MONTE DE LEITURAS: blog do Alfredo Monte

26/12/2017

LEITURAS QUE MARCARAM 2017: PRIMEIRA PARTE

 

(Uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos em 26 de dezembro de 2017)

A minha lista de livros marcantes de 2017 segue o rastro do vácuo da ausência de Elvira Vigna.

Livro do ano: “AS TRÊS MORTES DE CHE GUEVARA”, Flávio Tavares, editora L&PM. Cinquenta anos após a morte do “ser mais completo da nossa época”, segundo Sartre, o fascínio de sua figura não esgota.

Além dele, destaco: “Sem Sistema”, de Andrea Catrópa, editora Patuá: de que universo paralelo e sulfúrico, Andréa Catrópa, trouxe suas histórias curtas, muitas vezes cores e tintas berrantes.

As Perguntas”, de Antônio Xerxenesky, editora Companhia das Letras: mistura com inteligência a incursão mística com uma rave, ou seja, o horizonte dos jovens urbanos, cínicos, que não acreditam em nada transcendente a não ser superficialmente.

Simpatia pelo Demônio”, de Bernardo Carvalho, editora Companhia das Letras: usando um personagem cobaia, um grande romance.

Febre de Enxofre”, de Bruno Ribeiro, editora Penalux: príncipe da prosa sulfúrica, pornográfica e ultrajante, em seu primeiro romance.

Como são cativantes os jardins de Berlim”, de Decio Zylbersztjan, editora Reformatório: textos brilhantes. O conto-título é uma obra-prima.

Naufrágio entre amigos”, de Eduardo Sabino, editora Patuá: primorosa coletânea mostrando o ressurgimento do amor à linguagem.

O mergulho”, de Juliana Diniz, editora Megamíni: como a escritora cearense consegue criar uma linguagem diáfana e tão robusta?

Em Conflito com a Lei”, de Lucas Verzola, editora Reformatório: o livro surpresa do ano, contundente e magnífico.

Fragmentos de um exílio voluntário”, de Lucio Autran, editora Bookess: Poesia.

Todo naufrágio é também um lugar de chegada”, de Marco Severo, editora Moinhos: Senti-me como um jurado do “The Voice”, girando a cadeira logo nas primeiras notas, descobrindo um autor para meu time de leituras prediletas.

O Indizível sentido do amor”, de Rosângela Vieira Rocha, editora Patuá: um dizível abalo no coração, um mergulho na dor.

(Continua na próxima semana).

19/12/2017

Destaque do Blog: “Em Conflito com a Lei”, de Lucas Verzola

 

(Uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos em 19 de dezembro de 2017)

Esta resenha vai desagradar quem defende a diminuição da maioridade penal e costuma dizer “e aí vem os direitos humanos”. Os protagonistas e narradores de “EM CONFLITO COM A LEI”, de Lucas Verzola, são menores infratores que roubam, traficam, estupram, assassinam, internos da Fundação Casa ou estão em liberdade assistida ou cumprem medidas socioeducativas.

Esse amplo leque é arrasador, pois como exigir civilidade de quem nunca foi tratado como um cidadão e não tem ferramentas mentais para entender a barbárie na qual estão mergulhados: “O menino sem pai sem mãe sem tio sem tia sem irmão sem irmã. Só tem conselheira tutelas. As meninas sem pai sem mãe sem tio sem tia. Pelo menos uma tem a outra de irmã. As meninas no computador da sala mexendo na internet facebook globo yahoo. O menino olha e grita minha vez minha vez. As meninas falam gordo fedido sem mãe retardado. O menino pega a antena e cutuca as meninas. As meninas falam baixinho filha da puta preto vou contar pra tia que você passou a mão em mim. O menino é mentira é mentira. E bate com a antena. E elas choram. E ele chora. E a tia chega. Ele é tarado falou que ia colocar o pau na minha xoxota. É mentira é mentira eu só quero o computador não sou fedido não sou gordo. Menino, isso é coisa de polícia, isso é coisa de promotor, isso é coisa de juiz. O menino sem pai sem mãe sem tio sem tia sem irmão sem irmã com polícia com promotor com juiz. O menino sem”.

O grande feito de Lucas Verzola é mostrar como, acuados entre a aversão da população, a linguagem jurídica incompreensível e as medidas hipócritas, eles, com um vocabulário mínimo elaboram um raciocínio repetitivo curto circuitado, mas sempre expressivo: “Tanto que eu estava tomando conta de um vasinho e pensando no mundão quando os policiais chegaram gritando perdeu perdeu, me obrigando a assumir B.O. de tráfico e a confessar que meu barraco era biqueira, se não apanhava mais e mais, apesar de dor física alguma ser maior que a ilusão de ver tua casa estraçalhada. E, daqui da Fundação, o que eu mais tenho curiosidade é de saber se a minha ausência já se fez tão grande quanto a do Gerson e se ainda chamam meu cantinho de barrado do Wesley, ou se não terei lugar algum pra retornar quando eu sair daqui”.

“EM CONFLITO COM A LEI” deveria ser leitura obrigatória para “coxinhas” e defensores da meritocracia.

