MONTE DE LEITURAS: blog do Alfredo Monte

12/06/2014

LEITURAS EM ESPELHO: “Romeu e Julieta na aldeia” (Gottfried Keller) e “Lady Macbeth do Distrito de Mtzensk” (Nikolai Leskov)

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(uma versão do texto abaixo foi publicada no “Letras in.verso e re.verso”, em 11 de junho de 2014.

VER:  http://letrasinversoreverso.blogspot.com.br/2014/06/entre-shakespeare-e-pagina-policial.html)

A editora 34 tem apresentado um catálogo notável de traduções de clássicos, incluindo nomes escassamente conhecidos pelos brasileiros, caso de Gottfried Keller (1819-1890) e Nikolai Leskov (1831-1895). No entanto, quando se estuda a história do “romance de formação”, o suíço invariavelmente é citado como aquele que escreveu a mais importante obra nessa vertente tão fundamental do gênero: O verde Heinrich (“verde” no sentido de imaturo, isto é, em formação); por seu lado, o responsável por uma maior divulgação, no Ocidente, do russo foi Walter Benjamin, por meio do seu citadíssimo O narrador, em que ele o toma como paradigma da atividade (para ele, em extinção[1]) que dá título ao ensaio:

“Se a arte da narrativa é hoje rara, a difusão da informação é decisivamente responsável por esse declínio.

    Cada manhã recebemos notícias do mundo todo. E, no entanto, somos pobres em histórias surpreendentes. A razão é que os fatos já nos chegam acompanhados de explicações. Em outras palavras: quase nada do que acontece está a serviço da narrativa, e quase tudo está a serviço da informação. Metade da arte narrativa está em evitar explicações. Nisso Leskov é magistral… O extraordinário e o miraculoso são narrados com a maior exatidão, mas o contexto psicológico da ação não é imposto ao leitor. Ele é livre para interpretar a história como quiser, e com isso o episódio narrado atinge uma amplitude que não existe na informação.”

Keller e Leskov têm algo em comum (além da publicação pela 34): ambos “aclimataram” tragédias shakespearianas (ou melhor dizendo, personagens e situações que se tornaram definitivos nas tragédias do bardo inglês) para a realidade cotidiana de seus países. Se Shakespeare inventou o humano, como quer Harold Bloom, vejamos o que faz a sua invenção solta pelo vasto mundo no século em que Balzac reinventou-o, ou pelo menos fez diminuir em muito seus horizontes, colocando a comédia do humano nos trilhos do capitalismo burguês (de onde até agora ele não conseguiu descarrilhar).

Romeu e Julieta na AldeiaGRD_22_lady macbeth

I

Publicada em 1856, com outras quatro (compondo o primeiro volume do ciclo A gente de Seldvila), a novela Romeu e Julieta na aldeia sustenta com vigor o peso da comparação com aquela que é a mais popular tragédia (mais até do que Hamlet, creio eu) de Shakespeare. Além do título, no primeiro parágrafo o narrador traz à baila a intertextualidade de forma explícita: “Narrar esta história seria uma imitação ociosa se ela não se baseasse num acontecimento verídico, demonstrando quão profundamente se enraíza na vida humana cada uma daquelas fábulas sobre as quais as grandes obras do passado estão construídas. O número de tais fábulas é limitado, mas elas sempre afloram em nova roupagem e, então, obrigam a mão a fixá-las”.[2]

O “gancho” sai, por conseguinte, tanto do “teatro” (na sua acepção mais nobre) — aliás, de uma espécie de mundo platônico-arquetípico das fábulas —quanto das corriqueiras páginas policiais (o mundo da informação): o suicídio de um jovem casal, cujo romance era contrariado pela inimizade entre suas famílias. E Keller dá efetivamente uma coloração à Balzac para a situação, desvelando certas leis sociais e psicológicas de seu país, através da criação da fictícia região de Seldvila. Fará bem àqueles que afirmam que nossa época é pior do que as anteriores, e que a criminalidade, a violência e o esgarçamento dos valores morais e familiares imperam de maneira nunca vista, ler a história de Sali e Vrenchen, para aclarar (e ter menos falseada) sua noção do passado.

O narrador já nos adverte quanto aos falsos bucolismos, ao começar o relato com um aparente quadro idílico, de trabalho sadio, de relações humanas cordiais e civilizadas, em meio a uma paisagem rural inspiradora: temos dois proprietários de terras, Manz (pai de Sali) e Marti (pai de Vrenchen) arando seus terrenos (há outro de permeio, em estado de abandono, por falta de herdeiros oficiais), fazendo uma pausa para usufruir do lanche trazido pelos filhos, ainda pequenos (estes, por sua vez, gostam de se embrenhar pelo terreno sem dono e ali brincar).

Num leilão pelo arremate daquele lote toda essa harmonia azeda: começa uma disputa infindável (com litígios mil que arruinarão a ambos) entre Manz e Marti, de tal forma que, quando os dois se encontram, chegam às vias de fato. Vem à tona o pior não só deles, como também da comunidade à volta (que acompanha com interesse de ave de rapina o saldo da quizila). Anos mais tarde, à família de Manz restará (após a perda de suas terras) a administração de uma taberna sórdida de Seldvila (que significa “vila dos bem-aventurados”!); e ao viúvo Marti sobrará uma parcela ínfima e descurada da sua propriedade (um incidente violento o levará à demência e à internação numa instituição para alienados, deixando a filha à própria sorte). Separados por alguns anos (já que um dos lados adversários fora viver no espaço urbano), quando Sali e Vrenchen se reencontram, percebem a paixão mútua. Uma relação sem futuro.

E se, na primeira parte, Keller mostrava a rigorosa engrenagem da ganância, do rancor e da depauperação, na segunda ele apresentará um dos retratos mais marcantes da mentalidade jovem (mesmo que atada a um destino fatalístico) já levados a cabo na ficção. A caracterização dos detalhes da intimidade entre os dois é maravilhosa. Tem o seu quê de irresponsabilidade, de imprevidência; o seu quê de romantismo invencível;[3] e também o seu quê de conformismo revoltante: o Romeu e a Julieta dos cantões suíços preferem a morte (após o idílio durante uma quermesse) do que se libertar dos laços que os prendem à sua comunidade, por medo de se tornarem “apátridas” ou “andarilhos” (o pior dos destinos, dentro da lógica daquele meio), pois é preciso ter uma “certidão de cidadania”, sem a qual não podem deitar raízes em nenhuma localidade.

Foi assim que a boa gente de Seldvila (incluindo Manz e Marti, em causa própria) manteve afastado e espoliou aquele cuja alcunha é “violinista escuro” (de provável etnia cigana), legítimo herdeiro (todos sabem) do pedacinho-de-chão-causa-da-discórdia entre as famílias, nunca fornecendo a ele esse documento que lhe permitiria reivindicar seus direitos.

É por isso que, apesar de Romeu e Julieta na aldeia nos fazer penetrar, de um modo lindo e comovente, no cerne e na plenitude da juventude do casal condenado, tragédia mesmo é a dos apátridas (como o violinista escuro), a manutenção tácita da exclusão, através de táticas burocráticas e mesquinhas. O desperdício das vidas de Sali e Vrenchen, afora a loucura dos pais, é a falta de coragem de romperem com tal estrutura, tornando-se párias conscientes: descendem na escala social, mas são sempre “da aldeia”, aceitando os valores da tribo.

A tradução de Marcus Vinicius Mazzari é exemplar, porém ele incorreu em grave erro ao inserir determinadas notas de rodapé onde “esclarece”, invasiva e inapropriadamente, elementos simbólicos e significados da história. Veja-se, por exemplo, a nota 6, na pág. 17, na qual acompanhamos brincadeiras e rituais infantis de Sali e Vrenchen: “A narração dessas brincadeiras infantis no campo central compreende detalhes (como o motivo da papoula vermelha sobre a cabeça da boneca) que apontam simbolicamente para desdobramentos posteriores da história”!!!???

Teria sido melhor deixar o leitor acompanhá-la com mais liberdade, sem a camisa-de-força acadêmica[4]. O que ele informa caberia melhor no seu (este sim, indispensável) posfácio. Nele encontramos a bela justificativa de Keller para seu projeto, reivindicando seu direito (e o de todo criador) “de em qualquer época, mesmo na era do fraque e das estradas de ferro, estabelecer um elo direto com o elemento da parábola, da fábula—um direito que, no meu modo de ver, não devemos permitir que nos seja subtraído por nenhuma transformação cultural”.

(uma versão da seção acima—dedicada ao texto de G. Keller—foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 10 de junho de 2014)

 

romeu e julieta

II

Em 1865, quem se valeu desse direito, estabelecendo seu elo direto com o elemento da parábola e da fábula na era do fraque e das estradas de ferro (que não eram novidade mesmo num império marcado pelo atraso com relação às demais potências da época) foi o ainda jovem Leskov (ainda assinando com pseudônimos seus trabalhos literários) com Lady Macbeth do Distrito de Mtzensk.

Também é visível a vinculação ao noticiário policial (e os detalhes violentos e sórdidos nada ficam a dever aos veiculados nos programas televisivos contemporâneos muito assistidos como “Cidade Alerta” ou “Brasil Urgente”— tidos, inclusive, como fortes formadores de opinião).  Igualmente no primeiro parágrafo o narrador explicita sua “aclimatação” (o detalhe curioso é que como que a divide com outros — pertencentes a uma casta mais letrada, bem entendido, para ter a referência no seu horizonte cultural): “De quando em quando aparecem em nossas paragens uns tipos que nos fazem sentir um tremor na alma sempre que nos lembramos deles, por mais que o tempo tenha passado desde o nosso último encontro. E um desses tipos é Catierina Lvovna Izmáiolova, mulher de um comerciante, outrora protagonista de um terrível drama, após o qual nossa nobreza, usando uma expressão bem apropriada, passou a chamá-la Lady Macbeth do distrito de Mtzensk”[5].

Catierina é uma personagem flaubertiana (explico-me adiante) que chega a extremos de tragédia, e malgrado a sonora e expressiva alcunha, inclusive por parte da parcela mais letrada da população do distrito, a analogia com Lady Macbeth não é estritamente exata: como todos sabem, a personagem da peça instiga, espicaça o marido a fim de que ele cometa os crimes necessários para chegar ao poder.Veja-se um exemplo, a seguinte fala da personagem de Shakespeare num colóquio exasperado entre o casal Macbeth:

LADY MACBETH: (…) Desde já me ponho

                                 A duvidar de teu amor. Tens medo

                                  De ser na ação e no valor o mesmo

                                  Que és no desejo? Queres ter aquilo

                                  Que estimas como o ornato da existência,

                                   E te mostras em tua mesma estima

                                   Um covarde, dizendo “Não me atrevo”

                                   Depois de “Quero”, como o pobre gato

                                   Do provérbio, que quer comer o peixe

                                   Mas sem sujar as patas?[6]

Moça pobre, de temperamento impetuoso, Catierina Lvovna conformou-se em casar com um comerciante bem mais velho (não havia outra possibilidade para o seu futuro), e vive por cinco anos na grande propriedade do sogro um cotidiano de isolamento e tédio (tal como Emma Bovary—e aqui Benjamin pode ser novamente evocado, padroeiro que é de todos os comentadores leskovianos: “O tédio é o pássaro de sonho que choca os ovos da experiência”), até que numa ausência prolongada do marido, ela se envolve com um dos empregados, o mulherengo sedutor Serguiêi, e o torna seu amante.

A paixão por Serguiêi desperta Catierina em todos os sentidos: “… deu plena expansão a seu gênio. Agora se mostrava uma mulher de pulso… enchia-se de altivez, determinando tudo pela casa afora, e sem deixar Serguiêi arredar pé de perto de si”. Para isso, ela tem de primeiramente liquidar o sogro, e o faz, envenenando-o. Mais tarde, eliminará o marido (uma cena impressionante e brutal), que volta de inopino.

Em tudo e por tudo, parece ser ela a ditar as regras, a derrubar os limites, como fosse uma ancestral da femme fatale do cinema noir. Não é bem assim: do mesmo modo como se larga à modorra do clima e à languidez[7], ao bochorno do seu idílio adúltero, ela deixa que o aparentemente bonachão (embora cúmplice dos seus crimes) Serguiêi a induza, é um processo totalmente inverso ao que observamos no casal Macbeth e muito mais afim aos processos psicológicos observáveis em Madame Bovary, em que a fantasia pessoal tem sua parte nas transgressões de Emma, mas pesa muito mais o cálculo dos seus amantes e “cúmplices”, que se valem dessa mesma fantasia para manipulá-la e usufruir do que tem a oferecer.

Serguiêi é que se revela o calculista-mor do enredo (sua amante sendo movida pela passionalidade). Isso fica claro quando, após o assassinato do marido (e o sumiço de seu corpo), aparece outro postulante à herança: “Boris Timofiêitch negociava com um dinheiro que não era todo seu… ele tinha em circulação mais dinheiro do seu sobrinho Fiódor Zakhárov Liámim, menor de idade, do que propriamente seu”.O menino vem visitar a “tia” e lemos o seguinte diálogo entre os amantes:

“__ Agora, Catierina Ilvovna, todo o nosso negócio vai virar pó.

__ Por que virar pó?

__ Porque agora tudo isso vai ser dividido. O que é vamos administrar, um negócio vazio?

__ Ora essa, Seriója, será que estás achando pouco?

__ Mas o problema não é comigo; eu só duvido que agora a gente vá ter aquela felicidade.

__ Como assim? Por que nós não vamos ter aquela felicidade, Seriója?

__ Porque, pelo amor que tenho pela senhora, Catierina Ilvovna, eu desejaria vê-la uma verdadeira dama e não vivendo do jeito que a senhora tem vivido até agora. Ao contrário, com a diminuição do capital nós ainda vamos acabar vivendo pior do que antes.

__ E por que eu iria precisar disso, Seriójotchka?

__ É verdade, Catierina Ilvovna, pode ser que a senhora não tenha nenhum interesse nisso, só que para mim, que a estimo — e mais uma vez contrariando o olhar das pessoas, que são infames e invejosas — isso será terrivelmente doloroso. A senhora faça como achar conveniente, é claro, mas eu tenho pra mim que essas circunstâncias nunca vão me fazer feliz.”

Por tais vias insidiosas, ele a instiga, espicaça a eliminar o pequeno Fiódor (numa outra cena extraordinária). Vai ser a desgraça do casal criminoso. Serão pegos em flagrante, julgados e condenados à Sibéria, aos trabalhos forçados, o que levará Lady Macbeth do distrito de Mtzensk a outro patamar, narrativo e psicológico. Poucas páginas finais são tão intensas e cruéis (e tão econômicas em seus efeitos): inverte-se a dinâmica do casal (ou melhor, ela se explicita tal como é, de fato) e vemos toda a impetuosidade e bovarismo de Catierina Lvovna (o Ilvovna que lhe dirige Serguiêi é marca do inculto, como nos esclarece o tradutor) degradar-se (em paralelo à sua degradação social) numa sofrida paixão de sujeição e humilhação. Haverá ainda um último ato em que ela reencontrará o seu “gênio” (lembram?, aquele que despertara graças à ligação com o empregado e a decisão de eliminar o sogro) e tomará mais uma atitude extrema e irresignada: um lado Medeia bem mais forte do que o lado Lady Macbeth inscrito nesse temperamento. Uma Medeia que teve de se confinar a um meio flaubertiano, onde o corriqueiro é atroz.

Assim, a tragédia elizabetana, a vida em ramerrão (seja nos moldes balzaquianos ou nos moldes flaubertianos) e a dimensão em que suas monstruosidades podem ser filtradas — como “exemplo”— num mundo pós-Revolução Industrial (a página policial, que galvaniza as atenções da sociedade, e que capitaneia a deterioração da narrativa no mundo da informação triufante) se unem em dois textos perfeitos que têm de constar em qualquer lista sensata das maiores obras de ficção do século XIX.

 

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NOTAS

[1] “São cada vez mais raras as pessoas que sabem narrar devidamente… É como se estivéssemos privados de uma faculdade que nos parecia segura e inalienável: a faculdade de intercambiar experiências” (utilizo a tradução de Sérgio Paulo Rouanet publicada pela Brasiliense, no volume 1 das Obras Escolhidas de Walter Benjamin, Magia e Técnica, Arte e Política, 1985).

É nesse texto que Benjamin faz o famoso uso dos arquétipos de narradores: o camponês sedentário e o marinheiro comerciante;

[2] Todas as citações de Keller se referem à versão de MarcusVinicius Mazzari (ed. 34, 2013; edição que inclui as ilustrações feitas por Karl Walser, irmão do genial Robert Walser, autor de Jacob von Gunten; há também um pequeno texto deste último, antes do posfácio do tradutor) para Romeo und Julia auf dem Dorfe.

Não foi a primeira vez que o texto foi traduzido: ele pode ser encontrada também em Três Novelas Alemãs, em versão de Otto Schneider & Germano Thomsen (Ediouro, 1988; antes, pela Boa Leitura, 1964).

