MONTE DE LEITURAS: blog do Alfredo Monte

30/12/2014

LIVROS DE 2014

por escrito

ESCLARECIMENTOS PRELIMINARES:

  1. Algumas das melhores páginas que li este ano estão em AS FANTASIAS ELETIVAS (Record), de Carlos Henrique Schroeder. Lamentavelmente, a partir do momento em que ele dá a palavra a um travesti, em um discurso-cabeça bolañesco, não mais me acertei com o seu romance, não o entendi mais, e não sei se por culpa minha, dele, de Bolaño, de Sebald, ou da entidade “Literatura”;
  2. Gostei muito de FAZENDA DE CACOS, de Marcelo Benini (Intermeios), e de fato ele já fazia alta poesia nas crônicas muito acima da média do gênero em O homem interdito, entretanto me pareceu estranho que ele figurasse solitário no meio de um mar de prosa, tal como é a lista —  fica a indicação;
  3. Fico devendo a indicação de qualquer título lançado em e-book ou similares (só leio publicações impressas), o que deverá certamente tornar-se um problema cada vez maior no futuro;
  4. Há dois títulos (o de Thiago Roney e o de Ana Miranda), na verdade lançados no final de 2013, cuja divulgação, porém — e para isso contribuem as circunstâncias editoriais, fora dos eixos “centrais” (O PESO DA LUZ não saiu pela poderosa e midiática Companhia das Letras) — ocorreu ao longo do ano corrente, pelo menos no que me concerne, por isso me façam um desconto.
  5. Não dá para ler tudo e gostar de tudo.

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(uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 30 de dezembro de 2014)

Livro do ano- POR ESCRITO (Companhia das Letras). A veterana Elvira Vigna traça uma agônica alegoria do Brasil “moderno”, com uma protagonista que se reinventou ao longo da existência (como tantas heroínas da notável autora carioca), não conseguindo, porém, espalhar as pedras do passado, e só repousando em lugares límbicos e antissépticos (hotéis, aeroportos), sempre a caminho. Obra-prima.

Além dele, destaco (por ordem alfabética do sobrenome do autor):

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A CASA CAI (Companhia das Letras)- Retomando um dos heróis de O último minuto, seu livro anterior, Marcelo Backes chega ao quadro mais amplo dentro de sua ambiciosa produção romanesca, tornando-se o Lima Barreto das mudanças no perfil urbano do Rio no século XXI;

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O IRMÃO ALEMÃO (Companhia das Letras)- Naquele que talvez seja o mais pessoal e afiado de seus romances, Chico Buarque mostra como uma biblioteca labiríntica (monstruosa?) pode sequestrar a participação no mundo de uma família, enquanto a História dá voltas em torno de regimes autoritários;

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CADERNO DE UM AUSENTE (Cosacnaify)- Um dos nossos grandes prosadores, com delicadeza cirúrgica, nos dá uma aula sobre a mortalidade, numa narrativa dirigida a uma filha recém-nascida, com o poder de “inventar metáforas em cores a partir de clichês cinzentos”. Como sempre, em João Anzanello Carrascoza, há carne nas palavras;

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SAFÁRI (Rocco)- Na história de um advogado assassino, Luís Dill contraria o figurino do romance policial brasileiro, geralmente siderado por erudições fajutas, e retrata a desfaçatez de certa “elite” nacional valendo-se de referências caras ao imaginário dos nascidos na minha geração (anos 1960). Não obstante deploráveis e reacionárias declarações durante a época das eleições, o escritor gaúcho é um dos melhores ficcionistas da atualidade[1];

ENQUANTO_DEUS_NAO_ESTA_OLHANDODeboraFerraz Premio Sesc 2014 Foto Bruno Vinelli

ENQUANTO DEUS NÃO ESTÁ OLHANDO (Record)- Débora Ferraz (27 anos) mostra o desnorteio da narradora, no limiar da idade adulta, tendo de lidar com um “universo de emergências”, revitalizando o importante veio do  “retrato do artista quando jovem”. Bela e vigorosa estreia;

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O PESO DA LUZ (Armazém da Cultura)- Lindo romance (com um  sutil toque quase infanto-juvenil) no qual Ana Miranda mostra um inventor e astrônomo amador paraibano que, em 1919, se envolve com a missão científica que, no Ceará, durante um eclipse, tenta provar a validade da teoria da relatividade;

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A LEGIÃO ANÔNIMA (Cepe)- Com a prosa elaborada (às vezes ligeiramente afetada) de seus contos, João Paulo Parisio nos leva a uma Recife quase bíblica em sua infestação de pecados, anjos decaídos e santas associadas à rataria. Até ao relatar uma formação escolar, ele nos mostra, em suas analogias certeiras, como toda civilização é mesmo um registro de barbárie;

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DENTRO DO SEGREDO (Companhia das Letras)-A Coreia do Norte de Kim Jong-il  volta e meia está no noticiário, mas jamais da forma como aparece nesse inusitado relato do português José Luís Peixoto, que narra sua viagem pelo fechadíssimo país asiático em 2012;

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QUARENTA DIAS (Alfaguara)- Outra personagem paraibana, dessa vez uma Alice perdida na Porto Alegre dos dias de hoje, descobrindo, como usualmente acontece na obra de Maria Valéria Rezende, o Brasil profundo que resiste aos padrões globalizados.  Romance que poderia dividir o posto acima com POR ESCRITO, com o qual, aliás, tem muitos e surpreendentes pontos de contato;

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O ESTOURO DA ARTÉRIA DE UM CAVALO HÚNGARO (Multifoco/Redondezas)- A inclusão dessa 2ª. edição de uma coletânea de contos publicada em 2012 se deve ao fato de que Thiago Roney (29 anos) reformulou-a drasticamente, tornando-a praticamente um novo livro,  mostrando seu afinco como escritor não só talentoso, mas disposto a se aperfeiçoar;

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UM HOMEM BURRO MORREU (OitoeMeio)-Rafael Sperling (29 anos) explora afetos e a vida urbana através de uma linguagem marcada pelo hiperbólico e pela deformação de perspectivas, e sobretudo por um tom afrontoso, que nada poupa. Resultado: o melhor livro de contos deste ano;

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NOSSA TERESA (Patuá)- Após alguns livros de poemas, aos 42 anos Micheliny Verunschk estreia no romance com um relato multifacetado a respeito de uma cidade pródiga em suicídios, inclusive o de uma menina em vias de ser canonizada. A força do texto supera problemas graves de edição e revisão;

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O EXPLICADOR (OitoeMeio)- Leonardo Villa-Forte (outro com 29 anos)  aproveita uma das lições mais preciosas de Kafka: os personagens dos seus contos acreditam candidamente que o mundo veio com um manual de regras, que estão sempre sendo desconstruídas diante de seus olhos. Esse é o segredo do encanto peculiar de um livro onde o polimento da prosa deixa às vezes um pouco a desejar;

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F (Rocco)- Chegando em 2014 aos 30 anos, Antônio Xerxenesky realiza, através de uma assassina encarregada de eliminar Orson Welles na década de 1980, uma brilhante reflexão romanesca sobre o fracionamento imaginativo das últimas gerações. Junto a POR ESCRITO e QUARENTA DIAS, forma a trinca de ases desta lista.

