MONTE DE LEITURAS: blog do Alfredo Monte

Novas rapidinhas do Alfredo (8 de novembro de 2015)- Cecília, nascimento e morte

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Oito de novembro

O mar é só mar, desprovido de apegos,
matando-se e recuperando-se,
correndo como um touro azul por sua própria sombra,
e arremetendo com bravura contra ninguém,
e sendo depois a pura sombra de si mesmo,
por si mesmo vencido. É o seu grande exercício.

Novembro. mês de Cecília, nascimento e morte (ou seja, as operações básicas do existir).Vejamos o poema inteiro:

MAR ABSOLUTO
(Cecília Meireles)

Foi desde sempre o mar,
E multidões passadas me empurravam
como o barco esquecido.

Agora recordo que falavam
da revolta dos ventos,
de linhos, de cordas, de ferros,
de sereias dadas à costa.

E o rosto de meus avós estava caído
pelos mares do Oriente, com seus corais e pérolas,
e pelos mares do Norte, duros de gelo.

Então, é comigo que falam,
sou eu que devo ir.
Porque não há ninguém,
tão decidido a amar e a obedecer a seus mortos.

E tenho de procurar meus tios remotos afogados.
Tenho de levar-lhes redes de rezas,
campos convertidos em velas,
barcas sobrenaturais
com peixes mensageiros
e cantos náuticos.

E fico tonta.
acordada de repente nas praias tumultuosas.
E apressam-me, e não me deixam sequer mirar a rosa-dos-ventos.
“Para adiante! Pelo mar largo!
Livrando o corpo da lição da areia!
Ao mar! – Disciplina humana para a empresa da vida!”
Meu sangue entende-se com essas vozes poderosas.
A solidez da terra, monótona,
parece-mos fraca ilusão.
Queremos a ilusão grande do mar,
multiplicada em suas malhas de perigo.

Queremos a sua solidão robusta,
uma solidão para todos os lados,
uma ausência humana que se opõe ao mesquinho formigar do mundo,
e faz o tempo inteiriço, livre das lutas de cada dia.

O alento heróico do mar tem seu pólo secreto,
que os homens sentem, seduzidos e medrosos.

O mar é só mar, desprovido de apegos,
matando-se e recuperando-se,
correndo como um touro azul por sua própria sombra,
e arremetendo com bravura contra ninguém,
e sendo depois a pura sombra de si mesmo,
por si mesmo vencido. É o seu grande exercício.

Não precisa do destino fixo da terra,
ele que, ao mesmo tempo,
é o dançarino e a sua dança.

Tem um reino de metamorfose, para experiência:
seu corpo é o seu próprio jogo,
e sua eternidade lúdica
não apenas gratuita: mas perfeita.

Baralha seus altos contrastes:
cavalo, épico, anêmona suave,
entrega-se todos, despreza ritmo
jardins, estrelas, caudas, antenas, olhos, mas é desfolhado, cego, nu, dono apenas de si,
da sua terminante grandeza despojada.

Não se esquece que é água, ao desdobrar suas visões:
água de todas as possibilidades,
mas sem fraqueza nenhuma.

E assim como água fala-me.
Atira-me búzios, como lembranças de sua voz,
e estrelas eriçadas, como convite ao meu destino.

Não me chama para que siga por cima dele,
nem por dentro de si:
mas para que me converta nele mesmo. É o seu máximo dom.
Não me quer arrastar como meus tios outrora,
nem lentamente conduzida.
como meus avós, de serenos olhos certeiros.

Aceita-me apenas convertida em sua natureza:
plástica, fluida, disponível,
igual a ele, em constante solilóquio,
sem exigências de princípio e fim,
desprendida de terra e céu.

E eu, que viera cautelosa,
por procurar gente passada,
suspeito que me enganei,
que há outras ordens, que não foram ouvidas;
que uma outra boca falava: não somente a de antigos mortos,
e o mar a que me mandam não é apenas este mar.

Não é apenas este mar que reboa nas minhas vidraças,
mas outro, que se parece com ele
como se parecem os vultos dos sonhos dormidos.
E entre água e estrela estudo a solidão.

E recordo minha herança de cordas e âncoras,
e encontro tudo sobre-humano.
E este mar visível levanta para mim
uma face espantosa.

E retrai-se, ao dizer-me o que preciso.
E é logo uma pequena concha fervilhante,
nódoa líquida e instável,
célula azul sumindo-se
no reino de um outro mar:
ah! do Mar Absoluto.

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E um de seus belos poemas autorreflexivos e meditabundos:

NOÇÕES

Entre mim e mim, há vastidões bastantes
para a navegação dos meus desejos afligidos.

Descem pela água minhas naves revestidas de espelhos.
Cada lâmina arrisca um olhar, e investiga o elemento que a atinge.

Mas, nesta aventura do sonho exposto à correnteza,
só recolho o gosto infinito das respostas que não se encontram.

Virei-me sobre a minha própria experiência, e contemplei-a.
Minha virtude era esta errância por mares contraditórios,
e este abandono para além da felicidade e da beleza.

Ó meu Deus, isto é minha alma:
qualquer coisa que flutua sobre este corpo efêmero e precário,
como o vento largo do oceano sobre a areia passiva e inúmera…]

E creio que qualquer um que já escreveu sobre gatos, sobretudo poetas, tem um osso duro de roer para igualar o poema abaixo:

OS GATOS DA TINTURARIA

Os gatos brancos, descoloridos,
passeiam pela tinturaria,
miram policromos vestidos.

Com soberana melancolia,
brota nos seus olhos erguidos
o arco-íris, resumo do dia,

ressuscitando dos seus olvidos,
onde apagado cada um jazia,
abstratos lumes sucumbidos.

No vasto chão da tinturaria,
xadrez sem fim, por onde os ruídos
atropelam a geometria,

os grandes gatos abrem compridos
bocejos, na dispersão vazia
da voz feita para gemidos.

E assim proclamam a monarquia
da renúncia, e, tranqüilos vencidos,
dormem seu tempo de agonia.

Olham ainda para os vestidos,
mas baixam a pálpebra fria

 

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27 de outubro

Simone de Beauvoir é muito mais do que a autora de uma bíblia do feminismo, embora O Segundo Sexo permaneça um ensaio fundamental. Entre outras façanhas, ela expunha a filosofia de Sartre melhor do que ele, com total limpidez, e ainda por cima escreveu a Moral que o companheiro de toda a vida ficou devendo em O Ser e o Nada:

«Uma moral da ambiguidade será uma moral que se recusará a negar a priori que existentes separados possam ao mesmo tempo estar ligados entre si e que suas liberdades singulares possam forjar leis válidas para todos»

«… vimos que o desígnio original do homem é ambíguo: ele quer ser, e na medida em que coincide com essa vontade, fracassa; todos os projetos nos quais se atualiza esse querer-ser são condenados, e os fins circunscritos por esses projetos permanecem miragens. Nessas tentativas abortadas, a transcendência humana se abisma de maneira vã. Mas o homem se quer também desvelamento-do-ser e, se coincide com essa vontade, ganha, pois o fato é que, através de sua presença no mundo, o mundo se torna presente»

«A infelicidade que vem ao indivíduo por ele ter sido uma criança reside, pois, no fato de que sua liberdade lhe foi primeiramente mascarada e de que por toda a sua vida ele conservará a nostalgia do tempo em que ignorava as exigências dela»

«…pois se é verdade que o homem não é, também é verdade que ele existe; para realizar positivamente sua negatividade, ele precisará contradizer incessantemente o movimento da existência…»

«A atitude niilista manifesta uma certa verdade: a ambiguidade da condição humana nela é experimentada; mas o erro é que ela define o homem não como a existência positiva de uma falta, mas como uma falta no cerne da existência, ao passo que, na verdade, a existência não falta a si mesma enquanto tal. E se a liberdade é aqui experimentada sob a forma de uma recusa, ela não realiza autenticamente […] Em vez de integrar a morte à vida, o niilista vê nela a única verdade da vida, que lhe aparece apenas como morte disfarçada; entretanto há a vida e o niilista se sabe vivo; é nisto que reside o seu fracasso: ele recusa a existência, sem conseguir aboli-la…»

[utilizo a tradução de Marcelo Jacques de Moraes para Por uma moral da ambiguidade)

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25 de outubro:

Acabei de escrever a resenha sobre o mais recente romance de Umberto Eco. Além dos textos que podem ser encontrados aqui, fiz o seguinte louvor à sua obra ficcional pré-O Cemitério de Praga:

http://osdeportados.blogspot.com.br/2010/02/alfredo-monte-comenta-obra-de-umberto.html

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07 de outubro

Vou dar dez chutadas para o vencedor do Nobel, vamos ver se acerto:

  1. Adonis
  2. Claudio Magris
  3. Ismail Kadaré
  4. Mia Couto
  5. António Lobo Antunes
  6. Umberto Eco
  7. Agustina Bessa-Luís
  8. Peter Handke
  9. Amin Maalouf
  10. A.B. Yehoshuayehoshua46299_img1Peter-Handke_Foto-Lillian-BirnbaumAgustina-Bessa-Luís

«Pensar
é como tatear uma sombra
entrar de rastos
numa profusão de escuros»

Alguns poemas da recém-falecida escritora portuguesa ANA HATHERLY

A MATÉRIA DAS PALAVRAS

Estamos aqui. Interrogamos símbolos persistentes.
É a hora do infinito desacerto-acerto.

O vulto da nossa singularidade viaja por palavras
matéria insensível de um poder esquivo.

Confissões discordantes pavimentam a nossa hesitação.
Há uma embriaguês de luto em nossos atos-chaves.

Aspiramos à alta liberdade
um bem sempre suspenso que nos crucifica.

Cheios de ávidas esperanças sobrevoamos
e depois mergulhamos nessa outra esfera imaginária.

Com arriscada atenção aspiramos à ditosa notícia de uma perfeição
especialista em fracassos.

Estrangeiros sempre
agudamente colhemos os frutos discordantes.

AUTO-RETRATO
Este que vês, de cores desprovido,
o meu retrato sem primores é
e dos falsos temores já despido
em sua luz oculta põe a fé.

Do oculto sentido dolorido,
este que vês, lúcido espelho é
e do passado o grito reduzido,
o estrago oculto pela mão da fé.

Oculto nele e nele convertido
do tempo ido escusa o cruel trato,
que o tempo em tudo apaga o sentido;

E do meu sonho transformado em ato,
do engano do mundo já despido,
este que vês, é o meu retrato.

ELA-AGORA

Não menos que Helena bela

Ela senta-se à janela

Porém não à janela mas às janelas

Do computador

Que abrem portas que são redes

Páginas que são sítios

Avenidas que são ermos

Que agora percorremos

Já sem voz

Cada vez mais sós

Tanta profusão

Atira-nos

Para um lixo que nos deita fora

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final de julho de 2015:

« Três coisas. A primeira, ler. Não precisa ser muito, umas sessenta páginas por dia já resolvem; a segunda, escrever sobre as próprias obsessões porque delas nunca se escapa; e, terceira: nunca, mas nunca mesmo, fale a respeito do que está escrevendo—além de ser uma chatice, falar, fazer pesquisa, pensar a respeito, não é escrever. Escrever é escrever…»

Por causa de uma internação, fiquei sabendo só agora da morte do maravilhoso E.L. Doctorow (1931-2015), para mim um dos maiores escritores dos EUA.

E pensar que ele sempre deu sorte com o final 5, pois em 1975 publicou RAGTIME (esqueçam do filme sonífero do Milos Forman, o romance é sensacional); em 1985, WORLD´S FAIR (aqui no Brasil, A GRANDE FEIRA–um dos seus dois livros mais belos); em 2005, o portentoso A MARCHA.
Mas sua obra-prima ((junto com o já citado WORLD´S FAIR) é mesmo O LIVRO DE DANIEL (este sim, adaptado com precisão por Sidney Lumet, aliás, um de seus melhores filmes), de 1971.
Sempre achei bem exagerados os arrulhos em torno de BILLY BATHGATE (1989), ainda sim gosto bastante do livro. Doctorow era tão bom que é difícil não encontrar coisas boas até mesmo em seus trabalhos mais discutíveis, caso de LOON LAKE-O LAGO DA SOLIDÃO (1980), ou CITY OF GOD- DEUS: UM FRACASSO AMOROSO (2000). Sobre este último, VER AQUI NO BLOG:

https://armonte.wordpress.com/2013/03/25/a-cidade-de-deus-de-doctorow-um-fracasso-amoroso-de-leitura/

E tem aquela pequena joia, um texto curto e porreta, chamada VIDA DOS POETAS (1984), que dá título a uma coletânea.

Um poeta da recuperação visionária da História e das mentalidades, esse era Doctorow. Minha pequena homenagem atrasada a um autor que me deu tanto prazer de leitura.

VER TAMBÉM:

https://armonte.wordpress.com/2012/10/07/especial-nobel-o-caso-norte-americano/

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15 de junho- O primeiro dos POEMAS MALDITOS GOZOSOS E DEVOTOS (1984), de Hilda Hilst, que tem muito a ver com as minhas atuais leituras de Kazantzákis.

«I

Pés burilados

Luz alabastro

Mandou seu filho

Ser trespassado

 

Nós pés de carne

Nas mãos de carne

No peito vivo. De carne.

 

Pés burilados

Fino formão

Dedo alongado agarrando homens

Galáxias. Corpo de homem?

Não sei. Cuidado.

 

Vive do grito

De seus animais feridos

Vive do sangue de poetas, de crianças

 

E do martírio de homens

Mulheres santas.

 

Temo que se aperceba

De umas misérias de mim.

Ou de veladas grandezas

 

Soberbas

De alguns neurônios que tenho

Tão ricos, tão carmesins

Tem esfaimada fome

Do teu todo que lateja.

 

Se tenho a pedir, não peço.

Contente, eu mais lhe agradeço

Quanto maior a distância.

E só porisso uma dança, vezenquando

Se faz nos meus ossos velhos.

 

Cantando e dançando, digo:

Meu Deus, por tamanho esquecimento

Desta que sou, fiapo, da terra um cisco

Beijo-te pés e artelhos.

 

Pés burilados

Luz-alabastro

Mandou seu filho

Ser trespassado

 

Nos pés de carne

Nas mãos de carne

No peito vivo. De carne.

 

Cuidado.»

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 E de fato, a própria Hilda declarou a respeito:

«Quando eu estava com 33 anos, um querido amigo que morreu, Carlos Maria de Araújo, poeta português, me deu um livro de [Nikos] Kazantzákis: “Carta a El Greco”. Eu o li e fiquei deslumbrada. Era um homem que ficava lutando a vida toda até terminar de uma maneira maravilhosa, escrevendo um poema de 33 mil versos, “A nova odisseia”, onde lutava com a carne e com o espírito o tempo todo. Ele desejava ao mesmo tempo esse trânsito daqui pra lá. Era o que eu queria: o trânsito com o divino. E também o trânsito com o homem e todas as maravilhas da vida, o gozo físico, a beleza física do outro. Era um consumismo meu, absolutamente terrível, porque ofendia muito as pessoas. Eu me impressionei tanto com a caminhada desse homem admirável, que resolvi ir morar num sítio. Achei que, longe e de certa forma me enfiando também (porque eu era uma mulher muito interessante), durante um certo tempo bem longo, eu pudesse trabalhar, escrever. E foi maravilhoso. Foi justamente nesse lugar, nesse sítio, que eu, longe de todas aquelas invasões e das minhas próprias vontades e da minha gula diante da vida, pude escrever o que escrevi. Acho que é verdade que qualquer pessoa que deseje realmente fazer um bom trabalho tem que ficar isolada, tem que tomar um distanciamento. É mais ou menos uma vocação. Você sente que aquele momento é o momento e que não há muito tempo. Às vezes, as pessoas dizem: “Eu vou quando estiver mais velhinho, ou mais velhinha. Ou quando eu estiver pior. Aí eu começo”. Mas acontece que não dá tempo. Então, aos 33 anos, fui para esse sítio onde moro até hoje, e me entreguei a um novo trabalho».