[3] Como exemplo, este trecho:

“Foram até a porta da cozinha, que fixara aberta e dava diretamente  para o quintal, e tiveram de rir quando se olharam no rosto. Pois a face direita de Vrenchen e a esquerda de Sali, que durante o sono estiveram encostadas uma na outra, exibiam agora, por causa da pressão, um vermelho carregado, enquanto a palidez das outras faces se acentuava ainda mais com a aragem fria da madrugada. Esfregaram carinhosamente o lado frio e pálido de seus rostos para dar-lhes também a coloração vermelha. O frescor da manhã, a paz calma e orvalhada que se estendia por toda a região, o recente alvorecer, tudo isso os deixava felizes e esquecidos de si mesmos, e sobretudo Vrenchen parecia dominada por um espírito ameno de despreocupação

__ Amanhã à noite, portanto, eu preciso sair desta casa—disse ela—e procurar um outro teto. Antes disso, porém, gostaria de me divertir bastante com você, uma única vez, apenas uma vez; gostaria de dançar com você em algum lugar, apaixonada e intensamente, pois a dança com que sonhei se apossou de todo o meu ser!

__ De todo modo quero ficar ao seu lado e ver onde você vai se abrigar—falou Sali—; e também adoraria dançar com você, menina adorável, mas onde?

__ Amanhã haverá quermesse em dois lugarejos não muito distantes daqui—replicou Vrenchen.—Nesses lugares as pessoas nos conhecem pouco e mal irão reparar em nós…”

[4] Também causa espécie ele não fazer referência em nenhum momento (nem sequer na bibliografia) à tradução anterior.

[5] Uso em todas as citações de Leskov a tradução de Paulo Bezerra, publicada pela 34 em 2009.

Um Lady Macbeth do Distrito de Mzensk, vertido por Ana Weinberg e Ary de Andrade, consta da coleção Antologia do Conto Russo, Vol. III, da Editora Lux Ltda,1961).

O título original é Ledi Makbet Mtzenskogo uezda.

[6] Utilizo a tradução de Manuel Bandeira para Macbeth, ATO I, cena VII (ed. José Olympio, Coleção Rubáiyát, 1961)

[7] Atmosfera fixada com grande eficácia por Leskov:

“O luar penetrava pelas folhas e flores da macieira, desfazendo-se em réstias minúsculas, claras e as mais caprichosas, pelo rosto e por toda a figura de Catierina Lvovna, deitada de costas; o silêncio imperava no ar; só uma brisinha leve e morna mexia um pouquinho as folhas sonolentas e espalhava o perfume delicado das relvas e árvores floridas. Respirava-se algo languescente, que dispunha para a indolência, a volúpia, os desejos obscuros”.

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24/05/2014

Leituras em Espelho: “Viagens através do sonho e da imaginação” e “Perto das trevas”

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Em Viagens através do sonho e da imaginação [Färdas i drömmen och föreställningen,1984, na tradução de Ann B. Weismann e Annika Planck] & Perto das trevas (Darkness visible, 1990, na tradução de Aulyde Soares Rodrigues], dois importantes escritores, Artur Lindkvist e William Styron, apresentam testemunhos sobre experiências ao mesmo tempo clínicas e existenciais, que colocam em xeque nossas ligações mais profundas com a vida e a morte.

I

Em 1981, aos 75 anos, o sueco Lundkvist sofreu um infarto que o deixou dois meses em coma. Após se recuperar, ainda sofreu sequelas que o impediam de escrever e de rememorar parte de sua vida (“um alçapão em que caí”, afirma a certa altura). Quando retoma a escrita, refaz o percurso da sua “inconsciência”. Não descreve o “lado de lá”, mas faz algo como uma crônica do limbo, uma espécie de relato de uma viagem que parece tocar as bordas da vida após a morte, a mesma que tantos livros espíritas mal escritos (não obstante a beleza inegável da doutrina) e telenovelas como A viagem acabam por fazer parecer que todos nós participamos de uma vasta breguice cósmica.

Pássaros, trens, barcos, um mundo de metamorfoses e movimento povoa o quarto onde Lundkvist jaz imóvel. Sentimos que ele dá vida (e corpo) a muitas angústias e fantasias pessoais (às vezes, bem narcisistas), contudo o poeta tem esse privilégio de amplificar suas próprias projeções num tom universal. Nada, aqui, de Envolvido pela luz e outras bobagens editoriais. Estamos num território movediço, no plano existencial, mas firme, no que se refere ao literário.

Há belas imagens (que me trouxeram à mente a dicção de um Eugênio Andrade) a do silêncio que “parece ser como o vento que serenou” ou a comparação com Gulliver, viajando entre mundos desproporcionais. Ficamos com a sensação de que a morte é um esvaziamento o qual, paradoxalmente, nos transforma em coisa maleável (fugindo da prisão da “personalidade”, mas volta e meia redescobrindo suas grades onde menos se esperava) de um mundo (nossa “vida interior”?) que transborda e não para de recombinar-se.

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II

Num de seus grandes livros, A escolha de Sofia (1979), Styron escreveu: “Na minha carreira de escritor sempre me senti atraído por temas mórbidos—suicídio, estupro, assassinato, vida militar, casamento, escravidão”.

Ao descrever sua temporada no inferno da depressão suicida, ele afirma: “A depressão, quando me dominou, não era uma estranha, nem mesmo uma visitante inesperada. Há décadas ela batia à minha porta”.

O autor de Deitada na escuridão nos conta, de forma clara e terrível, como teve a súbita percepção de que estava deteriorando-se psiquicamente, ao receber um prêmio em Paris, e os sintomas (baixa autoestima, insônia, pavor); além de nos apresentar alguns “irmãos” depressivos (Camus, Jean Seberg, Romain Gary), ele é incisivo com relação à ineficiência e obtusidade dos métodos psicoterapêuticos, denunciando o perigo latente no uso indiscriminado de certos paliativos ansiolíticos (Halcion, Valium, Ativan), o que é muito oportuno num momento em que se discute intensamente o Prozac e suas contraindicações.

Sem retoques, Styron mostra como foi necessário para ele internar-se, encarando a depressão como doença a ser curada, apesar dos preconceitos e estigmas sociais. Mas o estrago para a sua obra já estava feito: já pouco prolífico, seu veio criativo foi minguando até quase  desaparecer completamente no ralo do pesadelo clínico.

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III

“Herói era o homem que podia ingressar no mundo dos mortos e voltar vivo”. Um compatriota de Styron, Ernest Becker, escreveu sobre a necessidade que temos do heroísmo (em qualquer acepção) como tapume contra o medo da morte.

Os esforços poético-confessionais de Lundkvist & Styron, o “viajante” e o “sobrevivente” que sobressaem em suas páginas, são a comprovação do que Becker afirma no seu fundamental A negação da morte [The denial of death, 1973]: “Tudo de doloroso e sensato que o gênio psicanalítico e o gênio religioso descobriram acerca do homem gira em torno do terror de admitir o que se está fazendo para conquistar a própria estima”. Uma luta que, ao ser contada, abala o leitor, decerto, mas também curiosamente alenta. Todos nós somos viajantes sempre a passos das trevas.

(a resenha acima foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 27 de setembro de 1994)

VER TAMBÉM NO BLOG:

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31/08/2013

TRÊS MINEIROS e a “sensibilidade nostálgica” (João Alphonsus, Godofredo Rangel, Cyro dos Anjos)

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I

A coleção “Melhores Contos” da editora Global vem possibilitando a redescoberta de alguns autores. É o caso de João Alphonsus (1901-1944), com quinze textos selecionado por seu sobrinho, Afonso Henriques Neto, no centenário de seu nascimento.

Amigo de Carlos Drummond de Andrade, com quem deu impulso ao modernismo mineiro, ao fundar “A Revista” em 1925, Alphonsus andava quase que totalmente esquecido. A leitura dos seus “Melhores Contos” revela, porém, um grandíssimo escritor.

Perturbador também, pois, ao retratar a vida besta que se tem de suportar, seja a das “cidadezinhas quaisquer” do interior de Minas, seja em Belo Horizonte, seja até no sul da Bahia (como em Pesca da Baleia), a angústia de ser uma “vidinha entre outras vidinhas” pode ser “solucionada”, por assim dizer, com suicídio (como no já referido Pesca da Baleia, Uma história de Judas ou em Foguetes ao longe), com assassinato coletivo (em O mensageiro) ou individual (em Oxianureto de Mercúrio), com perversidade maníaca (a mutilação ritual de um caracoleiro em Caracol) ou monstruosa (o que o dono faz com seu gato em Sardanapalo); ou ainda com aceitação resignada (como em O guarda-freios, Eis a noite e O imemorial apelo).

A visão do mundo de João Alphonsus é tão poderosa e o seu texto tão cativante que não incomodam nem mesmo certos cacoetes do Modernismo (perceptíveis particularmente em O homem na sombra ou a Sombra no homem, o conto mais irregular da coletânea), que poderiam deixar sua obra datada, interessante apenas sob o ponto de vista historiográfico.

E no caso específico da seleção de Afonso Henriques Neto, o leitor acompanha uma verdadeira evolução criadora. Os três contos selecionados de GALINHA CEGA (1931) já são muito bons. O conto-título, audacioso para a época, é a história de uma galinha que perde a visão (“era só ela, pobre, indefesa galinha, dentro do infinitamente preto, perdida dentro do inexistente, pois que o mundo desaparecera e só ela existia inexplicavelmente dentro da sombra do nada”), antecipando a emancipação literária dos bichos que Guimarães Rosa, Clarice Lispector e Lygia Fagundes Telles promoveriam na nossa ficção (esse aspecto aparece também no belo Mansinho, no amor de um padre de “região humilde e paupérrima” por seu burro).

Os cinco contos retirados de PESCA DA BALEIA (1941) são melhores ainda. Destaca-se, claro, o terrível Sardanapalo, que começa com um clima ameno, numa espécie de sátira aos pruridos parnasiano- simbolistas das primeiras décadas do século XX (“naquele tempo em que me tinha na conta de poeta e levava declaradamente uma vida de intelectual. Baudelaire e os gatos! Me convencera de que era espiritual ter um desses bichos no meu quarto de estudante…”); depois, ao assistir ao suplício a que o seu gato submete um rato, o narrador percebe que “a crueldade despertada em mim não estava satisfeita” e comete um dos atos mais horríveis já registrados pela literatura e que não se tem vontade de reler, embora não saia da cabeça por muito tempo. João Alphonsus consegue, aqui, um ponto-limite na apreensão da capacidade (quase diria a vocação) do ser humano para a crueldade, quando a ocasião se apresenta.

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Outro destaque é O guarda-freios, no qual o narrador, já resignado com a sorte que lhe coube, uma espécie de não-ser na vida (“agora quase que vivo de observações e recordações”), durante uma viagem fica fascinado com o “galã ferroviário e sertanejo”, o guarda-freios conquistador e galante, sabendo posteriormente da sua morte (“Facadas. Uma questão de rabo de saio. Não tive a mínima surpresa: um homem como aquele não podia viver muito.”). Há um travo de inveja indisfarçável (além do latente homoerotismo) nessa observação de um “condenado a viver”.

Se os contos de GALINHA CEGA são muito bons e os de PESCA DA BALEIA melhores, entre os sete impecáveis escolhidos de EIS A NOITE (1943) há pelo menos quatro obras-primas, e é difícil dizer qual a mais admirável.

Seria, por exemplo, Foguetes ao longe? Quando Maria aceita casar com Eduardo e viver numa cidadezinha das montanhas, ele avisa: “é preciso ter paciência no começo, naquela vidinha”, e ela replica: “Que vidinha, se a vida vai ser nossa! Mesmo se fosse para ficar lá a vida inteira”… Para depois sentir-se num “pesadelo de cárcere perto das nuvens” e praticamente forçar o marido ao suicídio quando o confronta com seu desespero.

Ou seria O mensageiro? Na monótona vida da pensão de dona Antônia, em Belo Horizonte, Felisberto tenta estancar “sua insatisfação de errático, na ânsia de remediar o que fosse remediável, naquelas existências reunidas em torno de dona Antônia, ânsia que já lhe acontecera em outras oportunidades e que acabava decaindo numa prostração desiludida, numa necessidade de mudar de ambiente, de espetáculo…” Tentando dar um final feliz a esse espetáculo de vidinhas, Felisberto opta pelo assassinato de todos na pensão, após um regabofe.

Ou seria Caracol? Péricles é preterido na escolha para chefe de seção e, ao fazer uma visita ao desconhecido nomeado em seu lugar, recebe dele uma muda de trepadeira, e esta como que invade a sua casa e coloca pelo avesso seus valores e expectativas de vida.

Ou seria então Ordem final? O solteirão e baixinho Joaquim, obcecado—de forma maníaca—a determinar como os homens baixinhos dominaram a história, recolhe a viúva de um amigo e seus diversos filhos, que se encontram na miséria, mas impõe um regime repressivo de silêncio e disciplina, numa “casa verdadeiramente isolada no meio da cidade”.

E embora o conto, como um todo, não seja tão brilhante quanto os quatro acima citados, como esquecer o início de A noite do Conselheiro, com sua descrição mortífera: “…os livros se enfileiravam sem perplexidade alguma… todos de semelhante aspecto e colocados em ordem de tamanho, com um certo cuidado para que não se lhes notasse a diferença da estatura, igualdade e fraternidade de numerosíssimas obras em que o espírito humano se tem debatido, contradito, construído, derruído, esperado, desesperado. Ali, no marasmo luxuoso…livros de todas as línguas e de todas as épocas se reuniam identicamente revestidos, como se o objetivo fosse mesmo igualar, fraternizar, nivelar e, por esse meio, neutralizar a todos eles, para se adquirir a tranquilidade… a certeza de que nunca desceriam das estantes para fazer mal ao pobre ente humano”.

Uma vez por mês, um criado “pulverizava longamente por cima dos volumes um líquido mata-traças especial, perfumado e penetrante, que talvez ao dono parecesse mais penetrante do que muitos dos espíritos ali encerrados”.

(a resenha acima foi publicada em A TRIBUNA de Santos, em 21 de outubro de 2001)

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II

Além de João Alphonsus, dois outros mineiros da primeira metade do século XX ressurgiram das sombras do olvido nestes últimos tempos: Godofredo Rangel & Cyro dos Anjos.

O primeiro romance de Rangel, Vida Ociosa (1920) foi relançado numa co-edição da Casa da Palavra com a Fundação Rui Barbosa, e na surpreendente loteria dos livros para o Vestibular foi incluído O amanuense Belmiro (1937). Se é correta a frase de Camus, “o romance é um exercício da inteligência nostálgica ou revoltada”, ambos se alinham no escaninho da “sensibilidade nostálgica”.

III

O narrador de VIDA OCIOSA é um juiz quarentão e solteirão que atua numa cidadezinha do interior de Minas, durante a Primeira Guerra, e que foge do tédio que sente pela sua profissão na expectativa (inexplicável, para o leitor moderno) de passar horas numa fazenda decadente (“é um cadáver de casa… com esse ar de morte e abandono”), com um casal velhíssimo e paupérrimo (Próspero e Marciana) e seu filho esquisito (Américo). Noventa por cento da narrativa é dedicada a mostrar essas horas ociosas, que servem de fuga da “atmosfera de petições e arrazoados” e que compensam uma vocação de escritor que parece não se realizar: “Tenho viajado muito; mas em tanto correr terras não colhi uma anedota, uma observação rara”.

Além disso, ele não parece gostar muito de si, considera seu passado “um mau romance truncado”, um “rol de misérias cujo cruciar, quando o evoco, lateja sempre atual. Não se que ímã me constitui o núcleo da alma, que só atrai,limalha imprestável, impressões sabendo a fel e pranto”.

Uma razão para o interesse que poderia suscitar Vida Ociosa em 2001, que não fosse ver nele um par brasileiro para as Confissões de Lúcio, é dada por Enéias Athanázio: “Lugares que os tempos de progresso desfiguraram irremediavelmente estão fixadas para sempre nos quadros coloridos que Rangel pintou com tanta sensibilidade”. Outra razão é o estilo impecável e “trabalhado” que lhe imputam.

Mas nenhuma dessas razões seduz o leitor. Vida Ociosa desperta bocejos e provoca enfado. Só uma certa tendência atual de redescobrir “mestres” esquecidos e algumas “obras-primas” obsoletas é que explica o seu dispensável resgate (que talvez sirva também para quem , como é o meu caso,  goste muito da obra de Autran Dourado, que tem em Rangel uma influência decisiva, e que queira saber em que bases se constitui essa ascendência sobre o grande autor de Ópera dos Mortos. Estamos, aqui, longe do vigor e força de João Alphonsus. A impressão que se tem é que o estilo de  Godofredo Rangel já era antigo quando ele escrevia. Nã é ruim, apenas anacrônico em demasia.

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IV

O AMANUENSE BELMIRO, por sua vez, resistiu bem ao tempo. Belmiro Borba é o pequeno burocrata em Belo Horizonte que começa a escrever um diário para tentar resgatar seu passado na cidadezinha de Vila Caraíbas: “Minha vida parou, e desde muito me volto para o passado, perseguindo imagens fugitivas de um tempo que se foi”.

