ao chegar ao castelo de Drácula na Transilvânia (tornando-se seu prisioneiro), para os trâmites da aquisição de propriedades na Inglaterra; cortou-se a referência de que parte do relato do Seward é gravada num fonógrafo (às vezes quem usa esse recurso é Van Helsing); foi suprimida a correspondência entre os três pretendentes da trágica Lucy, que torna crível a união posterior (com os laços de amizade mais fortes do que a rivalidade amorosa) para caçar o vampiro. Em Drácula-O Homem da noite esse pacto surge de forma abrupta e esquisita; também a nota final que arremata a narrativa não dá o ar da graça.

Para se ter uma ideia mais precisa da simplificação efetuada, um trecho do diário de Minna: “Meus homens voltaram na hora do jantar, todos muito fatigados, tentei diverti-los do melhor modo possível. Depois do jantar, pediram-me que voltasse para o quarto sob pretexto de fumar um cigarro. Sei muito bem o que tudo isso quer dizer. Quis evitar uma nova insônia e pedi ao dr. Seward para me dar um ligeiro soporífero. Ele próprio preparou a poção” (e termina assim). Na versão de Theobaldo de Souza: “…à hora do jantar, quando voltaram, estavam muito cansados. Fiz o que estava a meu alcance para reanimá-los, e creio que tal esforço me fez bem, visto como esqueci completamente a minha própria fadiga. Depois do jantar, eles me mandaram ir para a cama. Disseram-me que iam fumar, mas eu sabia perfeitamente que se reuniram para trocar impressões a respeito das ocorrências do dia. Percebi, pela atitude de Jonathan, que ele guardava segredo de alguma coisa importante que agora iria compartilhar. Eu, entretanto, não estava sentindo bastante sono. Por isso, antes de recolher-me, pedi ao dr. Seward que me desse um sonífero qualquer, pois não dormira bem na noite anterior. Ele, solicitamente, preparou uma poção que me fez tomar, dizendo que não me prejudicaria em nada, pois a dose era bastante fraca. Agora, porém, continuo aguardando os efeitos do remédio, que me parecem cada vez mais distantes. Espero não ter feito nada de errado, porquanto, sempre que o sono se aproxima, um novo temor me faz estremecer. Talvez tenha sido tolice minha privar-me assim de poder despertar a qualquer instante. Quem sabe se isso não será necessário? Aí vem Sua Majestade, o Sono. Boa noite!”[3]

Feitas as contas, por falta de advertência editorial mais séria, o Drácula de Cardoso é relevante (e ótima leitura), com valor próprio (e nisso não vai a menor condescendência)[4] porém ainda menos Bram Stoker do que o de Coppola, e mais enganoso.

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NOTAS

[1] Essa publicação faz parte do  relançamento da obra (inclusive seu trabalho como tradutor) do autor mineiro por essa casa editorial. Drácula- O homem da noite foi originalmente publicada em O Cruzeiro, informação que devo à Denise Bottmann.

[2] Após ter escrito (e enviado) o texto acima, comprei a mais recente tradução, realizada por José Francisco Botelho (Penguin/Companhia das Letras, 2014) e lá descobri que o próprio Stoker realizou uma condensação para uma edição popular, em 1901.  Pergunto-me se  não foi um exemplar dessa versão que caiu nas mãos de Cardoso. O que me leva à seguinte conclusão: por que a Civilização Brasileira não demonstrou o menor cuidado em contextualizar a versão que publicou?  Por que descuraram de um mínimo aparato informativo-crítico, tão necessário?

[3] Na versão de José Francisco Botelho:

“Ele [Jonathan Harker} e os outros estiveram na rua a maior parte do dia e chegaram muito cansados, na hora da ceia. Fiz o possível para alegrá-los e acho que o esforço me fez bem; por algum tempo,  esqueci minha própria exaustão. Após a ceia, mandaram-me para a cama e saíram para fumar juntos—ao menos, é o que me disseram. Mas sei que, na verdade, pretendiam contar uns aos outros o que haviam feito durante o dia; pela expressão de Jonathan, notei que ele tinha algo de importante a comunicar. Apesar do cansaço, eu não tinha sono. Antes que se retirassem, expliquei ao dr. Seward que não dormira bem na noite anterior e pedi que me desse algum tipo de narcótico. Com muita gentileza, ele preparou uma dose de sonífero. Disse que eu podia bebê-la sem medo, pois era muito suave e não me causaria nenhum mal… Tomei o remédio e estou esperando pelo sono, que continua distante e indiferente. Espero não ter cometido um erro, pois agora que começo a flertar com o sono, surgiu em mim um novo medo: talvez tenha sido uma tolice privar a mim mesma do poder de ficar desperta. Posso precisar dele, em breve. Mas aí vem o sono. Boa noite.”