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4 de junho de 2015

«Há no Livro de Jó aquela famosa queixa de que Deus exige demais. Jó protesta que está se sentindo atormentado de maneira insuportável […] Fora uma exigência grande demais para a consciência e a capacidade humanas, ultrapassando suas possibilidades de resistência. Não estou falando apenas das exigências morais, mas também da imaginação necessária para produzir uma figura humana de estatura adequada. Qual a verdadeira estatura de um ser humano?»

Este é um trecho da pág. 226, de um dos livros mais antigos comprados por mim (tenho a data escrita no exemplar: 18/05/1982), a edição da Abril Cultural- Coleção Grandes Sucessos da tradução de Denise Vreuls de O PLANETA DO SR. SAMMLER.
Foi meu primeiro Saul Bellow (cujo centenário de nascimento será comemorado no dia 10), e nestes últimos dias, anos depois, relendo a prosa do Bellow maduro (o romance é de 1970) em seu esplendor e capacidade de fundir narração e meditação, compreendo perfeitamente o motivo de não ter parado de ler esse grande escritor (logo depois veio aquele que ainda é meu favorito, O LEGADO DE HUMBOLDT, então descobri as traduções dos primeiros livros, POR UM FIO, A VÍTIMA e AQUI E AGORA– depois traduzido como AGARRE AVIDA; aí li HENDERSON, O REI DA CHUVA; e coroando essa fase inicial, HERZOG; ainda teria um grande momento em DEZEMBRO FATAL, e aí veio o Bellow “menor”—será?—de A MÁGOA MATA MAIS, PRESENÇA DE MULHER, RAVELSTEIN e os contos de TROCANDO OS PÉS PELAS MÃOS; só em 2009, tivemos a tradução de um de seus mais famosos trabalhos, AS AVENTURAS DE AUGIE MARCH, que é um pouco prolixo e cansativo, mas ainda assim um belo e audacioso projeto do mítico “o grande romance americano”).
Mas, em tom maior ou menor, uma bela convivência de 33 anos com um dos mestres da imaginação moral da literatura das últimas décadas:

«Depois da guerra, Sammler mandara dinheiro, pacotes com víveres para Cieslakiewicz, Houve correspondência com a família […] após alguns anos, as cartas começaram a exprimir sentimentos antissemíticos. Nada de muito exagerado. Não fora uma grande surpresa, nem mesmo era inesperado. Cieslakiewicz tivera seu momento de honra e de caridade. Arriscara as vida para salvar Sammler. O velho polonês também fora um herói, mas o seu heroísmo acabara, terminara. Afinal, era um ser humano comum e desejava tornar-se novamente o que sempre fora. Fizera já o suficiente. Não tinha ele, então, o direito de ser outra vez ele próprio? De retornar a seus antigos preconceitos?…»

«O que é que havia para recuperar? Tinha pouca saudade das primitivas formas do que ele fora. Inamistoso[…] No ambiente humano, como todos os outros, dentro das particularidades da vida comum, ele era humano—e, aos poucos, voltava ao normal das criaturas, com as suas baixezas e o seu encanto animalesco. Assim, agora, realmente, Sammler já não mais sabia como enfrentar-se a si próprio. Desejava, com Deus, ficar livre dos liames do comum e do finito, tal e qual uma alma liberada da natureza das impressões e da vida diária. Para que isso pudesse acontecer, o próprio Deus estaria à espera, sem dúvida. E um homem que fora morto, e até enterrado, não deveria ter outros interesses. Deveria estar completamente desinteressado. Eckhart dizia que Deus amava a pureza e a unidade desinteressadas[…] E o que além do espírito havia de causar cuidados a um homem egresso do túmulo? Porém, misteriosamente acontecia, conforme Sammler pudera observar, encontrar-se novamente atraído, poderosamente atraído e devolvido à condição puramente humana. Assim sendo, aquelas manchas que se encontravam no interior da substância de cada um sempre pontilhariam de reflexos tudo o que o homem procura e tudo o que o circunda. E assim, a sombra dos seus nervos sempre projetaria listras, como as árvores por cima do capim, ou como a água na areia, uma rede feita de raios de luz. Era como um segundo encontro do espírito desinteressado com necessidades biológicas causadas pelo destino, uma luta permanente com a criatura persistente…»

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19 de março de 2015

Como os velhos pensadores marxistas têm a nos ensinar. Em 1919, Lukács escrevia o trecho abaixo (do ensaio O que é marxismo ortodoxo), que cai como uma luva nesta nossa época de estatísticas, cifras, pesquisas de opinião e “fatos” econômicos:

«Evidentemente, todo conhecimento da realidade parte de fatos.Trata-se de saber quais fatos da vida e em que contexto metodológico merecem ser considerados como fatos importantes para o conhecimento.
O empirismo limitado contesta a afirmação que os fatos só se tornam fatos por meio da elaboração de um método—que varia conforme a finalidade do conhecimento. Acredita poder encontrar em todo dado, em toda cifra estatística, em todo “factum brutum” da vida econômica um fato importante por si. Não vê que a mais simples enumeração de “fatos”, a justaposição mais despojada de comentários já é uma interpretação, que nesse nível os fatos já foram apreendidos a partir de uma premissa, e que eles assim são abstraídos do contexto da vida no qual se encontravam originariamente e introduzidos no contexto de uma teoria (…)
O caráter enganoso de tal metodologia reside no fato de que o próprio desenvolvimento do capitalismo tende a produzir uma estrutura de sociedade que vai ao encontro dessas opiniões. No entanto, é justamente nesse sentido e por ele que precisamos do método dialético para não sucumbirmos à ilusão social assim produzida e podemos entrever a essência por trás dessa ilusão. »
(em História e Consciência de Classe, utilizo, adaptando-a, a tradução de Rodnei Nascimento, ed. Martins Fontes)

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TheSpire

29 de dezembro

Alguns romances-novelas que chegam ao meio século em 2014. Alguns fundamentais para o gênero, alguns deliciosos e inteligentíssimos, alguns irregulares e até discutíveis em certos aspectos), porém todos importantes e merecedores de leitura/releitura, cinquenta anos depois,de Lol V. Stein a Miss Marple
Quem souber de outros, me dê um toque  (coloquei só os que têm tradução no Brasil, o que deixa de fora THE SPIRE, de William Golding, uma das mais lamentáveis lacunas editoriais):

1. Le ravissement de Lol V.Stein (no Brasil, “O deslumbramento”), de Marguerite Duras;
2. Herzog (Saul Bellow);
3. Juntacadaveres ( Junta-Cadáveres), de Juan Carlos Onetti;
4. A paixão segundo G.H.(Clarice Lispector);
5. The italian girl (A moça italiana), de Iris Murdoch;
6. The arrow of god (A flecha de Deus), de Chinua Achebe;
7. Os quatro rios (primeiro volume de “As relações humanas”), de Agustina Bessa-Luís;
8. Beleza e tristeza (Yasunari Kawabata);
9. Greybeard (no Brasil, “Jornada da esperança”), de Brian Aldiss;
10. Uma vida em segredo (Autran Dourado);
11. Julian (Juliano), de Gore Vidal;
12. Nothing like the sun (Nada como o sol), de Anthony Burgess;
13. O coronel e o lobisomem (José Cândido de Carvalho);
14. Sol das almas (Hermilo Borba Filho);
15. Os pastores da noite (Jorge Amado);
16. A caribbean mystery (Mistério no Caribe),de Agatha Christie.

Além dos romances, é bom lembrar que coletâneas indispensáveis como “A legião estrangeira”, de Clarice, e “Cemitério de elefantes”, de Dalton Trevisan, também  apareceram em 1964, bem como naquele fatídico ano, as peças de Suassuna, “Uma mulher vestida de sol” e “O santo e a porca” foram publicadas em livro (num só volume), apesar de serem mais antigas.

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13 de novembro- Além da morte do grande intelectual marxista Leandro Konder, Manoel de Barros se foi, sem conseguir chegar ao centenário, mas quase perto:

“Há quem  receite a palavra ao ponto de osso, de oco,

ao ponto de ninguém e de nuvem.

Sou mais a palavra com febre, decaída, fodida, na

sarjeta.

Sou mais a palavra ao ponto de entulho.

Amo arrastar algumas no caco de vidro, envergá-las

pro chão, corrompê-las

até que padeçam de mim e me sujem de branco.

Sonho exercer com elas o ofício de criado:

usá-las como quem usa brincos.

(de ARRANJOS PARA ASSOBIO, 1980)

13.

Venho de nobres que empobreceram.

Restou-me por fortuna a soberbia.

Com esta doença de grandezas:

Hei de monumentar os insetos!

(Cristo  monumentou a Humildade quando beijou os

pés dos seus discípulos.

São Francisco monumentou as aves.

Vieira, os peixes.

Shakespeare, o Amor, a Dúvida, os tolos.

Charles Chaplin monumentou os vagabundos).

Com esta mania de grandeza:

Hei de monumentar as pobres coisas do chão mijadas

de orvalho.

11.

Prefiro as máquinas que servem para não funcionar:

quando cheias de areia de formiga e musgo — elas

podem um dia milagrar de flores.

 

(Os objetos sem função têm muito apego pelo aban-

dono)

 

Também as latrinas desprezadas que servem para ter

grilos dentro — elas podem  um dia milagrar violetas.

 

(Eu sou beato em violetas)

 

Todas as coisas apropriadas ao abandono me religam

a Deus.

Senhor, eu tenho orgulho de ser imprestável!

 

(O abandono me protege)

8.

Nasci para administrar o à toa

                                    o em vão

                                    o inútil.

Pertenço de fazer imagens.

Opero por semelhanças.

Retiro semelhanças de pessoas com árvores

                                de pessoas com rãs

                                de pessoas com pedras

                                 etc etc.

Retiro semelhanças de árvores comigo.

Não tenho habilidades pra clarezas.

Preciso de obter sabedoria vegetal.

(Sabedoria vegeta é receber com naturalidade uma rã

no talo)

E quando esteja apropriado para pedra, terei também

sabedoria mineral.

(de LIVRO SOBRE NADA, 1996)

< Passeio  número 1 >

Depois de encontrar-me com Aliocha Karamazoff,

deixo o sobrado morto

    Vou procurar com os pés essas coisas pequenas do chão

perto do mar

     Na minha boca estou surdo

     Dou mostras de um bicho de fruta.

< Passeio número 2 >

   Um homem (sozinho como um pente) foi visto da

varanda pelos tontos

    Na voz ia nascendo uma árvore

    Aberto era seu rosto como um terreno.

< Passeio número 3 >

Raízes de sabiá e musgo

subindo pelas paredes

   Não era normal

o que tinha de lagartixa na palavra paredes.

< Passeio número 4 >

O homem se olhou: só o seu lado de fora subindo

a ladeira…

   Caminhos que o diabo não amassou — disse.

   Atrasou o relógio

    Viu um pouco de mato invadindo as ruínas de

sua boca!

(de  MATÉRIA DE POESIA, 1970)

***********************************

O último poema do primeiro livro de Manoel de Barros, POEMAS CONCEBIDOS SEM PECADO (1937), por volta dos seus 21 anos:

< Informações sobre a Musa >

Musa pegou no meu braço. Apertou.

   Fiquei excitadinho pra mulher.

   Levei ela pra um lugar ermo (que eu tinha que fazer uma

lírica):

__ Musa, sopre de leve em meus ouvidos a doce poesia,

a de perdão para os homens, porém… quero seleção,

ouviu?

__ Pois sim, gafanhoto, mas arreda a mão daí que a hora

é imprópria, sá?

    Minha musa sabe asneirinhas

   Que não deviam de andar

    Nem na boca de um cachorro!

    Um dia briguei com Ela

    Fui pra debaixo da Lua

    E pedi uma inspiração:

__ Essa Lua que nas poesias dantes fazia papel

principal, não quero nem pra meu cavalo; e até logo, vou

gozar da vida; vocês poetas são uns intersexuais…

   E por de japa ajuntou:

__ Tenho uma coleguinha que lida com sonetos de dor

de corno; por que não vai nela?

*****************************************

O poema abaixo (do qual transcrevo algumas partes) é de COMPÊNDIO PARA USO DOS PÁSSAROS (1960), o primeiro livro na feição que nos acostumamos como típica de Manoel de Barros:

< A MENINA AVOADA >

I

Vi um pato andando na árvore…

   Eu estava muito de ouro de manhã

perto daquele portão –

  Veio um gatinho debaixo de minha

janela ficou olhando para meu pé rindo…

    Então eu vi iluminando em cima de

nossa casa um sol!

   E  o passarinho com uma porcariinha

na boca se cantou.

     Fiquei toda minada de sol na minha boca!

    

   II

   Quis pegar

   entre meus dedos

    a Manhã.

    Peguei vento.

   Ó sua arisca!

 

    Nas ruas do vento

    brincavam os passarinhos

    perto de meu quarto

     junto do pomar.

 

    Estes passarinhos

    sempre eram fedidos a árvores com rios

   que eles traziam da mata

   antes de chover.

 

               III

   Manhã?

   Era eu estar sumida de mim e todo-mundo

me procurando na Praça

    estar viajando pelo chão

    que a água é atrás

    até ficar árvores

    com a boca pendurada para os passarinhos…

(…)

      VI

    Você brincou de mim que uma borboleta

no meu dedo tinha sol?

   Você ia pegar agora

o que fugiu de me rosto agora?

 

    Na beira da pedra aquele cardeal,

    você viu?, fez um lindo ninho

    escondido bem

    para a gente não ir apanhar

seus filhotes, que bom.

 

    Ó meu cardeal,

    você não é um sujeito brocoió à toa!

    Você é um passarinho de atravessado…

(…)

         X

    O bigode do pai crescia no quarto.

    João, caindo aos restos de ninho, chegava

    cheirando a pássaros com ilhas.

    Ia buscar minha boca e voltava do

mato em perfumes…

    Árvore?

    Era a terra debaixo dela ser escura…

(…)

        XV

     Ainda estavam verdes as estrelas

       quando eles vinham

    com seus cantos rorejados de lábios.

    Os passarinhos se molhavam de

        vermelho na manhã

   e subiam por detrás de casa para me

espiarem pelo vidro.

     Minha casa era caminho de um vento

comprido comprido que ia até o fim do mundo.

    O vento corria por detrás do mundo

corria lobinhando — ninguém

   não via ele

   com sua cara de alma.