Belmiro se sente o fruto decadente da sua gente. É como se houvesse um processo de desvirilização, muito presente em vários autores dessa época. “Sou um fruto chocho do ramo vigoroso dos Borbas, que teve seu brilho rural”.Até seus interesses românticos são vagos, indefinidos, despersonificando a suposta amada e lançando-a no território do mito irrealizável, como uma tal Carmélia, que ele conhece num bloco de Carnaval.

Até aí, o livro de Cyro dos Anjos não se distinguiria de diversos outros. O charme inusitado do romance é que, ao embarcar na aventura do registro diário, aos poucos o quotidiano presente vai se impondo a Belmiro e, apesar de tudo, ele “vive”, sua vida não parou de fato, embora seja aquela vida “besta” que domina a ficção e a poesia do modernismo mineiro.

A grande arte de O amanuense Belmiro é conseguir dar encanto a essa vida besta, através de um dos estilos mais saborosos da nossa ficção às vezes tão sensaborosa. Apesar do sentimento de vida estagnada (que persiste até o final), é um grande exercício de leveza e um registro brilhante da feição urbana bem provinciana do Brasil na década de 1930.

Acompanhamos a inadaptação à cidade das suas irmãs agregadas, Emília e Francisquinha, assim como os embates na roda de amigos, que aos poucos dissolve-se por diferenças políticas e intelectuais, além das picuinhas pessoais que antes eram suavizadas pelas rodadas de chope: “as discussões vêm azedando nossa pequena roda e vejo que ela não tardará a dissolver-se, pois há forças de repulsão, mais do que afinidades, entre estes inquietos companheiros”.

Destacam-se entre os “inquietos companheiros”: Redelvim, preso durante a repressão policial à Intentona Comunista de 1935 (episódio que ganha um inesperado espaço no relato); Jandira, que leva a frustrante existência da mulher intelectualizada, que não consegue se sentir à vontade nem com seus amigos porque há sempre a sombra do assédio (“Da roda, fui o único que não tentou conquistá-la. Já lhe disse que, infelizmente, nisto não andou virtude, e sim timidez. Dias houve em que ela me perturbava profundamente, e por pouco não lhe teria dito as palavras do desejo, que são as mesmas em todas as línguas e em todas as épocas”), ainda mais num meio tão reprimido e limitado; Silviano, o intelectual que despreza as massas e em cujo diário Belmiro lê um diagnóstico para seu problema vital: “O problema: –O eterno, o Fáustico—O amor (vida) estrangulado pelo conhecimento”; Glicério, companheiro de seção de Belmiro, que se interessa pela mesma moça e o espicaça com notícias dela (inclusive seu casamento marcado com outro).

V

Vida Ociosa & O amanuense Belmiro (assim como certos contos de João Alphonsus) ajudam a entender como o espectro da carreira burocrática perseguiu o intelectual brasileiro e é um dos ritos de passagem do rural para o urbano no processo histórico brasileiro. Como já dizia o poeta: “Tive ouro, tive gado, tive fazendas/ Hoje sou funcionário público”.

(a resenha acima foi publicada em A TRIBUNA de Santos, em 30 de outubro de 2001)

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03/08/2013

LEITURA EM ESPELHO: “O enigmista”, de Ian Rankin, e “Prelúdio para a morte”, de Val McDermid

20 de fevereiro de 2010- INTRODUÇÃO GERAL

Ian Rankin (nascido em 1960) e Val McDermid (nascida em 1955) são, ambos, autores escoceses especializados em romances policiais densos e climáticosm e os quais, salvo engano, começaram suas carreiras no mesmo ano (1987).

Nesta última semana, li de Rankin The falls (2000), que no Brasil ganhou o belo título O ENIGMISTA, e de McDermid The grave tattoo (2006), o qual foi rebatizado como PRELÚDIO PARA A MORTE (parece apelativo, contudo tem a sua razão de ser, como veremos). Dois livros que concentram o charme e a atração da ficção policial. E ambos têm um pé na erudição, ainda que de maneira leve e hábil, apoveitando fatos (que se tornaram meio lendários) do passado das regiões onde transcorrem: em Rankin, a descoberta de pequenos caixões em Arthur´s Seat, em 1800 e tantos, que poderiam estar associados aos chamados “ressuscitadores”, ladrões de corpos (tais como aqueles da história de Stevenson, o maior dos autores escoceses); em McDermid, a descoberta de um corpo preservado na turfa,  no Lake District inglês, o qual  poderia ser o do líder do motim do Bounty, aquele mesmo que originou pelo menos três superproduções (a mais famosa, a dos anos 30 com Clark Gable e Charles Laughton; depois, uma versão sofrível, com Marlon Brando no auge do seu desinteresse, nos anos 60; e enfim, uma versão mais realista, e mais chata, com Mel Gibson e Anthony Hopkins), e que agora ganha uma explicação que dá relevo à questão homossexual, ao desejo do capitão do navio, Bligh,  pelo amotinado Fletcher Christian; tal descoberta tem a ver com os indícios que começam a aparecer de que, voltando clandestinamente dos Mares do Sul (onde supostamente fora morto por uma revolta dos nativos), Christian contara suas vicissitudes ao poeta-mor do romantismo inglês (e ser quase que unanimamente considerado assim é um feito e tanto, se pensarmos em Byron, Keats, Blake e sobretudo em Coleridge e Shelley), William Wordsworth, que teria escrito um poema épico sobre a questão, desaparecido desde então.

Anotações sobre O ENIGMISTA

“Talvez Stevenson tivesse razão.

     Sobre o quê?

     Ele chamava Edimburgo de cidade abissal. Talvez a vertigem esteja na natureza deste lugar”.

Para quem gosta dos seriados policiais ingleses (é o meu caso), muitos deles centrados em equipes de investigadores, como “Dalziel & Pascoe”, “Silent Witness” (com a grande Amanda Burton), as legendárias temporadas de “Prime Suspect” (um dos maiores momentos de Helen Mirren), o apaixonante  “Wire in the blood” (que foi criado a partir de livros de Val McDermid, responsável portanto por Tony Hill, um dos meus personagens favoritos da cena atual, tanto convivendo– nas primeiras três temporadas–na cidade imaginária de Bradfield, com Carol Jordan, e nas temporadas subseqüentes com  Alex Fielding,  uma guinada que foi meio traumática para os aficionados da série, mas que se revelou bem-sucedida, graças à intérprete: Hermione Norris era ótima como Jordan, porém  Simone Lahbib não ficou atrás como Fielding, e o que dizer do excepcional e carismático Robson Green como Hill?, que merecia ser tão famoso quanto o House de Hugh Laurie,  não esquecendo do delicioso Kevin Geoffries, papel de Mark Letheren?; pelo que soube, a série foi cancelada em 2009, o que é uma lástima), o livro de Rankin é uma pedida perfeita de leitura.

O ENIGMISTA pertence a uma série (até agora são 17 romances) que tem como protagonista o detetive John Rebus e cuja ação transcorre em Edimburgo, um dos fascínios da minha adolescência. Curiosamente, foi por causa de Edimburgo que li o insípido O clube filosófico dominical, de Alexander McCall Smith, quando na mesma coleção da Companhia das Letras havia um autor muito mais interessante.

Como é a Edimburgo de Rankin, tal como aparece em O ENIGMISTA?

“Que cidade bonita, declarou. Rebus tentou concordar, mas quas enão conseguia ver a cidade agora. Para ele, Edimburgo se tornara um estado de espírito, um malabarismo de intenções criminosas e instintos maléficos. Gostava de seu tamanho, de sua forma compacta. Gostava dos bares. Mas havia muito tempo sua paisagem externa não mais o impressionava (…) Eu nunca me canso desta paisagem, ela disse, começando a andar em direção ao carro. Rebus aquiesceu novamente, sem muita convicção. Para ele, nem era uma paisagem. Era uma cena de crime esperando para ser ativada”.

 “A sensação era de claustrofobia, mesmo ao ar livre (…) Em tardes como aquela, Edimburgo parecia uma prisão, uma cidade entre muralhas.”

“Os escoceses eram recordistas em ataques cardíacos e problemas dentários, resultado da dieta nacional: gorduras saturadas, sal e açúcar. Já tinha refletido sobre o que fazia o povo escocês gostar de comidas congeladas, chocolate, batatas fritas e bebidas espumantes: seria o clima? Ou a resposta estaria em algum lugar mais profundo, na natureza do país?”

“Ficou pensando se alguém da década de 1770 que fosse transportado para o presente acharia essa parte da cidade muito diferente. As luzes, os carros, poderiam chocá-lo, mas não a atmosfera do lugar”.

“A impressão que se tinha era de que Edimburgo sempre fora assolada pela crueldade, seus séculos de barbarismo mascarados por um exterior que se alternava entre o sereno e o inabalável”

“A terça-feira tinha se tornando uma outra segunda-feira: uma noite morta na cidade”.

Essa “metafísica” de Edimburgo (e da Escócia, por extensão), que determina o pessimismo e a desilusão de John Rebus, contrasta nitidamente com as ocorrências policiais na plácida cidade:

“A cidade andava tranqüila. Algumas brigas domésticas, uma ou duas batidas em busca de drogas” ou ainda “Algumas agressões à faca no fim-de-semana, um espancamento, três brigas domésticas e um incêndio premeditado. Tudo isso estava mantendo seus colegas ocupados”.

A polícia de Edimburgo se desdobra em torno de um caso “quente”: o desaparecimento de Flip Balfour, filha de um banqueiro, que depois aparecerá morta num local chamado Hellbank. Rebus faz parte da equipe de investigação. A sua parte da trama é que justifica o título original do romance, The falls (título que será aproveitado de forma supimpa na economia da trama, pois envolverá até Camus, que dá nome a ruas de Edimburgo e cujo A peste é, em inglês, The fall): no lugarejo chamado Falls, em cujos arredores a família Balfour tem uma grande propriedade, aparece um pequeno ataúde simbólico, tal como os encontrados no século XIX em Arthur´s Seat.  Rebus desconfia de que há uma ligação entre o achado e uma série de mortes que pareciam acidentais, e também desaparecimentos, que remontam a quase 30 anos antes, desde 1972. Sempre uma morte ou desaparecimento (em lugares diferentes) seguidas pela descoberta de um caixãozinho. Ninguém dá muito crédito a essa linha de investigação, e ele teum uma trabalheira danada em reunir os artefatos e as pistas (incluindo as autópsias) dos casos anteriores, além de mergulhar na história de um antigo e sinistro anatomista da “old” Edimburgo, o dr. Kenneth Lovell, cuja descendente , Claire Benzie (estudante de medicina, especializando-se em patologia forense), torna-se uma das suspeitas do assassinato de Flip Balfour; poe causa dessa linha de investigação, ele entra em contato com o patologista aposentado Donald Devlin e com a curadora de museu Jean Burchill, a primeira a se aperceber da relação entre os caixões e os prováveis crimes, e com quem Rebus se envolve romanticamente, se é possível dizer isso de um personagem tão negativo.

Por outro lado, o título brasileiro acaba privilegiando o outro pólo da trama: outra investigadora, mais jovem do que Rebus, Siobhan Clarke, e dividida entre a admiração pelo colega e o arrivismo (há a chance de promoção na carreira se aceitar ser a porta-voz da polícia nas relações com a imprensa), descobre e-mails estranhos no laptop de Flip, enviados pelo “Enigmista”, que indicariam um jogo, com etapas vencidas a partir da decifração de charadas: Flip teria alcançado a etapa “Hellbank” e estava pronta para a etapa “Constrição” (palavra cujo significado tem muito a ver com a Edimburgo das citações mais acima: restrição, limitação, estreitamento). Siobhan se torna uma jogadora, mesmo o Enigmista sabendo que é uma policial, e começa a se  absorver obsessivamente no jogo, decifrando enigmas cujo substrato tem muito a ver com a topografia escocesa.

Não importa muito que o desvendamento da identidade do(s) assassino(s) vá pelo óbvio (eu diria que pelo lógico).  O ENIGMISTA é um livro de atmosfera, de clima. E exige do leitor concentração e disposição, pois como os seriados de que eu tanto gosto, é meio lento. Mas é um ritmo lento que encanta e absorve, que nunca aborrece. Tanto que o li em meio a uma onda intensa de calor, e em pleno carnaval, e me transportei para a Edimburgo rankiniana (ou rebusiana) sem maiores problemas, a não ser implicando com a nova linha de capas (feia, muito aquém da anterior) que a Companhia das Letras imprimiu à sua já tradicional (e cara) série policial.  A meu ver, o romance tem a dose certa de ação (no sentido de perseguição e correrias), de densidade e de informação e erudição. Nada falta, nada sobra. E para terminar essa primeira aproximação com o universo de Ranking-Rebus duas passagens de que gosto muito no livro (por falar nisso, gostei muito dos personagens secundários, todos interessantes, especialmente as femininas, e gostei muito de Siobhan Clarke). Na primeira, o barman de um pub conta que “quando o hospital se mudara para Petty Fance, eles tinham perdido metade dos clientes. Não médicos e enfermeiras, mas os pacientes. Pijamas e chinelos, sem brincadeira: eles vinham direto do hospital para cá. Num dos caras tinha até tubos pendurados nos braços”. A segunda tem a ver com Camus, cujo A peste/The fall está associado a uma banda, The Fall, e os dois, somados, a Falls, a cidade na qual o caixão simbólico de Flip Balfour é encontrado. Rebus agradece a Siobhan o termo “existencialismo”, que ele não conhecia até então e diz a ela:

“Então talvez entenda o que estou dizendo.

     (…) Na verdade, não faço a mínima idéia do que você está dizendo.

     Ótimo, isso quer dizer que está aprendendo.

    Aprendendo o quê?

   A marca do existencialismo patenteada por John Rebus”.

Posters of Val McDermid, Ben Okri and Ian Rankin

ANOTAÇÕES DO DIA 02.03.2010- sobre PRELÚDIO PARA A MORTE

“Edith, Tillie e Eddie estavam todos na casa dos oitenta. Pessoas idosas realmente morriam e às vezes jogavam a toalha quando as dores, as mágoas e as fragilidades se tornavam demais para elas”. Não, leitor, não são as dores, as mágoas e as fragilidades que dão cabo dos idosos citados (e há mais uma vítima), em  Prelúdio para a morte. É um assassino frio e cruel, que está atrás de um manuscrito que poderia conter um épico perdido do genial poeta romântico William Wordsworth, no qual se contaria a verdadeira história do célebre motim do Bounty, no século XVIII.

Como já coloquei na minha introdução (ver abaixo), Val McDermid já entraria para a história por ser a criadora de Tony Hill (embora ela não seja responsável pela hipnotizante atuação de Robson Green, o personagem já é maravilhoso); eu sempre admiro, também, a capacidade dela em colocar situações muito contemporâneas nas suas investigações: a desmoralização dos espaços urbanos, o afrouxamento dos vínculos familiares, a distância desalentadora das gerações, a indiferença dos jovens por tudo, e a violência como um expediente contra o vazio, tudo isso em meio a aterradoras histórias de perversidade e rituais psicopatas.

Não foi muito diferente em PRELÚDIO PARA A MORTE. Um dos fios da trama é um achado: é a amiga adolescente da personagem principal, Tenille, que vive num condomínio meio favelão (assim como a própria Jane, especialista em Wordsworth), com a tia, uma tipa que sempre arranja um certo tipo de namorado… O último se aboleta na casa e visivelmente quer tirar uma casquinha de Tenille. Ela, pressentindo o abuso, comenta com Jane, que  toma a seguinte atitude: todos comentam no condomínio que Tenille é filha do maior criminoso da área, ainda que ele nunca tenha assumido a paternidade. Jane o procura, expõe a situação, e quando ela parte para a região dos Lagos para investigar se existe ou não o manuscrito de Wordsworth, Tenille encontra o namorado do tio assassinado no seu apartamento. Ela toca na arma, deixa suas digitais, e dando-se conta disso, toca fogo no apartamento. Depois, esconde-se no apartamento de Jane, só que fica sabendo que a polícia está atrás dela, tomando-a como autora delinquente do assassinato e do incêndio, e, então, disfarçada de menino, vai para a região dos Lagos também, conseguindo que Jane lhe dê guarida. Acontece que ela, entediada com a reclusão, e achando que os velhinhos que podem estar com o manuscrito, estão embromando a “ingênua” Jane (Tenille não acredita que as pessoas digam, por princípio, a verdade), ela rouba a lista com os nomes e endereços dos descendentes da criada de Wordsworth, Dorcas Mason, e começa a vasculhar as casas à noite. É numa dessas incursões que ela dá de cara com o assassino (mas não o vê muito claramente), e é numa outra que acaba sendo detida pela polícia local, complicando seriamente Jane, suspeita de ser autora dos crimes e mentora das invasões…

E essa é apenas uma das muitas linhas que McDermid cria, acompanhando o ponto-de-vista de vários personagens: a própria Jane, é claro; seu irmão, Matthew, que guarda um profundo ressentimento com relação a ela e que resolve investigar também a questão do manuscrito, uma vez que havia pedido aos seus alunos (ele é professor e diretor da escola pública local) que fizessem árvores genealógicas de suas famílias, muitas delas antigas no lugar, e dois deles haviam se mostrado descendentes diretos de Dorcas; a antropóloga forense, River Wilde, que está estudando o corpo encontrado preservado no pântano, que além de ajudar Jane, ainda tem um romance com o chefe da polícia local, o cara que mais suspeita da especialista em Wordsworth (é a dra. Wilde quem fará as autópsias que comprovarão não serem “naturais” as mortes dos quatro velhinhos). o ex-namorado de Jane, o ambicioso Jake, que virou amante de uma importante negociante de arte antiga e manuscritos, a qual, ao saber da pesquisa de Jane, manda Jake se reaproximar da antiga namorada, para se adiantar a ela (ele chega a invadir os e-mails dela) e chegar antes ao manuscrito (além dele, a negociante ainda enviou o assassino, que não sabemos quem é, e que tenta atropelar Jane, e depois dá uma paulada na cabeça dela à beira de uma cachoeira, jogando-a na cascata)…

Tudo muito bem tramado e executado, o livro segue o esquema “caça ao tesouro” com rara destreza. Só achei, no cômputo geral, que a dra. Wilde foi sub-aproveitada na trama, McDermid nunca consegue avançar muito nessa parte da narrativa, ainda que ela dê o toque final do romance. O mais interessante é que a parte policial, de mistério mesmo, aquela do quem matou fulano, beltrano e sicrano, só começa depois de duzentas e tantas páginas, há uma cuidadosa (e lenta) preparação para depois tudo se acelerar e ganhar um ritmo galopante.

