

Há exatamente uma década, Ian McEwan publicou o extraordinário Amsterdam, romance curto, seco, eivado de humor ácido, no qual os dois protagonistas alcançavam tal ponto de ódio mútuo que ambos “encomendavam” eutanásia no mercado negro médico da cidade-título como forma de eliminar o outro. Um deles, aliás, estava comprometido com a criação de uma sinfonia da virada do milênio, que seria uma “elegia do século morto”: “… finalmente chegar, através de uma mudança expansiva, a um tom remoto e –com fragmentos de som caindo como um nevoeiro que se dissipa— a uma melodia de conclusão, a uma despedida, a uma melodia reconhecível e de beleza penetrante que transcendesse sua falta de modernidade e parecesse tanto chorar o século findo e sua crueldade sem sentido quanto comemorar sua inventividade brilhante.”
Acredito que foi justamente essa a intenção de McEwan ao escrever Reparação ( “Atonement”, 2001, em tradução de Paulo Henriques Britto), que agora entra novamente em evidência com a bela adaptação cinematográfica (Desejo e Reparação), de Joe Wright, indicada a vários Globos de Ouro, e que acabou por transformar-se em seu livro mais famoso, rompendo de certa forma com seu estilo anterior, que chegara ao ápice em Amsterdam.
Reparação é quase anacrônico (“que transcendesse sua falta de modernidade”…), lembrando muito a prosa da primeira Virginia Woolf (Noite e dia, de 1919, por exemplo) ou o E.M. Forster de A mais longa jornada. Tem uma tessitura virtuosística que assombra e ao mesmo tempo irrita porque parece a cada instante um tour-de-force, inegavelmente inventivo e brilhante, e inegavelmente capaz de evocar a crueldade do século XX.


Como se sabe, a trama começa nos anos 30 quando Briony, que quer ser escritora, surpreende uma cena entre sua irmã Cecile e um agregado da casa, Robbie. A imaginação ficcional da menina dá significados sombrios ao que ela não compreende e, mais tarde, ela acusará Robbie do estupro de uma prima. Robbie será preso e ainda haverá um longo interlúdio de sofrimento (ele como soldado na 2ª. guerra, que ocupa tanto, demais, do livro) e de expiação (Briony como enfermeira), até que ela realmente possa oferecer a reparação ao mal feito…
Há escritores que são notáveis pela materialidade com que seu universo emerge para o leitor (é o caso de Maria Valéria Rezende, por exemplo); e há outros em que o fascínio se dá pela insubstancialidade com que revestem o mundo (é o caso de Bernardo Carvalho).
O frustrante na leitura de Reparação é que o livro é cheio de “fatos, fatos, fatos” (como queria Virginia Woolf nos seus surtos de “romance tradicional”), todavia tudo cheira a virtuosismo verbal, a uma experiência cerebral. Nós lemos duzentas páginas de horrores da guerra e temos a impressão de que o autor se compraz a cada momento em imagens da mais consumada ourivesaria narrativa. McEwan homenageia uma tradição literária do século XX com grande arte.
Será que ele consegue algo mais?
(uma versão da resenha acima foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 10 de janeiro de 2008)

Na resenha acuna, iniciei comentário sobre Reparação, cuja adaptação cinematográfica ganhou merecidamente o Globo de Ouro de melhor filme.
O foco do artigo anterior era o ar de literatura “velha”, de evocação nostálgica que o estilo de Ian McEwan transmitia, o que parecia confirmar algo que já reiterei muitas vezes nesta coluna: a obsessão dos ingleses com o passado. Basta ver as tramas dos Booker Prize (e McEwan, vencedor com Amsterdam, fora uma das saudáveis exceções) ou dos filmes indicados a prêmios e que fizeram sucesso ao longo dos últimos anos, para constatar que há uma fuga do contemporâneo, um desejo arqueológico e preciosista de recuperar o que foi. Sintoma dos estertores do Império. Foram-se os dedos, ficam os anéis… Se alguém objetar que é perfeitamente legítimo um “luxo” excessivo de linguagem nos dias que correm, basta lembrar o estilo de Alan Pauls, no seu O Passado, cheio de imagens, vazado numa linguagem anti-cinematográfica, radical em sua estranheza e quase hostilidade à velocidade narrativa em uso atualmente. Nem por isso ocorre a qualquer leitor que se trate de um estilo afetado e “faisandé”.
Ademais, embora fosse um romance de “fatos, fatos, fatos” (como é o caso da longuíssima narração de uma retirada durante a 2a. Guerra), o livro padecia de uma curiosa irrealidade, com sua atmosfera de exercício virtuosístico. Fiz, então, alusão a dois dos melhores escritores brasileiros em atividade, que podem ser tomados como antípodas do interesse ficcional: quando se lê Maria Valéria Rezende se sente frontalmente a materialidade do seu universo, independentemente da época ou lugar em que transcorra a trama; já em Bernardo Carvalho, o charme é o da insegurança ontológica básica que movimenta as jornadas insubstanciais dos seus protagonistas. Não sinto no McEwan de Reparação vontade de passar esse sentimento de irrealidade, e por isso acho estranha e insatisfatória a carência de materialidade de sua 2a. Guerra.