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TRECHO SELECIONADO

“Parecia que seguiria assim para sempre. Victor precisaria se acostumar a perder jogos que não seriam perdidos se o anão não fosse um anão e tivesse pernas normais.
Victor chegou a falar sobre o caso com seu terapeuta. O terapeuta perguntou se Victor não poderia conversar com o anão, a sós, e dizer que gostaria de parar de jogar no time do anão, pois seu espírito para aquele futebol era mais competitivo do que fraternal. Victor pensou que seria uma abordagem direta demais, que talvez provocasse ressentimentos, não só no anão como em todos os integrantes do grupo do futebol, caso ficassem sabendo. No entanto, saiu do consultório com a ideia na cabeça, sentindo-se até um pouco covarde por saber que dificilmente tomaria tal atitude.
Contra todas as expectativas, a sorte um dia chegou para Victor. No jogo seguinte, ele caiu no time adversário ao do anão. Finalmente Victor poderia ganhar um jogo. Sentiu-se entusiasmado desde o início, um entusiasmo4, que há tempos não ligava ao universo do futebol.
A certa altura do jogo, faltando pouco tempo para acabar, e com o placar ainda em zero a zero, a bola respingou e apareceu na frente de Victor, quicando. Como único defensor a ser superado, na sua reta em direção ao gol adversário, estava o anão. Foi instintivo…” 
(de O EXPLICADOR)

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NOTA

[1] A tensão que se estabeleceu entre vários amigos e conhecidos ao longo das últimas eleições (em especial, o segundo turno para presidente) fez com que eu deixasse de lado alguns autores, os quais se manifestaram de um forma reacionária e para mim inaceitável. Mas já era tarde demais para excluir Luís Dill, cujo “Safári” (sem contar sua excelente produção na área da ficção juvenil) já tinha me conquistado e sempre esteve virtualmente “presente” na lista, antes de eu ler suas declarações rançosas. A admiração literária prevaleceu aqui, não sei se acontecerá o mesmo no futuro.

VER  NO BLOG

https://armonte.wordpress.com/2014/09/16/a-maior-travessura-da-menina-ma-elvira-vigna-do-caustico-ao-agonico-em-por-escrito/

https://armonte.wordpress.com/2014/11/28/destaque-do-blog-o-irmao-alemao-de-chico-buarque/

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https://armonte.wordpress.com/2014/08/12/o-tempo-que-apesar-dos-espelhos-caminha-em-uma-unica-direcao-o-inquietante-f-de-antonio-xerxenesky/

artigo final

27/12/2014

SUSAN SONTAG (1933-2004), SEU ROMANCE VULCÂNICO E SUA REPUTAÇÃO INCANDESCENTE

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(a resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 08 de janeiro de 2005)

Em minha resenha de 25 de julho de 1993 (VER ABAIXO), sobre O AMANTE DO VULCÃO[1], incorri num grave erro de avaliação. A morte recente de Susan Sontag (28 de dezembro, aos 71 anos) proporciona a chance de corrigi-lo, já que apareceu na imprensa muita bobagem mesquinha e vingativa a seu respeito. Chegou-se até a falar de um suposto “insucesso literário”, que “não a amargurou a ponto de desinteressá-la pelas qualidades alheias (vaticina num tom “simpático” Nelson Ascher, na Folha de São Paulo). Quem, entretanto, leu O amante do vulcão  sabe que se trata de um dos mais belos romances do final do século passado.

O meu erro consistia em afirmar que era preciso esquecer a Sontag pensadora para apreciar a emoção e o impacto do livro, centrado no triângulo amoroso formado pelo casal Hamilton e o Almirante Nelson no final do século XVIII.

Na verdade, o veio ensaístico percorre toda a estrutura narrativa e a alimenta. Amalgamam-se reflexão, biografia e colagem romanesca, ou seja, vemos em ação o gosto enciclopédico que marcou o romance modernista. Mais ainda, Sontag parece ter aglutinado preocupações e inquietações de toda uma vida (e que vida!), dadas a vivacidade e fluência com que instila habilmente ideias  no transcorrer da longa existência de Lord Hamilton, embaixador inglês em Nápoles, desde seu primeiro casamento, quando se destaca como cortesão, como colecionador (as reflexões sobre o ato de colecionar são um capítulo à parte) e como estudioso do Vesúvio.

Viúvo, toma como esposa a antiga amante de seu sobrinho favorito, e passará para a História como um famoso corno, em razão do romance dela com o maior dos heróis britânicos no período napoleônico. Aliás, Sontag, que nos faz gostar muito dos seus personagens, não os poupa no tocante às infâmias que cometem por defender os privilégios do Ancien Régime: instigado por sua paixão por Emma Hamilton, Nelson concordará em participar da terrível perseguição, em Nápoles, àqueles que presumivelmente aderiram ao “espírito revolucionário”, o qual acarretou a deposição da monarquia francesa.

Passado esse momento de erupção passional (da História, do amor entre os dois, do esgarçamento do espírito clássico rumo ao temperamento romântico), o julgamento dos compatriotas do trio (e da posteridade) não é nada generoso. Nelson é ainda poupado (a culpa recai sobre a mulher, a tentadora) por ser um herói popular, uma “lenda viva”: “Ele é um guerreiro, o melhor já produzido por seu belicoso país, prestes a tornar-se a maior potência imperial que o mundo já viu. Todos os admiram. A criação da sua reputação já foi longe demais. Não se pode permitir que seja destruída. Mas quem se importa com uma mulher gorda e vulgar ou esse velho emaciado e exausto? Eles podem ser destruídos. A sociedade não terá nada a perder. Nada de importante foi investido neles.”

   Ascher vaticinava em seu horroroso necrológio uma purificação póstuma de Susan Sontag das “polêmicas circunstanciais” em que se meteu devido às convicções políticas (equivocadas, para ele). Nisso, compartilhará o destino da sua maravilhosa heroína de O amante do vulcão:  ambas nunca vão dar paz a seus detratores incomodados, sempre serão maiores do que o destino que querem impor a elas.

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(a resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em  25 de julho de 1993)

É preciso esquecer um pouco a Susan Sontag ensaísta para aproveitar a emoção e o impacto do romance O amante do vulcão, no qual o talento literário da autora explode como o Vesúvio, centro das atenções do protagonista, Lord Hamilton.

Uma figura histórica: é o embaixador inglês da Nápoles do século XVIII. Após a morte da esposa, recebe “de presente” do sobrinho a cortesã Emma, com quem acaba casando. Estouram as perturbações revolucionárias e surge o Almirante Nelson, com sua irresistível aura de herói. Uma existência que era a observação impessoal da fúria e do terror da natureza (o vulcão) passa a testemunhar a erupção dessa mesma fúria e terror nas convulsões sociais e também dos debates passionais de um triângulo amoroso.

Já se disse (Kundera) que há três possíveis modos de narrar: ou se conta ou se descreve ou se pensa uma história. O último caso, que é o de O amante do vulcão, implica uma colaboração explícita do narrador, de uma persona de que ele se serve para comentar o que está narrando. Sontag acompanha Hamilton com carinho, muito próxima, quase como que sussurrando no seu ouvido. Pode não mudar em nada o destino dele, porém nos envolve apaixonadamente em suas cogitações, até na relutância e reticência de sua vida interior, esse vulcão inativo.