Além de cada capítulo trabalhar essas linhas diversas, sempre há um trecho introdutório que é um suposto manuscrito do século XIX, ou da mulher de Wordworsth, ou do próprio poeta, com as anotações das experiências no Bounty e depois dele de Fletcher Christian, material para o épico perdido (“estou ávido para compreender tais acontecimentos e traduzi-los em versos”).

“Gostaria de sentir o que Fletcher Christian sentira ao rever aquela paisagem depois de ter regressado dos Mares do Sul. Acaso seu espírito se enchera de júbilo e alívio ao ver-se rodeado por aquelas montanhas conhecidas, suas cores tênues, as mesmas que haviam composto a palheta da sua juventude? Ou teria ansiado pelos exuberantes trópicos com suas cores improváveis? Teriam o frio e a umidade feito os seus ossos sentirem saudade da quentura do sol meredional? Teriam as mulheres lhe parecido pálidadas e desinteressantes após a beldade exótica que lhe dera um filho? Teria tido a sensação de que voltara para casa ou aquela lhe parecera apenas uma espécie de prisão diferente da Ilha de Pitcairn?”

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19/07/2013

Teoria e Prática do “ROMANTISMO DA DESILUSÃO’: Lukács e Jacobsen

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O ÉPICO LÍRICO

I

“Sentia-se tão só. Não tinha nenhum parente, nenhum amigo que estivesse perto do seu coração… não pode haver maior abandono que o de quem em todo o imenso mundo não tem um lugarzinho para abençoar, para querer bem, para o qual possa voltar o coração pesado, do qual possa lembrar quando a saudade quiser estender as asas. Mas que brilhem sobre a sua cabeças as claras  e fixas estrelas de um ideal, e a noite não será mais um deserto, e sua solidão não será total. Para Niels Lyhne não havia estrelas. Não sabia o que fazer consigo mesmo ou com suas aptidões. Não tinha dúvidas sobre o seu talento, apenas não podia utilizá-lo, e portanto vagueava à toa, sentia-se como um pintor que tivesse perdido as mãos. Como invejava aqueles que, grandes ou pequenos, por onde quer que abordassem a existência sempre encontravam o que agarrar, pois ele agarrava sempre o vácuo…Às vezes tinha a impressão de haver nascido meio século atrasado, e outras vezes de ter chegado muito cedo.

A passagem acima pode dar ao leitor uma idéia do clima que perpassa Niels Lyhne, célebre romance de Jens Peter Jacobsen (1847-1885), só agora traduzido no Brasil, por Pedro Octávio Carneiro da Cunha. No momento citado, Niels perdeu a mãe (insatisfeita com o prosaísmo da existência, ela transmitiu esse desassossego ao filho) e o melhor amigo, Erik. Pior ainda: mantivera um caso com Fennimore, a esposa de Erik, a qual passou a odiá-lo (uma reação meio teatralesca, é verdade), devido ao sentimento de culpa por trair o marido com o amigo dileto. Era a segunda decepção amorosa de Niels: antes amara uma mulher mais velha, Tema Boye, coma qual também houvera uma cena de rompimento altamente teatralizada (hoje, chamaríamos de “fake”) por parte da personagem feminina.

E o pior ainda está por vir: Niels volta ao seu cantão natal, casa-se e tem um filho, mas tanto este quanto Gerda, a esposa, morrem. É quando o ateísmo de Niels precisa tornar-se “heróico”: pode-se suportar a vida, só deixando-a “seguir as próprias leis” ou deve-se capitular diante da “necessidade ancestral” de um Deus?

II

Publicado em 1880, Niels Lyhne influenciou muita gente. É o caso de Thomas Mann, que, ao comentar sua formação como escritor, sempre destacou a leitura dos prosadores escandinavos: Jacobsen, Hermann Bang, Jonas Lie, Kielland.

É indisfarçável a presença de Jacobsen no primeiro Mann: o sentimento de estar à parte da vida que domina, por exemplo, Tônio Kröger (sem contar a atmosfera estilística da história). Todavia, mesmo o Mann mais tardio apresenta rastros do autor de Niels Lyhne. Hans Castorp, de A Montanha Mágica, endossaria certamente a seguinte frase: “Aprender é tão belo quanto viver”. E a agonia do filho de Niels repercute na do pequeno Nepomuk de Doutor Fausto: “… aquelas mãozinhas cerradas e brancas de unhas azuladas, aqueles olhos meio esbugalhados, aquela boca deformada, os dentes rangendo, com um som de ferro e pedra.”

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III

É difícil ler Niels Lyhne sem ser pela ótica do grande pensador húngaro Georg Lukács (1885-1971), que, em seu clássico e extraordinário ensaio Teoria do Romance (também só agora lançado numa versão brasileira, tendo circulado por décadas na personalíssima tradução portuguesa de Alfredo Margarido), apresenta um capítulo chamado Romantismo da Desilusão que parece ser a descrição mais pertinente da visão de mundo que domina o romance do autor dinamarquês, embora a obra-padrão e ao mesmo tempo ápice dessa tendência seja A Educação Sentimental, de Flaubert.

Lendo inúmeras passagens de Lukács parece que ele está falando diretamente da psicologia de Lyhne: “… inadequação que nasce do fato de a alma ser mais ampla e mais vasta que os destinos que a vida é capaz de oferecer” / “…a perda do simbolismo épico, a dissolução da forma numa sucessão nebulosa e não-configurada de estados de ânimo e reflexões sobre estados de ânimo, a substituição da fábula configurada sensivelmente, pela análise psicologia” (embora eu creia que se vá um tanto além da psicologia no caso da introspecção de Niels) / “…Resta um belo mas esbatido amálgama de volúpia de amargura, de mágoa e escárnio, mas não uma unidade; imagens e aspectos, mas não uma totalidade de vida…” etc, etc.

A certa altura, Lukács afirma ter Jacobsen exprimido o romantismo da desilusão “em maravilhosas imagens líricas”. Não se deve inferir disso que o romance seja escrito numa mera “prosa poética”. Quando Lukács diz “maravilhosas imagens líricas” quer apontar para o seu poderoso e quase visionário estilo, que o torna um legítimo precursor de autores como Robert Musil e Clarice Lispector, exploradores da mesma senda: a reeducação do leitor para além da narração de um enredo, rumo a territórios desconhecidos ou insuspeitos da linguagem, situados além da poesia lírica propriamente dita e da prosa épico-narrativa. Quem já leu O Jovem Törless (na realidade, As Perplexidades do Aluno Törless, como seria melhor traduzido), de Musil, ou um texto como O Lustre, de Clarice Lispector, percebe bem que os três protagonistas (Niels, Törless, Virgínia) são possuidores de um mesmo atributo inquietante, “um sentido a mais do que as outras pessoas, só que ainda incompleto” (Musil; e o Niels de Jacobsen não acha que nasceu meio século atrasado ou chegou cedo demais?).

Portanto, a leitura conjunta de Niels Lyhne e A Teoria do Romance permite compreender melhor um momento de impasse para o romance enquanto gênero. A memorável frase de abertura da Teoria do Romance, “Afortunados os tempos para os quais o céu estrelado é o mapa dos caminhos transitáveis e a serem transitados, e cujos rumos a luz das estrelas ilumina”, transforma-se, para Niels (em cujo céu não havia estrelas), na igualmente bela frase do parágrafo final de outra obra do “romantismo da desilusão”, Recordações do Escrivão Isaías Caminha, do grande Lima Barreto:  “… olhei ainda o céu muito negro, muito estrelado, esquecido de que a nossa humanidade já não sabe ler nos astros os destinos, os acontecimentos.”

(a resenha acima foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos,  em 7 de agosto de 2001)  

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QUANDO NÃO SE PODE MAIS LER AS ESTRELAS

Na seção anterior, comentei a aguardada tradução do clássico Niels Lyhne (1880), do dinamarquês Jens Peter Jacobsen, no qual se narra como o personagem-título vai ficando isolado (as pessoas queridas morrem ou se afastam dele), a partir de uma inadaptação precoce à vida prosaica.

Aproveitei a oportunidade para festejar outra tardia versão brasileira: a da Teoria do Romance (1920), seminal ensaio sobre os gêneros literários. Nele, há um capítulo, “Romantismo da Desilusão”, no qual Niels Lyhne é expressamente mencionado. Faltou dar ao leitor uma idéia mais geral do livro de Georg Lukács.

Seguindo a trilha de Hegel, do romance como “epopéia burguesa”, herdeiro da épica antiga, Lukács procura caracterizar a civilização grega que deu origem às epopéias homéricas como uma “cultura fechada”, orgânica e homogênea. O herói da epopéia representava a comunidade e sua ação era sempre necessária e possível, pois não há separação entre interioridade e mundo exterior, entre necessidades internas e externas. Para citar apenas uma das inesquecíveis imagens criadas por Lukács com o intuito de caracterizar esse estágio civilizatório onde o mundo fazia sentido: “toda ação é somente um traje bem talhado da alma”.

A possibilidade e a necessidade de ação do herói no romance tornam-se “problemáticas”. Aliás, a própria psicologia do herói, o centro que move a trama romanesca, é problemática, pois ocorre a cisão entre sua interioridade e o mundo circundante, que já não faz mais sentido, transformou-se no mundo das convenções burguesas, inautêntico, “demoníaco”. Daí o hiato entre a interioridade do herói e a aventura, pois a alma se sente inadaptada e cindida: “Descobrimos em nós a única substância verdadeira: eis porque tivemos de cavar abismos intransponíveis entre conhecer e fazer, entre alma e estrutura, entre eu e mundo, e permitir que, na outra margem do abismo, toda a substancialidade se dissipasse em reflexão; eis porque nossa essência teve de converter-se, para nós, em postulado e cavar um abismo tanto mais profundo e ameaçador entre nós e nós mesmos.”[1]

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No início, a alma é menos vasta que o mundo à sua volta, caindo no “idealismo abstrato” (que começa com Cervantes e seu Quixote e culmina com Balzac e os heróis da Comédia Humana). No auge do século XIX, a alma inadaptada se sentirá mais vasta que os destinos que a vida tem para lhe oferecer. Temos, então, o “romantismo da desilusão”, muito bem representado por Niels Lyhne. Para Lukács existem imperativos épicos no romance e justamente a problemática do “romantismo da desilusão” ameaça a estabilidade da representação da realidade (mimesis): a forma tende a se dissolver, da narração passa-se para a descrição lírica de “estados de espírito” e a fábula se metamorfoseia em análise psicológica.

Um dos aspectos mais interessantes do “romantismo da desilusão” é o fato de o herói geralmente ser intelectualizado, ou, mais freqüentemente, um indivíduo com aspirações artísticas, ao contrário dos guerreiros, cavaleiros e aventureiros da epopéia e até mesmo dos primeiro romances. O “retrato do artista” é sintomático numa era onde se abriu o já citado hiato entre interioridade e aventura; se esta é possível, apenas na imaginação e no sonho, a realidade não é mais capaz de suprir os requisitos para vivenciá-la.

Fazer da existência uma “obra de arte” ou dedicar-se a um destino como artista são as soluções possíveis, porque, como sintetizou muito bem Milan Kundera, no seu A Arte do Romance, “…o horizonte se estreita a tal ponto que parece uma clausura. As aventuras estão do outro lado e a nostalgia é insuportável. No tédio do cotidiano, os sonhos e devaneios adquirem importância. O infinito perdido do mundo exterior é substituído pelo infinito da alma. A grande ilusão da unicidade insubstituível do indivíduo, uma das mais belas ilusões européias, desabrocha.”

É o processo da existência de Bartolina, a mãe de Niels, que adora poesia e não encontra respaldo para ela no cotidiano. No seu estilo lapidar, Jacobsen a caracteriza com precisão: “No fundo, não havia mais do que o desejo um tanto doentio de tomar consciência de si, a ambição de encontrar a si mesma, que tantas vezes se agita numa jovem de inteligência acima do comum”. Quando, anos mais tarde, o filho a leva para sonhadas viagens, Bartolina se decepciona: “Em sonhos e histórias imaginava as paisagens como na margem oposta de um lago, a névoa da distância envolvia sugestivamente os detalhes da realidade, grandes traços reduziam as formas a uma unidade ideal e o silêncio da distância ampliava o efeito do conjunto, tornavam tão fácil surpreender a beleza… Agora que ela estava no centro do quadro, e cada linha se acentuava diante dela, e produzia os múltiplos acentos da realidade, agora que a beleza se dividia como a luz através de um prisma, agora ela não conseguia fundir as suas impressões, não conseguiu transpô-las para o outro lado do lago… se sentia pobre no meio de todas essas riquezas de que não conseguia dispor.”

A fome de beleza de Bartolina contamina Niels: já que a vida não é “poética”, ele sente que só como poeta pode vivê-la e justificá-la. Esse “heroísmo” que restou na burguesia, e que –onde o ensaio de Lukács pára— domina certo tempo a ficção até que cheguem os tempos de Kafka, “…o sonho sobre o infinito da alma perde sua magia no momento em que a História, ou o que dela restou, força supra-humana de uma sociedade onipotente, se apossa do homem…O infinito da alma, se existe, tornou-se um apêndice quase inútil…” (Kundera)

O tédio do cotidiano já não transforma, então, ninguém em poeta. No máximo, num inseto. E Niels Lyhne passa a se chamar Gregor Samsa.

(a resenha acima foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos,  em 14 de agosto de 2001)


[1]Henry James, no seu ensaio sobre Flaubert, de 1902, já intuiu isso perfeitamente ao comentar a tragédia de Emma Bovary: “As aventuras insignificantes de Emma Bovary são uma tragédia exatamente porque, em um mundo sem suspeitas, sem assistência e sem consolo, ela mesma tem que extrair o rico e o raro.”  

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26/04/2013

Leituras em espelho: A CASA DAS BELAS ADORMECIDAS e MEMÓRIAS DE MINHAS PUTAS TRISTES

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VER TAMBÉM NO BLOG:

https://armonte.wordpress.com/2012/03/15/entre-a-implicancia-e-a-admiracao-a-necessidade-da-releitura/

https://armonte.wordpress.com/2012/03/15/uma-boa-hora-na-obra-de-garcia-marquez/

I

O declínio como perversão: “A casa das belas adormecidas”, de Kawabata

Ao escrever Memórias de minhas putas tristes, Gabriel García Márquez abertamente utilizou uma situação erótica (cliente idoso que aproveita um serviço de prostituição no qual meninas ficam adormecidas a noite inteira) já explorada em um dos mais famosos romances de Yasunari Kawabata, A casa das belas adormecidas, traduzido há pouco tempo no  Brasil. Para não haver dúvida sobre sua dívida com o autor japonês, García Márquez colocou como epígrafe o início do livro.

Aos 67 anos, Eguchi descobre os prazeres da casa do título e nós o veremos em cinco noites (a última, com duas garotas, uma das quais aparentemente morre em pleno serviço, por assim dizer). Opostamente a Memórias de minhas putas tristes, a perversidade da situação inicial nunca é abrandada, nunca se cai no sentimentalismo ou no barateamento, por mais que às vezes o velho Eguchi se enterneça consigo mesmo.