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poemas concebidos sem pecadocompêndioLNarranjosmanoel de barros_90anos2

6 de novembro

Num belo e perturbador romance, Ricardo Lísias especulou sobre o céu dos suicidas. Minha leitura destes últimos dias é NOSSA TERESA- VIDA E MORTE DE UMA SANTA SUICIDA (ed. Patuá), no qual a autora, Micheliny Verunschk, imagina uma “biblioteca dos suicidas” (também uma babel, pois há na essência das mensagens para os que ficam “uma importante falha no ato comunicativo”):

“O que significam a carta, o bilhete, a anotação feita às pressas, o diário, o poema, o testamento do suicida? Quantas tristes, curiosas, eloquentes,  saudosas, raivosas mensagens se acumulam nas palavras finais daquele que nos deixa. Quanta culpa deixou de herança o seu suicida? Você a partilhou com quem? Com um? Com muitos? Com nenhum? É uma exclusividade sua, a qual acaricia como a um animalzinho insone nas horas mais terríveis? Acaso conseguiu esquecê-la? Não se despreza um presente, ainda que este seja uma mágoa.

   Teresa não deixou uma linha sequer. O que queria dizer ela com isso? (…) Não será importante esse pedaço de papel, por mais ínfimo que seja (…) pelo menos para tentar comunicar o incomunicável?

    Teresa brinca entre as exceções , mas a regra diz que , caso se quisesse, poderia ser erguida uma Biblioteca de Babel com todas as mensagens desses náufragos (…) Em V., a sucursal dessa biblioteca imaginária não seria tímida, bem sabemos. O prédio para abrigá-la poderia ser apropriadamente a antiga casa colonial da Rua do Mercador, a mesma na qual nascera e morrera Luis Osvaldo de Azevedo. É de praxe esse tipo de homenagem a escritores, embora haja quem prefira saudá-los com um nome de rua ou praça ou até com uma estátua mal-ajambrada numa localidade qualquer em que o dito desavisadamente passou. Soubesse que o colocariam ali em duro metal, estático à merda dos pombos e maus cheiros de toda ordem da cidade, teria mudado de trajeto, talvez de trajetória.

   A biblioteca dos suicidas de  paredes verdes por fora e vermelha por dentro sugeririam um aconchego de fruto ou a queda num poço. Eu poderia ser o bibliotecário. Sou vaidoso e gosto do papel. Me orgulharia de saber a exata localização de cada volume. As mensagens, encadernadas, catalogadas, organizadas por tema (morte por tiro, defenestração, envenenamento, enforcamento, asfixia por gás), sexo, idade, motivos aparentes (desilusão amorosa, dívida, problemas familiares, desajuste social) e, claro, maravilha das maravilhas, tudo estaria ligado em rede compondo uma árvore com infográficos, fotografias, relações de todas as espécies inclusive com suicidas  de outros lugares, famosos e anônimos. E eu, já cego, como cabe a todo genuíno bibliotecário, saberia os lugares e movimentos de todos pelo tato, pelo gosto,  pelos cheiros, pela audição, pelo sentido ultrassuperior que agrega todos os outros sentidos quando se é cego. E eu sentiria os movimentos dessa biblioteca pela respiração.”

INFORMAÇÕES- Teresa é a protagonista, uma suicida que se torna santa popular.

   Luis Osvaldo de Azevedo, como ela, é de V., um escritor que se distanciou da cidade, onde se apaixonara por Severa, outra das suicidas da narrativa.

   E o narrador, o candidato a bibliotecário, ficou cego (o médico afirma que provisoriamente) devido a um “acidente isquêmico transitório”.

nossa teresa

20 de Outubro

Depois do Nobel atribuído a Modiano, dei uma colaborada na seguinte matéria, realizada por Carlota Cafieiro, para A TRIBUNA de Santos:

http://www.atribuna.com.br/mobile/cultura/por-que-nenhum-autor-brasileiro-recebeu-o-nobel-de-literatura-1.410355

9 de outubro de 2014

Em 04 de outubro de 2008, em A TRIBUNA de Santos, escrevi nas minhas apostas para o Nobel daquele ano:

“Na França, o maior dos candidatos é um expatriado, o tcheco Milan Kundera, que passou a escrever na língua do seu país de adoção (A Identidade, A Ignorância), mas já era mais conhecido pelas traduções francesas das sua extraordinária obra anterior (A Brincadeira, A Valsa dos Adeuses, O Livro do Riso e do Esquecimento, Risíveis Amores, A Insustentável Leveza do Ser). É um dos que eu ficaria particularmente feliz se ganhasse. Entre os ‘nativos’ (palavra cada vez mais problemática), por que não Patrick Modiano (Rue de Boutiques Obuscures, Ronda da Noite) ou o intrigante J. M. G. Le Clézio (Deserto, À Procura do Ouro, A Quarentena), ambos sobreviventes honrosos do apocalipse de insignificância e irrelevância daquela que foi a pátria oficial da literatura?”

Agora 2/3 dos meus votos se cumpriram (só falta Kundera). Le Clézio levou o prêmio naquele mesmo ano, e agora, em 2014, Modiano.

A respeito de uma de suas obras mais importantes (onde ele configura um Édipo pós-moderno), ver aqui no blog:

https://armonte.wordpress.com/2012/07/28/quando-a-identidade-e-a-memoria-sao-liquidas-uma-rua-de-roma-de-patrick-modiano/

o-autor-deitado

07 de outubro

Tive dificuldade de encontrar um título satisfatório (às vezes isso acontece, mesmo com anos de experiência–aliás, se tornou mais comum com a experiência) para meu post sobre GAROTA EXEMPLAR, de Gillian Flynn:  “GAROTA EXEMPLAR  e a dificuldade de ser um homem ou uma mulher (quanto mais uma pessoa) real”; contudo, apesar de meio estranho, creio que ele transmite a minha ideia básica sobre o livro:

GAROTA EXEMPLAR é, então, uma reflexão ficcional sobre os EUA mergulhado numa regressividade tanto econômica quanto no plano das relações (< É uma época muito difícil para ser uma pessoa, apenas uma pessoa real, de verdade, em vez de uma coleção de traços de personalidade recolhidos de uma interminável máquina automática de personagens >). E, sobretudo, sobre impasses sexistas, em que os indivíduos têm consciência aguda das suas identidades de gênero, numa polarização quase alegórica.”

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03 de outubro

“Parecia que seguiria assim para sempre. Victor precisaria se acostumar a perder jogos que não seriam perdidos se o anão não fosse um anão e tivesse pernas normais.
Victor chegou a falar sobre o caso com seu terapeuta. O terapeuta perguntou se Victor não poderia conversar com o anão, a sós, e dizer que gostaria de parar de jogar no time do anão, pois seu espírito para aquele futebol era mais competitivo do que fraternal. Victor pensou que seria uma abordagem direta demais, que talvez provocasse ressentimentos, não só no anão como em todos os integrantes do grupo do futebol, caso ficassem sabendo. No entanto, saiu do consultório com a ideia na cabeça, sentindo-se até um pouco covarde por saber que dificilmente tomaria tal atitude.
Contra todas as expectativas, a sorte um dia chegou para Victor. No jogo seguinte, ele caiu no time adversário ao do anão. Finalmente Victor poderia ganhar um jogo. Sentiu-se entusiasmado desde o início, um entusiasmo4, que há tempos não ligava ao universo do futebol.
A certa altura do jogo, faltando pouco tempo para acabar, e com o placar ainda em zero a zero, a bola respingou e apareceu na frente de Victor, quicando. Como único defensor a ser superado, na sua reta em direção ao gol adversário, estava o anão. Foi instintivo…”

O trecho acima é uma amostra de “O jogo em que Victor se irritou”, que faz parte de O EXPLICADOR (Ed. Oito e Meio) . Nossa, que conto aflitivo e perverso, aflitivo na medida mesmo em que podemos compactuar dos parâmetros perversos (e no entanto tão corriqueiros) que regulam as emoções e reações de Victor (aliás, a elevação à quarta potência da palavra “entusiasmo” tem a ver com um recurso expressivo recorrente do texto). Se eu tivesse que escolher um destaque pessoal no livro de Leonardo Villa-Forte até agora (não li tudo ainda), seria esse.

(…)

< Antes do mundo acabar, passo a necessitar ter sempre um objeto em minhas mãos. “Tenho medo de não existir mais”, digo à minha mulher, no que ela puxa um vaso que eu segurava. “Tenho medo de ser ilusão”, repito quando ela me arranca um pente. Então eu me agarro a ela, me agarro ao seu braço, à sua perna, mas ela se afasta. Procuro por um papel de embrulho, uma caneta, um chinelo, algo tangível, que eu possa não só ver, mas tocar, ouvir, cheirar, fazer barulho. “Não queria mais meus olhos, não quero ver, satisfaço-me com os dedos”, digo. Ela retira de casa quase tudo que é pontudo. Adentramos uma época difícil, durante a qual não pregamos quadros, não anotamos recados, trocamos a fechadura por uma especial, e eu só como sob sua supervisão. >

Terminei a leitura de O EXPLICADOR , de cujo conto “Notícias de Antes do Fim” escolhi o trecho acima.
Não tendo elaborado nenhuma forma às minhas impressões de leitura, só posso adiantar que o livro de Leonardo Villa-Forte é um dos destaques literários de 2014.

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15 de agosto

Com relação ao espaço (a cidadezinha, se é que pode ser chamada assim, de Hokitika, que vive da mineração, na Nova Zelândia do século XIX), há um diálogo entre dois dos “luminares”  (Sheperd, o carcereiro, e Nilssen, o negociante) que sintetiza bem a essência do que foi o gênero western (ou faroeste, ou ainda banguê-bangue, como chamávamos). Colho aqui e ali alguns trechos:

“__ Se me permitir o pessimismo, disse Sheperd, eu acredito que Hokitika está para viver tempos sombrios. Essa cidade encontra-se no limite. As leis da mineração continuam valendo como crença, nas colinas, e aqui. Ora, não passamos ainda de um apêndice de Canterbury, mas em breve seremos a joia de sua coroa. Westland irá dividir-se e Hokitika irá prosperar; mas enquanto ascende, esta terá de conciliar.

__ Conciliar?

__ Os selvagens e os civilizados.

__ Refere-se aos nativos, às tribos maoris? (…)

__ Eu não utilizo o termo selvagem para definir os nativos… A prospecção é um negócio brutal: faz um homem começar a pensar como um ladrão. E aqui as condições são tão insalubres que acabam desesperando os próprios mineiros.

__ Mas as escavações podem ser civilizadas.

__ Talvez depois de esgotados os rios. Depois que os prospectores derem espaço às represas e dragas e companhias de mineração; quando as florestas estiverem abatida, talvez aí sim.

__ Você não tem fé no poder da lei? (…)

__ Quando dois códigos de justiça estão à disposição simultaneamente, um homem sempre utilizará um para obstruir o outro (…) Não penso que a lei é deficiente; meramente pretendo sintetizar o que ocorre quando o selvagem encontra o civilizado (…)

__ Entendo o seu ponto; o perigo é essa penumbra entre o mundo antigo e o novo…”

Embora desbastado das sinuosidades que parecem ser característica da jovem autora de OS LUMINARES, acho que a amostra dá uma boa ideia da questão civilização x barbárie, do fato de que as fábulas desse tipo geralmente são fundacionais, mostrando como uma nova ideia de lei se impõe sobre outra, arcaica (se mais justa ou injusta…). O que está contido no nome “Hokitika”, conforme será sugerido a Thomas Balfour (o Sagitário entre os “luminares”) pelo maori Tauwhare (Áries): uma esfera dentro de outra esfera (justamente o título da primeira e longa parte do romance).

14 de agosto:

Avançando aos poucos na leitura de OS LUMINARES, o leitor constata como o romance de Eleanor Catton, como toda obra mais complexa, ampla e ambiciosa do gênero, também acaba sendo uma enciclopédia de modos narrativos. Aqui temos desde a proverbial interferência explícita do narrador, muito bem executada (por exemplo, na pág. 59,  As interrupções eram muito maçantes, e a abordagem de Balfour, digressiva demais para merecer um registro completo e fiel na mente dos outros homens e para que pudessem recontá-la com suas próprias palavras. Iremos, doravante, extirpar suas imperfeições e impor uma ordem regimental para essa narrativa impaciente, fruto da mente errante do agente portuário; iremos aqui aplicar nossa própria argamassa para cobrir as fissuras e rachaduras dessas memórias mundanas, e fazer voltar à vida a edificação que, na memória solitária, existe apenas como ruína ), até um momento para mim nitidamente “jamesiano”.

Acho que o autor de “Os embaixadores” é um espírito tutelar no parágrafo abaixo na pág. 145 (e aqui vou utilizar mais uma vez a feliz tradução de Fábio Bonillo), naquele traquejo que muitos leitores acham laborioso e cansativo demais; outros, como eu (talvez anacrônicos leitores), adoram:

Nesse ponto, o negociante comissionado deixou escapar sua deixa. As hipóteses de Nilssen eram sempre do tipo autocorroborativo: ele tendia a favorecer quaisquer provas que melhor aprouvessem a seu senso de conduta, e, igualmente, a agarrar quaisquer condutas  que melhor se prestassem à comprovação. Ele falava constantemente em virtude, assim dando a impressão de ter um temperamento muito entusiasta e otimista, mas sua fé na virtude servia a um mestre bem menos flexível que o otimismo. O benefício da dúvida, para lançarmos mão do provérbio, era um dom fortuito, e Nilssen era muito orgulhoso de seu intelecto para ceder a o poder de uma hipótese.  A seu ver, uma camada protetora de verniz havia sido aplicada às formas cristalinas da alta abstração: ele adorava pôr-lhes repato e admirar-lhes o fulgor, mas ele nunca cogitara descê-las de sua cristaleira esculpida em carvalho, por assim dizer, para senti-las, conformadas, nas próprias mãos. Ele concluíra que Pritchard estava apaixonado somente porque era prazeroso deliberar sobre esse ponto, examinar seu espécime e então retornar ás crenças que há muito possuía…

Na estrutura astrológica do livro, Thomas Balfour (do primeiro trecho) corresponde a Sagitário; Harald Nilssen e Joseph Pritchard (do segundo),  respectivamente a Libra e Escorpião.

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13 de agosto:

Para quem, como eu, lamenta que certos vocábulos estejam à míngua, ao invés de estarem na ponta da língua, um dos charmes da tradução que Fábio Bonillo fez de OS LUMINARES, de Eleanor Catton, está no resgate que ele faz, por exemplo, do “assaz”, que aparece a torto e a direito no texto; e há até um que eu estranhei, e não lembro de ter usado nunca, “precificar”.

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29 de  junho de 2014:

O sempre lúcido Zygmunt Bauman, no incisivo Europa- Uma aventura inacabada (2004), leitura dos últimos dias:

O que é que o Ocidente, representado aos olhos do mundo por seus autonomeados líderes americanos, oferece à parte sofredora do planeta?

   Uns poucos exemplos tirados das políticas implementadas depois da guerra do Iraque (sob o codinome de “reconstrução” ) revelam o significado latente—mas palpavelmente óbvio para os que estão na ponta receptora—da atual cruzada mundial pelo livre comércio.

   Deixemos de lado—porque já foram amplamente divulgadas e rejeitadas como efeitos colaterais (inevitáveis e demonstravelmente provisórios) da ugerra—as consequências diretas da intervenção militar ocidental, tais como a taxa de desemprego de 50 a 70 por cento, o acentuado aumento da mortalidade materna e da incidência de doenças causadas pela má qualidade da água, assim como de outras que poderiam ser evitadas pela vacinação, e a duplicação do nível de destruição aguda, para nos concentrarmos na maneira como se pretende proceder à “reconstrução” do Iraque no pós-guerra sob os auspícios da “marketização ocidental como reforço à eficiência”.