[4] Aproveito para lembrar que ele fez uma versão excelente de Orgulho e Preconceito, a qual mesmo após décadas se sai bem em qualquer confronto (e eu o fiz) com versões mais atuais. Foi o meu primeiro contato com Jane Austen e a li pelo menos três vezes (duas, pelo simples prazer de leitura; a terceira, para compará-la com outras versões).

VER

https://armonte.wordpress.com/2013/01/30/orgulho-e-preconceito-200-anos-traducoes-brasileiras/

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Nosferatu

16/10/2014

POÉTICA DA PENUMBRA: Patrick Modiano, o Nobel dos territórios obscuros

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(uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 14 de outubro de 2014)

(uma versão da resenha abaixo foi publicada no LETRAS IN.VERSO E RE.VERSO, em 15 de outubro de 2014, VER http://letrasinversoreverso.blogspot.com.br/2014/10/patrick-modiano-o-nobel-dos-territorios.html)

Aos 69 anos, Patrick Modiano foi anunciado como vencedor do Nobel, exatamente meio-século após outro francês, bem mais célebre, Jean-Paul Sartre, ter recusado com veemência a premiação. Será mera coincidência?[1]

Ao contrário, no entanto, da suposição generalizada por aqui, Modiano não é um desconhecido. Seus livros geralmente são sucesso de vendas e, para muitos, trata-se do maior escritor vivo da França. Aos 33 anos, Uma rua de Roma (Rue de boutiques obscures, 1978) ganhou o badalado prêmio Goncourt. Nessa obra-prima, ele fixou definitivamente um inconfundível universo de territórios e tempos obscuros, ao criar o detetive desmemoriado que investigava indícios, quase todos fugidios e evanescentes, do próprio passado, ao mesmo tempo uma incógnita e carregado de marcas opressivas: a Ocupação nazista, o colaboracionismo.

Modiano obsessivamente nomeia logradouros e fixa datas[2]. Nem por isso deixamos de ter a sensação de mergulhar numa atmosfera insubstancial, na falta de evidências concretas, a realidade tomada pelo fuliginoso, uma verdadeira poética da penumbra: Janeiro de 1965. Às seis horas já estava escuro no cruzamento do bulevar Ornano com a rua Championnet. Eu não era nada, eu me confundia com esse crepúsculo, com essas ruas…”, lemos em outro belo livro, Dora Bruder (1997), onde o narrador persegue — com clara percepção do fiasco da empreitada— os vestígios mínimos (“Levei quatro anos para descobrir a data exata de seu nascimento, 25 de fevereiro de 1926. E levei mais dois anos para conhecer o lugar onde nascera: Paris, décimo segundo arrondissiment. Mas, sou paciente. Posso esperar horas sob a chuva”) remanescentes da passagem por este mundo de uma adolescente judia dos tempos da Segunda Guerra: “Os pais perdem a pista da filha, e um deles vai desaparecer também, nesse 19 de março, como se o inverno daquele ano separasse as pessoas, destruísse e queimasse as pistas, ao ponto de lançar uma dúvida sobre a sua existência. E não há nada que possa ser feito. Os mesmos que são encarregados de o procurar e encontrar fazem fichas para que seja mais fácil fazer com que você desapareça depois, definitivamente”. Modiano continua a seu modo — com uma espécie de olhar de esguelha — uma das Grandes Narrativas da modernidade, cujo grande pai fundador é Kafka: a irrealização do humano (e especialmente da singularidade individual) pela burocracia.