Perversidade é o que não falta no universo de Kawabata, que, entretanto, pelo menos nos textos que o responsável por esta coluna conhece (infelizmente, apenas cinco), sempre a usa lucidamente, como Henry James ou Nabokov, de forma que mesmo aqueles que, como o velho Eguchi apresentam uma sensibilidade requintada e compassiva. nunca deixam de ser desmascarados em sua monstruosidade. Por isso mesmo, A casa das belas adormecidas merece ser descrito como um “belíssimo relato, tal como o fez Mario Vargas Llosa no recente A verdade das mentiras, onde sintetiza muito bem o fascínio ambíguo e mórbido do texto: “O erotismo é fantasia e teatro, sublimação do instinto sexual numa festa cujos protagonistas são os obscuros fantasmas do desejo que a imaginação anima e que anseia encarnar, detrás de um prazer escorregadio, fogo fátuo que parece próximo e é, quase sempre, inalcançável. Trata-se de um jogo altamente civilizado, ao que somente acedem culturas antigas que alcançaram elevado nível de desenvolvimento e já mostram sintomas de decadência”.

A casa das belas adormecidas é também um ponto-limite a que chega Don Juan, o arquétipo do conquistador (ou predador sexual, como diríamos hoje). O ideal don-juanesco é a variedade, e as meninas adormecidas, tão diferentes entre si, fornecem munição para ele. Entretanto, a condição em que elas permanecem consolida ironicamente a derrota de Eguchi: ninguém é seduzido, nada é de fato conquistado, não há nem poderia haver posse verdadeira, não há consciência nem reconhecimento, só há o poder e o abuso (e as possibilidades que abrem para a crueldade e a degradação ficam evidentes ao longo da narrativa).

Restará apenas a memória, outro festa do fugidio. E, como todo Don Juan/Narciso, Eguchi encontrará, já prenunciado pelo cheiro de leite de bebê que invade suas noites, pela obsessão com o seio feminino, pelo jogo de contraste entre branco e vermelho, o fantasma primordial: a mãe (quem explorou isso aqui no Brasil, infelizmente com um resultado tosco, foi Autran Dourado em Confissões de Narciso).

Ao pensar que uma das meninas pode ser “a última mulher da sua vida”, Eguchi matuta: “Então, quem foi a minha primeira mulher?… Foi minha mãe. Não podia ser nenhuma outra. Era uma resposta realmente inesperada.”

Não tão inesperada, é a associação imediata da lembrança da mãe com a sua morte (descrita cruamente). No “frio desgosto da velhice, nenhuma fantasia erótica, nenhuma depravação, consegue nos desembaraçar do confronto com a mortalidade. Por isso, como aconselha a misteriosa mulher que faz as transações com Eguchi, nessa obra-prima da literatura que é A casa das belas adormecidas, o melhor é tomar o sonífero que fica ao lado do leito, fechar os olhos e mergulhar no clima de sono e suspensão de qualquer realidade ultrajante.

(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos,  em 24 de setembro de 2005)

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II

A má hora de García Márquez

Confesso que nunca gostei muito de Gabriel García Márquez e já detestei Do amor e outros demônios. Não esperava, contudo, que Memória de minhas putas tristes (“Memoria de mis putas tristes”, tradução de Eric Nepomuceno) fosse tão chatinho e que nele sobressaíssem as piores características do estilo do autor colombiano: a renitente cafonice das imagens e analogias e a insuportável maneira de caracterizar as personagens. Por exemplo, a mãe do nonagenário narrador, “a mulher mais formosa e de melhor talento que jamais houve na cidade”. A noiva frustrada: “Tinha uns olhos de gata fujona, um corpo tão provocador com roupa ou sem, e uma cabeleira frondosa de ouro alvoroçado e cuja emanação de mulher me fazia chorar de raiva no travesseiro”. A empregada, jorgeamadianamente, tem “coxas suculentas”. A puta (nada triste) que o desvirginou: “ se chamava Castorina e era a rainha da casa… me apresentou ao seu mundo de maldição e pecado”.

Apesar de sua tendência monocórdica, cada vez mais acentuada, García Márquez tem a chamada “carpintaria”. É o elogio que se pode fazer quando um escritor é ruim ou comercial, mas funciona de alguma forma e não se tem nada melhor para dizer dele. É por isso que Memória de minhas putas tristes passa uma falsa impressão de texto perfeitinho e límpido, de “mestre”, quando na verdade é um produto kitsch, no qual se tem de agüentar trechos como aquele dos conselhos da ex-puta (nada triste) Casilda Armenta, para o nonagenário apaixonado pela menina virgem (será?) de 14 anos: “Vá correndo procurar essa pobre criatura mesmo que seja verdade o que dizem os seus ciúmes, não importa, o que você viveu ninguém rouba…Acorde a menina, fode ela até pelas orelhas com essa pica de burro com que o diabo premiou você pela sua covardia e mesquinhez. De verdade, terminou ela com a alma: não vá morrer sem experimentar a maravilha de trepar com amor.”

A suposta virgem adolescente não tem voz na narrativa. O que importa é a fantasia pessoal do narrador, o vento de Eros que sopra na sua velhice murcha e apagada, um vento que pode também ser presságio da morte. Isso fica claro no seguinte trecho: “na penumbra do quarto imaginando Delgadina em sua vida irreal de acordar os irmãos, vesti-los para a escola, servir o café da manhã, se houvesse o que pôr na mesa, e atravessar a cidade de bicicleta para cumprir a pena de pregar botões” (pois a menina é uma operária). Poderia ser um remexer emocionante da solidão e das suas emoções, mesmo descontada a repelente situação inicial, poderia ser um grande exercício de “embriaguez metódica”, como no fundo é toda descrição de paixão. Infelizmente, todo o pathos da narrativa é absorvido pelo clima de bolero, como confessa o narrador, melômano e crítico de música clássica: “Havia mudado o velho rádio por um de ondas curtas que mantinha sintonizado num programa de música culta, para que Delgadina aprendesse a dormir com os quartetos de Mozart, mas uma noite encontrei-o numa estação especializada em boleros da moda. Era o gosto dela, sem dúvida, e o assumi sem dor, pois em meus melhores dias eu também havia cultivado os boleros com o coração. Antes de voltar para casa no dia seguinte, escrevi no espelho com o baton: Minha menina, estamos sozinhos no mundo.” García Márquez nos faz ficar com raiva de palavras como Amor, Coração, Alma, Ardor e afins. Nonagenário por nonagenário, é preferível a aridez implacável do narrador de Malone morre, obra-prima de Samuel Beckett.

(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA, de Santos, em 10 de setembro de 2005)

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21/02/2013

Leituras em espelho: Dois Jonas e suas formidáveis baleias: Vargas Llosa e OS MISERÁVEIS, Paulo Rónai e A COMÉDIA HUMANA

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I

“O cristianismo conduz a poesia à verdade. Como ele, a musa moderna verá as coisas  com um olhar mais elevado e mais amplo. Sentirá que tudo na criação não é humanamente ´belo´, que o feio existe ao lado do belo, o disforme perto do gracioso, o grotesco no reverso do sublime, o mal com o bem, a sombra com a luz. Perguntar-se-á se a razão estreita e relativa do artista deve ter ganho de causa sobre a razão infinita, absoluta, do criador; se cabe ao homem retificar Deus; se uma natureza mutilada será mais bela; se a arte possui o direito de desdobrar, por assim dizer, o homem, a vida, a criação; se cada coisa andará melhor, quando lhe for tirado o músculo e a mola; se, enfim, o meio de ser harmonioso é ser incompleto. É então que, com olhar fixo nos acontecimentos ao mesmo tempo risíveis e formidáveis, e sob a influência deste espírito de melancolia cristã e de crítica filosófica que notávamos há pouco, a poesia dará um grande passo, um passo decisivo, um passo que, semelhante ao abalo de um terremoto, mudará toda a face do mundo intelectual. Ela se porá a fazer como a natureza, a misturar nas suas criações, sem entretanto confundi-las, a sombra com a luz, o grotesco com o sublime, em outros termos, o corpo com a alma, o animal com o espírito, pois o ponto de partida da religião é sempre o ponto de partida da poesia. Tudo é perfeitamente coeso (…) E aqui, permitam-nos insistir, pois acabamos de indicar o traço característico, a diferença fundamental que separa, em nossa opinião, a arte moderna da arte antiga, a forma atual da forma extinta, ou, para nos servirmos de palavras mais vagas, porém, mais acreditadas, a literatura romântica da literatura clássica (…)como meio de contraste, o grotesco é, segundo nossa opinião, a mais rica fonte que a natureza pode abrir à arte. Rubens assim o compreendia, sem dúvida, quando se comprazia em misturar com o desenrolar de pompas reais, com coroações, com brilhantes cerimônias, alguma hedionda figura de anão da corte. Esta beleza universal que a Antiguidade derramava solenemente sobre tudo não deixava de ser monótona; a mesma impressão, sempre repetida, pode fatigar com o tempo. O sublime sobre o sublime dificilmente produz um contraste, e tem-se necessidade de descansar de tudo, até do belo…”

        (Victor Hugo, Prefácio de Cromwell)

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Eu não sei quantas pessoas ainda têm coragem ou disposição de encarar o tempo exigido pela leitura de Os Miseráveis (1862), embora seja uma experiência altamente gratificante. O certo é que seu enredo folhetinesco e mirabolante continua exercendo apelo enorme sobre o público, como se pode constatar pelas periódicas e já incontáveis transposições para outros veículos. O mais eloquente símbolo do seu sucesso é a permanência em cartaz do musical que originou o filme de Tom Hooper (aquele mesmo do medíocre O Discurso do Rei), com Hugh Jackman e o grande Russell Crowe nos papéis centrais, Jean Valjean e Javert (contudo, a figura mais badalada da produção é Anne Hathaway, no papel da desventurada Fantine).

Fascinado pela obra-prima de Victor Hugo, e pelo próprio universo “titânico” do gênio literário francês, Mario Vargas Llosa mergulhou por dois anos em Os Miseráveis e na sua fortuna crítica[1].

O resultado foi um curso em Oxford, em 2004, e um ensaio, A Tentação do Impossível (La tentación de lo imposible), publicado no mesmo ano, muito superior às mais recentes produções romanescas do peruano (Travessuras da Menina Má; O Sonho do Celta), o qual sempre foi excelente crítico literário: A Orgia Perpétua e A Verdade das Mentiras estão entre os títulos vargasllosianos obrigatórios[2].

Ele toma como mote um trecho de Alphonse de Lamartine (1790-1869), em que este condena seu contemporâneo porque “A mais homicida e mais terrível das paixões que se pode infundir às massas é a paixão do impossível”. Pois Hugo, desdenhando das leis humanas, da justiça dos homens, desmistificava em seu portentoso livro todo o sistema judiciário, quase que antecipando Kafka, quando este —em O Processo— decreta que “A mentira se converte em ordem universal”:

“A acusação de Lamartine a Victor Hugo lembra uma afirmação que encontrei num livro de Eric Hobsbawm [Rebeldes primitivos], segundo a qual o que os príncipes alemães mais temiam em seus súditos era o entusiasmo, porque este, a seu ver, era semente de agitação, uma fonte de desordem. Lamartine e os príncipes alemães tinham razão, é claro. Se o objetivo proposto é manter a vida social dentro dos cânones escritos, imersa numa ordem imutável como a astral ou a do trajeto dos trens, o entusiasmo e a alucinação ou miragem transitórios que uma ficção bem-sucedida produz é um inimigo potencial, um imprevisto que pode desorganizar a vida, espalhando a dúvida e a discórdia e estimulando o espírito crítico, dissolvente, capaz de provocar múltiplas fraturas na arquitetura social.”

Kafka é um autor moderno. Llosa nos mostra quão antiquado (uma das razões do seu encanto perene, diga-se de passagem) é Os Miseráveis como romance, uma vez que o narrador (“o divino estenógrafo”)  ali usurpa o papel de Deus, interferindo na ação, fazendo comentários, digressões autobiográficas, explicando para o leitor nos menores detalhes suas intenções e as dos personagens, ou seja, uma Voz asfixiante e autoritária. Não fosse Hugo um misto de escritor, ideólogo, presença carismática e profeta, uma daquelas figuras oitocentistas “maiores que a vida”, como Tolstói e Walt Whitman.

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Essa desmesura do narrador/autor se reflete nos seus protagonistas, “monstros pontilhosos[3], todos levando ao extremo (não à toa o autor de O Corcunda de Notre-Dame propôs o Sublime e o Grotesco como movimentos pendulares da criação artística) suas características. O exemplo mais acabado é o policial Javert, encarnação inumana do apego ao dever, perseguindo por décadas um prisioneiro evadido que roubara um pedaço de pão! O próprio herói, Jean Valjean, chega às raias do sobre-humano, com suas ações de auto-sacrifício (além da sua força física descomunal), que sempre desbaratam a estabilidade que por vezes consegue na sua longa trajetória de perseguido.

Sim, eles nos parecem monstruosos e não raro foram acusados de inverossímeis por críticos que não perceberam que esses exageros descabelados de Os Miseráveis (que o tornam o maior dos romances românticos, a meu ver) apontam para uma dimensão alegórica. Ainda que com ambientação histórica definida (com alguns anos-chaves:  1817 e 1832), estamos diante de uma alegoria sobre a luta do Bem e o Mal, sobre o Progresso e a presença de Deus nos caminhos tortos da humanidade; e mais ainda, esses exageros apontam para uma ambição inerente ao gênero, de ser “total”, de apresentar uma realidade ficcional autônoma, uma realidade paralela. “Romance: mundo imerso no mundo”, dizia Osman Lins (eu gosto muito de citar essa frase), e Os Miseráveis é um dos exemplos consumados dessa vocação, a qual efetivamente foi pedra-de-toque do próprio Llosa, ao criar seus monumentais Conversa na Catedral e A Guerra do Fim do Mundo  (este último, inclusive, nascido a partir da leitura de um livro  marcadamente ciclópico, à Victor Hugo: Os Sertões). Ele sempre deixou claro sua dívida com relação aos romances “totalizantes” (como Moby Dick ou Guerra e Paz).

Hugo chegou a afirmar que seu romance era “uma espécie de ensaio sobre o infinito”; já Vargas Llosa o chama de “maravilhosa irrealização da realidade”, que no entanto parece mais real que a vida.

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Por isso, não deixa de ser adequado, digam o que quiserem os críticos do resultado fianl, que uma obra com essas características tenha sua melhor tradução atual na altissonância e na teatralidade mais assumida dos recitativos de um musical (o que estou colocando como princípio que não verificarei: não suporto musicais, com as exceções de praxe, e para mim as piores horas ligadas ao cinema de que me lembro são as que perdi com os horrorosos Mary Poppins e My fair lady):

“Uma idêntica teatralidade transforma a batalha de Waterloo de Os Miseráveis num espetáculo sublime em que os vencedores e vencidos interpretam soberbamente os papéis atribuídos a eles por um Ser Supremo a quem o Imperador dos Frances começava a estorvar (…) Deus decidira o resultado do combate de antemão. Pois bem, se o fim da batalha já está escrito antes do conflito e das cargas e assaltos, do tiroteio ensurdecedor e do chiado dos sabres, o que resta a esses combatentes incapazes de mudar o rumo daquela partida de xadrez com movimentos inflexivelmente programados da qual são peões obedientes? Restam o gesto, a destreza formal, a retórica, a elegância e a beleza com que interpretam seus papéis, enriquecendo-o com petulâncias românticas como Ney ao pedir em altos brados que todos os projéteis da artilharia inglesa fossem se alojar no seu ventre ou o enfeando como o general Blücher ao ordenar a matança dos prisioneiros. Na maravilhosa irrealização da realidade, ou ficcionalização da história, que é o capítulo sobre Waterloo… o divino estenógrafo pode afirmar por isso, com toda legitimidade, que o verdadeiro vencedor de Waterloo foi Cambronne.

   Na realidade fictícia, as revoluções não são uma imperfeita, caótica, convulsa, ambígua criação coletiva de consequências imprevisíveis, mas um fenômeno inelutável e impessoal que vai além do social, tanto quanto um terremoto ou um ciclone (…) Para entender o que é uma revolução, segundo o narrador de Os Miseráveis, é preciso trocar-lhe o nome—e nesse mundo de identidades volúveis, trocar de nome significa trocar de papel ou função—e chamá-la de Progresso. E para se entender o que significa essa palavra também é preciso trocar seu nome por Amanhã, ou seja, o futuro…. Há um Destino, traçado desde que os seres humanos existem, que dotou a sociedade de um dinamismo que, ainda que tenha que passar por provas agônicas, sistematicamente a impulsiona rumo a formas superiores de vida material, cultural e moral…”

Afinal, já disse outro autor oceânico que somos feitos da matéria de que são feitos os sonhos.