   A reconstrução do sistema de fornecimento de água ficou a cargo da Bechtel Corporation, mesmo depois que as contas de água triplicaram em Cochabamba, na Bolívia, há não muito tempo, depois de um projeto semelhante, e que famílias com renda de 60 dólares tenham recebido contas de água de 20 dólares após a “modernização” do sistema (…) Outra companhia, a MCI, recentemente acusada e condenada por fraude em negócios realizados com o seu antigo nome de WorldCom, foi contratada para estabelecer a rede iraquiana de telefonia sem fio. Outra empresa foi incumbida de construir, ao custo de 15 milhões de dólares, uma fábrica de cimento que acabou sendo erigida por um empresário iraquiano por 80 mil. Mas a Ordem 39, emitida por Paul Bremer, nomeado governador do Iraque pela coalizão, proíbe que os futuros governantes nativos “restrinjam o acesso de proprietários estrangeiros a qualquer setor da economia”, enquanto ao mesmo tempo autoriza os investidores estrangeiros a “transferir para o exterior, sem protelação, todos os fundos associados aos investimentos, inclusive ações ou lucros e dividendos”.

   Poderíamos culpar os “nativos” por traduzirem “triunfo da liberdade e da democracia” por roubo organizado de recursos e promoção de uma sistemática e oficialmente endossada corrupção? 

   Ao lado dos americanos e dos japoneses, os europeus são hoje em dia os turistas mais zelosos e infatigáveis: a milhagem pessoal dos europeus provavelmente supera a dos nativos de outros continentes. Mas a Europa está introspectiva. Para a maioria dos globe-trotters europeus, o resto do mundo não é mais uma missão [que é o tema desse capítulo do livro de Bauman, a essência europeia como um sentido de missão]. Desde que, evidentemente, o serviço seja rápido e os empregados sorridentes, que as instalações integradas e o suprimento do bar estejam em ordem, e que haja guardas armados e câmeras de TV de circuito fechado montando sentinela—e que o preço seja justo.

   Turistas dificilmente se engajam em interações demoradas com nativos. Se discutem, é geralmente para pechinchar os preços dos produtos. As relações entre turistas e nativos se dão estritamente na base do serviço por dinheiro… Realizada a transação, cada qual segue o seu caminho… O que temos a oferecer um ao outro tem seu preço de mercado…

   Nem todo europeu (ou americano) viaja pelo mundo como turista. Alguns vão a lugares distantes para vender produtos. No caso de alguns deles—os que fazem parte do serviço diplomático ou estão em algum outro tipo de missão oficial—o “produto” que “vendem” é seu próprio país ou continente,e o que querem é o direito deles e daqueles dos quais são porta-vozes, de continuar vendo e tratando o resto do planeta como uma série de pontos turísticos e postos comerciais.

(…)

    Poucas pessoa no mundo podem ter deixado de ouvir a mensagem de liberdade e democracia, repetida por qualquer motivo, e mesmo sem motivo. Se, contudo, os muitos que ouviram a mensagem tentassem desvelar o seu conteúdo, observando o comportamento dos remetentes, seria possível desculpá-los por traduzirem “liberdade” por egoísmo, cupidez, ambição e pelo preceito de cada um por si e quem ficar para trás que pague o pato, e “democracia” por “manda quem pode”.

(Jorge Zahar Editor, tradução de Carlos Alberto Medeiros)

VER AQUI NO BLOG:

https://armonte.wordpress.com/2012/07/29/o-signo-de-bauman-um-aperitivo-de-%C2%B4modernidade-liquieda/

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14 de abril de 2014

Hoje o MONTE DE LEITURAS completa 5 anos. Agradeço calorosamente a todos os visitantes.

Aqui vai a lista dos dez posts campeões, os mais acessados ao longo desse período:

https://armonte.wordpress.com/2012/02/07/a-volta-ao-mundo-julio-verne/

https://armonte.wordpress.com/2012/02/05/um-poema-de-wislawa-szymborska-para-cada-dia-da-semana/

https://armonte.wordpress.com/2010/05/07/simone-de-beauvoir/

https://armonte.wordpress.com/2011/04/17/os-personagens-de-shakespeare-em-quatro-atos-longos-e-um-quinto-ato-curto/

https://armonte.wordpress.com/2011/04/18/a-escolha-de-sofia-e-a-farpa-de-gelo-no-coracao-do-escritor/

https://armonte.wordpress.com/2012/05/08/genio-da-raca-lima-barreto/

https://armonte.wordpress.com/2012/01/27/proust-e-o-abismo-homossexual-sodoma-e-gomorra-o-centro-de-em-busca-do-tempo-perdido/

https://armonte.wordpress.com/2012/10/07/guia-mapa-de-alguns-nobelizaveis/

https://armonte.wordpress.com/2011/12/05/lusco-fusco-o-crime-e-castigo-de-rosario-fusco/

https://armonte.wordpress.com/2010/11/17/a-melhor-idade-de-rachel-de-queiroz/

 

https://www.youtube.com/watch?v=lz5x_xcFhBU

https://www.youtube.com/watch?v=CJ_piqKKOkM

https://www.youtube.com/watch?v=UGF8bZJLH6g

https://www.youtube.com/watch?v=Zn6DdUwbAxs

11 de março de 2014:

Nos anos 1980 li e admirei muito alguns livros de Herberto Sales.
No entanto, a leitura de um romance muito ruim, “A Prostituta”, e as conexões do autor baiano com gente da laia de José Sarney, Josué Montello, por exemplo, aquela coisa horrorosa de compadrio da infame Academia Brasileira de Letras (estendido a cargos e carreiras funcionais) me afastaram da sua obra.
Agora em 2014, como uma leitura puxa a outra, pelo menos na minha esdrúxula cabeça, o fato de ter lido dois livros (“O estouro da artéria de um cavalo húngaro” e o “Doutor Fausto”, de António Vieira) nos quais os autores tinham mexido sobremaneira de uma edição a outra, me fez lembrar de uma dívida de leitura com CASCALHO, de Sales, que se encaixa justamente nessa linha de “textos mexidos e remexidos”.
Mas pegando CASCALHO para ler, enfim, acabei pegando também o livro de confissões do mesmo autor, SUBSIDIÁRIO.
Suas quase 700 páginas (além das 300 e poucas do romance) não eram, certamente, a leitura que eu pretendia fazer neste momento, nem algo prático do ponto de vista de certos interesses profissionais mais imediatos.
Mas o fato é que não consegui desvencilhar-me nem desgrudar da leitura de H.Sales nos dias de carnaval, apesar de muito irritado com seu reacionarismo político e diria mesmo existencial. Como sabe, à larga, quem já se aventurou por essas sendas, muitos reacionários são mais interessantes em suas idiossincrasias do que autores que supostamente seriam mais afinados com nossa própria mirada ideológica sobre o mundo.
Além desse paradoxo meio incômodo meio divertido, paguei a divida com CASCALHO, quitação quer ainda me permitiu aclarar para mim mesmo uma série de questões há muito tempo tumultuárias e mal solucionadas que vem do descompasso da minha percepção com o quase total desprezo do mainstream crítico com relação à herança de Zola na ficção, com relação aos autores da geração de 30, etc etc etc.

VER NO BLOG:

https://armonte.wordpress.com/2014/03/11/os-sinais-particulares-de-herberto-sales-cascalho-70-anos/

07 de fevereiro de 2014

O MONTE DE LEITURAS é objeto de estudo de uma dissertação de mestrado de NÚBIA PEIXOTO BARRETO:

http://www.ppgel.uneb.br/wp/wp-content/uploads/2013/11/peixoto_nubia.pdf

24 de janeiro de 2014

Meu gatinho XUXU partir às 18 horas da tarde. Estava comigo desde dezembro de 2005. Muito pouco tempo, mas uma companhia intensamente amada.

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29 de dezembro:

A minha resenha de encerramento de 2013, em A TRIBUNA de Santos será sobre TOTEM E TABU. A princípio tinha idealizado um texto só para o blog sobre o livro, e cheguei a escrever algumas páginas borboleteantes, mas depois pensei o seguinte: geralmente o leitor comum depara justamente com isso, comentários pessoais dissecando, atacando (polemizando com) as ideias de Freud. Então seria legal uma resenha apresentando o pensamento de Freud de forma simples e clara.
Mas do “projeto” inicial, pré-resenha, tiro o seguinte naco:

SOBRE TOTEM E TABU:
Logo no início do terceiro ensaio (“Animismo, Magia e Onipotência dos pensamentos”) entre os quatro que compõem TOTEM E TABU há uma nota de rodapé que se reveste de uma conotação divertida.
Ali, como em outras passagens, Freud lamenta a necessidade de sintetizar muito sumariamente um vasto material (a maior parte ligado à pesquisas etnológicas e mitológicas). E arremata: “A autonomia do autor apenas se pode manifestar na escolha que fez dos temas e das opiniões” (todas as citações, salvo indicação em contrário, foram extraídas da tradução de TOTEM E TABU- Algumas correspondências entre a vida psíquica dos selvagens e dos neuróticos [no original “Totem und Tabu.Einege Übereinstinmmugen in Seelenleben der Wilden und der Neurotiker”], realizada por Renato Zwick (L&PM, 2013), com revisão técnica de Paulo Endo; para fins de consulta e comparação, utilizei também as seguintes traduções: 1) de Paulo César de Souza (“Totem e Tabu, Contribuição à História do Movimento Psicanalítico e outros textos”, volume 11 de “Sigmund Freud- Obras Completas, Companhia das Letras, 2012)—uma edição um tantinho “enxugada” dessa versão de TOTEM E TABU foi publicada à parte pela Penguin/Companhia das Letras (2013); 2) de Órizon Carneiro Muniz (“Totem e Tabu e outros trabalhos”, 1913-1914, volume XIII da Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas de Sigmund Freud, Imago, 2006).
A diversão fica por conta do “apenas”. Ora, Freud sempre foi um autor muito consciencioso com o material pesquisado; quem leu, por exemplo, “A Interpretação dos Sonhos” lembrará que ele identifica escrupulosamente suas fontes e se vale de abundantes (e muito bem escolhidas) citações, de forma a fornecer realmente uma visão enciclopédica do tema de que está tratando. Mas todo esse escrúpulo não o impede de, ao fim e ao cabo, tratar toda aquela vastidão apenas como território introdutório para o essencial, o realmente novo e desbravador, que vai surgir da “escolha” que fez dos temas e a expressão das “opiniões”; em suma, aquilo que “apenas” lhe coube.
E quando se tem consciência do teor das conclusões de TOTEM E TABU, cuja publicação original se tornou centenária em 2013 (ele estava com 57 anos), tão combatidas, ridicularizadas, tidas como escandalosas e fantasiosas, um salto no abismo (mesmo assim entrando na corrente sanguínea das ideias-chave do século XX), afora a própria personalidade do seu autor, aí sim a nota ganha um toque quase malicioso.
Antes de comentar as ideias centrais dos quatro ensaios enfeixados no volume, arrisco-me a provocar a impaciência do meu leitor ressaltando outra nota de rodapé (a qual se encontra no quarto ensaio, O retorno infantil do totemismo) muito sensata e esclarecedora. Nela, somos advertidos de que o estudo dos chamados povos primitivos muitas vezes se deu por vias indiretas, que facilitaram visões possivelmente deturpadas e “construídas”: “Não se deve esquecer que os povos primitivos não são povos jovens, e sim, na verdade, tão antigos quanto os mais civilizados, e que não se tem direito a esperar que tenham conservado suas ideias e instituições originais sem qualquer desenvolvimento e distorção para que tomemos conhecimento delas”. Mais adiante: “Assim, a determinação do estado original é sempre uma questão de construção”.
Assumindo esse terreno escorregadio (ou mesmo pantanoso) para as suas construções, ou seja, suas hipóteses avassaladoras, nem por isso Freud estava menos convicto da sua veracidade básica (e já adianto que ele consegue deixar o seu leitor convicto dessa veracidade, apesar de todos os avisos formais e corretos).

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24 de novembro

Na sexta-feira,  50 anos da morte de um autor que saiu da moda, é pouco citado e lido (a não ser por Admirável Mundo Novo): ALDOUS HUXLEY.

Nascido em 1894, Huxley pertenceu àquela faixa inigualável de escritores que renovaram a ficção inglesa nas primeiras décadas do século: Joyce, V. Woolf, Katherine Mansfield, E. M. Forster, D. H. Lawrence, só para lembrar alguns dos mais notáveis.

Uma pequena cesta básica huxleyana:

CONTRAPONTO (1928)- Um belo exercício de romance dentro do romance (seguindo o André Gide, de Os falsos moedeiros) e bom retrato da vida intelectual inglesa da época. Eu sugeriria uma leitura em espelho com Mulheres Apaixonadas, de Lawrence. É fascinante.

contraponto

ADMIRÁVEL MUNDO NOVO (1932)- Com os avanços da engenharia genética e da farmacologia, é impossível não perceber a intuição genial de Huxley em imaignar uma sociedade seletista e feliz num futuro distópico.

admirável

SEM OLHOS EM GAZA(1936)- Esse é o meu favorito, coloquei-o entre os meus 100 melhores romances do século XX, numa lista para A TRIBUNA de Santos. Uma das melhores explorações do tempo narrativo no romance modernista, e uma espécie de The Golden Notebook  versão masculina.

gaza

A FILOSOFIA PERENE (1945)- Aqui o leitor encontrará as razões filosóficas da passagem do intelectualismo mundano e árido de CONTRAPONTO para o intelectualismo mais flexível e vibrante de SEM OLHOS EM GAZA. Conversão ou uma forma mais abrangente de ver, tanto faz.

filos per

O MACACO E A ESSÊNCIA (1949)- Uma mistura original de narrativa e roteiro, alegoria e farsa, aproveitando as experiências de Huxley como roteirista em Hollywood e o passado de sua família, de cientistas e pensadores evolucionistas.

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AS PORTAS DA PERCEPÇÃO- CÉU E INFERNO (1954-1956)- Muito famoso durante a década de 1960, por descrever as experiências com mescalina de Huxley. Mas os ensaios vão além disso, abordando os limites da consciência humana, de si e do mundo.

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17 de novembro- MORTE DE DORIS LESSING

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Acabo de ver na televisão que DORIS LESSING morreu. É como se eu desse adeus à figura-símbolo de uma boa fatia da minha vida, da minha formação, do meu modo de ver o mundo (minha primeira leitura de um livro dela foi aos 17 anos, em 1982, Roteiro para um passeio ao inferno).  Não deixa de ser curioso que  ela tenha acontecido no mês em que escrevo sobre o centenário do outro autor-chave na minha formação, Camus.

Foram 94 anos de uma vida incrível (ela nasceu em 22 de outubro de 1919). Para mim, a maior.