Hamilton é um colecionador, e Sontag faz inesquecíveis reflexões sobre o ato de colecionar, o que já seria digno de nota dada a qualidade da prosa. Mas ela ainda demonstra um fôlego vulcânico ao nos mergulhar na época em que o romantismo e toda a ideologia burguesa dos valores individuais, dos “abismos” pessoais, começam a se delinear.

Há um ritmo à Vivaldi,  ora num andamento ligeiro, milagrosamente leve, ora com uma melancolia que representava uma portentosa sensação crepuscular, bem apropriada a uma época agonizante, mas sem necessidade de grandiloquência. Passamos da grotesquerie operística da corte de Nápoles (muito antes da unificação italiana), com seu rei que detesta ficar sozinho (até para defecar precisa de companhia) à torrente irracional e alucinante da turba massacrando a família de um duque sem saber exatamente por quê.

Pois a sociedade e o indivíduo, como o vulcão amado por Hamilton, têm seus períodos adormecidos. E de repente tudo pode ficar incandescente. O que seria um bom adjetivo para esse grande e afortunado romance.

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NOTA

[1] The Volcano Lover (1992), que comento na tradução de Isa Mara Lando.

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23/12/2014

TRADUÇÕES DE 2014-ALGUNS DESTAQUES

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Minha lista de destaques entre as traduções de 2014 será possivelmente de uma graça finita para muitos. Como meu espaço no jornal A TRIBUNA diminuiu, ative-me a 16 títulos (aquele que considero “o” livro do ano e + 15), incluindo apenas (salvo engano) aqueles ainda não traduzidos no Brasil, o que me fez excluir as novas versões de clássicos da ficção científica lançadas pela Aleph, novas versões de clássicos (A Besta Humana, por exemplo, ou Paradiso), e também Michael Kohlhaas, obra-prima que apareceu em duas versões este ano (mas já tinha sido traduzido antes) até mesmo o importantíssimo As aventuras do bom soldado Svejk, o qual já tivera versão brasileira em 1967, pela Civilização Brasileira, como Aventuras do bravo soldado Schweik. De resto, não custa reafirmar, como sempre faço, que não dá para ler tudo nem gostar de tudo. Sempre se pode dizer que mais vale um Buda no sótão do que um pintassilgo que não alça voo.

(uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 23 de dezembro de 2014)

Tradução do ano- O Idiota da Família (1971), de Jean-Paul Sartre (cujo primeiro volume foi traduzido por Julia Rosa Simões), tentativa talvez quimérica de investigar até os últimos limites a vida de um indivíduo (Gustave Flaubert), num estilo inigualável em sua vivacidade e ousadia, apesar do cipoal informativo-interpretativo, que visa a fusão do que é privado e coletivo (L&PM).

Entre o que pude ler, em ordem alfabética (por sobrenome de autor) as seguintes obras, até então inéditas em nosso país, destaco:

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Hóspede por uma noite (1939)- Sch.I.Agnon (Nobel 1966) faz o protagonista retornar à terra natal, num feriado religioso, para constatar as marcas deixadas pela guerra nas tradições da comunidade judaica—e apesar do horror que hoje representa o estado de Israel, como ignorar um autor desses? (Perspectiva; tradução de Zipora Rubenstein);

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Espírito e Espírito de Época: Hermann Broch (1886-1951) foi um dos maiores romancistas do século passado (“A Morte de Virgilio”, “Os Sonâmbulos”). Também era um notável ensaísta, meditando sobre os rumos da arte nos impasses da modernidade—são essenciais suas formulações sobre o mal, o kitsch e o des-estilo (Benvirá; tradução de Marcelo Backes);

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Contos Escolhidos– 16 textos do Nobel de 1933, Ivan Búnin, mostrando com precisão sutil o outono do mundo czarista na Rússia, no melhor que a ficção de atmosfera e de costumes pode oferecer (Amarilys, tradução de Márcia Pileggi Vinhas);

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Esperança do Mundo/A Desmedida na Medida/A Guerra Começou, Onde Está a Guerra?(1935-42)- Em três volumes, os Cadernos do início da carreira de  Albert Camus, preciosos laboratórios (ou forjas) de sua obra (Hedra; tradução de Raphael Araujo & Geske Samara);

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Os Luminares (2013)- A jovem Eleanor Catton reinstaura para o gênero romanesco os grandes desafios formais: no caso, uma estrutura toda governada pelas interações astrológicas (Biblioteca Azul; tradução de Fábio Bonillo)[1];

tempo presente

O Melhor Tempo é o Presente (2012)Falecida este ano, Nadine Gordimer deixou esse extraordinário romance final, em que a trajetória de um casal compõe incisivo (e desconfortável) panorama da primeira geração pós-apartheid (Companhia das Letras; tradução de Paulo Henriques Britto);

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Vida e Destino– romance confiscado em 1961 pelo estado soviético e que só apareceu em sua plenitude há um quarto de século.  O ucraniano Vassili Grossman se vale da proverbial grandiosidade russa para pintar um afresco multifacetado sobre a guerra e o antissemitismo (Alfaguara; tradução de Irineu Franco Perpetuo);

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Em Uma Só Pessoa (2012)- No universo de John Irving, maior fabulista do nosso tempo, a fluidez da identidade sexual já esteve presente, mas nunca no grau desse seu mais recente romance, como sempre caudaloso e extravagante (Rocco; tradução de Léa Viveiros de Castro);

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Colares de Xangô e Sapatos Bicolores (2012)- A histórica reaproximação dos EUA com Cuba aumenta o interesse desse belo romance de William Kennedy, caleidoscópio de lugares e experiências (que multiplicam uma cena infantil), entre os quais a ilha de Fidel às vésperas da Revolução (Biblioteca Azul; tradução de Elton Mesquita);

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História Policial (1977)-Imre Kertész (Nobel 2002) demonstra a implacável lógica das ditaduras e seus projetos de poder, que exigem a supressão de indivíduos (Tordesilhas; tradução de Gabor Aranyi)[2];

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O Súdito (1918)- Como pode ter demorado tanto uma tradução brasileira de um romance satírico desse quilate, no qual Heinrich Mann expõe a mentalidade reacionária do Império Prussiano, sob a dinastia Hohenzollern, que levou a Alemanha para o caminho das guerras mundiais? (Mundaréu; tradução de Sibele Paulino) — merecia até dividir com O IDIOTA DA FAMÍLIA a primazia nessa lista;

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Paraíso Reconquistado– Finalmente, uma versão brasileira (realizada por uma equipe coordenada por Guilherme Gontijo Flores) do clássico poema de 1671, onde John Milton dramatiza — com um teor poético que nada fica a dever aos melhores momentos da Bíblia — as tentações de Jesus no deserto (Cultura);

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O Buda no Sótão (2011)- Julie Otsuka forjou uma voz coletiva inesquecível para narrar a imigração japonesa para os EUA, numa obra-prima contemporânea (Grua; tradução de Lilian Jenkino)[3];

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O país dos cegos– 18 histórias de H.G. Wells (1866-1946), selecionadas e traduzidas por Bráulio Tavares,  num definitivo mostruário da sua fabulação, que incorporava elementos da luta de classes, da exploração do trabalho e da desfaçatez colonial (Alfaguara);

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Formas de voltar para casa: um dos melhores livros do século até agora, este do chileno Alejandro Zambra, em que os contrastes entre a geração dos seus pais e a dele, fazem a discussão política penetrar nos meandros mais inesperados (Cosacnaify; tradução de José Geraldo Couto).