(a resenha acima, sem as notas de rodapé, foi publicada originalmente em A TRIBUNA de santos, em12 de fevereiro de 2013)

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II

“Não transforma a sociedade o homem, segundo os meios em que se desenvolve sua ação, em outros tantos indivíduos diferentes, à semelhança das variedades em zoologia? As diferenças entre um soldado, um operário, um administrador, um advogado, um desocupado, um sábio, um homem de Estado, um comerciante, um marujo, um poeta, um mendigo, um padre, são, conquanto mais difíceis de apreender,  tão consideráveis como as que há entre o lobo, o leão, o asno, o corvo, o tubarão, o lobo-marinho, a ovelha etc. Existiram, pois, e existirão sempre, espécies sociais como há espécies zoológicas. Se Buffon fez um trabalho magnífico  tentando apresentar num livro o conjunto da zoologia, não seria desejável uma obra desse gênero com relação à sociedade? Mas a natureza estabeleceu para as variedades animais limites dentro dos quais a sociedade não podia permanecer. Quando Buffon descrevia o leão, em poucas palavras nos apresentava a leoa, ao passo que na sociedade a mulher nem sempre se limita a ser a fêmea do macho. Pode haver, num casal, dois seres perfeitamente dessemelhantes. A mulher de um negociante é, muitas vezes, digna de ser a de um príncipe, e muitas vezes a de um príncipe não vale a de um artista. O estado social tem acasos que a natureza não se permite, porque ele é a natureza mais a sociedade. A descrição dessas espécies sociais era, pois, pelo menos o dobro das espécies animais, não se considerando senão os dois sexos. Enfim, entre os animais há poucos dramas, entre eles não se gera a confusão, eles se atiram uns sobre os outros, e eis tudo. Os homens, é verdade, também se atiram uns sobre os outros, mas o grau de inteligência que os diferencia torna a luta muito mais complicada.  Se alguns sábios não admitem que a animalidade se transvaza na humanidade por uma imensa corrente de vida, pode entretanto o merceeiro tornar-se par-de-França e o nobre descer por vezes ao mais baixo nível social (…) Assim, pois, a obra a empreender devia ter uma tríplice forma: os homens, as mulheres e as coisas, isto é, as pessoas e a representação material que elas dão de seu pensamento; em resumo, o homem e a vida (…) Como, porém, tornar interessante o drama de três ou quatro mil personagens que a sociedade apresenta? Como agradar, ao mesmo tempo, ao poeta, ao filósofo e às massas que querem a poesia e a filosofia sob imagens empolgantes?”

                  (Honoré de Balzac, Préfácio à Comédia Humana)

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A 4ª. edição de Balzac e A Comédia Humana[4], de Paulo Rónai (1907-1992) reaparece na esteira do relançamento dos 17 volumes de traduções da obra balzaquiana que ele coordenou nos anos 1940-50. Há todo um charme recôndito no pequeno volume, onde o húngaro, que viveu no Brasil boa parte da sua existência, destila sua íntima convivência com os textos do autor de A Comédia Humana e nos faz relevar os aspectos datados, até mesmo superados, das suas análises, principalmente as literárias[5], pois se o texto de Rónai é um manancial de informações valiosas e de conhecimento de primeira mão,por vezes soa esquemático demais, meio professoral e “quadradinho” (por exemplo, nele se fala em  “qualidades típicas do espírito francês”, em “ilustre gentil-homem”—e ele não está falando de um personagem de Balzac, não, mas de um estudioso de sua obra!; há também afirmações genéricas do tipo: “A Comédia Humana presta-se a todas as interpretações”).

Como atualmente há uma falta constrangedora de textos que tenham clareza didática e que ajudem o leitor comum a atravessar certas obras-selvas, é provável que esse defeito evidenciado pelo transcorrer do tempo venha a ser tomado como uma qualidade (também não se pode esquecer que os textos surgiram tendo como base conferências nas quais Rónai se esforçava em aproximar a obra balzaquiana do leitor brasileiro da época).

A primeira seção, O mundo de Balzac enfatiza a vitalidade e permanência da Comédia naqueles meados do século XX, em pleno pós-Segunda Guerra; e enfatiza também o que Rónai toma (a meu ver, discutivelmente) como o maior achado do autor francês: “Foi ele quem primeiro teve a ideia genial de basear a literatura de ficção em estudos e pesquisas, aplicando à sociedade de seu próprio tempo o método de documentação com que Walter Scott, em seus romances históricos, transfigurava o passado”.

Mais aceitável é essa outra consideração: “A volta sistemática das mesmas personagens dentro de diversos romances era, em verdade, invenção originalíssima e de grande alcance”, mas a sequência é duvidosa já é duvidosa: Balzac pretendeu “eliminar a maior imperfeição inerente ao gênero, qual seja, a incapacidade de dar uma ilusão completa da realidade” Que Balzac achasse que havia essa “imperfeição inerente ao gênero”, tudo bem. Seu crítico nunca poderia encampar essa visão basicamente distorcida do alcance de um romance (e quem leu a parte dedicada ao estudo que Vargas Llosa fez de Os Miseráveis compreenderá minhas reservas com relação a afirmações desse tipo).

Como profundo conhecedor até da genética textual balzaquiana, o organizador da Comédia Humana brasileira permite que acompanhemos a reescritura atordoante que foi necessária para a unificação da obra, após a decisão do seu criador de ligar entre si os relatos mais diversos (Rónai também discute a falta de “uma ordem cronológica de leitura”, “o que se poderia julgar uma fraqueza de sua obra”, no sentido da comodidade dos leitores!!??; felizmente, reconhece que Balzac não levou a cabo tal ordenação intencionalmente, e que essa “lacuna” obedece a um critério artístico superior do que a mera “comodidade dos leitores”): “no vasto edifício de A Comédia Humana quase tudo tem significação, até as irregularidades, as assimetrias, as aparentes inconsequências, todas elas subordinadas ao fim principal, que consiste em dar uma imagem tão completa e fiel quanto possível da complexa realidade moderna.” Só gostaria que o tom não fosse quase de justificação.

O mais da seção se preocupa em elencar alguns “enigmas” na arquitetura da vasta construção e mencionar alguns de seus investigadores, que mais do que balzaquianos parecem sair do mundo do Flaubert de Bouvard e Pécuchet [embora algumas vezes eu mesmo me sinta saído desse mundo].

Não se pode esquecer que Rónai também analisa um romance não tão conhecido como Ilusões Perdidas, Eugénie Grandet ou Pai Goriot, e que faz parte do primeiro volume: Memórias de duas jovens esposas, para exemplificar o método de trabalho balzaquiano, aquele vezo obsessivo de estar sempre anunciando projetos em sua Correspondência, e as suas sucessivas transformações. É a parte mais interessante de O mundo de Balzac.

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Gosto muito da segunda seção, O Pai Goriot dentro da literatura universal, talvez pelo tanto que goste do romance, mesmo que ele comece com um clichê de doer (por ser clichê e pelo preconceito social): “A costureirinha que, mal lidas vinte páginas, depõe bocejando A Educação Sentimental verte abundantes lágrimas no fim de um romance de Delly, velozmente devorado”.

Mas o fato é que ele expõe de forma cabal a importância estratégica da história de Rastignac para se compreender as leis psicológicas e sociais que regem o mundo da Comédia. É seu livro-síntese, sua chave.

E, ademais, ele explora a questão do leitmotiv “matar o mandarim”, fazendo uma genealogia das obras que trataram o assunto, de uma forma erudita, porém nada preciosista ou acadêmica, uma aula modelar de historicismo literário, que roça a literatura comparada de uma forma muito saborosa. A meu ver, é o ponto alto de Balzac e A Comédia Humana.

Apesar de achar um pouco ultrapassada e rígida as distinções entre “romances” e “contos longos” de A Comédia Humana, o interesse maior de Balzac contista, a terceira seção, está na útil distinção—que só um especialista na obra completa poderia fazer—entre as duas classificações que se pode fazer desses textos mais curtos, os independentes e os “explicativos” (“isto é, que esclarecem outras obras ou por estas se esclarecem”). E nos dá a pista desses últimos, num belo roteiro para quem quer se aventurar pela leitura do conjunto, pois são os textos mais difíceis de avaliar. E é bom lembrar que o primeiro volume se inicia com dois desses “contos”, e aliás admiráveis: Ao Chat-qui-pelote & O baile de Sceaux (concordo com Rónai, principalmente com relação ao segundo, que os finais dessa linha de textos insertos na Comédia são meio abruptos e apressados).

Acho que essa seção é uma grande contribuição ao conhecimento didático, por assim dizer, da obra de Balzac, independentemente da discussão de gêneros literários.

Não gosto do tom justificativo que retorna em O estilo de Balzac, a quarta seção: será que um gênio desses precisa de escusas? Pois é, dizia-se (e Proust o afirmou muitas vezes) que Balzac escrevia mal. E daí? Isso não significa mais nada. Na verdade, Rónai chegará à conclusão óbvia: “O nosso autor, como os grandes escritores antigos, exige o sacrifício de certos hábitos de leitura, compensando-a com um rico, intenso conteúdo humano, sempre atual”.

Gosto é das amostras do Balzac anterior às obras da Comédia, que perpetrou trechos como este:”A condessa acorreu com a velocidade de um milhafre”. E como amostra de que a prosa de ficção é muito mais do que um estilo totalmente trabalhado, ele nos dá trechos hilários que persistem em textos do grande ciclo, como Modesta Mignon, onde uma moça está “com o nariz aberto ao perfume da flor azul do ideal”.

E gosto é da técnica utilizada por Rónai de mostrar como Balzac operava (por acréscimos), através de preciosas análises de trechos (que considero outro ponto alto do livro). Ele também acaba nos mostrando que o autor de La rabouilleuse é, como Victor Hugo, um praticante do narrador asfixiante: “Desde o início, ele faz sentir que já sabe toda a história e está apenas procurando a melhor maneira para comunicá-la ao leitor”. Como exemplo, justamente um trecho daquele romance, traduzido por aqui como Um conchego de solteirão:

“Jean-Jacques Rouget, a quem o pai acabara controlando com severidade ao reconhecer-lhe a estupidez, ficou solteiro por graves razões, cuja explicação constitui parte importante desta história. Seu celibato foi em parte causado por culpa do doutor, como se verá mais tarde. Agora é necessário examinar os efeitos da vingança exercida pelo pai na pessoa de uma filha que não considerava sua e que, no entanto, podem acreditá-lo, lhe pertencia legitimamente.”

   Outro ponto importante levantado por Rónai nessa seção é a terminologia inovadora utilizada por Balzac, e tomada de empréstimo ás ciências naturais, muito em voga àquela altura, o que sublinha—até estilisticamente—o lado enciclopédico que o romance assumiria como uma de suas vocações naturais. Mas para o seu estudioso há o reverso: “O estilo de Balzac falando em seu próprio nome é justamente aquele em que se censura o maior número de falhas: a heterogeneidade, as pretensões a cientista e historiador, a banalidade ou a incongruências das imagens, a exuberância, às vezes caótica”. Será que podemos, hoje, subscrever uma passagem dessas (que, diga-se de passagem, reverbera em outras, do tipo: “Muito provavelmente o melhor estilo é aquele que não se percebe”)?

De qualquer forma, no final toda esse pró-e-contra se mostra estéril e irrisório justamente porque Rónai dá um golpe baixo: transcreve uma imensa passagem (que ocupa quase três páginas) de O Primo Pons, que liquida a discussão, de tão bela e expressiva que é.

edição anterior de bcm

Quanto à quinta seção, Paris, personagem de Balzac, é prejudicada por um certo tom moralista convencional (“A Paris de Balzac, para dizer a verdade, pouco tem de idílico. O seu brilho lembra o da chama que atrai os insetos noturnos para queimá-los. Se os insetes pudessem refletir! Se olhassem um instante sequer para o chão, cheio de asas queimadas, de corpos carbonizados de seus semelhantes! Eles, porém, só sabem olhar para a luz, só têm uma vontade, chegarem-se a ela o mais possível, aquecerem-se a ela”, dá para acreditar que na seção anterior ele analisou com precisão as pérolas de breguice do estilo do autor francês?) que impregna o levantamento (numérico, inclusive) da presença da metrópole na Comédia. Mesmo assim, ocorre um fenômeno bacana sobre o qual seria um pecado passar em branco: de repente, Rónai se investe de um espírito de prosador à Balzac, veja-se:

“Se Londres a igualava no número dos habitantes e a superava como empório comercial, ficava-lhe atrás no colorido, nas atrações, no movimento de estrangeiros. Roma, centro perene do catolicismo, ainda não era capital da Itália e, na atmosfera de suas ruas, ao cheiro do incenso misturava-se o mofo das glórias passadas. Madri definhava uma lenta decadência, Berlim era apenas o centro de um pequeno estado prussiano, a capital dos czares ficava longe, atrás do nevoeiro, no meio do deserto. Viena, sim, que reluzia, abrilhantada pela auréola de uma esplêndida corte, ostentando uma beleza alegre e harmoniosa; mas dava a impressão artística de uma joia sem comunicar o espanto de uma metrópole gigantesca…”

pele de onagro

Além da história paradigmática de Rastignac, há outra fábula exemplar da trituração de ideais e pessoas executada em (e por) Paris: a do primo Pons e de seu amigo Schmucke, humilhados e espoliados, e que são o epítome do seguinte axioma: “Frequentemente escolhe uma das figuras mais inexpressivas, mais anódinas, que parecem levar a vida mais monótona, que são a negação de todo o romanesco, uma personagem totalmente desinteressante—como se tivesse apostado demonstrar-nos a existência de paixões e dramas sob qualquer disfarce”

   Até essa altura temos cinco seções sólidas e, no mínimo, úteis, com pequenos senões ou detalhes que nos soam hoje datados. Há um epílogo bonito, também, com forte sabor de reminiscência da infância e da juventude, À maneira de epílogo: adeus a Balzac, em que ele historia suas relações pessoais com o fenomenal criador da Comédia Humana de uma maneira que parece desapaixonada, mas só na superfície, pois é de tanto que ama Balzac e sua obra e de tanto que a conhece que ficou esse ar de coisa já tão despojada e simples que nem parece ser resultado de anos de leituras, pesquisas, estudos e reflexões. Parece uma coisa dada (inteligentemente, a nova edição complementou-a e lhe deu uma nova profundidade com a inclusão do texto sobre a história da edição brasileira da Comédia Humana).

Todavia, é meio indefensável a sexta parte, O Brasil na obra e na vida de Balzac, a não ser como curiosidade. Novamente, registre-se o assombroso conhecimento de firulas e detalhes do conjunto de 89 romances e contos, mas é muito tiro para caçar moscas e formigas, para nos dar as parcas referências ao nosso país, e um único personagem. Lendo, tive a mesma aflição e sensação de inutilidade de quando li alguns dos ensaios de Cultura & Imperialismo, de Edward W. Said, aqueles em que queria, por exemplo, vincular as existências das heroínas de Jane Austen com o sofrimento dos jamaicanos. São páginas e páginas, em Rónai e Said (com a crucial diferença que, no segundo, se efetua–ou se tenta efetuar– uma desconstrução ideológica muito consciente), a  nos escancarar um grande vazio. Só porque Balzac, numa carta, quando está frustrado com o fracasso de sua carreira, aventa a possibilidade de fugir para o Brasil, insinuam-se mundos e fundos.

O que ela registra, talvez, é uma possível gratidão do autor húngaro pelo país que o acolheu.

Felizmente, assim como o efeito conjunto de A Comédia Humana absorve, sem maiores problemas, a moça com o nariz aberto ao perfume da flor azul do ideal, Balzac e A Comédia Humana absorve essa dispensável seção. Ao comentar (no texto em apêndice) a presença brasileira de  (e não a presença do Brasil em) Balzac, ele diz: “E talvez me seja permitido incluir entre os subprodutos dessa renascença balzaquiana mais dois livros de minha autoria: Balzac e A Comédia Humana e Um Romance de Balzac: A Pele de Onagro…” Modéstia pura: longe de ser apenas um subproduto, seu livro  tornou-se um pequeno clássico que resiste há 66 anos, tempo incomensurável para qualquer estudo crítico.

(o texto acima foi escrito especialmente para o blog, em 20-21 de fevereiro de 2013)

paulo rónai


[1] Todavia, é uma leitura de toda a vida, e de certa forma uma reminiscência da adolescência. O ensaio começa assim: “Naquele ano de 1950, o inverno, no internato do Colégio Militar Leoncio Prado, de Lima, era úmido e cinza, a rotina embrutecedora e a vida um tanto infeliz. As aventuras de Jean Valjean, a obstinação de sabujo de Javert, a simpatia de Gavroche e o heroísmo de Enjolras apagavam a hostilidade do mundo e transformavam a depressão em entusiasmo nas horas de leitura, roubadas às aulas e à instrução militar, que me transportavam para um universo de extremos incandescentes na desgraça, no amor, na coragem, na alegria, na vileza. A revolução, a santidade, o sacrifício, o cárcere, o crime, homens super-homens, virgens ou putas, santas ou perversas, uma humanidade atenta ao gesto, à eufonia, à metáfora. Fugir para lá era um grande refúgio: a vida esplendia da ficção me dava forças para suportar a vida verdadeira. Mas a riqueza da literatura também fazia a realidade real ficar mais pobre (…) Se estamos há tantos séculos escrevendo e lendo ficções, algum motivo deve haver. Eu sei que naquele inverno de 1950, com uniforme, garoa e neblina, no alto do escarpado de La Perla, graças a Os Miseráveis a vida foi muito menos miserável para mim.”