Alguém ficará surpreso de lhe atribuírem o Nobel por conta “da arte da memória com a qual evocou os destinos humanos mais inapreensíveis e jogou luz sobre a vida durante a Ocupação”?

du plus loin

Apesar de tema recorrente, é injusto dizer que sua obra se limita a esse período histórico. Tome-se, por exemplo, um romance excelente como Do mais longe do esquecimento (Du plus loin de l´oubli, 1996) [3], cuja trama transcorre vinte anos depois da guerra. O narrador, ainda menor de idade, rompeu com os pais e mora num hotel (sem domicílio fixo, os personagens modianescos transitam por alojamentos provisórios, muitas vezes precários e sórdidos, nas bordas do escuso[4]), vendendo livros de arte para sobreviver.

Ele se envolve com Jacqueline, viciada em éter, que vive com Van Bever, jogador inveterado, e tem um caso com o suspeitíssimo dentista Cartaud. A certa altura, Jacqueline propõe ao protagonista que roube uma mala no consultório do amante e ele o faz sem pestanejar. As páginas em que narra o intervalo de tempo, após o roubo, até entrar em contato com Jacqueline, estão entre as melhores que Modiano escreveu. O jovem narrador, inclusive, se visualiza fugindo sozinho com a mala, arrastado pelo imaginário das estações e trens que pululam no universo do Nobel 2014[5], tanto quanto os hotéis e pensões.

Enfim, os dois vão para Londres e conviverão com a nascente fauna da Swinging London anos 1960, em disponibilidade total (e sempre com um pé no submundo[6]), e também com um sentimento de irrealidade (que pode ter elementos de sonho ou pesadelo), de que “a vida ainda não começou”. E nem começará: tão gratuitamente como se aproximou dele, Jacqueline desaparecerá; só irão se reencontrar dali a quinze anos; e depois de outros tantos, ele perambulará por Paris, recordando e ruminando esses incidentes e ligações (“Quinze anos se passaram ainda, numa tal bruma, que se confundem uns com os outros”), possivelmente os únicos um pouco mais nítidos na nebulosa, no lusco-fusco da sua existência: “…teria sido uma pena acabar naquele banco, numa espécie de amnésia e perda progressiva de identidade…”, ele nos diz, manuseando a certidão de nascimento, como se tentando comprovar via documentação sua presença no mundo[7], tal como o narrador de Dora Bruder tentará fazer com a desaparecida Dora, ou Guy, o detetive de Uma rua de Roma, com seu passado, antes de adotar esse avatar[8].

A desconcertante, fragmentária educação sentimental narrada em Do mais longe do esquecimento pode frustrar leitores que queiram uma trama unívoca, coesa e dirigida a um fim. Em contrapartida, se o pensador polonês Zygmunt Bauman estiver correto em sua hipótese de que vivemos em plena “modernidade líquida”, com o afrouxamento de laços com o real e até da noção de identidade, poucos a registraram tão poderosamente quanto Patrick Modiano em seus romances curtos, de linguagem sóbria, quase seca, e perigosamente movediços: podemos afundar neles[9].

resenha modiano

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NOTAS

[1] E aqui devo lembrar que somente  21 anos depois da “desfeita” do autor de A náusea a França, outrora muito constante nos anúncios de vencedores, ganharia novamente um Nobel, com Claude Simon, em 1985.

Numa resenha em que fazia “apostas para o Nobel”, escrevi na minha coluna em A TRIBUNA de Santos, em 4 de outubro de 2008:

Na França, o maior dos candidatos é um expatriado, o tcheco Milan Kundera, que passou a escrever na língua do seu país de adoção (A Identidade, A Ignorância), mas já era mais conhecido pelas traduções francesas das sua extraordinária obra anterior (A Brincadeira, A Valsa dos Adeuses, O Livro do Riso e do Esquecimento, Risíveis Amores, A Insustentável Leveza do Ser). É um dos que eu ficaria particularmente feliz se ganhasse. Entre os ‘nativos’ (palavra cada vez mais problemática), por que não Patrick Modiano (Rue de Boutiques Obscures, Ronda da Noite) ou o intrigante J. M. G. Le Clézio (Deserto, À Procura do Ouro, A Quarentena), ambos sobreviventes honrosos do apocalipse de insignificância e irrelevância daquela que foi a pátria oficial da literatura?”

Le Clézio foi o vencedor daquele ano. Agora, só falta Kundera.