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ALGUNS TRECHOS SELECIONADOS

“__ Lauderback assim o disse, exatamente—disse Moody. Ele balançou a cabeça.—Fico pensando se devo acreditar nas intenções do senhor Lauderback ao citar o nome desta jazida tão casualmente ao senhor Balfour esta manhã.

__ O que quer dizer com isto, senhor Moody?

__Não confia nele, em Lauderback?

__Seria muito pouco lógico desconfiar do senhor Lauderback—disse Moody—, visto que nunca na vida encontrei o homem. Estou muito ciente do fato de que os acontecimentos pertinentes dessa história estão sendo transmitidos de segunda mão, até, em alguns casos, de terceira mão. Tomo como exemplo a menção à jazida Dunstan. Francis Carver aparentemente mencionou o nome dessa jazida ao senhor Lauderback, que por sua vez narrou ao senhor Balfour, que por sua vez retransmitiu sua conversa a mim, hoje à noite! Todos vocês hão de convir que eu seria um tolo em tomar como verdadeiras as palavras do senhor Balfour.

     Mas Moody subestimara sua plateia ao questionar tópico tão delicado quanto a ´verdade´. Houve uma explosão de indignação ao redor da sala.

__ Quê? Não confia em um homem que lhe contou a própria história?

__ Posso asseverar que isso é verdade, senhor Moody!

__ Que mais ele poderia lhe dizer, salvo aquilo que contaram a ele?

    Moody foi tomado de surpresa.

__ Não creio que qualquer parte de sua história tenha sido adulterada ou omitida—ele replicou, dessa vez com mais cuidado. Olhou de rosto em rosto.—Queria apenas observar que não de pode nunca assumir como própria a verdade de outro homem.

__ Por que não?—Essa pergunta imediatamente ecoou de toda parte.

    Moody fez uma pausa por um instante, refletindo.

__ Em um tribunal—disse ele finalmente—, uma testemunha jura dizer a verdade, ou seja, sua própria verdade. Ela concorda com dois parâmetros. Seu depoimento deve conter toda a verdade, e esse depoimento não deve conter nada além da verdade. Apenas o segundo desses parâmetros é um limite real. O primeiro, é claro, é grandemente uma questão de discrição. Quando dizemos ´toda a verdade´, dizemos, mais especificamente, todos os fatos e impressões que são pertinentes ao assunto em questão. Tudo que não é pertinente não é apenas irrelevante, é também, em muitos casos, intencionalmente enganador. Senhores—disse ele, embora senha abordagem coletiva lhe houvesse saído esquisita, considerando a companhia diversificada  que ele tinha na sala—, eu defendo que não há verdades totais, e sim apenas verdades pertinentes, e a pertinência, hão de convir,  é sempre uma questão de perspectiva. Não creio que nenhum de vocês haja perjurado de alguma maneira esta noite. Eu acredito que me deram a verdade, e nada além da verdade. Mas suas perspectivas são muitas, e hão de me perdoar se eu não tomar por integral a sua narrativa”   (de Os Luminares)vie et destin

grossman

 

“…os alemães tinham chegado aos tanques de petróleo, e o óleo ardente jorrava sobre o Volga (…) O petróleo jorrava negro, lustroso,  vindo dos depósitos que haviam sido crivados de balas incendiárias; parecia que as cisternas armazenavam rolos enormes de fogo e fumaça, agora liberados.

    A vida que dominara a Terra havia centenas de milhões de anos, a vida rude e assustadora dos monstros primitivos, elevara-se das profundezas, voltava a bramir, batia os pés, urrava, devorando avidamente tudo ao seu redor… As chamas eram tão volumosas que o turbilhão de ar não conseguia fornecer oxigênio às moléculas ardentes de gás carbônico, e uma abóbada negra e oscilante separara o céu estrelado de outono da terra em chamas. Visto de baixo, o firmamento fluido, gorduroso e negro era um horror.

    As colunas de fogo e fumaça, ao se precipitarem para o alto, ora assumiam o aspecto de seres vivos tomados pelo desespero e pela fúria, ora se assemelhavam a choupos e álamos chacoalhantes. O negro e o vermelho giravam nas nesgas do fogo como cabeleiras negras e ruivas de mulheres dançando desgrenhadas…” (de Vida e Destino)

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“__ Não entendo os senhores, não os entendo. O que querem de mim? Pois se o Estado confia em mim…

__ Bem, sim.—Díaz balançava a cabeça como um professor primário.—O problema é que nós não confiamos no Estado…

__ Não entendo, não entendo… Então acreditam em quê?

__ No destino. Mas no momento nós é que assumimos o papel do destino: portanto, em nós mesmo—disse Díaz com seu sorriso inigualável…”  (de História  Policial)

“ Diederich andava muito na rua nestes dias frios e

úmidos de fevereiro de 1892, na expectativa de grandes

acontecimentos. Na avenida Unter den Linden algo havia

mudado, mas ainda não se sabia o quê. Nas esquinas estava

postada a polícia montada também na expectativa.

Os transeuntes chamavam a atenção, uns aos outros, sobre

esta demonstração de força. — Os desempregados! — Todos

paravam para vê-los chegar. Vinham da direção norte

em pequenos grupos, marchando lentamente. Ao chegarem

à avenida Unter den Linden, hesitaram como que perplexos.

Entenderam-se através de olhares e dirigiram-se

para o palácio imperial. Lá permaneceram mudos, com as

mãos nos bolsos, deixaram-se respingar pela lama lançada

pelas rodas dos carros, encolheram os ombros sob a chuva

que caía sobre os seus surrados casacões. [… ]

Um policial a cavalo gritava para que eles fossem

adiante, que se afastassem mais para o lado ou até para

a próxima esquina — mas já estavam parados novamente;

o mundo parecia estar submerso entre suas largas e encovadas

faces, iluminadas pela noite, e o muro que se erguia

ali adiante, sobre o qual escurecia.

— Eu não entendo — disse Diederich — por que a

polícia não toma medidas mais severas. Isto é uma turma

de rebeldes.

— O senhor não se preocupe — respondeu Wiebel.

A polícia tem suas instruções. Os senhores lá em cima

têm as suas intenções bem calculadas, disso o senhor pode

estar certo. — [… ]

O trânsito de carruagens ficou paralisado; os pedestres

aglomeravam-se e eram arrastados pela torrente lenta

em que submergia a praça e por este mar turvo e sujo

de miseráveis que avançava viscoso, com sons abafados, e

do qual se erguiam, como mastros de navios afundados,

varas com os cartazes: PÃO! TRABALHO! Um murmúrio

irrompia da massa, ora aqui, ora acolá:

— Pão! Trabalho! — Crescia, revoando sobre a massa

como um trovão:

— Pão! Trabalho! — […]

A polícia os vai empurrando. […] Então alguém diz:

— Aquele lá não é Guilherme?

Ninguém sabia como era possível marchar em massa

compacta por toda a extensão da rua e até os flancos do

cavalo que o imperador montava: ele em pessoa. Viam-no

e o acompanhavam. Grupos de manifestantes eram dissolvidos

e arrastados pela massa. Todos olhavam para o

imperador. Era um ondular confuso, desordenado, ilimitado,

e acima deste ondular um jovem senhor de capacete:

o imperador. […]

Dos lados, onde as fileiras eram menos cerradas, pessoas

melhor vestidas diziam umas às outras:

— Graças a Deus, ele sabe o que quer!