Utilizo aqui a tradução de Paulina Wacht & Ari Roitman.

[2] Foi a leitura do primeiro, apaixonante, que me motivou a ler os romances do próprio Llosa. Tive a sorte de começar pelo melhor de todos, Conversa na Catedral.

[3] Deve-se lamentar a falta de atenção dos tradutores de A Tentação do Impossível para as traduções que aclimataram o texto de Hugo no Brasil. Eles perderam uma ótima oportunidade para defender o uso de “monstros pontilhosos”, ao invés de “monstros melindrosos”, como aparece nas duas traduções que li e que acredito serem as mais prestigiosas no Brasil: a de Carlos dos Santos (publicada pelo Círculo do Livro) e a de Frederico Ozanam Pessoa de Barros (esta eu li, numa curiosa sincronicidade, justamente no ano da publicação de La Tentación de lo Imposible, 2004), atualmente editada pela CosacNaify. O termo “melindrosos” talvez numa primeira sacada parece mais restrito a modulações psicológicas, enquanto “pontilhosos” já nos remete a uma convivência de sombra e luz, mais estética. Mesmo assim, “melindrosos” é o termo com que o leitor brasileiro do romance convive e considero o descaso dos tradutores digno de nota.

vida de balzac

[4] Os seis ensaios (e mais um epílogo proustiano) que são o cerne do volume foram publicados em 1947, para acompanhar a monumental edição de A Comédia Humana, então levada a cabo pela editora Globo [o empreendimento foi de 1946 a 1955], para a qual Rónai também escrevera uma biografia sucinta e exemplar de Balzac.

Na edição atual, foi incluído um texto do próprio Rónai, do final dos anos 1980, onde conta a história da lendária edição em 17 volumes.

O volume ainda é enriquecido com índices e listas bibliográficas, funcionando como uma homenagem a Rónai. Nada mais merecido. Permito-me somente observar que A Comédia Humana acaba ocupando um papel coadjuvante na coisa toda.

[5] Curiosamente, numa época em que se crucifica a obra de Monteiro Lobato pelo conteúdo racista (chegando-se a postular uma proibição da circulação escolar de Caçadas de Pedrinho) e que a própria Globo (que publica Balzac e A Comédia Humana através do selo Biblioteca Azul) tratou de alterar o título de O caso dos dez negrinhos  para E não sobrou nenhum, não houve manifestação de espécie alguma, nem ninguém da editora procurou colocar panos quentes, em certas passagens de Rónai que poderiam soar como racistas aos ouvidos de hoje, como na seção intitulada O Brasil na vida e na obra de Balzac, onde aparece um “comércio de pretos”. O que prova que sempre há grita onde há mídia.

balzachugo

13/12/2012

Leituras em espelho: MAX E OS FELINOS e VIDA DE PI

(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 24 de julho de 2012)

Há dez anos, uma controvérsia cercou a premiação de A vida de Pi (Life of Pi, 2001) com o Booker Prize, o mais prestigiado da língua inglesa: o livro de Yann Martel plagiara  Max e os felinos (1981), de Moacyr Scliar? Em ambos, o jovem sobrevivente (um alemão fugindo do nazismo rumo ao Brasil, em Scliar; um indiano, cuja família administrava um zoológico e que resolve emigrar para o Canadá, em Martel) de um naufrágio, protagonista do relato,  tinha de conviver num bote salva-vidas com um felino imponente (um jaguar, no autor brasileiro; um tigre-de-Bengala, no canadense).

Scliar procurou afastar a embaraçosa acusação de plágio e revelou-se melindrado mais porque Martel o citara entre as pessoas a quem agradecia numa nota (“a centelha de inspiração devo-a ao sr. Moacyr Scliar”), sem explicar o porquê e nem citar Max e os felinos (aliás, Martel, demostrando uma inabilidade campeã, para não dizer desagradável, afirmava nem ter lido o texto e apenas  conhecer seu enredo através de uma resenha negativa, considerando um desperdício ideia tão boa e tão mal aproveitada).

Bem, passou-se uma década, Scliar faleceu em 2011 e mesmo sob suspeita, A vida de Pi ganhou não apenas uma, mas duas traduções brasileiras: a primeira pela Rocco, e uma recente, feita por Maria Helena Rouanet para a Nova Fronteira (embora, no geral, esta nova versão seja mais bem-acabada, prefiro várias soluções da anterior,  mais crua e objetiva, de Alda Porto, mas é questão de gosto). E podemos verificar com mais serenidade as duas questões principais levantadas pelo incidente: se há de fato plágio, e qual dos dois é mais interessante —ou  haveria uma equivalência de qualidade?

Acho que, não obstante a deselegância de Martel ao se referir a Scliar e à maneira como aproveitou a “centelha de inspiração”, não há plágio algum porque a situação do náufrago no bote com um animal feroz não é o ponto central de Max e os felinos. Scliar narra a trajetória de vida de Max Schmidt, na qual vários representantes felinos desde a sua infância simbolizam e exteriorizam forças contra as quais ele tem de se haver (o autoritarismo do pai, o nazismo, a adaptação ao solo brasileiro). Trata-se de um texto correto e simpático, com essa boa sacada do jaguar a bordo, contudo sem grandes voos. De certa forma, sim, um desperdício (como tantos outros que Scliar cometeu em sua carreira).

Em compensação, A vida de Pi é  fora do comum. E é Martel quem aproveita integralmente as possibilidades que a convivência entre um ser humano e uma “fera” num espaço exíguo comporta.

Para começar, ele criou uma voz narrativa irresistível, a de Pi Patel (seu apelido é uma alusão ao famoso número representado pela letra grega  ,do qual ele se apropriou para que não ridicularizassem seu nome) e, a partir dela, construiu um romance filosófico poderoso. Recordando sua existência e suas pesquisas espirituais (queria ser ao mesmo tempo devoto do hinduísmo, cristão e muçulmano) e, após o naufrágio,  convivendo com Richard Parker (o nome dado ao tigre), ele faz o leitor enfrentar pesadas questões teológicas, as quais, em última instância, colocam em xeque a existência de uma Providência Divina, a questão da indiferença da natureza ao nosso destino individual, a irredutível diferença dos animais com relação a nós, que tentamos tanto antropomorfizá-los, torná-los parecidos conosco, e a questão-limite da sobrevivência: como ficam nossos valores éticos e nossas regras e rituais diante do bruto fato de que temos de viver dia a dia. Estamos longe, aqui, das águas rasas de Max e os felinos.

Pi alega ter convivido “duzentos e vinte e sete dias” com Richard Parker (há episódios que nos remetem aos romances juvenis de aventura, a Robinson Crusoé, que “recheiam”, é claro, esses dias narrados com minúcia e uma beleza atordoante, como a caracterização do “tráfego” sob a água: “Eu contemplava aquele tumulto urbano como alguém observando uma cidade de um balão de ar quente. Era um espetáculo maravilhoso, que inspirava reverente admiração. Com certeza é o que deve parecer Tóquio na hora do rush” ).

Colocado contra a parede por profissionais que apuram  o naufrágio, ele acaba narrando uma outra versão, mais realista, mais sórdida, talvez mais terrível porque envolve o território humano tão somente.

Mas A vida de Pi não se reduz a uma alegoria, em que os animais representam determinadas atitudes e qualidades, num disfarce habilidoso. A originalidade desse romance extraordinário é conseguir que acreditemos inteiramente na versão que Pi construiu para si, para sobreviver (no sentido psíquico) à sua experiência-limite, de tal maneira ela é eficaz em todos os seus componente narrativos. Talvez porque seja mais saudável acreditar em fábulas. Com elas pelo menos aprendemos algo.

ANEXO- Cenas de Naufrágio:

“Uma noite Max acordou com a sensação de que algo anormal ocorria a bordo. Os animais estavam mais agitados do que de costume. Sentou na cama. Sim, alguma coisa estranha estava acontecendo: ouvia o ruído de passos apressados, um confuso vozerio. Vestiu-se rapidamente, saiu—e neste momento as luzes se apagaram. Na semi-obscuridade via vultos correndo de um lado para outro. O que está acontecendo? –perguntou, mas ninguém lhe respondia. Dirigiu-se para o convés—e só então notou que o navio estava adernado, e que continuava adernando rapidamente (…) o navio estava afundando. Os barcos  desciam rapidamente, e logo não havia mais ninguém a bordo. Assustado, Max correu para a amurada:

__ Não me deixem aqui.

   Inútil: os barcos s afastavam rapidamente. Ah, traidores, berrou Max. De repente percebia tudo. O Germania jamais deveria chegar a seu destino, aquele naufrágio estava planejado desde o início (…) Canalhas, rosnou Max—mas agora não podia perder tempo, o Germania afundaria em minutos. Correu à popa e ali—milagre—encontrou um pequeno escaler (…)

    Ao clarear do dia viu-se sozinho na vastidão do oceano. Enorme angústia apossou-se dele; pôs-se a chorar desabaladamente. Que triste situação. Que triste vida. Infância não de todo feliz; adolescência atormentada; fuga precipitada da pátria e agora isso, o naufrágio! Era demais. Chorava, sim, chorava e se maldizia também: por que tivera de se meter com uma mulher casada? Com um esquerdista maluco? Não sabia ele que na certa as coisas terminariam mal? (…)

   Teve então uma ideia: improvisar uma espécie de cabana com os destroços do Germania que flutuavam a seu redor. Uma grande caixa de madeira, boiando a pequena distância, parecia  adequada para isto. Com muito esforço, remou até lá.

   Puxou a caixa para junto do barco. Examinou-a e constatou que tinha, na parte superior, uma tampa fechada por um cadeado que agora, quebrado, pendia frouxo. Max retirou-o.

   Alguma coisa pulou de dentro da caixa, arremessando-o com força inaudita contra o chão do escaler. Max bateu com a cabeça, perdeu os sentidos.

   Aos poucos foi se recuperando. Abriu os olhos.

    O berro que soltou atroou os ares. Diante dele, sentado sobre o banco do escaler, estava um jaguar.” (MAX E OS FELINOS)[1]

“O navio afundou. Fez um som que parecia um monstruoso arroto metálico. As coisas ficaram borbulhando na água e, depois, desapareceram. Tudo gritava: o mar, o vento, o meu coração. Do bote salva-vidas, vi algo na água.

–Richard Parker, é você?—gritei.—Está tão difícil enxergar. Ah, se essa chuva parasse… Richard Parker? Richard Parker? É você mesmo!

   Só dava para ver a cabeça dele, que lutava para se manter na superfície.

__ Jesus, Maria, Maomé e Vishnu, que bom ver voc~e, Richard Parker! Não desista, por favor. Venha para o bote. Está ouvindo esse apito? Triiiiii! Triiiiii! Triiiiii! É isso mesmo. Nade, nade! Você é um ótimo nadador. Não são nem trinta metros.

   Ele tinha me visto. Parecia em pânico. Começou a nadar na minha direção. Ao meu redor, a água se movia furiosamente. Ali, ele parecia pequeno e indefeso.

__ Dá para acreditar no que nos aconteceu, Richard Parker? Diga que é um pesadelo. Diga que não é verdade. Diga que ainda estou na minha cabine no Tsimtsum, me virando e me debatendo, e que logo vou acordar desse pesadelo. Diga que continuo a ser feliz (…) Que Vishnu me preserve, que Allah me proteja, que Cristo me salve, não aguento isso! (…) Todas as coisas de que eu gostava na vida foram destruídas. E não mereço uma explicação? Vou ter de sofrer o diabo sem que o céu me dê qualquer justificativa? Nesse caso, de que serve a razão, Richard Parker? Ela só vale para brilhar com relação a coisas práticas: conseguir comida, roupas e um abrigo? Por que a razão não é capaz de dar respostas maiores? Por que não podemos lançar uma pergunta mais longe do que podemos alcançar uma resposta? Por que uma rede tão grande se há tão pouco peixe para pescar?” (VIDA DE PI)[2]


[1] Note-se que Scliar tem o cuidado de fazer com que Max bata a cabeça e desmaie antes de constatar a presença do jaguar no escaler, pois sempre se pode atribuir todos os episódios seguintes a uma alucinação.

[2] Assim está na tradução de Maria Helena Rouanet.A título de curiosidade, veja-se como o trecho final ficou na versão de Alda Porto:

“…Cada pequena coisa que eu valorizava na vida foi destruída. E não me dão explicação alguma? Vou sofrer o diabo sem nenhuma explicação do céu?Nesse caso, qual o propósito da razão, Richard Parker? Não é mais que brilhar nas coisas práticas da vida…a obtenção de comida, roupa e abrigo? Por que a razão não sabe dar as grandes respostas? Por que podemos lançar uma pergunta muito mais longe do que podemos receber uma resposta? Por que uma rede tão imensa, se há tão pouco peixe para pegar?”

VER TAMBÉM NO BLOG:

https://armonte.wordpress.com/2013/01/08/a-shoah-e-a-fabulacao-beatriz-virgilio-de-yann-martel/

 

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08/11/2012

Leituras em Espelho: PROCURA DO ROMANCE, de Julián Fuks, e MAR AZUL, de Paloma Vidal

CINQUENTA TONS DE FÚKSIA

(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 23 de outubro de 2012)

Não me preocupo em abrir as janelas e atinar com o mundo, porque não parece haver no mundo nada que possa me interessar”.

Procura do Romance foi anunciado como finalista das três premiações mais badaladas do Brasil: o prêmio São Paulo de Literatura, o Portugal-Telecom e o Jabuti. Deste último, fez-se agora a divulgação—que causou polêmica— dos resultados: um dos jurados deu notas baixíssimas, até mesmo zero, tanto para a consagrada Ana Maria Machado quanto para o livro de Julián Fuks, do qual foi retirada a citação acima, desclassificando-os do páreo1.

Nada sei dos motivos que levaram esse jurado a atitude tão radical, mas com relação à Procura do Romance, concordo com sua avaliação negativa: trata-se de um descalabro e uma desmoralização a inclusão de texto tão ruim em listas que deveriam ser mais criteriosas. Não fossem as panelinhas, os compadrios e apadrinhamentos, dificilmente se levaria a sério essa estreia no gênero de um autor que, nascido na Argentina, mas criado aqui, tinha deixado boa impressão com seu Histórias de Literatura e Cegueira (2007).

Com a maior cara de pau, Fuks anuncia para o leitor que acabou de inventar a roda, ou seja, a metalinguagem. A procura, nesse caso (já que não acontece nada no relato), é a procura do gênero literário: dado o diagnóstico-ladainha constante de que o romance morreu, é preciso resignar-se aos jogos em que a ficção se volta para si mesma. Assim, o livro pode ser tomado como o 50 tons de cinza da narrativa autorreferente, da chamada “literatura exigente”. Ou seriam 50 tons de fúksia?

Mas seria injusto dizer que Fuks procede como aqueles escritores que vão passar um mês em qualquer parte do mundo, ou uma temporada na, digamos, Mongólia, e fazem questão de mostrar nos livros que nascem da experiência (porque sempre há um livro no horizonte) que não vão falar do lugar, que vão ignorá-lo, e que ele é um palco como qualquer outro seria para o exercício da “literatura exigente”. Seu protagonista chegou a morar por alguns anos (à época da infância) num apartamento em Buenos Aires, para o qual volta, com o intuito de escrever um romance. Que poderia ser proustiano, pois há a lembrança das carências quando menino, beijos maternos,terrores infantis; que poderia ser cortazariano, pois há jogos sutis entretecidos entre o protagonista e uma moça desconhecida numa visita a uma exposição de Picasso; que poderia enveredar pelo fantástico do tipo kafkiano ou borgiano, com alguns elementos insólitos a quebrar a rotina cotidiana; que poderia ser joyceano ao realçar elementos outrora considerados irrelevantes do cotidiano; só que todas essas possíveis veredas já exploradas pela ficção romanesca são contrariadas, canceladas, truncadas. Procura-se o romance, não se chega a ele.

São 142 páginas nessa toada. É chocante ver como alguém caiu no ridículo de escrever essa besteira, aos 30 anos. Se tivesse 18, apesar de chatinho, seria mais justificado. A essa altura, parece uma empulhação piorada pelo fato de que escreve como se fosse má tradução de um original argentino. Nem nesse ponto ele foi feliz: poderia ter logrado uma experiência de junção de duas línguas, tal como fez Junot Díaz no ótimo A fantástica vida breve de Oscar Wao.

Seu protagonista não lê um livro apenas: “As retinas vão se maculando de todos aqueles incontáveis sinais gráficos” !!?? Deve ser aquela história da literatura e da cegueira.