No blog, poderão ser encontrados os seguintes posts a respeito da obra de Doris Lessing:

https://armonte.wordpress.com/2012/10/22/dez-de-doris/

https://armonte.wordpress.com/2012/10/22/multipla-doris-lessing/

https://armonte.wordpress.com/2012/10/22/amor-de-novo-e-a-vocacao-de-doris-lessing-para-borrar-quadros-harmoniosos/

https://armonte.wordpress.com/2013/10/22/destaque-do-blog-shikasta-de-doris-lessing/

https://armonte.wordpress.com/2013/11/18/a-filha-da-primeira-guerra-alfred-e-emily-de-doris-lessing/

https://armonte.wordpress.com/2012/10/22/a-rede-social/

https://armonte.wordpress.com/2012/10/22/a-maravilhosa-vida-longa-de-doris-lessing/

https://armonte.wordpress.com/2012/10/22/leitura-em-espelho-andando-na-sombra-de-doris-lessing-e-a-forca-das-coisas-de-simone-de-beauvoir/

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primeiro de novembro:

Ao longo do mês vou publicar uma série especial de textos sobre Albert Camus, cujo centenário de nascimento é comemorado no próximo dia 7.

Como o genial autor argelino, de expressão francesa, foi essencial na minha formação pessoal, mergulhei novamente nas suas obras. Tinha traçado um plano unificador para a série, mas depois de uma conversa com José Luiz Passos, eu me convenci de que uma boa abertura seria- fazendo um exercício  à Pietro Citati, quando biografou Goethe-utilizar o DIÁRIO DE VIAGEM como instrumento para delinear fases da vida de Camus como escritor.

Assim, se tudo der certo, a primeira parte do DIÁRIO  servirá como introito para o Camus do absurdo (O estrangeiro; O mito de Sísifo; O mal entendido; Calígula), assuntos dos próximos dias; a segunda parte (referente  à viagem pela América do Sul) será o introito para o Camus da revolta (A peste; O homem revoltado, Estado de sítio; Os justos); a seguir, o início da carreira, ainda na Argélia (O avesso e o direito) e o fim (O exílio e o reino); as pontas soltas, os que ficaram inacabados (A morte feliz; O primeiro homem); a maturidade sombria, em A Queda (o mais belo de seus livros, no entender de Sartre); e, por fim, a essência camusiana, tal como vemos em Núpcias e O verão.

17 DE OUTUBRO

Um velho desejo meu se realizou. Éder Fogaça, meu talentoso amigo poeta, lançou seu primeiro livro, numa edição da Multifoco: PELAS BEIRADAS

Aqui transcrevo o texto que escrevi para a orelha:

“…tudo é escrito/com muito cuidado/pra não borrar/eu digo o que for preciso/ eu não sou preciso/no que digo”. De fato, Éder Fogaça não é preciso no que diz: embora avesso ao retórico, ao grandiloquente, ao excesso de palavras, ele não faz do seu verso algo lapidado em fórmula e em sabedoria de vida cristalizada, sua dicção poética essencialista e econômica é daquelas que tateiam, que buscam, que percorrem os caminhos vicinais à margem da grande estrada das respostas prontas.

Conheci a poesia de Éder por meio de seus admiráveis haicais. Mesmo estes, em sua brevidade exemplar, nunca me pareceram estáticos, “fotografias”. Sempre me parecem “cinema”, movimento puro,  abertos para a impureza da vida, para os percalços dos caminho, seus restolhos e improvisos, primeiros passos depois da chuva.

E talvez seja esse o supremo charme desse “dizer mínimo”, o adjetivo tomado aqui como “econômico”, como traço de caráter, jamais no sentido de “pouco”. Para seus leitores, inclusive os prolixos como o que aqui escreve, Éder Fogaça sempre tem muito a dizer, num raro estilo em surdina.

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O link para o artigo de Heitor Ferraz Mello na CULT, traçando um perfil de ANTONIO GERALDO FIGUEIREDO FERREIRA:
http://revistacult.uol.com.br/home/2013/10/os-bracos-esticados-de-antonio-geraldo/?fb_action_ids=419922251446709&fb_action_types=og.likes&fb_source=other_multiline&action_object_map=%7B%22419922251446709%22%3A746128335404468%7D&action_type_map=%7B%22419922251446709%22%3A%22og.likes%22%7D&action_ref_map=%5B%5D
Há um trecho sobre mim ali:
Fiz um trabalho de formiga”, conta. Arranjou endereços de escritores e críticos espalhados pelo país, pegou os exemplares que a editora havia lhe mandado e, colocando uma dedicatória em cada livro, os enviou pelo correio. “Acabei forjando, à força, uma rede a partir de Arceburgo”, diz.Qual foi o resultado? Sorrindo, ele responde: “Muitos exemplares foram parar no Estante Virtual, aquele site de livros usados, mas, por outro lado, aconteceu o que eu sonhava: que alguém pudesse ler com atenção. Eu tinha lido uma resenha no blog do crítico Alfredo Monte sobre um escritor badalado e publicado por uma grande editora. E ele tinha escrito uma crítica pesada. Pensei com meus botões: esse cara não tem o rabo preso. Foi essa liberdade que me chamou a atenção. Procurei o endereço dele e mandei pelo correio. E um dia vejo que ele havia incluído meu livro no blog como um dos destaques de 2012”.Mas não foi só Alfredo Monte – que escreve para A Tribuna, de Santos, e para a Folha de S. Paulo, e mantém o atualizadíssimo blog Monte de Leituras – que caiu na rede de Antonio Geraldo. Veio um peixe grande logo na sequência.
02 de outubro de 2013-
Uma coisa é certa: há exatamente 50 anos o Nobel acertou em cheio, escolhendo o grego Giorgos Seferis.     Veja-se o poema abaixo (em especial, a belíssima segunda estrofe):
“É velho o porto, já não posso esperar mais
nem o amigo que se foi para a ilha dos pinheiros
nem o amigo que se foi para a ilha dos plátanos
nem o amigo que se foi para o mar alto.
Acaricio os canhões enferrujados, acaricio os remos
para avivar meu corpo e para o decidir.
As velas do barco guardam apenas o aroma
salino da outra tempestade.
Se quisesse ficar só, eu buscaria
a solidão, não buscaria tal espera,
o despedaçamento de minha alma no horizonte,
estas linhas, estas cores, este silêncio.
As estrelas da noite me levam ao anseio
de Odisseu pelos mortos entre os asfódelos.
Entre os asfódelos: quando ali fundeamos
   procurávamos
a ravina que viu Adônis contundido.”
(Giorgos Seféris, poema IX de “Estória Mítica”, 1933-1934, em tradução de José Paulo Paes)
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“Afortunado  quem fez a viagem de Odisseu.

Afortunado se ao partir sentiu, firme sobre o corpo,

a armadura de um amor, como as veias por onde ruge

o sangue.

Um amor de ritmo indissolúvel, invicto como a música

e perene

porque nasceu quando nascemos, e se há de morrer

quando morrermos, não o sabemos nós, ninguém o

sabe.

Rogo ao deus que me ajude a dizer, num momento

de ventura intensa, o que é esse amor:

sinto-me às vezes cercado pelo exílio e lhe ouço

o rumor distante, como eco do mar que se mistura ao

de aguaceiro inexplicável.

E me aparece à frente, uma e outra vez, o fantasma de

Odisseu, olhos injetados por causa da salsugem das

ondas

e do maduro desejo de rever o fumo que se evola do

calor do seu lar e o cão que envelhece esperando

junto à porta.

Ergue-se, agigantado, murmurando por entre a barba

encanecida palavras de nossa língua tal como há

três mil anos a falavam.

Estende-me uma palma  calejada pelos cabos e pela cana

do leme, de pele crestada pelo seco vento norte

pelo calor e pelas neves.

Dir-se-ia quer banir de nós o sobre-humano Ciclope

cujo olho solitário espia as sereias que, se as

ouvires, te farão esquecer tudo, e Cila e

Caríbdis:

tantos monstros intrincados que não nos deixam

refletir em como ele foi também um homem que lutou

no mundo com a alma e o corpo.

E o grande Odisseu: aquele que disse aos aqueus para

fazerem o cavalo de madeira com que tomaram Troia.

Imagino-o vindo explicar-me que eu posso também fazer

um cavalo de madeira para tomar a minha

Troia.

Como fala em voz baixa e tranquila, sem premência,

dir-se-ia um pai que me conhece bem

ou um desses velhos marujos que encostados às suas

redes, quando o inverno sobrevinha e o vento

raivava,

recitavam-me nos anos de infância, com lágrimas nos

olhos, a canção de Erotócrito,

e eu tremia no meio do meu sono ouvindo o fado

adverso de Areti a descer pelos degraus de

mármore.

Diz-me o árduo esforço de sentir as velas do teu

barco infladas pela memória e tua alma se fazer

timão.

E estares só, dentro da escuridão da noite, à

deriva como palha de eira.

O amargor de ver teus companheiros naufragados entre

Os elementos, dispersados um a um.

E como estranhamente recobras as forças falando com

os mortos quando já não bastam os vivos que te

restam.

Fala… ainda vejo suas mãos que sabiam verificar se

fora bem lavrada a górgona de proa

que me seja dado um mar azul sem ondas no coração

do inverno.”

(Giorgos Seféris,  “Sobre um verso estrangeiro”, 1931, em tradução de José Paulo Paes)

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Uma palavra sobre o verão

(Giorgios Seferis,  poeta grego, Nobel 1963)

Eis que voltou o outono. O verão

Como um caderno em que cansamos de escrever, lá fica

Cheio de riscos e garatujas,

De pontos de interrogação nas margens. Eis que voltou

A estação dos olhos que miram

Nos espelhos, sob as lâmpadas,

Lábios cerrados, homens estrangeiros

Nos quartos, nas ruas, sob as pimenteiras,

Enquanto os faróis dos carros matam

Milhares de máscaras macilentas.

Eis-nos de volta. Partimos para cada vez voltar

Na solidão, um punhado de terra em nossas mãos vazias.

E não obstante, amei outrora o bulevar Syngros,

A dupla curvatura da grande avenida

Que milagrosamente nos leva para o mar

Eterno a fim de que nos lavemos dos pecados.

Amei homens desconhecidos

Encontrados bruscamente ao cair do dia

Que falavam consigo mesmos como capitães de uma frota afundada,

Sinais de que o mundo é vasto.

E não obstante, amei as ruas daqui e estas colunas

Ainda que nascido na outra margem, junto

Das canas e dos juncos, das ilhas

Cuja areia guarda água para a sede

Do remador: ainda que nascido

Junto do mar que desenrolo e enrolo entre meus dedos,

Quando estou fatigado– não sei mais onde nasci.

Resta ainda a essência amarela, o verão

E tuas mãos roçando medusas na água,

Teus olhos abertos de repente, os primeiros

Olhos do mundo, e as grutas marinhas,

Pés desnudos no solo vermelho.

Resta ainda o efebo louro de pedra,o verão,

Um pouco de sal seco no oco de um rochedo,

Algumas agulhas de pinheiro após a chuva

Ruivas e dispersas como um filete em fiapos.

Não compreendo esses rostos, não os compreendo;

Imitam às vezes a morte e depois iluminam-se de novo

Com uma vida rasteira de vermes luzentes,

Com um esforço repuxado, sem esperança,

Como apertado entre duas rugas

Entre duas mesas de café gordurosas…

(…) Resta ainda o deserto amarelo, o verão,

Vagas de areia em fuga até o último círculo

Um ritmo de tambor lancinante, interminável

Olhos inflamados afundando no sol,

Mãos com ímpetos de pássaros riscando o céu

Saudando filas de mortos em duelos,

Perdidas num ponto que me ultrapassa e me governa,

Tuas mãos que tocam a onda livre.

(trad. Darcy Damasceno)

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22 de setembro- O PLANO DE VIAGEM DE GONÇALO M. TAVARES

“No ensaio sobre Foucault, Deleuze falou diversas vezes sobre ´o poder de ser afetado´.  Diremos: o poder de ser influenciado: sou tão forte que tenho diversas influências”

(Gonçalo M. Tavares, ROLAND BARTHES E ROBERT MUSIL- TABELAS LITERÁRIAS, Relógio  D´Água, 2004)

Passei a manhã de domingo encantando-me com as maluquices incríveis de Gonçalo M. Tavares, um dos escritores mais desconcertantes e maravilhosos da atualidade.

A princípio, a profusão de títulos (ele é prolífico pra caramba) e a confusão de lançamentos no Brasil podem dar a ideia de alguém que escreve na linha do fácil (no mau sentido da palavra) ou da gratuidade. Mas, se não bastassem os quatro volumes de O REINO, os onze (ou doze?) de O BAIRRO, o delicioso BIBLIOTECA, as HISTÓRIAS FALSAS, A PERNA ESQUERDA DE PARIS/ROLAND BARTHES E ROBERT MUSIL (os dois estão no mesmo volume), o livro que li hoje, CANÇÕES MEXICANAS já seria uma amostra definitiva.

Lá pelo meio das 27 estórias, uma prostituta  (que manda os homens, antes da função, beijaram os pés do Cristo do seu crucifixo), pergunta ao narrador: “Tem um plano de viagem?”

O “plano de viagem” do Sr. Tavares pela Cidade do México é uma cornucópia de fantasias, situações bizarras, imaginada por um turista que sobrepõe à cidade real (que avulta mesmo assim) a sua visão do mundo afiada e absolutamente inconfundível:

“(…) aproximo-me de uma máquina dos caminhos-de-ferro, abandonada, onde dois mexicanos malucos estão a grelhar umas febras, perguntam-me se quero, se tenho Pesos, e eu pergunto o que é aquilo, dizem que é carne e riem-se, mas sabem perfeitamente que o que lhes pergunto  o que é aquilo apontando para a velha estação de caminhos-de-ferro e eles explicam que está abandonada desde que as mulheres começaram a fumar no México nos sítios públicos e riem-se mais uma vez, gozam com o belo estrangeiro, e também grelhamos homens inteiros, diz-me um dos mexicanos, quanto pesas, pergunta-me o outro, e fazem de lobos maus e eu de capuchinho vermelho, perguntam-me mesmo se eu conheço a história do capuchinho vermelho, aqui no México também a conhecem, que sim, respondo, e eles passam-me um lenço que eu ponho na cabeça, entro no jogo, que mais posso fazer?, é de noite, estou na Cidade do México e dois homens com mau aspecto estão a grelhar algo numa velha máquina abandonada numa velha estação de caminhos-de-ferro e dizem que a seguir sou eu, que eles estão com fome, há muita miséria no México, dizem-me, com quem pede desculpa por me comer, e eu quase digo que não faz mal, que compreendo perfeitamente, eles são lobos, eu sou alguém que se perdeu e que só devia sair de noite na Cidade do México bem acompanhado, disseram-me eles, que fazem de lobos e de paizinho, dão conselhos (…) e ali estão eles, a desenhar no chão com um  pau os trajetos bons da cidade e onde eu me enganei, sim, perguntam-me pelo hotel e lá estão eles, um deles, com um galho a marcar o trajeto no chão, você deveria ter virado aqui, virou aqui, marca ele, no chão,e por isso nos encontrou, se tivesse virado para ali, aponta o outro como seu dedo sem se dobrar, se tivesse virado para li se calhar estava agora em frente a uma mexicana que leva vinte pesos para te sugar “el” cachimbo, e riu-se muito com esta do cachimbo, passo errado, diz eles, agora somos nós, diz ele, que queremos que nos chupes “el” cachimbo, e ri-se um  deles, enquanto desaperta a braguilha, que faz ele?, digo ou só penso, tento sorrir, um deles está atrás de mim…” (trecho de OS MEUS AMIGOS)