VER aqui no blog:

https://armonte.wordpress.com/2011/10/03/o-nobel-do-nomade/

https://armonte.wordpress.com/2012/07/28/quando-a-identidade-e-a-memoria-sao-liquidas-uma-rua-de-roma-de-patrick-modiano/

[2] Na abertura de Uma rua de Roma o leitor já pode ter um vislumbre dessa recorrência obsessiva:

“Atrás de Hutte, prateleiras de madeira escura cobriam a metade da parede: aí se encontravam catálogos telefônicos e anuários de todos os tipos, e desses últimos cinquenta anos. Hutte dissera-me várias vezes que eram instrumentos de trabalho insubstituíveis, dos quais jamais se separaria. E que tais catálogos e anuários constituíam a mais preciosa e comovente biblioteca que alguém pudesse ter, pois em suas páginas estavam registrados muitos seres, coisas e mundos desaparecidos, sobre os quais só aqueles volumes prestavam testemunho”.

[3] Título tirado de uma citação do poeta alemão Stefan George (1868-1933), o qual foi de certa forma espuriamente encampado pela propaganda nazista, devido aos elementos “arianos” da sua obra.

[4] Como acontece com o pai, figura recorrente, metido em negociatas no mercado negro, e um judeu de ambíguas estratégias de sobrevivência durante o período mais sombrio (pelo menos no século XX) da França, país em que o antissemitismo possivelmente aflorou de forma violenta muito antes da Ocupação, a qual de certa representou apenas o ápice de um longo processo.

[5] Inclusive nos sonhos e pesadelos:

“Mas comecei a sentir uma espécie de pânico, uma vertigem, como ocorre nos pesadelos, ou quando não conseguimos chegar numa estação, e as horas passam, e vamos perder o trem.

    Há vinte anos, experimentei uma aventura parecida. Soube que meu pai fora hospitalizado no Pitié-Salpêtrière. Eu não o tinha visto mais desde o final da minha adolescência. Decidi que lhe faria uma visita improvisada.

    Lembro que vaguei durante horas pelo enorme hospital, à sua postura. Entrava em prédios antigos, nas salas de enfermaria, repletas de camas, e as perguntas que fazia às enfermeiras recebiam sempre respostas contraditórias. Acabei duvidando da existência de meu pai (…) Percorri os pátios de cimento até a noite. Não consegui encontrar meu pai. Nunca mais o revi.”

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[6]Gente engraçadaDo tipo que deixa apenas, após sua passagem, um nevoeiro que rapidamente se dissipa. Hutte e eu lidávamos freqüentemente com esses seres cujas pegadas se perdem. Um belo dia, surgem do nada e ao nada retornam, depois de ter brilhado com algumas fagulhas. Rainhas de beleza. Gigolôs. A maioria deles, mesmo no instante da vida, não possuía maior consistência do que uma onda de vapor que não se condensará jamais” (Uma rua de Roma)

[7] Talvez seja interessante uma amostra maior, situando melhor a passagem citada acima:

“Por mais que juntasse outras lembranças mais recentes, estas pertenciam a uma vida anterior que eu não estava inteiramente certo de ter vivido.

    Tirara do bolso minha certidão de nascimento. Nascera durante o verão de 1945, e uma tarde, às cinco horas mais ou menos, meu pai fora assinar o registro da prefeitura. Eu via sua assinatura na fotocópia que me haviam dado—uma assinatura ilegível. Depois ele voltara para casa a pé, pelas ruas desertas daquele verão, em que se ouviam as campainhas cristalinas das bicicletas, no silêncio. E era a mesma estação de hoje, o mesmo fim de tarde ensolarado.