— Mas o que é que ele quer?

— Mostrar a essa turba quem está com o poder! [.. . ]

Não se pode dizer que ele seja covarde. Gente, este é um

momento histórico![… ]

Um jovem com um chapéu de artista que caminhava

ao lado de Diederich disse:

— Isto é velho! Em Moscou, Napoleão fez o mesmo:

somente, sem proteção, misturou-se com o povo.

Diederich respondeu: — Mas isto é maravilhoso… —

e a voz lhe falhou. O outro encolheu os ombros: — Tudo

encenação, e não das melhores.

Diederich fitou-o, tentando imitar o olhar faiscante

do imperador, e disse:

— O senhor também é um destes. — Mas não estaria

cm condições de explicar o que queria dizer com ‘destes’.

Sentiu apenas, pela primeira vez em sua vida, que lhe cabia

defender uma causa justa contra as críticas de seus

inimigos. Apesar de seu nervosismo, olhou ainda para os

ombros do jovem: não eram largos. Ademais, todos ao

seu redor mostravam-se indignados. Com isso, Diederich

tomou uma atitude. Com a sua barriga, empurrou o inimigo

de encontro ao muro e começou a bater nele. Outros

o ajudaram. O chapéu já caíra ao chão, e pouco depois

o homem caíra também. Diederich. já seguindo os

outros, comentou com os que lhe haviam ajudado:

— Aposto que esse não serviu no exército! — [.. . ]

Um senhor idoso, com suíças grisalhas e a cruz de

ferro, também estava lá e apertou a mão de Diederich:

— Bravo, jovem, bravo!

— Não é de se perder a calma? — perguntou Diederich

ainda ofegante. — Quando um sujeito como aquele

quer estragar um momento tão solene. [.. . ]

— Permita-me, prezado senhor — alguém gritou, agitando

seu bloco dc anotações. — Temos de noticiar isso.

Como pano de fundo, sabe? O senhor surrou um companheiro?

 

— Ninharia — Diederich ainda ofegava. — De minha

parte poderíamos iniciar logo o combate ao inimigo interno.

O nosso imperador já está conosco.

— Ótimo — disse o repórter, e escreveu: ‘Na agitada

multidão, ouviam-se de pessoas de todas as classes sociais

manifestações da maior lealdade e de inabalável confiança

no imperador’.

— Viva! — gritava Diederich com todos. E em meio a essa avalancha de pessoas ele alcançou o Portão de Brandenburgo. Dois passos à sua frente cavalgava o imperador.

Diederich podia ver-lhe o rosto, a sua fisionomia seria,

o seu olhar faiscante; mas esta imagem se turvou a

seus olhos de tanto que gritava.” (de O Súdito)

“Uma de nós os culpava por tudo e desejava que eles morressem. Outra os culpava por tudo e desejava que ela estivesse morta. Outras aprendiam a viver sem pensar neles em absoluto. Nós nos lançávamos ao trabalho e ficávamos obcecadas pela ideia de arrancar mais uma erva daninha. Deixávamos os espelhos de lado. Parávamos de pentear o cabelo. Esquecíamos a maquiagem…Esquecíamos de Buda. Esquecíamos de Deus. Desenvolvíamos uma frieza interna que ainda não derreteu. Temo que minha alma tenha morrido…” (de O Buda no sótão)

…sou contra a nostalgia.
Não, não é verdade. Eu gostaria de ser contra a nostalgia. Para onde quer que eu olhe há alguém renovando votos com o passado. Recordamos canções que na verdade nunca nos agradaram, voltamos a ver as primeiras namoradas, colegas de curso por quem não tínhamos simpatia, saudamos de braços abertos gente que repudiávamos.
Me assombra a facilidade com que esquecemos o que sentíamos, o que queríamos. A rapidez com que assumimos que agora iremos rir das mesmas piadas. Queremos, julgamos ser de novo os meninos abençoados pela penumbra.
Estou nessa armadilha…” (de FORMAS DE VOLTAR PARA CASA)

destaques resenha

REFERÊNCIAS NO BLOG

[1] https://armonte.wordpress.com/2014/09/30/destaque-do-blog-os-luminares-de-eleanor-catton/

[2] https://armonte.wordpress.com/2014/07/10/o-filho-incorrigivel-das-ditaduras-imre-kertesz-e-historia-policial/

[3] https://armonte.wordpress.com/2014/11/04/o-buda-no-sotao-de-julie-otsuka-destaque-entre-as-traducoes-de-2014/

16/12/2014

“Michael Kohlhaas” e a mentira convertida em ordem universal

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“… Lutero enviou ao príncipe eleitor da Saxônia uma carta na qual revelava ao soberano, depois de uma amarga menção aos senhores Fulano e Beltrano, camareiro e copeiro de Wenzel von Tronka[1], que se encontravam à volta de sua pessoa e que havia, conforme todo mundo sabia, desconsiderado sem mais a queixa, usando da franqueza que lhe era característica, que, sendo tão terríveis as circunstâncias, não restava outra coisa a fazer a não ser aceitar a sugestão do comerciante de cavalos e lhe conceder anistia pelo que havia ocorrido, retomando seu processo. A opinião pública, observou ele, estava do lado daquele homem de um modo altamente perigoso (…) as coisas facilmente poderiam escalar a um grau em que nada mais se conseguiria fazer usando apenas o poder do Estado. Concluiu dizendo que nesse caso extraordinário era necessário deixar de lado os escrúpulos de não negociar com um cidadão do Estado que apelara às armas, que o mesmo de certo modo havia sido colocado fora dos vínculos estatais através do procedimento que lhe havia sido imposto; e que, em resumo, para sair da questão, seria necessário considerá-lo antes uma força estrangeira que atacara o território, o que aliás parecia adequado na medida em que se tratava de fato de um estrangeiro, e não de um rebelde que se levantara contra o trono.”

(uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 16 de dezembro de 2014)

No ano em que sua versão cinematográfica é exibida no Brasil, Michael Kohlhaas (1810) ganhou duas novas traduções: a de Marcelo Backes (Civilização Brasileira) e a de Marcelo Rondinelli (Grua).

A novela de Heinrich von Kleist (que se suicidou aos 34 anos, em 1811) tem como protagonista “um dos homens mais honestos e terríveis da sua época”[2] (o século XVI). Ao tentar atravessar, como sempre fizera, a propriedade do fidalgo Wenzel von Tronka, o comerciante de cavalos é surpreendido com a exigência de documentos, deixando como penhor dois animais (com um servo). Descobrindo, em Dresden, que fora enganado, ao voltar constata que seu servo fora ignominiosamente expulso e que seus belos cavalos foram usados (de uma maneira que os depauperou) no arado. Não obtendo satisfação do fidalgo, primeiramente ele tenta as chamadas vias legais com petições rejeitadas após longa demora (o judiciário é controlado por parentes de Von Tronka, cortesãos chegados ao Príncipe da Saxônia); quando começa a se impacientar, sua leal esposa toma as rédeas do assunto, com resultados fatais; daí então, vendendo suas propriedades e colocando os filhos sob proteção, Kohlhaas se torna um chefe justiceiro, espalhando o terror.