Nota- FEBRA= carne sem osso

Outro trecho para amostra (de OS BELOS NOMES DAS CASAS):

“(…) há mesmo polícias que não se limitam a desenhar os contornos dos mortos, fazem também desenhos ao lado, desenhos de casas, de anjos, de diabos, de fogo a arder numa grande casa, enfim, são artistas, os polícias, e têm também de se divertir e muitos gostam disto, de fazer desenhos que continuam o contorno dos mortos, como se aquela morte permitisse que eles exercessem o seu instinto mais belo, eis a beleza ali naquele polícia risonho, curvado sobre o corpo que recebeu, vejam bem, sete tiros, sete, e está tão morto sete vezes que é quase um anjo e o esforçado do polícia é bem visível que não pensa em nada senão na sua arte, e está a fazer um desenho enorme, começou, claro, por fazer um traço em redor do corpo e já está no traço para o desenho de um quarteirão, uma casa, duas, três, e vejam, este excelente polícia, que veio cheio de instrumentos, pois sacou já de giz de cores e o malandro está a pintar uma bela cidade e dois anjos, que nunca faltam,uma cidade toda colorida, que nasce do contorno do morto, casas a laranja, casas azuis, e está tão esmerado e concentrado o polícia que em volta dele estão já dezenas e dezenas de curiosos, incluindo mulheres, a admirar o desenho pintado e o morto está quase em segundo plano, e o perigo, agora, é que a multidão de admiradores cresça tanto que comece a passar por cima do cadáver…”

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13 DE SETEMBRO DE 2013-
UMA MORTE QUE TRAZ NOSTALGIA: MARSHALL BERMAN
   Aprendi muito sobre o Fausto, de Goethe, sobre Dostoievski e Baudelaire, em sua relação com São Petersburgo e Paris, lendo nos anos 1980 TUDO O QUE É SÓLIDO DESMANCHA NO AR (1982). Tinha eu então vinte e poucos anos (acho que o livro foi um dos primeiros da Companhia das Letras, junto com Rumo à Estação Finlândia, de Edmund Wilson), e Marshall Berman, cuja morte soube agora, me apresentou uma visão enciclopédica, amplíssima de alguns grandes autores. Depois, descobri a respeito abordagens até mais profundas e densas, mas nunca esqueci minha leitura desse marxista nova-iorquino.
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30 de agosto de 2013:

“Como um intruso

abrisse esquecida cancela

e aparasse a vegetação

emaranhada nas grades–

pouco adiante da sebe

ele deixou um morse obscuro

ao longo da ribeira,

uma tortuosa ferida

de erva silenciosa, coberta

de teias. Se paro

ele pára

como a Lua.

Vive nas orelhas

e nos pés, tempo-olho,

todo prata e escuta

andador sem toca.

Sob a ponte

seu reflexo oscila

através da corrente,

sedutor, mariposa.

Estou acossado

pelo furtivo farfalho,

o rasto imprevisto,

o pólen depositado…”

(1a. parte de O REI DAS SEBES, de “Ilha das Estações”, 1984)

Numa semana em que exaltei—em minha coluna em “A Tribuna”, de Santos—a  engenhosa Dublin de Daniel Pellizzari (em Digam a Satã que o recado foi entendido), falece SEAMUS HEANEY, Prêmio Nobel de 1995,  o poeta irlandês que nos fazia descobrir que “The smell of ordinariness/Were new on the night drive through France…”, o poeta que rima “Para me ver, tornar as trevas ecoantes” (“To see myself, to set the darkness echoing”) e muito mais. Para os leitores brasileiros, uma recomendação é a seleção de José Antonio Arantes, um dos destaques de 1998:

“O lugar-comum tinha novas fragrâncias

Na viagem noturna pela França:

Chuva e feno e floresta na atmosfera

Circulavam ar quente no carro aberto.

Placas branqueavam inexoráveis.

Montreuil, Abbéville, Beauvais:

Em, promessa e promessa, indo e vindo,

Cada local o que há no nome cumprindo.

Uma colhedeira a gemer fora de horas

Sangrava sementes na luz do farolete.

Um incêndio na mata ia ardendo lento.

Um por um os cafés fechavam as portas.

Não parei de pensar em você ali a

Mil milhas ao sul onde a Itália

Dá o lombo à França na escura esfera.

Seu lugar-comum lá revivera.”

(VIAGEM NOTURNA, de “Porta para a Treva”, 1969)

“Uma sombra que o pai dele faz na parede,

Mãos e dedões juntos, dedos em mordidela,

Como cabeça de coelho. Ele entende

Que ele vai entender mais quando entrar na escola.

Lá primeiro desenha fumaça com giz e

Depois traça a forquilha chamada Y.

Isso é escrever. Um dorso e um pescoço de cisne

Formam o 2 que ele vê e fala então.

Dois caibros e uma viga sobre um quadro-negro

São a letra que uns fazem AH! e outros ETA!

Há diagrama, há cabeçalhos, e há um jeito

Certo e errado de se pegar a caneta.

Antes de tudo é COPIAR, depois INGLÊS,

Marcado correto com um enxadão oblíquo.

Cheiros de tinta pairam na classe em mudez.

Pende à janela um globo, colorido O.”

(1a. parte de ALFABETOS, de “A lanterna de Pilrito”, 1987)

***

“Estes são protótipos,

o mistério do ofício

improvisado em osso:

folhagem, bestiários,

entrelaços elaborados

como as enredadas rotas

de linhagem e comércio.

Que têm de ser

ampliados em exposição

de modo que a narina

é uma proa migrante

fariscando o Liffey,

arribando no vau,

dissimulando-se em

cristas de esgalhos, pinos de osso,

moendas, pesos, pratos de balança. “

(2ª. parte de VIKING DUBLIN: PROTÓTIPOS, de “Norte”, 1975, em tradução de José Antonio Arantes)

***

O incontornável, dentro da obra de Heaney, “Bone Dreams”, na versão Arantes intitulado “Sonhos de osso”:

I

Osso branco achado

na pastagem:

a rude, porosa

linguagem do toque

e a amarelenta, estriada

impressão na relva—

um miúdo navio-túmulo.

Inerte como pedra,

sílex-sina, pepita

de greda,

toco nele de novo,

meto-o na

funda da memória

para atirá-lo contra a Inglaterra

e seguir-lhe a queda

em campos estranhos.

II

Osso-casa:

um esqueleto

nos velhos cárceres

da língua.

Rechaço

de dicções,

dosséis elisabetanos,

estratagemas normandos,

as eróticas flores de maio

de Provença

e os latins cobertos de hera

de clérigos

até o zangarreio

do bardo, o lampejo

férreo de consoantes

dividindo o verso.

III

Nas encofradas

riquezas da gramática

e das declinações

acho  ´han-hus´,

sua lareira, seus bancos,

caniçada e caibros,

onde a alma

adejou um pouco

no forro do teto.

Havia um pequeno pote

para o cérebro,

e um caldeirão

de gerações

volteava no centro:

amor-covil, sangue-bosque,

sonho-caramanchel.

IV

Retornam passadas

filologia e fórmulas poéticas,

reentram na memória

onde o covil do osso

é  um ninho de amor

na relva.

Seguro a cabeça de minha dama

como um cristal

e ossifico-me

contemplando: sou seixos

em suas escarpaduras,

um gigante de greda

esculpido em sua chapada.

Logo minhasmãos, no fosso

submerso de sua espinha,

avançam rumo às passagens.

V

E terminamos

nos embalando

entre as bordas

de uma trincheira.

Enquanto aprecio

por prazer

o calçamento de suas juntas,

os degraus giratórios

de seus cotovelos,

o valo de seu supercílio

e o longo postigo

da clavícula,

começo a percorrer

o Hadrian´s Wall

de seu ombro, sonhando

como Maiden Castle.

VI

Certa manhã em Devon

achei uma toupeira morta

ainda com orvalho em rosário.

Imaginara a toupeira

uma sega ossuda,

mas lá estava ela

miúda e fria

como o aço de um cinzel.

Disseram-me:– Sopre,

sopre de volta o pêlo à cabeça.

Aqueles pontinhos

Eram os olhos.

E apalpe os ombros.–

Toquei Peninos pequenos e distantes,

uma pele de grama e grão

fluindo para o sul.

(de “Norte”, 1975)

Numa versão de Edgard Murano das primeiras partes:

SONHOS ÓSSEOS

I

Osso branco encontrado
no pasto:
a áspera, porosa
língua do toque

e sua impressão amarela
grelhada na grama—
pequeno resíduo de um naufrágio.
Frio como pedra,

duro de encontrar, pepita
de giz
que toco outra vez
e a refresco

na atiradeira das idéias
para cravá-la na Inglaterra
e seguir seus saltos
em campos estrangeiros.

II

Casa óssea:
um esqueleto
nas velhas masmorras
da língua.

Refuto
com as dicções
os dosséis elisabetanos.
Os artifícios dos normandos,

as primaveras eróticas
da Provença
e o latim de hera
dos homens da igreja

ao som metálico
da pá, clarão
do aço consonantal
crivando a linha.

(…)

seamus_heaneyindexSeamus-Heaney-Young

22 DE AGOSTO
    Uma contribuição à campanha para Lima Barreto ser o homenageado da FLIP 2014. Na verdade, um video antigo, de 2010:
http://osdeportados.blogspot.com.br/2010/03/alfredo-monte-faz-uma-panoramica-na.html
17 de agosto de 2013
  Com a republicação da tradução de Sergio Flaksman para “Very Old Bones”, agora com o título bem feliz de Velhos Esqueletos, relembro um bate-papo com amigos sobre William Kennedy há alguns anos:
https://www.youtube.com/watch?v=N4kdlBUPwys
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13.08 Há indicações que considero grotescas na lista para o prêmio Zaffari & Bourbon, mas há também livros extraordinários. Não entendo, de fato de que Barba ensopada de sangue, Domingos sem Deus, Solidão Continental  ou Infâmia  ou mesmo Uma Duas estão fazendo aí, não conheço Livia e o cemitério africano, mas certamente O céu dos suicidas merece o prêmio, mesmo com a presença de Lidia Jorge e seu A noite das mulheres cantoras.

A noite das mulheres cantoras – Lídia Jorge …

Barba ensopada de sangue – Daniel Galera

Domingos sem Deus – Luiz Ruffato

Habitante irreal – Paulo Scott

Infâmia – Ana Maria Machado

Lívia e o cemitério africano – Alberto Martins

O céu dos suicidas – Ricardo Lísias

O que os cegos estão sonhando? – Noemi Jaffe

Solidão continental – João Gilberto Noll

Uma duas – Eliane Brum

Sobre alguns dos indicados:

https://armonte.wordpress.com/2012/09/23/questao-de-genero-o-inferno-provisorio-de-luiz-ruffato/

https://armonte.wordpress.com/2012/11/09/um-cachalote-agoniza-em-garopaba-barba-ensopada-de-sangue/

https://armonte.wordpress.com/2012/10/16/o-desperdicio-de-um-belo-titulo-solidao-continental-e-a-mesmice/

http://www.musarara.com.br/romances-de-2012

o-cc3a9u-dos-suicidas

15 de julho de 2013

  DISCURSOS RAIVOSOS (1)

Eu, que fiquei felicíssimo com as manifestações de junho (e da maneira como elas ocorreram), que acho fascinante “O agressor”, de Rosário Fusco, que descobri o talento de Diego Moraes este ano, não posso deixar de exaltar o discurso raivoso, anti-mistificatório, de uma concretude de porrada mesmo, de MANUAL DA DESTRUIÇÃO, de Alexandre Dal Farra (único senão até agora: essa mania atual de só usar minúsculas, ora ora ora,  acho uma bobagem e um badulaque formal, então que abolissem o ponto final, a vírgula e todos os identificadores da progressão do discurso…)

“… o garçom ficava feliz de ser simpático com as pessoas que tinham cartões de crédito. supostamente todos os filhos da puta sentados no bar de merdas tinham cartão de crédito, ele se aproximava das pessoas e ficava orgulhoso de  lidar com os cartões delas, ele lidava de maneira eficiente com os cartões de crédito e por isso se orgulhava de ser um garçom de merda, o filho da puta! (…)

    me levantei da frente da mesa de madeira e recebi o cartão das mãos do garçom filho da puta e simpático, ele entregou a merda do cartão para mim o mais rápido possível e não fez nenhum comentário estúpido, o garçom eficiente e simpático percebeu que só lhe restava me dar logo a merda do cartão e se resignar a ter sido só um bosta de um garçom mesmo, que cobrou a porra da minha conta, ele não foi nada mais do que o garçom da merda do bar e eu fui a porra de um cliente, que merda! nós finalizamos a nossa relação como uma relação de troca, e nada mais. não se estabeleceu nenhum vínculo de merda entre dois seres humanos, nenhum vínculo de bosta entre seres humanos. não, o que houve entre mim e o garçom foi só o dinheiro que eu paguei pelo naco de carne, por meio do cartão de crédito. fiquei satisfeito por não ter estabelecido nenhum vínculo com o filho da puta do garçom, e por ter entregado a merda do meu cartão e feito ele tirar o dinheiro do meu crédito, e cobrar o que eu devia pelo pedaço de carne, sem que por isso se estabelecesse qualquer cumplicidade do caralho entre mim e ele…”

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DISCURSOS RAIVOSOS (2)

Assim taxei MANUAL DA DESTRUIÇÃO , de Alexandre Dal Farra. Outro discurso raivoso, e sumamente talentoso do ponto de vista narrativo e literário, que me ocorre na ficção recente é PALAVRAS QUE DEVORAM LÁGRIMAS (OU A FELICIDADE CANGACEIRA), de Roberto Menezes, com a mesma ressalva do detalhe discutível de só usar minúsculas, inclusive no início das frases e na grafia dos nomes próprios. Publicado lá no Nordeste no final do ano passado, é bem possível que o incrível texto do autor pernambucano (mas de alma paraibana) não tenha a circulação do texto de Dal Farra. Uma lástima, já que PALAVRAS QUE DEVORAM LÁGRIMAS (do qual extraio a citação abaixo), a meu ver,  merecia estar junto de “O céu dos suicidas”, “O sonâmbulo amador”, “As visitas que hoje estamos” e “O que deu para fazer em matéria de história de amor” numa justa disputa pelos prêmios literários  relativos a 2012.