Em contrapartida, há todo um lado esplendoroso (até mesmo comovente) em Reparação.
Mais do que Virginia Woolf ou E.M. Forster, a aproximação em que mais se insistiu a respeito do livro foi com o Henry James do magnífico What Maisie Knew – Pelos Olhos de Maisie (ao qual McEwan, porventura irritado com as comparações, se refere maliciosamente no seu romance seguinte, Sábado), de 1897, porque em ambos tudo se organiza a partir do olhar de uma menininha.
James, como Machado de Assis e Joseph Conrad, é um mestre do relativismo, do ponto de vista restrito que não permite que tenhamos acesso a todos os fatos. Como na primeira parte de Reparação, temos não somente o ponto de vista equívoco e equivocado de Brionny sobre os fatos, mas também das outras partes envolvidas, Robbie e Cecile, a princípio concluí que havia uma diluição, um empobrecimento do que foi conquistado por narrativas como Maisie (que me parecia mais moderno em termos de linguagem que o romance de McEwan), A volta do parafuso, Dom Casmurro ou Coração das Trevas.
O desfecho permite perceber que é um grande equívoco, digno da Brionny-menina, e como a narrativa de Reparação é requintada (aqui, no bom sentido), e não requentada: desde o começo, Brionny era enfocada sob o ângulo da escritora cujo impulso imaginativo não apenas floresce, como vai se enraizar numa quase maníaca ânsia de ordem, de organização do mundo, de rearrumar a bagunça, por assim dizer, à sua volta (o que também é uma aptidão para a literatura, claro). Nós sabemos que ela acusou Robbie injustamente de estupro e no final nos é revelado que ela escreveu várias versões de uma narrativa reparatória, na qual desse a palavra a ele e a Cecile, sua irmã (o que acaba sendo a primeira parte do romance, tão eqüitativa nos seus pontos de vista, causando tanta insatisfação aos adeptos das narrativas não confiáveis, como é o meu caso). Só que Brionny nunca conseguiu uma versão satisfatória (porque seria preciso corrigir a vida), e o fato de ter criado tantas versões, de ter levado a sua reparação a tais extremos, dificulta saber: quais foram os fatos mesmos? A própria simpatia que injeta em Robbie (um dos personagens mais cativantes dos últimos anos) já fica sob suspeita, pois também parece fazer parte da estratégia expiatória. Relemos, então, a primeira parte, e descobrimos que desde o princípio, tudo era literatura. Como diz Cecile, num confronto que não ocorreu (mas que ocorreu, pois o lemos): “Não há fatos novos e você não é uma testemunha confiável”. Não é, pois ela faz o que sempre fará o escritor e o que já fazia aos 13 anos, quando Maisie sabia de fato muito pouco: reordenar o acontecido.


Nesse ponto, Reparação dá um salto para afirmar-se como o grande romance do triunfo do que é ficcional, literariamente fabricado, e se torna mais real como obra, pelo menos para mim. A verdade da mentira.
Brionny, avatar do fazer literário, ama as simetrias. Há uma especialmente forte e eficaz em Reparação, que resgata dois “palavrões” do uso trivial e vazio. Há uma “boceta” essencial para a primeira parte, e um “caralho” na terceira.
A boceta está no rascunho de carta que Robbie escreveu para Cecile e mandou por engano, e o qual, interceptado por Brionny, vai estendendo seus efeitos escandalosos sobre ela e os outros, de forma a se transformar em peça-chave no processo contra ele. A palavra, crescendo no vácuo do horror imaginativo da menina ignorante (estamos nos anos 30, é preciso lembrar), mostra-se um símbolo do que permanecia então interdito, no lusco fusco da hipocrisia, e nas dobras das relações entre classes (as quais determinam a desgraça, irreparável, de Robbie).
Quando Brionny, anos mais tarde, trabalha como aprendiz de enfermeira como meio de expiação do seu “crime”, um soldado solta o interjetivo caralho enquanto ela retira estilhaços da sua perna. No clima de sofrimento absoluto e miséria humana do hospital para feridos da guerra, ele pode até ser repreendido severa e vitorianamente pela Enfermeira-Chefe, só que o poder do caralho como “palavra feia” e impronunciável se esvai, se perde, cada vez mais, diante da morte a granel e inglória. A impressionável Brionny sequer pensa nele alguma vez, após ouvi-lo proferido. Ele se mostra o símbolo da realidade solapadora de todas as distinções anteriores.
Dois palavrões dispostos estrategicamente no livro para marcar o deslizamento histórico que também é um deslizamento de consciências. A nossa vida como uma vida entre palavras. A materialidade do insusbstancial.
(uma versão da resenha acima foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 17 de janeiro de 2008)