Kleist delineia o paradigma supremo de um comportamento recorrente, que podemos conferir em Coração Valente ou na série Desejo de Matar (com Charles Bronson), ou em todas as manifestações que mexeram com o nosso país (e outros países) em tempos recentes[3]: a exigência da justiça, do cumprimento da lei, através de uma ação que não se conforma com o moroso (e sobretudo tortuoso) protocolo judiciário, e que por isso invariavelmente descamba para o banditismo e para a violência: a pretensa ordem social é posta em questão, e o protesto acrescenta mais um elemento ao caos[4]. Kohlhaas começa, ele próprio, a afixar mandados em que determina a entrega do fidalgo fujão (depois que o vingador arrasou seu castelo) e congrega atrás de si uma multidão de descontentes e desocupados, muitos deles dignos do epíteto “escória”—aliás, um dos asseclas prejudicará muito a causa do comerciante.

Se o lado épico do relato (o assalto de Kohlhaas a vários burgos e seus informes à população, baseados no seu direito à reparação, ele colocando o mundo pelo avesso) já é possante, o momento em que o herói (de caráter complexo), graças ao salvo conduto, negociado por Lutero e que garante sua liberdade (e que no entanto lhe será de precária valia), permanece em Dresden novamente aguardando por uma ratificação oficial e judicial dos seus prejuízos, alça Michael Kohlhaas a uma das maiores obras-primas já escritas. Um tanto porque a exigência do “homem honesto e terrível”, da maneira como dá azo a trâmites bizarros (e incidentes narrativos inesquecíveis), beira o absurdo (no que este tem de cômico e inquietante): ele quer os mesmos cavalos que deixara com o fidalgo, devolvidos ao seu estado físico original; e outro tanto porque cada vez fica mais claro que, no presumível estado de direito, “a mentira se converte em ordem universal, como formulou um admirador incondicional de Kleist, Franz Kafka, um século depois (em O Processo).[5]

   Exemplo de absurdo também é a atitude do Príncipe da Saxônia: deixando a administração dos negócios públicos tornar-se insustentável e arbitrária, à mercê da incúria e da injustiça de cortesãos intrigantes e ciosos dos seus privilégios, sua obsessão é recuperar o vaticínio de uma cigana sobre o futuro da sua linhagem nobre, e que foi parar na mão de Kohlhaas. A tentativa de entrever os caminhos da Providência acrescentando outra pitada de tempero ao desconcerto do mundo.

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TRECHO SELECIONADO

“Entrementes, o príncipe eleitor da Saxônia, entregue a seus pensamentos lastimáveis, havia convocado dois astrólogos, chamados Oldenholm e Olearius, que eram muito respeitados na Saxônia na época, e pedido seu conselho acerca do conteúdo do misterioso bilhete, tão importante para toda sua estipe e sua descendência; os homens, depois de uma investigação profunda, que durou  vários dias, na torre do castelo de Dresden, não conseguiram entrar em acordo sobre se a profecia dizia respeito a séculos tardios ou se referia aos tempos atuais, e se talvez a coroa polonesa, com a qual as relações continuavam assaz hostis, estava incluída nos termos e assim, devido àquela disputa entre sábios, em vez de amenizar a inquietude, para não dizer o desespero em que se encontrava o infeliz soberano, apenas tornou o sentimento ainda mais agudo, fazendo-o aumentar a um grau que era totalmente insuportável para sua alma (…) o príncipe eleitor, o coração cheio  de desgosto e arrependimento, foi se trancar em seu quarto como alguém que estivesse completamente perdido, e lá ficou durante dois dias, cansado da vida, sem tomar qualquer alimento, até que no terceiro dia depois de um breve anúncio  ao palácio do governo de que viajaria até o príncipe de Dessau para caçar, desapareceu de Dresden repentinamente. Para onde ele foi, e se de fato chegou a ir a Dessau, deixaremos em aberto, na medida em que as crônicas a partir das quais contamos, comparando-as, nesse ponto se contradizem e se anulam de modo bem estranho.”

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_________________________________

NOTAS

[1] Acredito haver um erro de revisão nessa passagem: Fulano e Beltrano são camareiros da Corte e não do fidalgo Von Tronka, seu parente.

[2] Utilizo a tradução de Backes, contemplada com o Prêmio Paulo Rónai, pela Biblioteca Nacional.

[3] Reconheço que são exemplos desencontrados e arbitrários, mas todos podem evocar outros.

[4] Conforme (no Posfácio de sua tradução) nos diz Marcelo Backes “…Kohlhaas é, antes de mais nada, um John Locke obrigado a pegar em armas, um filósofo liberal de espada na mão. Abandona o pacto social, que não lhe concede a satisfação legal que lhe é devida, e busca o direito natural do ser humano.”

[5] Ainda seguindo a linha de argumentação de Backes, “…Seu caso [o de Kohlhaas] desde o princípio não tem saída, e em determinado momento as coisas inclusive começam a andar por si...”,  mostrando que o imperativo épico (a necessidade e a possibilidade de ação de um herói) já se encontra ferido de morte, o que desaguará nas fábulas kafkianas.

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09/12/2014

Das cavernas de aço ao sol desvelado: o futuro da humanidade segundo Isaac Asimov

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(uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 09de dezembro de 2014)

De Isaac Asimov (1920-1992), a Aleph vem reeditando não apenas o clássico ciclo de romances sobre a Fundação[1], como também as aventuras de Elijah Baley, a segunda das quais é O sol desvelado (belo título brasileiro para “The naked Sun”,1957—a tradução é de Aline Storto Pereira[2]): o investigador viaja para Solaria a fim de elucidar um assassinato (ali inexistem forças policiais, pois nunca houvera um crime), com seu parceiro, o robô Daneel Olivaw, cuja aparência reproduz a dos Siderais (pelo menos em sua versão “idealizada” pelos terráqueos como Baley),  habitantes de colônias, que nutrem profundo desprezo pelo nosso planeta-origem — onde há forte resistência à integração de robôs nas engrenagens produtivas.

Em Solaria, o número de habitantes é escasso: a natalidade e o crescimento populacional são rigidamente controlados, os serviços são executados por uma legião de robôs, e o que torna o homicídio do Dr. Delmarre ainda mais enigmático é a aversão que os solarianos desenvolveram à presença física de outros indivíduos: a não ser em raros e contrafeitos momentos, todo contato é holográfico. Por isso, as suspeitas recaem sobre a esposa, Gladia, único ser humano na propriedade, além do morto. Não obstante, não se consegue imaginar como ela teve acesso ao marido de forma a agredi-lo com uma arma não encontrada.

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A investigação de Baley tem como obstáculos principais essa rejeição ao contato pessoal por parte dos solarianos (afora a arrogância com que são tratados os oriundos da Terra) e seu pânico em estar num planeta onde se vive na superfície, fazendo-o enfrentar espaços abertos — com uma visão direta do sol, daí o título: “Ele evitava olhar para aquele vazio azul, isto é, vazio a não ser pelos tons de branco aglomerados de algumas nuvens ocasionais e o brilho do sol desvelado. Ainda assim Baley foi capaz de lutar contra o desejo de correr, de voltar para um ambiente fechado (o próprio Asimov era o oposto daquele que sofre de fobia claustrofóbica:  era aficcionado por espaços pequenos fechados e não gostava muito de viajar).