“… ter conhecido márcio valeu a pena. parei a marcha e o encarei. os mendigos não são bons de corrida nem de esquiva, logo ele nem tentou bater em retirada. márcio é bem jovem, tem vinte e dois anos com cara de trinta e cinco. já teve quatro filhos e nunca viu suas caras. pra completar o seu currículo, mando uma rima: márcio é o cara, tem espalhadas no corpo definido oito perfurações de bala. quando houve o racha de nossas coisas e você quis deixar pra mim o apartamento, eu mandei você enfiar no cu (…) fiquei, burra, no apartamento, revi os maravilhosos momentos vivenciando outros mil aterrorizantes. mas sabe? acho que estava escrito nas estrelas pra eu ficar lá! eu não estaria aqui escrevendo essas quinze mil e poucas palavras se eu não tivesse ficado. táxi, gritei, onze reais e oitenta e sete centavos. no final, paguei. fui contra um dos artigos da minha constituição: nunca pegar um táxi quando se pode ir de ônibus ou a pé. sei lá, gritei e pronto. o taxista alinhavou o bairro inteiro. eu não senti que quisesse me roubar na corrida, e sim me dizer: senhora, vê lá senhora, manda esse imundo embora, nunca fui boa em corrida nem de esquiva. onze reais e oitenta e sete centavos bem pagos. os taxistas têm que parar com essa porra de quererem ser analistas express. e de novo estava eu, agora, diurnamente com um estranho dentro das minhas entranhas, o creme do creme, foda-se!, me fudendo. não era tesão o que eu e márcio, o que a gente compartilhava. também eu não negociava mais nada com ele. a camisa já era minha. a gente comemorava, simplesmente (…) eu chorava de alegria. não, minto: eu chorava de algo parecido com alegria, algo a dois metros e vinte sentimentos da alegria. márcio, do sei lado, não sei do que chorava. provavelmente chorava de si, e também chorava—não sou imbecil a ponto de não comentar com você—márcio chorava de contentamento por ter conseguido um apartamento pra ele. é  isso. esse foi o meu grande exagero daquele sábado barrento: dei o meu apartamento em troca da camiseta azul inferno que eu sabia, no fundo, bem lá depois do mais profundo do pré-sal, que ele ou outro comparsa havia roubado de mim. ou eu mesma dei, sei lá e não faz diferença isso, depois que recuperei a camiseta, que conste nesta ata: o apartamento é de márcio. já passei em cartório, hoje ou amanhã ele se muda…”

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04.07.
Um esclarecimento: na minha resenha sobre MORTE NA FLIP , de Paulo Levy, fiz reparo a uma frase do narrador em terceira pessoa: “O problema era o marido, um crioulo forte como um touro”. Não quis dizer que o autor era racista, jamais me passaria pela cabeça tal coisa,  mas sim que a frase tinha um teor racista,  talvez um ranço imprevidente, imperdoável para um autor do século XXI, embora possamos relevar e contextualizar frases do mesmo naipe em Monteiro Lobato e outros auto…res, que já foram alvo de polêmicas e tentativas de censura.   Como o post sobre o romance teve ontem mais de oitocentos acessos, e houve algumas manifestações criticando o meu (ligeiro)reparo (pois era um deslize secundário numa avaliação muito positiva do livro de Levy), para alguns considerado exagerado e não-procedente:
1) se fosse a fala de um personagem, tudo bem, nem faria o reparo, mas como faz parte do discurso do narrador achei “fora de época”. Não vejo como “crioulo” possa ser usado hoje em dia sem um real peso racista, mesmo não-intencional;
  2) sei que o termo “crioulo” em si mesmo nada tem de racista, e na sua origem significava “nascido e criado aqui”(e os criollos na cultura hispano-americano são os descendentes dos espanhóis), mas o uso no Brasil tem um peso de inferiorização étnica incontornável– crioulo parece carregar uma sombra de boçalidade, de animalidade, que me parece inapelavelmente ofensivo. Já ouvi muito na vida frases como “Quem esse crioulo pensa que é”, “essa crioula é muito metida”, para achar inofensivo e não-racista o uso da palavra, MESMO NÃO SENDO ESSA A INTENÇÃO DO AUTOR;
3) creio que nenhum dos meus amigos negros ficaria confortável com (ou acharia muito simpático da minha parte ou de outrem) se eu começasse a usar, por achar que não sou racista nem que minha terminologia tem qualquer teor racista, termos como  “crioulo”, “de cor” etc;
4) Sei que o glorioso Crioulo, um dos mais tremendos talentos da nossa atual MPB, apropriou-se desse epíteto para sua identidade artística, e ele tem o pleno direito de fazê-lo, mas um branco, não;
  5) No mais, isso não prejudica em nada  MORTE NA FLIP em sua qualidade de belo romance policial, é apenas um reparo tópico;
6) E, concluindo, não dá para fugir do mal estar que a linguagem cria em suas sedimentações sociais, é preciso trazê-lo à luz e deixar as coisas esclarecidas, ou então nunca avançaremos nas discussões.

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TEXTOS DE CIRCUNSTÂNCIA SOBRE AS MANIFESTAÇÕES DE JUNHO:

7 de junho:

Três considerações sobre as manifestações contra o aumento de R$ 3,00 para R$ 3,20, as quais têm sido objeto de horror para a nossa tão civilizada e cordial sociedade, em razão do VANDALISMO (dito e escrito assim meio que em caixa alta, como se fosse uma barbárie impensável). Já de saída, que fique claro que estou totalmente a favor dos manifestantes,mesmo que haja indivíduos truculentos e com uma… agenda política entre eles: 1) Que polícia é esta que nós temos, que intervém numa manifestação como se estivesse numa praça de guerra, munida de balas de borracha, gás lacrimogêneo e todo um aparato de repressão que, no mínimo, só pode levar a confrontos e violência? Uma polícia que tem essa disposição, merece o que recebe; 2) O metrô, cujos serviços deixam muito a desejar e cobra caríssimo dos usuários, contabilizou seus “danos patrimoniais”. O que dizer dos danos não só patrimoniais, como culturais, morais, das pessoas que são obrigadas a usar o precário transporte público, e arcar com um custo em seus orçamentos que impede um investimento em atividades enriquecedoras? Como contabilizar esse prejuízo, hora a hora, dia a dia, ano a ano, em que as pessoas não só perdem um tempo enorme com transporte, mas também perdem boa parte de sua renda? Não seria o caso de ir a juízo também, à justiça comum, e reclamar uma indenização e reparação por essas perdas? 3) Não sei se é para rir ou para chorar com essas pessoas que, quais papagaios ou máquinas descerebradas, repetem os clichês de uma narrativa que procura sempre o acessório, nunca o essencial, essas pessoas em que dá urticária o fato de que pais de estudantes arcaram com uma fiança de 3 mil reais, quando a questão são os vinte centavos de aumento da passagem. Eu sou um cara que, por minha condição profissional e padrão de vida, poderia arcar com uma fiança de 3 mil reais, e nem por isso deixo de achar um absurdo um aumento de vinte centavos na passagem de ônibus. Nunca tive carro, não pretendo ter um, e uso transporte público por opção, o que não é o caso da maioria dos usuários. E acho que, sendo o transporte público o que é, o que oferece, o reajuste do preço, feito periodicamente, é um descalabro.      No mais, o recado positivo dessa manifestação, e espero que venham outras, é a “insurreição ética”, o fato de ser possível se indignar e impor à ordem pública, que no fundo é uma imensa desordem, desmoralizada e desmoralizante, um parêntese na inércia e na mentalidade de “vida de gado”.
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Vejam a profundidade filosófica da posição de Luiz Felipe Pondé hoje, no Jornal da Cultura, sobre as manifestações na Paulista: exigir que pessoas estressadas, cansadas, aceitem e apóiem um evento que pare o trânsito, é um absurdo.     Real…mente, é exigir muito. As pessoas estão cansadas e estressadas, por isso o mundo não pode mudar, não pode se transformar. O que se há de fazer é tentar evitar que elas se estressem e se cansem mais. Deveriam colocar vendedores de Prozac e Lexotan nos semáforos.  Mas não gente feia, menores explorados, ou craqueiros, para não estressar e cansar mais ainda quem está preso no trânsito porque o brasileiro tem que ter carro, se possível do ano. Mas quem sabe parada no trânsito essa gente toda não possa ler… Luiz Felipe Pondé?
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12 de junho:

Apesar dos resultados às vezes adversos, e apesar das reações mais que conservadoras (os Boçaldi da vida, em seus noticiários matutinos, denunciando  e vituperando a “violência” e o “vandalismo”, como se não houvesse uma violência e um vandalismo colossais do poder econômico), como estou feliz com as manifestações em São Paulo e em outras cidades. VIVA A DESOBEDIÊNCIA CIVIL! Como ela faz falta, e …como a sociedade fica inerte sem ela.    Ainda mais nós, aqui em São Paulo, no reinado mais que sombrio do sr. Alckmin, que sob o manto de estatísticas e discursos vazios, promove os piores retrocessos, a pior repressão, a pior política social, o que–pensando bem–chega a ser um recorde, quando se pensa que ele é um elo (o pior, a meu ver) de uma corrente que começa, sob o figurino PMDB, com Quércia, e continua com o malfadado Fleury (mais um malfadado Fleury), o sempre superestimado Mário Covas (que, como Tancredo, é uma múmia sempre rediviva que nos impingem como baluarte de ética pública), e agora tem seu epítome. E não é discurso de petista, não, pois não sou petista.    Quanto aos policiais feridos, me desculpem, mas tropa de choque merece reação de choque.
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Ah, mais um detalhe sobre as manifestações em São Paulol No poder, todos falam que as soluções precisam passar pelo “diálogo”, que não é preciso “enfrentamento”. Cômodo, não? Você detém as regras do jogo, os dados, os resultados e postula o “diálogo”.
Mas a realidade desse “diálogo” tão propugnado é bem diferente, como  atestam a desocupação do  pessoal de Pinheirinhos ou a repressão às manifestações legítimas das tribos indígenas.
O “diálogo” via tropa de choque.
VIVA A DESOBEDIÊNCIA CIVIL!
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13 de junho
A filha da puta da Xerazade de araque sempre abrindo a boca escrota: polícia prende    líderes das pessoas que causam tumulto nas ruas.
É essa a caracterização da mídia, para bestificar o público: pessoas que causam tumulto nas ruas.
É a democracia feitio Alckmin.
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15 de junho
Entre a insurreição ética que sacudiu o Brasil esta semana e o evento propício ao “gigante adormecido”, a Copa das Confederações (ou, mais precisamente, quando A FIFA substituiu o FMI no quesito “ditar as regras” por aqui), acho que restou pouco espaço para o Bloomsday em 2013.
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16 de junho
Se o pessoal em São Paulo ou em outros lugares do Brasil sair para comemorar o Bloomsday vestido a rigor (ou seja, como os personagens joyceanos), é melhor tomar cuidado para não levar bala de borracha, respirar gás lacrimogênio ou spray de pimenta. A polícia pode achar que é uma “manifestação política”.
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17 de junho
Em termos do status quo político de São Paulo (capital e estado), não restam mais dúvidas de que Fernando Haddad sofre do “mal Obama”. É aquele cara politicamente invertebrado, sempre escorado nas “melhores intenções”, e que é incapaz de ir em qualquer direção mais objetiva e firme, manietado pelo fisiologismo e pela tibieza. Para mim, foi o que fez a figura mais feia em toda a história, já que o Alckmin é aquela desgraça que já se conhece (o partido de onde veio já nasceu abortado moral e eticamente, aliás o PSDB é o partido pelo qual tenho maior antipatia), a cara do mal. Quem votar daqui pra frente em Alckmin (prefiro ignorar o passado), dará provas tristes de si.
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18 de junho
Por que foi pacífica? Porque não havia tropa de choque, claro. Mais uma vez, demonstrou-se que o elemento de tensão na equação é repressão policial (orientada de cima, não venham dizer o contrário).
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Os entrevistados do RODA VIVA, de ontem, Nina Capello e Lucas Monteiro de Oliveira, ao enfrentarem de forma firme, forte, lúcida e ponderada, entrevistadores quase hostis (em sua maioria) no seu encastelamento no ceticismo e na postura “isso é tudo onda”, me encheram de alegria e esperança com relação à garotada.
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19 de junho
Ontem me dei ao trabalho de assistir a todos os noticiários que pude, para verificar o tipo de cobertura que faziam das manifestações, e para minha surpresa até jornais ferozmente reacionários como o do SBT, sem contar o programa do Marcelo Rezende, quase chegaram a um ponto de equilíbrio e objetividade apreciáveis, mostrando que 1% de bandidagem e truculência no meio de uma manifestação de 50, 100 mil pessoas, não a desqualifica de forma nenhuma. Nesse sentido, aliás, o Jorn…al da Band chegou às raias do impecável, foi o melhor de todos. Agora, outra surpresa e fonte de profunda tristeza (sou espectador assíduo), foi que a pior cobertura, a mais discutível, a de abordagem mais antipática, foi a do Jornal da Cultura. Enquanto até Datenas da vida, Marcelos Rezendes, Raquel Sherazades, foram obrigados a abordar o movimento de outro ângulo de visão que não o histerismo inicial, a Maria Cristina Poli paulatinamente, desde a semana passada vem mostrando um má vontade, uma fala tão conservadora e de indisposição com relação ao que está acontecendo, fazendo Pondé(rações) tão  terrivelmente rasas, que me tirou até a vontade de acompanhar seu jornal. Ontem, secundada por Sérgio Fausto e Mário Sérgio Cortella, o negócio chegou ao auge, eles se orquestraram para dar realce a todos os aspectos e imagens negativas (vândalos, etc), e minimizar a importância, a energia, o peso social.     Vou ficar por muito tempo de bode com a cara dos três. E a Poli, deselegantemente,  quando algum membro da sua banca (eu posso dizer porque assisti), como o Vladimir Safatle  ou o Aírton Soares, se mostra bem favorável ao que está acontecendo nas ruas, não tem o menor pudor de interrompê-los na sua linha de raciocínio, até bruscamente, e chamando imagens por cima da fala deles, quase que para neutralizá-las. Acorda, Maria Cristina Poli.
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O que é lindo, em tudo isso, é que boa parte foi organizada através de redes sociais, mas as pessoas estão nas ruas, não no mundo virtual, como se apregoou tanto, que o indivíduo está mais isolado, mais fechado em seu mundinho, sequestrado pela virtualidade da internet. Nada acontecendo como previsto. Sincretismo puro de tecnologias e corpos.
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14 DE JUNHO

Com a aproximação do BLOOMSDAY, em 16 de junho, é  habitual uma tendência a leituras joyceanas e afins. Em 2013, temos duas novidades: a nova tradução de UM RETRATO DO ARTISTA QUANDO JOVEM, pela Hedra, realizada por Elton Mesquita, e as traduções (para a Penguin/Companhia) de Caetano W. Galindo para dois dos contos de DUBLINENSES, “Arábias” e “Os mortos”.

E já o primeiro parágrafo de “Os mortos” mostra como a tradução de Joyce sempre é cercada de contradições e complicações. Lily, a jovem serviçal que recebe os convidados da tradicional festa das irmãs Kate e Julia (e sua sobrinha Mary Jane) Morkan, é filha de quem?

Galindo traduz assim a primeira frase do conto: “Lily, a filha do zelador, estava literalmente perdendo a cabeça”.

Também assim o entendia o primeiro tradutor de DUBLINENSES no Brasil, Hamilton Trevisan (edição da Civilização Brasileira):  “Lily, a filha do zelador, estava literalmente esgotada”.

Em 1993, na sua versão de DUBLINENSES publicada pela Siciliano, José Roberto O´Shea, no entanto, verteu assim o início do conto mais famoso do livro: “Lily, a filha da empregada, não conseguia ficar sentada um minuto sequer”.

No ano passado, O´Shea publicou (pela Hedra) uma nova versão da sua tradução. E o trecho de abertura aparece ali da seguinte forma: “Lily, a filha do zelador, estava literalmente exausta”.

Então poderíamos crer que, enfim, estava assentado que Lily é mesmo a filha do zelador. Mas no mesmo ano, pela L&PM, apareceu a versão de Guilherme da Silva Braga, onde lemos: “Lily, a filha da zeladora, não tinha literalmente um segundo de sossego”.

No original: “Lily, the caretaker’s daughter, was literally run off her feet.”