12/12/2017

Zonas de Conflito: “Simpatia pelo Demônio”, de Bernardo Carvalho

 

(Uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos em 12 de dezembro de 2017)

Como todos sabem, os ratos (para vergonha da humanidade) são as cobaias por excelência. O protagonista de “SIMPATIA PELO DEMÔNIO” é chamado de Rato. Ele é demitido da agência que presta “serviços humanitários” em zonas de conflitos (na verdade, ele já estava “queimado”). Aceita uma missão absurda e quase suicida, pagar a terroristas o resgate de um refém desconhecido, indo para uma cidade em escombros, onde cada quarteirão é dominado por facções, embora a situação política e as coligações mudem a todo momento. Após um atentado, perguntamos: terá a cobaia caído numa armadilha?

O livro de Bernardo Carvalho muda então drasticamente. Misturando várias instâncias temporais, veremos Rato apaixonado pelo mexicano Chihuahua, que o manipula. Discípulo do grande pensador da violência e da inveja, René Girard, faz do Rato uma cobaia de experimentos afetivos, passionais e sexuais, um verdadeiro bode expiatório.

Mas estamos no universo de um mestre da insubstancialidade e das narrativas tortuosas (e repletas de digressões, como a transformação semântico-social de expressões como “perdeu, perdeu”). Mesmo em terceira pessoa, como acreditar que tudo é verdade?

“E ele chorou ainda mais forte, ouvindo aquele oratório de inspiração cristã, destruído pelo entendimento de que estivesse condenado à inveja e à luxúria, e que inveja e luxuria nada mais eram do que solidariedade e compaixão cósmicas reduzidas a pecado pela miséria do lugar onde agora ele se encontrava. Chorava de vergonha. Não tinha coragem de olhar para os lados. O que ele perdera não fora só o chihuahua, mas uma ideia de mundo e uma ilusão. Sem o chihuahua, agora ele sabia, não havia mais ligação cósmica possível, ele estava condenado a pecar”.

“SIMPATIA PELO DEMÔNIO” é o melhor romance de Bernardo Carvalho desde “Nove Noites”, sua obra prima.

05/12/2017

OS SETENTA E CINCO ANOS DE MARIA VALÉRIA REZENDE

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(Uma versão da resenha abaixo foi publicada originamente em A TRIBUNA de Santos em 05 de dezembro de 2017)

Prestes a completar 75 anos (em oito de dezembro), a santista, paraibana, vastomundense Maria Valéria Rezende, recebeu o mais polpudo prêmio brasileiro, o São Paulo de Literatura. Talvez agora as pessoas se apercebam que ela é o nosso José Saramago. Ambos começaram tardiamente, contudo na plenitude de seus recursos de linguagem.

Já no seu primeiro e emblemático livro, “Vasto Mundo”, ela apresentava um universo completo, o mundo rural de Farinhada. Recentemente, ela unificou esse mar de estórias num romance na linhagem de “O Povoado”, de William Faulkner.

Seu segundo livro “O Voou da Guara Vermelha”, reafirma a necessidade de narrar o vivido para lhe dar um sentido e traz o tema atualíssimo do trabalho escravo. “Um corpo de homem aguenta mais do que a gente imagina, por vontade de viver, mas a alma é outras coisas, vai morrendo mais depressa quando perde a esperança”. Um decreto indecente tornou mais verdadeira e contundente esta frase.

Logo a seguir veio a coletânea “Modos de Apanhar Pássaros a Mão”, com temática mais urbana e técnicas diversas. Tinha até um vampiro que se apaixonava por nossas churrascarias.

Porém, durante uma década ela mergulhou na literatura infanto-juvenil, fora as traduções. Sua produção nessa área é excelente, mas eu temia que sua obra adulta caísse no esquecimento então apareceu o avassalador “Quarenta Dias”, tratando das pessoas “invisíveis” das grandes cidades. Ganhou o Prêmio Jabuti de romance e livro do ano. E com sua obra-prima “Outros Cantos”, sua produção adulta firmou-se de vez.

Um ponto que une Maria Valéria e Saramago é que eles nos reconectam à humanidade, ao que deveríamos ser. Por essa razão considero o conto “O Muro” (premonitório se pensarmos em Donald Trump) a chave de sua obra, uma mulher que escolhe o descenso social e a ascensão espiritual, isto é, fraternal: “Nem pensei em voltar para a passagem no muro. Deus atirou-me para dentro de seu samburá de estreita boca, já não me debato. Soube logo que subiria, mas não por qual caminho, até que vi, pouco mais adiante, numa parede suja daquele mesmo beco, a marca do menino magro, fresca e brilhante, um fio de vermelho líquido ainda escorrendo. O único sinal que eu, vagamente, podia interpretar, neste mundo estranho onde nunca antes sequer imaginei penetrar. Meti-me pela viela que, alguns metros adiante, ao topar com uma parede de zinco e madeira carcomida, quebrava-se para a esquerda. Ninguém. Tive a impressão de que já não havia mais ninguém nesse labirinto, só eu e o menino pichador, porque pouco antes de que o caminho se bifurcasse, mais acima, vi outra vez a rubra assinatura. Sem outro fio senão aquele para guiar-me, eu o segui. Hesitei na bifurcação, mas ela estava lá outra vez, a marca, dizendo-me que lado escolher, direção que tomei sem mais duvidar, entranhando-me na armadilha das ruelas intrincadas”.

 

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