Aliás, o primeiro romance da série chama-se As Cavernas de Aço (“The caves of steel”, 1954[3]) exatamente porque assim são as cidades da Terra no futuro asimoviano: conglomerados urbanos no interior do planeta, com alucinante concentração populacional, totalmente isolados do que restou da natureza, e nos quais os pequenos luxos da privacidade são arduamente conquistados.

Genial urdidor de tramas, nem sempre o notável bielorrusso (que viveu a maior parte de sua existência nos EUA) mostrou-se um prosador inspirado, e isso empana um pouco do brilho da narrativa de As Cavernas de Aço. Mas em O Sol Desvelado o estilo apresenta-se menos “tímido”, e ele permite-se alguns voos que permitem ao leitor apreender de forma cabal os efeitos psicológicos de questões como ocupar um espaço pessoal, proximidade, percepção do impacto físico do mundo à nossa volta.

Se a fábula é inteligentíssima e a narrativa mostra um domínio maior como escritor, o que deixa pasmo o leitor é a reflexão civilizatória atualíssima[4]: ao contrastar as culturas da Terra e de Solaria, o autor de O Fim da Eternidade antecipou dois perigos que parecem antípodas, no entanto são interfaces do mesmo fenômeno: de um lado, a superpopulação e o colapso de uma organização social para a qual a natureza passa a ser uma ameaça quanto mais destruídos os recursos do planeta; por outro, ancorados numa dependência alarmante da tecnologia (a servidão, a par da sua presença mais e mais ostensiva, dos seres positrônicos, que ocupa boa parte do imaginário dos livros protagonizados por Baley, incluindo sua complicada parceria com Daneel), indivíduos cada vez mais isolados em seus nichos, com relacionamentos virtuais substituindo os reais, e uma indiferença gritante com relação ao resto do universo. O resultado nunca é a melhora da condição humana, e sim, como aponta um sociólogo solariano, “conforme uma pessoa avança rumo ao topo, encontra cada vez menos pessoas para desfrutar de tudo isso. Invariavelmente, há uma preponderância dos despojados”.

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NOTAS

[1] Incluí a trilogia inicial na lista que 100 maiores romances do século XX que preparei para A TRIBUNA na virada do milênio.

[2] Pela Hemus, que publicou anteriormente as obras de Asimov no Brasil, saiu como Os robôs.

[3] Pela Hemus (e foi um dos primeiros Asimov que li, justamente nessa versão), Caça aos robôs.

[4] Minha avaliação é completamente oposta à de Antonio Luiz M.C. Costa, o qual aponta o envelhecimento da visão asimoviana do futuro e tacha de “datados” tanto As cavernas de aço quanto O sol desvelado, entre outros fatores, pelo tratamento das questões de gênero:

http://www.cartacapital.com.br/blogs/antonio-luiz/a-robotica-de-asimov-uma-ciencia-passadista-1515.html

Apesar de não concordar muito com o texto (penso que ele passa longe do “coração” do universo asimoviano), ele chama a atenção para aspectos bem interessantes.

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03/12/2014

O TUDO-NADA DA EXPERIÊNCIA: “A Obra em Negro”, de Marguerite Yourcenar

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(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 16 de junho de 1998)

Se 1968 é o ano que ainda não terminou, como quer o título de um livro de sucesso, uma das razões, para quem gosta de literatura, é que há trinta anos, em meio àquela época de contestação e rebeldia, publicou-se uma das maiores, mais contestatórias e rebeldes obras de ficção do século XX: A obra em negro (L´oeuvre au noir, em tradução de Ivan Junqueira), embora o romance de Marguerite Yourcenar só tenha aparecido naquele momento em virtude de uma querela judicial que se arrastava desde 1965.

A obra em negro é a história de Zênon, filho bastardo dentro de uma abastada família flamenga, que deixa Bruges, sua terra natal, após matar numa briga o aprendiz de artesão Perrotin, tornando-se com os anos um famoso (e para a Igreja, herético) médico, filósofo e alquimista, na linha de Leonardo, paracelso, Giordano Bruno.

Na primeira parte, A vida errante, após um perfil de Zênon aos 20 anos, a grande escritora belga (de expressão francesa) acaba mostrando-o quase sempre de viés, mais como um objeto da opinião pública, que especula a respeito de suas várias transgressões, em meio a mentiras, boatos e distorções. Conhecemos também, paralelamente, a trajetória de algumas pessoas ligadas a Zênon: sua mãe, Hilzonda, que morre num cerco aos anabatistas, rebeldes religiosos; seu primo, Henri-Maximilien, que abandona a família para engajar-se em qualquer guerra…

obra em negro

É no capítulo “Conversa em Innsbruck” que conhecemos o Zênon já maduro, resultado das viagens e perseguições, enfim, de uma vida precária e ameaçada. E a princípio não se tem certeza de que se pode simpatizar com um tipo tão opiniático, tão lúgubre e amargo, tão consumido pela experiência.

Se a primeira parte já é interessante, com seu painel do século XVI, onde se vive, grosso modo, o conflito entre o Catolicismo e a Reforma Protestante, A obra em negro cresce vertiginosamente (e também a figura de Zênon, que passa a ocupar o primeiro plano quase que exclusivamente) nas duas outras partes, A vida imóvel e A prisão. O belo filme de André Delvaux, com um notável Gian-Maria Volonté no papel central, concentra-se mais nesse ponto da história, muito menos movimentado, porém mais denso: Zênon decide voltar clandestinamente a Bruges, estabelecendo-se como o médico Sebastian Theus, de certa forma protegido pelo compassivo prior dos franciscanos, Jean-Louis de Berlaimont (que foi admiravelmente encarnado por Sami Frey na versão cinematográfica). Depois da morte do prior, por causa de confusões sexuais de noviços no mosteiro, acaba nas mãos da Inquisição, sentenciado à fogueira, da qual escapa pelo suicídio.

Da vida imóvel de Zênon emerge o grande tema das maiores obras de Yourcenar, na minha opinião: o tudo-nada que é a experiência. Ela nos descreve a experiência da vida da forma mais detalhista, para depois nos mostrar a sua dissolução e a sua negação. É o que faz Zênon,  no abismo (título do capítulo-âmago do romance), experimentando os limites do corpo e da mente, de forma que, em meio aos resíduos do que ele viveu e pensou e sentiu, ele consegue roçar o não-ser.

A ironia é que, engajado nessa experiência de superação dos limites da nossa condição, ele se vê ao mesmo tempo enredado (no sentido mesmo da vítima na teia de aranha), num contexto histórico que não deixa muitas saídas para quem não professe um dogma ou pertença a um partido, a uma determinada associação. Tendo escolhido uma existência sem laços, Zênon sempre será o suspeito, o dissidente, o que traz em si o princípio da negação, embora dele se diga: “por estar mais familiarizado com o procedimento que consiste em negar tudo—para depois ver se em seguida se pode reafirmar alguma coisa—e, em desfazer tudo—para ver depois tudo se refazer em outro plano ou de outra forma…”

Ou como ele mesmo diz, é preciso morrer um pouco menos tolo do que quando se veio ao mundo.