Mais adiante, ainda no primeiro parágrafo, não creio que Galindo foi muito feliz ao caracterizar o arranjo que as solteironas fizeram para as senhoras na festa:

“…tinham transformado o banheiro do primeiro andar num CAMARIM para as senhoras”

Na versão de Trevisan: “…tinham pensado nisso e convertido em VESTIÁRIO o banheiro de cima”.

Na primeira versão de O´Shea: “… tinham convertido o banheiro do segundo andar numa espécie de TOALETE feminina”; na segunda versão:  “…tinham pensado nisso e convertido o banheiro do segundo andar num TOALETE feminino”.

Na versão de Braga: “…tinham pensado nisso e convertido o banheiro no andar de cima em um VESTIÁRIO feminino.”

No original: “But Miss Kate and Miss Julia had thought of that and had converted the bathroom upstairs into a ladies’ dressing-room.”

Outro detalhe da tradução. O problema do nome de um dos personagens, o sr. Browne, aludido jocosamente por ele. Galindo traduz da seguinte forma: “Bom, senhora Morkan, tomara que eu esteja bem ´marrom´ na sua opinião porque, sabe como é, eu me chamo ´brown´, não é mesmo?”—o que, convenhamos, é uma solução fraquinha, fraquinha.

Trevisan solucionou (ou não solucionou, melhor dizendo) assim a blague: “Ora,senhorita Morkan, espero  que eu pelo menos seja bem dourado para senhora, pois, como sabe, sou todo Brown.”

Em 1993, O´Shea (que, aliás, chama a atenção para o trecho em nota de rodapé), solucionou assim: “Espero, Miss Morkan, que a senhora ache que eu esteja bem dourado, pois sou ´Browne´ da cabeça aos pés”.  Em 2012: “Espero, Miss Morkan, que a senhora ache que eu esteja bem dourado, pois sou ´bronzeado´ da cabeça aos pés.”

Na versão de Braga: “Bem, sra. Morkan, espero que pelo menos eu esteja moreno o suficiente, pois como a senhora sabe eu sou moreno até no nome!”

No original: “-Well, I hope, Miss Morkan, said Mr Browne, that I’m brown enough for you because, you know, I’m all Brown…”

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31.05.13

Mais um clássico inquestionável no Clube do Filme da Cultura (mesmo que se lamente a dublagem etc etc etc): o cruel ZORBA, O GREGO (1964),  ontem.

Me dei conta de que não o revia há uns 20 anos, no entanto me lembrava praticamente de tudo (há cenas ali que não se esquecem jamais), o que é raro. Confesso que não tenho muita paciência com Anthony Quinn (a bem da verdade, sempre achei o personagem Zorba um tanto cansativo, também). Não obstante, a direção do Cacoyannis é tão linda (foi sua adaptação de IFIGÊNIA que me apresentou essa personagem que se tornaria tão importante nos meus escritos “críticos” e aulas), tão resistente ao tempo, que os maneirismos de Quinn se tornam detalhes.

Mesmo porque há a poderosa presença de Irene Papas e, sobretudo, o fabuloso Alan Bates, um dos mais admiráveis atores de todos os tempos, e que no fundo é a alma do filme (ou melhor, é o reflexo da alma do filme, que é aquele mundo de Creta).
Apesar do seu melancólico final de carreira, onde não teve qualquer papel de destaque, do começo dos anos 1960 até meados dos 1980, Bates nos brindou com algumas das mais estupendas interpretações, incluindo essa, em ZORBA.
A sequência em que ele fica se amarrando, ensebando, para afinal visitar a cobiçada viúva (Papas) é fantástica. Mas há tantas outras no filme, as quais, aliás, tiram da mente quaisquer veleidades de idealizar um modo de vida mais arcaico.

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08.05,13- Assisti em algum telejornal a notícia de que em certas cestas básicas incluíram livros. Achei tão legal que bolei algumas cestas básicas de literatura nacional e estrangeira.

Cesta básica de poesia do século XX:
A TERRA DEVASTADA (T. S. Eliot)
ELEGIAS DE DUÍNO (Rilke)
FICÇÕES DO INTERLÚDIO (F. Pessoa)
CEMITÉRIO MARINHO (P. Valéry)
TREZE FORMAS DE OLHAR UM MELRO (Wallace Stevens)
RESIDÊNCIA NA TERRA (Neruda)
O NU PERDIDO (René Char)
O OUTRO O MESMO (Jorge Luis Borges)
CALIGRAMAS (G. Apollinaire)
CRISTAL (Paul Celan)

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Cesta básica de peças teatrais do século XX:
VIDA DE GALILEU (Brecht)
O JARDIM DAS CEREJEIRAS (Tchekhov)
FIM  DE PARTIDA (Beckett)
SEIS PERSONAGENS À PROCURA DE UM AUTOR (Pirandello)
ELECTRA ENLUTADA (Eugene O´Neill)
RINOCERONTE (Ionesco)
AS MÃOS SUJAS (Sartre)
A VISITA DA VELHA SENHORA (Dürrenmatt)
AS CRIADAS (Jean Genet)
BODAS DE SANGUE (Lorca)

vida de galileu

Minha cesta  “básica” dos maiores romances do século XX:
A MONTANHA MÁGICA (Thomas Mann)

LUZ EM AGOSTO (Faulkner)

O CASTELO (Kafka)

AS ONDAS (V.Woolf)

EM BUSCA DO TEMPO PERDIDO (Proust)

AS ASAS DA POMBA (Henry James)

ULISSES (Joyce)

O ESTRANGEIRO (Camus)

O HOMEM SEM QUALIDADES (Musil)

NOSTROMO (Joseph Conrad)

A MORTE DE VIRGILIO (Hermann Broch)

LOLITA (Vladimir Nabokov)

MOLLOY-MALONE MORRE- O INOMINÁVEL (Samuel Beckett)

A CONSCIÊNCIA DE ZENO (Italo Svevo)

OS FILHOS DA VIOLÊNCIA (Doris Lessing)

montanha mágica

E agora a cesta básica da poesia brasileira do século XX:

A educação pela pedra (João Cabral de Melo Neto)
Estrela da manhã (Manuel Bandeira)
Lição de coisas (Carlos Drummond de Andrade)
Eu (Augusto dos Anjos)
Pau Brasil (Oswald de Andrade)
Mundo enigma (Murilo Mendes)
Invenção de Orfeu (Jorge de Lima)
Bagagem (Adélia Prado)
Da Morte- Odes Mínimas (Hilda Hilst)
Árvore do Mundo (Carlos Nejar)
Livro de sonetos (Vinícius de Moraes)
Galáxias (Haroldo de Campos)
Poemas (Millôr Fernandes)
Gramática expositiva do chão (Manoel de Barros)
Mar absoluto (Cecília Meireles)
Tarde (Olavo Bilac)
Pauliceia desvairada (Mário de Andrade)
Estação central (Lêdo Ivo)
Dentro da noite veloz (Ferreira Gullar)
Introdução a escombros (Moacyr Félix)

educação pela pedra

Talvez a cesta básica abaixo, com algumas peças que eu considero fundamentais para o teatro brasileiro do século XX, apenas mostre minha ignorância do teatro (mesmo porque algumas encenações geniais, como a de Macunaíma, foram realizadas não a partir de peças teatrais propriamente ditas). Alguns podem estranhar a inclusão de Morte e Vida Severina, contudo qualquer um que tenha visto a força do texto no palco, concordará comigo. E Auto da Compadecida está aí, representando um …grupo de peças deliciosas e indestrutíveis de Suassuna (A pena e a lei, O casamento suspeitoso, A santa e a porca). No caso de O santo Inquérito, ele não ficou obliterado pelas adaptações para outros veículos, caso de O berço do herói (que gerou Roque Santeiro) e O pagador de promessas.

Senhora dos afogados- Nelson Rodrigues
O rei da vela- Oswald de Andrade
Morte e vida Severina- João Cabral de Melo Neto
Vereda da salvação- Jorge Andrade
Eles não usam black tie- Gianfrancesco Guarnieri
Navalha na carne- Plínio Marcos
Gota d´água- Chico Buarque & Paulo Pontes
O santo inquérito-Dias Gomes
Orfeu da conceição- Vinícius de Moraes
Rasga coração-Oduvaldo Vianna Filho
Auto da compadecida- Ariano Suassuna
A resistência- Maria Adelaide Amaral

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uma cesta básica de romances do século passado, todos brasileiros:
 

Grande sertão: veredas (G.Rosa)
Memorial de Aires (Machado de Assis)
São Bernardo (G. Ramos)
A maçã no escuro (Clarice Lispector)
Triste fim de Policarpo Quaresma (Lima Barreto)
A menina morta (Cornélio Penna)
O risco do bordado (Autran Dourado)
As meninas (Lygia F. Telles)
Lavoura Arcaica (Raduan Nassar)
O louco do Cati (Dyonélio Machado)
A rainha dos cárceres da Grécia (Osman Lins)
Tenda dos Milagres (Jorge Amado)
O tempo e o vento (Érico Veríssimo)
A polaquinha (Dalton Trevisan)
A obscena senhora D (Hilda Hilst)
Maíra (Darcy Ribeiro)
Bandoleiros (João Gilberto Noll)
Sargento Getúlio (João Ubaldo Ribeiro)
O amanuense Belmiro (Cyro dos Anjos)
A pedra do reino (Ariano Suassuna)

grande sertão

E para encerrar minhas cestas básicas, as coletâneas de textos curtos (novelas ou contos, ou o que lá seja) do século XX:

Relíquias de casa velha (Machado de Assis)
O vampiro de Curitiba (Dalton Trevisan)
Laços de Família (Clarice Lispector)
Primeiras Estórias (Guimarães Rosa)
Feliz ano novo (Rubem Fonseca)
Nove Novena (Osman Lins)
Antes do baile verde (Lygia Fagundes Telles)
Histórias e Sonhos (Lima Barreto)
… Armas & Corações (Autran Dourado)
A pesca da baleia (João Alphonsus)
Vencecavalo e o outro povo (João Ubaldo Ribeiro)
Malagueta, Perus e Bacanaço (João Antonio)
Ficções (Hilda Hilst)
Oscarina (Marques Rebelo)
O ex-mágico (Murilo Rubião)
Contos gauchescos (João Simões Lopes Neto)
Os cavalinhos de platiplanto (José J. Veiga)
Aberração (Bernardo Carvalho)
Arca sem Noé (Regina Rheda)
O retrato na gaveta (Otto Lara Rezende

relíquias de casa velha

03 de maio de 2013

Ontem algo não me saiu da cabeça (entrou até num sonho, com o qual nada tinha a ver): passando pelos canais, à procura de algo (na falta de Mr. Goodbar), vi assim de supetão, na Sonia Abrão, uma série de fotos (de sunga, em cima de moto etc) de um comerciante assassinado. Ora, com todo o respeito à família, essa “sensualização” da figura do morto, do tipo “olha o que se perdeu” já é um cúmulo entre o cúmulo que é a cobertura de crimes na tevê.
Na verdade, há a mais pura discriminação social (quando não racial) nessa cobertura opressiva: há vários meses, jovens e mais jovens (ou nem tão jovens,não importa) vêm sendo chacinados nas periferias, e não vemos nenhuma reportagem exibindo fotos pessoais de nenhum desses mortos de estatística. O recado é claro (e novamente, meu respeito pela família de qualquer um que é assassinado): você tem valor para ser vítima na tevê se você for um comerciante, se tiver um carro (que tentaram roubar), se for uma pessoa “com todo o futuro pela frente”, aí sim a perda da sua vida é terrível; se você for da periferia, não tiver carro, e não for um comerciante, nada feito, você já não tem futuro, e não merece um segundo na tevê, a não ser constar como  uma das 8, ou 10, ou 14, vítimas de uma chacina despersonalizada, desodorizada, insubstancializada, pois suas fotos ou videos não ficam passando e repassando incessantemente.
E a classe média se pergunta ainda por que tanta violência.

14 DE ABRIL DE 2013

Gostaria de agradecer a todos os visitantes do blog, que hoje completa quatro anos. Para  marcar a data, um ” festival” AUTRAN DOURADO e o começo de uma nova página “RAPIDINHAS DO ALFREDO”.

6 Comentários »

  1. Parabéns pelo Blog.
    Gosto de suas resenhas, não há um dia que não faça uma visita ao Blog.
    Desejo-lhe êxito.
    Cordialmente
    Luiz

    Comentário por Luiz Fernando C. da Silva — 28/04/2013 @ 18:09 | Responder

    • Muito obrigado, Luiz Fernando, fico feliz e orgulhoso com essas visitas diárias, um grande abraço, Alfredo Monte.

      Comentário por alfredomonte — 29/04/2013 @ 13:07 | Responder

  2. Meu caro Alfredo
    Digo que a internet tem vantagens, mas uma grande desvantagem: é impessoal. Portanto, apesar de ter idade para ser seu pai, dispo-me em público para confessar-te: tenho dificuldade para ler poesia.
    Leio muito, até porque, como diz a escritora argentina Graciela Caban: “a morte não leva um leitor que esteja lendo um livro ou que tenha um outro para ler, pois ela é muito curiosa e quer ler com o leitor.”, seguindo, como, por motivo de minha doença, não saio, não tenho amigos, excetuando minhas duas grandes amigas: esposa e uma cadela labrador, não leio jornais, revistas, não ouço rádio, nem assisto televisão. Portanto, todo o meu dia é dedicado à leitura. Leio os russos, mas recentemente, Ivan Gontcharóv, ‘ Oblomóv’, Balzac, Sthental, Flaubert, Joyce, Celine, Cioran, Thomas Bernhard, Proust, os brasileiros, excetuando a nova geração, livros sobre: política, história, critica literária, mas poesia tenho dificuldade. Tenho em casa Baudelaire, Drumond, Pessoa, João Cabral, mas não consigo avançar. Entretanto, em suas últimas resenhas você tem abordado o tema poesia.
    A de hoje, sobre Cesário Verde, caminhei tranquilo, gostei. Algumas outras de outros autores, igualmente caminho tranquilo e gosto. Afinal, qual é o segredo (sic) se tem para ser ler poesia?
    Seria o medo? Ou deixar-se levar pelo poema? Seria a ansiedade de querer ententer o poema?
    Sou autoditata, não sei o que significa métrica e outras regras da poesia. Teria eu que aprender sobre poesia, para daí poder lê-la?
    Perdoe-me se o importuno.
    Cordialmente
    Luiz

    Comentário por Luiz Fernando C. da Silva — 02/05/2013 @ 18:31 | Responder

    • Caro Luiz Fernando, sou muito mais leitor de prosa também, mas acho que os textos de poesia são como quaisquer outros. Você começa a ler, se envolve, e aí tanto faz o gênero. Obrigado pelo seu comentário. Um grande abraço, de leitor para leitor.

      Comentário por alfredomonte — 02/05/2013 @ 20:25 | Responder

  3. alfredo, você leu os contos que o rubens figueiredo publicou na década de 90 em O livro dos lobos (reescrito para uma nova edição, q saiu em 2008) e As palavras secretas?

    Comentário por Amyr Hamud — 06/02/2014 @ 1:14 | Responder

    • Não, Amyr, ainda não li os contos de Rubens Figueiredo. Só conheço seu trabalho como tradutor. Abração.

      Comentário por alfredomonte — 06/02/2014 @ 13:24 | Responder


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