     Tornara a guardar a certidão de nascimento no bolso. Estava num sonho, do qual precisava mesmo acordar. Os laços que me ligavam ao presente estiravam-se cada vez mais. Realmente, teria sido uma pena acabar naquele banco, numa espécie de amnésia e de perda progressiva de identidade, e já não poder indicar aos passantes meu domicílio… Ainda bem que tinha no bolso aquela certidão de nascimento, como os cães que se perderam em Paris, mas trazem na coleira o endereço e o telefone do dono… E tentava explicar para mim mesmo a hesitação que sentia. Fazia muitas semanas que não via ninguém. As pessoas a quem telefonara não tinham voltado das férias. Além disso, errara ao escolher um hotel afastado do centro. No início do verão, pretendia passar ali apenas uma temperada muito breve, e alugar um pequeno apartamento ou um conjugado. A dúvida insinuava-se em mim: teria eu realmente vontade de ficar em Paris? Enquanto durasse o verão, teria a ilusão de ser apenas um turista, mas no início do outono as ruas, as pessoas e as coisas retomariam sua cor cotidiana: cinza. E eu não sabia se ainda tinha coragem de me fundir de novo naquela cor.”

[8] “…tive a desagradável impressão de sonhar. Já vivera minha vida e não era senão uma alma penada que flutuava no ar morno de uma noite de sábado. Por que desejar de novo atar laços rompidos e procurar passagens muradas há tanto tempo? E esse pequeno homem gorducho e bigodudo que andava a meu lado, eu tinha dificuldade em acreditar que fosse real”, lemos em Uma rua de Roma.

[9] Os romances de Modiano acima citados, Uma rua de Roma, Do mais longe do esquecimento e Dora Bruder foram lançados no Brasil pela Rocco e traduzidos respectivamente por Herbert Daniel-Cláudio Mesquita (1986), Maria Helena Franco Martins (2000) e Márcia Cavalcanti Ribas Vieira (1998).

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07/10/2014

“Garota Exemplar” e a dificuldade para ser um homem ou uma mulher (quanto mais uma pessoa) real

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  Era verdade que eu também sentira isso durante o último mês, quando não queria machucar Amy. Isso me ocorria em momentos estranhos—no meio da noite, dando uma mijada, ou pela manhã, servindo uma tigela de cereal–, identificava uma ponta de admiração e, mais que isso, afeto por minha esposa, bem no fundo de mim, nas entranhas. Saber exatamente o que eu queria ler naqueles bilhetes, me reconquistar, até mesmo prever todos os meus erros… A mulher me conhecia a fundo. O tempo todo eu pensara que éramos estranhos um para o outro, e na verdade nos conhecíamos intuitivamente, em nossos ossos, nosso sangue.

    Era meio romântico…” (trecho de Garota Exemplar)

“Se ela puniu uma amiga de alguns meses se jogando de uma escada, o que faria com um homem burro o bastante para se casar com ela?” (idem)

(uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 07 de outubro de 2014)

Amy Exemplar é heroína de uma popular série de livros juvenis. Sempre faz as escolhas corretas e seu comportamento é impecável. Rand e Marybeth Elliott, os autores, têm uma filha chamada Amy, a quintessência da nova-iorquina sofisticada, linda e inteligente, que no entanto passou por experiências desagradáveis por causa de seu alter ego fictício: além de esperaram dela a perfeição (“o eu que eu deveria ser”), é constante a perseguição de pessoas obcecadas.

Sua vida começa a desmoronar mesmo quando ela e Nick Dunne, o marido, perdem o emprego, e os pais quase entram em falência (a série ficou fora de moda e eles fizeram investimentos ruins), tudo na esteira da recessão americana de anos recentes. Nick propõe uma mudança para sua cidade natal, Carthage (Missouri), com seus “derrotados satisfeitos”, corroída pelo desemprego endêmico e pela falta de perspectivas. Ali, a mãe dele está morrendo de câncer, o pai misógino e truculento sucumbindo ao Alzheimer. Amy investe o resto do seu dilapidado pecúlio num bar que Nick resolve montar com a irmã gêmea.

No dia do aniversário de cinco anos de casamento, ela desaparece, com fortes indícios de violência. Como dirá o advogado de Nick, problemas financeiros+ casal em crise e esposa grávida+ a existência de uma amante= suspeito número um.