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02/12/2014

A BALADA DE ADAM HENRY: Ian McEwan, a dimensão do irreparável e a fachada cinzenta

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“Homens ocultavam recursos em contas do exterior, mulheres exigiam para sempre uma vida de conforto. Mães impediam crianças de ver os pais apesar de ordens judiciais; pais se negavam a oferecer sustento aos filhos apesar de ordens judiciais. Maridos agrediam esposas e filhos, esposas mentiam ou maquinavam ardis, um ou outro, bêbados, viciados em drogas ou psicóticos; e crianças, na prática, eram obrigadas a tomar conta de pais incapazes, crianças de fato vítimas de abusos sexuais ou mentais, ou ambos, seus depoimentos transmitidos numa tela ao tribunal. E fora da área de competência de Fiona, em casos das cortes criminais e não das varas de família, crianças torturadas, mortas de fome ou por espancamento, espíritos maus arrancados de dentro delas em ritos animistas padrastos jovens e cruéis quebrando ossos de bebês sob os olhares abobalhados e cúmplices das mães, e drogas, álcool, sujeira doméstica extrema, vizinhos indiferentes e seletivamente surdos para não ouvir os gritos, assistentes sociais descuidados ou atarefados demais para intervir…”

(uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 02 de dezembro de 2014)

A leitura de A Balada de Adam Henry me fez relembrar das bem-sucedidas peças de Peter Shaffer, como Real Caçador do Sol (1964), Equus (1973) e Amadeus (1979), nas quais com inteligência cênica (e boa dose de esquematismo, pois todas seguiam uma fórmula) um indivíduo disfuncional e incômodo[1], entretanto cheio de vida, no sentido pleno do termo (no que tem de dor e horror também) colocava em xeque o protagonista aparentemente realizado, “ajustado”. Textos de uma época em que a razão ocidental e seus parâmetros eram questionados visceralmente, ainda guardavam um quê da contracultura.

Fiona Maye, a protagonista de Ian McEwan em seu novo romance, é uma juíza da vara de família. Uma decisão controversa de sua parte afetará o futuro de Adam Henry, a poucos meses de se tornar maior de idade (o título original, The Children Act, refere-se à lei britânica correspondente ao nosso Estatuto da Criança e do Adolescente): testemunha de Jeová, ele recusava a transfusão de sangue que o salvaria de sequelas tenebrosas do tratamento de leucemia e da morte certa. Visando o seu bem-estar e pleno desenvolvimento (em especial, depois de visitá-lo no hospital), dentro do entendimento que a lei permite, apesar das convicções arraigadas do próprio rapaz e do respeito ao relativismo cultural, Fiona determina que ele receba a transfusão.

O problema é que Adam é um exaltado (e poeta, resgatando o sentido romântico que outrora revestia o epíteto), amante do absoluto (para quem foi jovem e idealista, será fácil reconhecer-se), por mais ridículo que pareça para os padrões atuais, quando até a juventude parece mergulhada na ironia e na negatividade. Ele se afasta da comunidade religiosa a que pertencia e passa a seguir Fiona, a qual representaria uma instância suprema diversa, a justiça secular, com outra sabedoria (pobre e iludido Adam!) e o poder de transfigurar o destino das pessoas. E dessa forma, no parco contato direto que tem com a mulher que salvou sua vida, ele a confronta com possibilidades transgressivas e insólitas (por exemplo, deseja morar com ela).

Mas nós, leitores, conhecemos muito bem, a essa altura, a juíza (Adam é focalizado de modo mais oblíquo — pudera, é um personagem espinhoso, roçando o improvável), sabemos que o marido a largou, à beira dos 60 anos, “por falta de ardor”, e que ela vive o cotidiano mais rotineiro e convencional, no que tais palavras podem sugerir de estreito, mesmo com uns laivos diferenciais (é musicista amadora, porém talentosa). Embora profissional capaz, justa, e uma boa pessoa, não há ninguém mais distante de ser um indivíduo estimulante — capaz de mudar, de fato, fora das prerrogativas legais, qualquer existência — do que ela.

Por infelicidade, num determinado momento, Fiona se deixa levar pela vitalidade voraz de Adam e comete uma ação impensada e ominosa, por todos os padrões da “normalidade”. E então, mesmo num formato narrativo limitado (vejo em A Balada de Adam Henry a vocação de um conto longo, esticado em demasia), Ian McEwan tem a oportunidade de colocar numa fábula de ambientação contemporânea a dimensão do irreparável, fundamento de seu livro mais celebrado, Atonement-Reparação (2001). Nele, o dano causado era retificado através das várias versões literárias que a perpetradora, uma escritora, se propôs ao longo da vida como expiação (uma delas, justamente o romance que líamos).

A questão fascinante suscitada pelos dilemas morais (numa época em que se prega, mas pouco se pratica, o respeito à diversidade) e pelos atos de consequência desastrosa no tecido narrativo de A Balada de Adam Henry se descortina quando o irreparável que se pratica não tem nem o esteio da reelaboração literária dos eventos. De volta a uma forma mais sucinta (não obstante Sweet Tooth-Serena, seu livro anterior, ser uma de suas melhores realizações), McEwan talvez atingisse novamente a voltagem crispada e implacável de sua obra-prima, Amsterdam (1998).

Nada feito. Ele preferiu (assim como sua Fiona) o morno, o cauteloso, aquele voo confortável nas asas da elegância estilística que já comprometera consideravelmente o escopo de Sábado (2006), outra fábula moral sobre a atualidade que prometia muito e resultava desfibrada. Temos muitas passagens citáveis (“Até onde era neurologicamente possível não pensar, ela não tinha nenhum pensamento”, na excelente versão de Jorio Dauster), nada incomuns, contudo, no time de prosadores britânicos de alto coturno, como Margaret Drabble ou Julian Barnes, para citar apenas dois nomes do seu naipe e próximos em faixa etária (e ambos já traduzidos no Brasil[2]).

O leitor, talvez injustamente, se sente meio Adam Henry, forçando a entrada para uma possível (e desejável) exploração em profundidade dos meandros morais o nosso estágio civilizatório, deparando-se com um cutucar a onça com vara longa demais, de dentro de uma zona de conforto bem delimitada. Daí a inesperada nostalgia pelos dramas maniqueístas (nunca chegavam ao fundo, decerto), todavia nada escassos em ardor, do mencionado Peter Shaffer. O Ian McEwan de A Balada de Adam Henry é todo ele uma impecável e indevassável fachada cinzenta

VER TAMBÉM NO BLOG

https://armonte.wordpress.com/2012/06/26/esplendores-e-miserias-de-reparacao/

https://armonte.wordpress.com/2012/06/28/destaque-do-blog-serena-de-ian-mcewan-ou-as-praticas-invasivas/

balada

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NOTAS

[1] Como Atahualpa, em Real Caçador do Sol, pertencente a uma civilização diferente, “bárbara”, na visão do conquistador europeu. Mas sua função dramática não é muito diferente do perturbado Alan Strang de Equus e do Mozart tal como figurado em Amadeus.

[2] De Margaret Drabble recomendo  A era do gelo (1977), A geração do meio (1980) e A trilha luminosa (1987), publicados pela Rocco assim como diversos livros de Barnes, mais conhecido no Brasil nos últimos anos, após ter recebido o Booker Prize por O sentido de um fim (2011).

VER AQUI NO BLOG:

https://armonte.wordpress.com/2012/01/24/o-escritor-como-personagem-conan-doyle-e-seu-caso-dreyfus/

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