Chove? não, é claro, caem “As gotículas do líquido natural derramado”!!?? Eu poderia continuar com trechos do mesmo naipe (numa livraria—onde mais?—ele sonha “situar seu inominado protagonista e entregá-lo a seu habitual solilóquio de devaneios meditados à exaustão, quiçá esse sujeito—se escritor—cogitando a possibilidade de situar seu respectivo protagonista nas mesmas condições e entregá-lo a outros—ou os mesmos—devaneios meditados à exaustão”), mas tenho muita consideração pelo meu leitor para martirizá-lo assim. Só peço permissão para transcrever o meu favorito: “Não, prossegue em seu caminho e se indaga em questionamentos erráticos, por que esse impulso de roubar para o texto o que é da vida, de converter em ficção o que a ficção não comporta, por que quer brindar seu personagem ou o personagem de seu personagem com essa manifestação patente de voluptuoso acaso quando poderia guardar para si e só para si essa volúpia…”

O narrador fuksiano não precisa se preocupar. Da vida, ele não roubou nada. Só o nosso tempo. A não ser que pensemos na premiação em dinheiro que ele ainda pode amealhar no Portugal Telecom. Se não houver um jurado sensato ali, como no Jabuti, será a abobrinha mais cara da história.

RESPOSTA AO TEMPO

resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 30 de outubro de 2012

Assim como Julián Fuks, cujo Procura do Romance comentei na semana passada, Paloma Vidal é de origem argentina e veio para o Brasil na primeira infância. Ambos são ainda muito jovens (ela, nascida em 1975; ele, em 1981) e iniciaram suas carreiras publicando coletâneas de contos na prestigiosa Coleção Rocinante da editora 7 Letras (ela, A Duas Mãos; ele, Fragmentos de Alberto, Ulisses, Carolina e Eu).

As semelhanças param por aí. Enquanto Procura do Romance deixa a desejar, literária e humanisticamente, o segundo romance de Paloma, Mar Azul, é das melhores experiências do gênero nos últimos anos, e prova cabal (não bastasse o recente Suíte de silêncios, de Marília Arnaud) que o intimismo prossegue como veio forte na ficção, e o mais importante: não é incompatível com o rigor de linguagem. Estamos longe do prolixo e do excessivo que muitas vezes prejudicam uma literatura mais subjetiva, assim como estamos longe também da “morte do Sujeito” e da desconfiança com relação a experiências pessoais significativas que marcam certo mainstream geracional.

Uma narradora setuagenária, radicada no Rio de Janeiro (onde tem a visão do oceano, tão necessária para sua existência: “Falei de quando eu vi o mar pela primeira vez. Eu disse que nunca me esqueci disso. Eu acho que eu disse que foi a emoção mais forte que eu já senti.”), após emigrar da Argentina sob ditadura (sua melhor amiga, Vicky, tornou-se uma das “desaparecidas” do regime), numa longa viagem de ônibus durante a qual vivenciou uma fugaz e pungente história de amor (ela fugia igualmente de um relacionamento brutal e abusivo com o ex-estudante de um colégio militar, a quem denomina simplesmente R.), quase um rito de passagem, vasculha os cadernos do pai e no avesso do que ele deixou ali anotado, também escreve, naquela costumeira tentativa sherazadiana —presente em todos os contadores— de enfrentar o tempo, a mortalidade, os achaques da idade e os lampejos de uma memória torturada (como diz, a “propensão de não me livrar de nada”).

O pai meio que a abandonara na casa de Vicky, cuja mãe era “pra frente” (embora as duas mantivessem uma relação turbulenta e passional), como se dizia antigamente, e depois fora trabalhar na construção de Brasília, morrendo após um sombrio período em que perdera progressivamente a memória, numa das cidades-satélites, onde a protagonista descobrirá sua papelada, a qual no entanto persistirá um mistério tanto para ela como para nós.

A sua própria vida reveste-se de uma opacidade excruciante. Serão sempre fragmentos, um material miasmático, que às vezes ela tem coragem de enfrentar, às vezes não. Por isso (e em consequência das obras anteriores de Paloma Vidal), Mar Azul vem sendo examinado sob a rubrica da memória e da identidade.

Sem que esse ângulo de percepção do livro seja exatamente incorreto, creio que sua maior força (e é justamente por isso que o texto cresce a partir da sua metade; dos seus 50 capítulos —emoldurados por vários diálogos no início, e um no final—, é mais nos primeiros que encontramos uns quantos trechos rebarbativos e óbvios do tipo “O vácuo me deixou sensibilizada”, “As batalhas subjetivas não me vencem tão facilmente”, “Só o mar me acolhe do lado de fora. Será ele uma espécie de memória?”, que felizmente se diluem na qualidade geral do texto) reside na apreensão do cotidiano atual da narradora, os pequenos laços prático-afetivos que, em sua vida de professora aposentada, estabelece com porteiro e jornaleiro, suas idas e vindas aos consultórios de médicos do plano de saúde, sua necessidade de criar rotinas “positivas” (caminhar e nadar), tendo sempre o mar como uma espécie de amuleto, para não se deixar tragar pela melancolia dos cadernos que representam seu diálogo com o pai:“Espero que algo me diga: vá. Algo que não sou eu, que não é minha voz, talvez meus músculos, minha pele, meus órgãos. Algo que se mova sozinho. Algo que me faça dar o próximo passo. Quando penso isso já estou debaixo do chuveiro e a sensação da água sobre mim me diz que o dia vai ser bom.”

Desse presente que parecia tão tênue e fugidio, e depois vai se impondo, fazendo do passado um resíduo fuliginoso, apesar das suas tentações, é que Mar Azul tira a sua novidade, a sua mistura apaixonante de gravidade, de texto progressivamente lapidado e de experiência intimista formulada de forma a fazer com que o caos das experiências externas e internas ganhe uma voz narrativa carismática, com a qual Paloma Vidal se ombreia aos nomes mais expressivos da sua geração, como Ricardo Lísias, Daniel Galera e Michel Laub.

1A matéria em que me baseei para escrever minha resenha é a seguinte (depois os fatos ficaram melhor esclarecidos, devido aos desdobramentos do caso, e parece que foram os outros dois jurados que atribuíram nota baixa ao livro de Fuks, no entanto isso não interfere na abordagem central do texto):

Notas zero definem categoria romance no Jabuti

 

19 de outubro de 2012 | 9h 21

 MARIA FERNANDA RODRIGUES – Agência Estado

A nota de um dos três jurados do Prêmio Jabuti foi responsável pela definição do vencedor do melhor romance de 2011, Nihonjin, de Oscar Nakasato.

De identidade ainda desconhecida – seu nome só será divulgado na cerimônia em 28 de novembro -, o membro do júri distribuiu notas baixíssimas para concorrentes como Julián Fuks, que foi finalista do São Paulo de Literatura e está no páreo pelo Portugal Telecom, e Wilson Bueno, prêmio APCA de romance em 2011 por Mano, a Noite Está Velha.

Autora de mais de uma centena de livros e presidente da Academia Brasileira de Letras, a escritora carioca Ana Maria Machado, por exemplo, recebeu zero em dois critérios: construção de personagem e enredo.

Dar um zero a uma autora já consagrada é pesado e exagerado, mas é um direito do jurado. As regras deste ano abriram margem para que uma nota tivesse peso decisivo e o jurado percebeu a influência da matemática”, disse José Luiz Goldfarb, curador do tradicional prêmio.

Neste ano, os membros do júri puderam dar de 0 a 10 às obras concorrentes. Antes, a pontuação ia de 8 a 10 e era possível usar notas decimais, o que tornava a disputa mais equilibrada. Para a próxima edição, Goldfarb já pensa em mudanças – deve eliminar a nota mais baixa e incluir uma quarta pessoa na comissão formada, no caso da categoria romance, por jornalistas e críticos literários.

“Agora, não há o que fazer, porque o regulamento é claro e seu voto deve ser respeitado.” Segundo o curador, o tal jurado já participou de outras edições do prêmio.

Em 2010, Nakasato, então professor de literatura do ensino médio em Apucarana (PR), tirou o romance Nihonjin da gaveta e o inscreveu no 1.º Prêmio Benvirá. Era seu primeirooriginal. O júri, composto por José Luiz Goldfarb, Nelson de Oliveira e Ana Maria Martins, escolheu a obra por unanimidade e, como prêmio, o professor ganhou R$ 30 mil. O livro, sobre a imigração japonesa, foi editado pela Benvirá, da Saraiva, em 2011. Ontem, Nihonjin desbancou obras como Infâmia, de Ana Maria Machado. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

 

22/10/2012

Leitura em espelho: ANDANDO NA SOMBRA, de Doris Lessing, e A FORÇA DAS COISAS, de Simone de Beauvoir

    

                              I

“A memória é uma grande criadora de comédia. Décadas depois, um evento que foi doloroso, ou mesmo aterrorizante, pode parecer simplesmente absurdo”. Esse trecho é do primeiro volume autobiográfico de Doris Lessing, Debaixo da minha pele, e ajuda a entender Andando na sombra: esse segundo volume é um ajuste de contas com o comunismo, que dominou e assombrou a vida da grande escritora inglesa durante muitos anos, um “evento doloroso e aterrorizante” que, colocado sob perspectiva, revela-se absurdo.

Andando na sombra começa em 1949 , a partir da emigração da autora de Roteiro para um passeio ao inferno da Rodésia para a Inglaterra, e sua estréia como escritora, com a publicação de A canção da relva. Mesmo assim, tudo que não tem a ver com a experiência dela como militante do Partido Comunista fica secundário no livro, o que, ao mesmo tempo, representa sua força e sua fraqueza.

Doris Lessing já abordou muitas vezes essa sua desilusão, já explorou muitas vezes a dificuldade que tantas pessoas tiveram para se desvencilhar da lealdade para com ideais que nunca correspondiam à realidade e que, ao fim e ao cabo, legitimavam atrocidades cometidas na URSS, principalmente no período stalinista. Ela sempre associou a dificuldade de abandonar o partido e a própria idéia de comunismo, sem se tornar vítima de uma “má consciência”, de estar cometendo uma traição aos explorados e descamisados do mundo, como uma espécie de substituto do fervor religioso.

Nunca, entretanto, ela se estendeu tanto na questão como em Andando na sombra, onde a narração do período e a reflexão propiciada pelo olhar memorialista se alternam (processo que ela já usara magistralmente em Debaixo da minha pele, um de seus melhores textos), fazendo com que o livro seja quase  que o seu testamento, a súmula de suas idéias, o seu balanço final: “Será que têm interesse hoje essas antigas paixões políticas? Para mim o importante é o que se aprende com elas. Continuamos convivendo com o (hoje) incrível e imperdoável fato de que algumas das pessoas mais preocupadas com a sociedade, mais esperançosas quanto ao futuro, mais dedicadas, foram coniventes com os crimes do mundo comunista, recusando-se, primeiro, a reconhecê-los…. E essa atitude, essa relutância em criticar a URSS, continua até hoje e se evidencia na forma como Hitler é colocado na posição de criminoso-mor de nossos tempos, ao passo que Stálin era mil vezes pior…. O interesse, com certeza, é o porquê. Afinal de contas, essa situação, ou uma que lhe seja parecida, voltará a acontecer, num contexto diverso, numa história diferente. Tudo volta.”

Apesar do brilho com que ela captura toda a “atmosfera” da Guerra Fria, é justamente a concentração maciça de pormenores da atividade política que faz com que Andando na sombra não seja tão bom quanto Debaixo da minha pele. Casas,pessoas, obras e outros “detalhes” que aparecem nesse segundo volume, ficam apenas como um pano-de-fundo fuliginoso nessa sombria constatação a posteriori da comédia absurda que foi o engajamento dos anos 50, através da observação mortífera da memória.

Há maravilhosas observações sobre diversos outros temas (os gatos, por exemplo, que ganham três páginas inesquecíveis) e a narração da mudança, em 1962, para uma casa própria (no final do livro) é demais, com sua descrição da reforma, dos trabalhadores e dos vizinhos, porém tudo  fica acachapado no todo do livro e ele fica desarmônico, desigual.

E embora Andando na sombra seja esclarecedor no sentido de mostrar por que Doris Lessing tantas vezes colocou como alter ego das suas narrativas donas-de-casa (como em O verão antes da queda,  A cidade de quatro portas, Memórias de um sobrevivente, por exemplo), é pena que ela  equacione tão pouco sua vida com os livros que surgiram a partir dessa época, como os maravilhosos The golden notebook- O carnê dourado e Landlocked- Exilada em seu país.

Nesse ponto, Andando na sombra perde longe para as incríveis memórias de Simone de Beauvoir, principalmente Na força da idade & A força das coisas, nas quais política, literatura, existência dia-a-dia são capturadas de uma forma coesa e poderosa, e uma coisa não avassala a outra no texto, mesmo que o tenha feito na vida.

Mas a própria Simone de Beauvoir  adverte para as conclusões apressadas demais: “Apresento cada momento da minha evolução e é preciso ter a paciência de não fechar a conta antes do fim”.

(resenha publicada  originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 22 de setembro de 1998)

                                    II

 Há poucas leituras mais apaixonantes e absorventes que a dos volumes autobiográficos de Simone de Beauvoir: Memórias de uma moça bem-comportada,Na força da idade, A força das coisas, Balanço Final.

A força das coisas (1963) recentemente ganhou nova tradução no Brasil (feita por Maria Helena Franco Matias, pela Nova Fronteira; já havia  outra, com o belo título de Sob o signo da história). Cobre um período mais ou menos similar ao retratado por Andando na sombra, de Doris Lessing.

Quando Paris foi libertada pelos Aliados e a Segunda Guerra terminou havia um clima de esperança e fraternidade entre simpatizantes e militantes do socialismo e do comunismo. As dissensões  entre todos e a Guerra Fria fizeram com que as posições se radicalizassem,  o engajamento muitas vezes descambou para o sectarismo fanático, e a postura pró-URSS levava a conflitos internos que Jean-Paul Sartre e Simone tentaram superar.

Já tendo contado esse período em Os mandarins (que deverá figurar como um dos grandes romances do século), por que tentar de novo? “Eu pensava que é projetando uma experiência no imaginário que apreendemos com mais clareza o seu significado. Mas eu lamentava que o romance sempre fracassasse em expressar sua contingência. Numa autobiografia, os acontecimentos se apresentam em sua gratuidade, seus acasos, suas combinações,tal qual se passaram: essa fidelidade faz compreender melhor do que a mais hábil transposição como as coisas acontecem a sério com os homens. O perigo é que, através da sua caprichosa profusão, o leitor possa não distinguir nenhuma imagem clara, apenas um amontoado confuso de coisas. O escritor não tem meios para contar simultaneamente os fatos de uma vida e seu significado. Nenhum desses dois aspectos da realidade é mais verdadeiro que o outro. Os mandarins, portanto, não me dispensava de prosseguir essas memórias…”

E, à medida que o leitor vai prosseguindo nas memórias de La Beauvoir, elas vão ficando cada vez mais desoladas e desoladoras. A Guerra da Argélia a transforma numa “exilada em seu país” , com ódio de seus compatriotas, que consentem com a tortura, o massacre, as injustiças gritantes. O governo de De Gaulle torna-se uma ditadura.

Ao mesmo tempo, a autora de A convidada (outro belíssimo romance) vai se dando conta do seu processo de envelhecimento: “Bruscamente esbarro na minha idade… Muitas vezes paro, espantada, diante desta coisa incrível que me serve de rosto. Detesto a minha imagem. Talvez as pessoas que me encontrem vejam simplesmente uma qüinquagenária que não está nem bem nem mal, tem a idade que tem. Mas eu vejo minha cara de velha, onde se instalou uma varíola da qual jamais me curarei”.

Mesmo assim ela vive, escreve, sente, ama, participa.E tudo isso é mostrado de uma forma quase milagrosa, mesmo no discurso ultra-organizado, cartesiano. Esse rigor discursivo, essa  austeridade e transparência, não conseguem neutralizar a contradição (instigante, aliás, e que fornece a chave do livro) entre viver o horror da ditadura e dar o devido valor a um instante, a uma paisagem,a um encontro, a um sentimento individual e fugaz. A vida salta dessas páginas, em que “a força das coisas” destrona o amor pelo absoluto que foi o núcleo do projeto pessoal de Simone de Beauvoir na sua infância,mocidade e começo da maturidade, como ela conta em Memórias de uma moça bem-comportada e no extraordinário Na força da idade, e que fica clara nos textos de Quando o espiritual domina, suas primeiras tentativas ficcionais mais articuladas. É possível que a vitalidade poderosa do livro seja resultado também do fato de ter sido escrito muito perto dos acontecimentos, ainda no calor da hora, ainda com o engajamento total da autora no que está contando, sem indulgência, sem conciliação, sem serenidade.

Os livros de Simone de Beauvoir dão o que ela pede a uma obra literária em A força das coisas: “…a recriação de um mundo que envolve o meu e que lhe pertence, que me desambienta e me ilumina, que se impõe a mim para sempre com a evidência de uma experiência que eu teria vivido”.

(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos,  em  29 de setembro de 1998)

VER TAMBÉM NO BLOG

(sobre Simone de Beauvoir):

https://armonte.wordpress.com/2010/05/07/simone-de-beauvoir/

(sobre Doris Lessing):

https://armonte.wordpress.com/2013/10/22/destaque-do-blog-shikasta-de-doris-lessing/

https://armonte.wordpress.com/2013/11/18/a-filha-da-primeira-guerra-alfred-e-emily-de-doris-lessing/

https://armonte.wordpress.com/2012/10/22/multipla-doris-lessing/

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