Garota Exemplar [Gone Girl, 2012—que eu comento na tradução de Alexandre Martins] é dividido em três partes. Na primeira, com brilhantismo e uma prosa fantástica[1], Gillian Flynn alterna os pontos de vista de Nick e Amy, ele narrando os acontecimentos a partir da constatação do sumiço de Amy; ela, através de um diário, descrevendo o processo de transformação do casamento numa ratoeira de empobrecimento, hostilidade mútua e medo: “Nick se casou comigo quando eu era uma mulher jovem, rica e bonita, e agora sou pobre, desempregada, mais perto dos quarenta que dos trinta; não sou mais só bonita, sou bonita ´para a minha idade´. É a verdade: meu valor diminuiu. Posso dizer pelo modo como Nick olha para mim. Mas não é o olhar de um sujeito que se deu mal em uma aposta honesta. É o olhar de um homem que se sente enganado. Logo poderá ser o olhar de um homem preso em uma armadilha”.

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Após esse tour de force, na segunda parte descobrimos que a vitimização de Amy era um engodo meticulosamente planejado como uma vingança contra Nick, por ter sido infiel e por não corresponder à ideia de “marido exemplar”. Curiosamente, nem assim o leitor chega a simpatizar com esse homem fraco, manipulador de um charme “viril-vulnerável” (eterno filhinho da mamãe), o qual, se não chega às raias do ódio contra as mulheres do pai (e de toda uma faixa de machos emasculada pela crise econômica, tal como o Meio-Oeste é soturnamente retratado, apesar das fortes ligações comunitárias), começa a acreditar numa espécie de conspiração global das mulheres contra ele (é alvo de ataques constantes na mídia, muitos deles comandados por apresentadoras de programas sensacionalistas): “Andie tinha me sacaneado, Marybeth se virara contra mim, Go perdera uma dose crucial de fé, Boney preparara uma armadilha para mim, Amy me destruíra. Servi-me de uma bebida. Tomei um gole, apertei os dedos ao redor do copo e o arremessei contra a parede, vi o vidro explodir como fogos de artifício, ouvi o barulho tremendo, senti o cheiro da nuvem de Bourbon. Fúria em todos os cinco sentidos. Aquelas piranhas desgraçadas…”[2]

     Garota Exemplar é, então, uma reflexão ficcional sobre os EUA mergulhado numa regressividade tanto econômica quanto no plano das relações (“É uma época muito difícil para ser uma pessoa, apenas uma pessoa real, de verdade, em vez de uma coleção de traços de personalidade recolhidos de uma interminável máquina automática de personagens”). E, sobretudo, sobre impasses sexistas, em que os indivíduos têm consciência aguda das suas identidades de gênero, numa polarização quase alegórica. Nesse sentido, o romance está longe de ser um mero thriller, e dá para entender o interesse em filmá-lo de David Fincher[3], que já explorara o perturbador avesso misógino e brutal da sempre dita avançada sociedade sueca, em Os homens que não amavam as mulheres (usando um material literário bem inferior, pois Stieg Larsson é medíocre e sua trama foi até melhorada, dentro do possível na adaptação cinematográfica do diretor de Zodíaco, mesmo assim pouco empolgante[4]).

O erro de Gillian Flynn, sem que ela chegue a empanar o virtuosismo da sua prosa, é fazer de Amy um gênio do mal, com pormenores tão exagerados (até seu passado, quando se descobre a verdade sobre os supostos perseguidores, ganha a atmosfera irreal daqueles filmes do tipo Mulher Solteira Procura, A Mão Que Balança o Berço, A Órfã—enfim, o meu leitor poderá lembrar-se facilmente de vários exemplos) que tiram boa parte da força da história. Perde-se o tenso equilíbrio entre “a verdade, a não verdade e o que poderia ser verdade” que sustentava a alternância das narrativas. E Nick, apesar de conhecermos seu lado abjeto, se torna mais humano, em contrapartida a essa hiperbólica Amy Vilã.

A meu ver, Garota Exemplar é praticamente uma obra-prima, digna de O Colecionador, de John Fowles, e maior rival contemporâneo dos romances policiais de Kate Atkinson (Quando haverá boas notícias?; Saí cedo, levei meu cachorro), até a pág. 347 (na edição brasileira). A partir do momento em que Amy se deixa “sequestrar” por um bizarro admirador, que a manterá prisioneira numa erma mansão, e depois parte para a psicopatia explícita, o relato pode até manter o interesse por conta da habilidade ímpar da autora; contudo, parece ter se rendido às fórmulas fáceis. Mesmo o destino monstruoso que imprimirá ao casamento de Nick e Amy fica comprometido com esse ranço de suspense barato. No frigir dos ovos, os dois personagens, tão complexos e reveladores durante a maior parte do romance, reduzem-se a clichês sexistas padronizadores: ela, uma piranha psicopata; ele um banana babaca.

Há uma lista imensa de agradecimentos no final. Quem será o responsável por tê-la orientado para esse caminho inglório? 1/3 de concessões comprometendo 2/3 de puro talento.

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TRECHO SELECIONADO

“__ Sabe Noelle Hawthorne?—perguntou Boney.—A amiga de Amy que você nos mandou investigar?

__ Espere, quero falar sobre as contas, porque elas não são minhas—interrompi.—Quer dizer, por favor, falando sério, precisamos rastrear isto.

__Vamos rastrear, sem problemas—disse Boney, inexpressiva.—Noelle Hawthorne?

__ Certo. Eu disse para vocês darem uma investigada nela porque ela tem circulado por toda a cidade se lamentando por causa de Amy.

     Boney ergueu uma sobrancelha.

__ Você parece bravo com isso.

__ Não, como eu disse, ela parece um pouco abalada demais, meio que de modo falso. Ostensivo. Buscando atenção. Um pouco obsessivo.  

__ Conversamos com Noelle—explicou Boney.—Ela diz que sua esposa estava muito perturbada com o casamento, chateada com a coisa do dinheiro, com medo de que você estivesse casado com ela por causa do dinheiro. Diz que sua esposa se preocupava com seu temperamento. 

__ Não sei por que Noelle diria isso; não acho que ela e Amy tenham trocado mais de cinco palavras na vida.

__ Engraçado, porque a sala de estar dos Hawthorne está cheia de fotos de Noelle e sua esposa—disse Boney, franzindo a testa.

    Eu também franzi a testa: fotos reais dela e Amy?

    Boney continuou:

__ No zoológico de St. Louis em outubro passado, em um piquenique com os trigêmeos, em um fim de semana de junho passeando de bote. Junho, no sentido de mês passado.

__ Amy nunca pronunciou o nome de Noelle durante todo o tempo que moramos aqui, Estou falando sério.

    Revirei meu cérebro pensando em junho passado e esbarrei em um fim de semana em que viajei com Andie, dizendo a Amy que faria uma viagem com os rapazes a St. Louis. Voltei para casa e a encontrei com bochechas rosadas e com raiva, reclamando de um fim de semana de coisas ruins na TV a cabo e leituras tediosas no cais. E ela estivera em um passeio pelo rio? Não. Não podia pensar em nada que interessasse menos Amy do que o típico passeio de bote do Meio-Oeste: cerveja boiando em recipientes amarrados a canoas, música alta, jovens bêbados, acampamentos salpicados de vômito.

 __ Vocês têm certeza de que era minha esposa nas fotos?

    Eles trocaram olhares que diziam: ele está falando sério?”

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NOTAS

[1] Veja-se a seguinte passagem: “…Amy estudara em um colégio interno em Massachusetts chamado Wickshire Academy—eu vira as fotos, Amy de saia de lacrosse e faixa na cabeça, sempre com cores outonais ao fundo, como se a escola não fosse em uma cidade, mas em um mês…”; ou ainda: “Ele me conduziu a uma sala de estar severa, de uma masculinidade imaginada por um decorador”.

[2] Andie é a jovem amante (aluna no seu curso de jornalismo); Marybeth,  a sogra; Go, a irmã gêmea; Boney, a detetive que investiga o sumiço de Amy e que aparentemente simpatiza com Nick.

Por seu turno, acompanhando de longe o desenrolar do caso, Amy afirma: “Mesmo agora o babaca tem mulheres cuidando dele. Mulheres desesperadas identificando uma brecha”. Por essa visão crua de certo comportamento feminino, alguns comentadores do livro acusaram a própria Gillian Flynn de misógina.

[3] Com a maravilhosa Rosamund Pike como Amy e Ben Affleck como Nick (para o qual ele tem, a princípio, o physique du rôle). No momento em que escrevo o texto acima, ainda não assisti ao filme.

[4] Mesmo porque na parte final a protagonista feminina dá uma de “mulher fatal” internacional, uma sequência meio ridícula.

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