
(resenha publicada em 23 de julho de 2002, na comemoração 20 anos de publicação)

Há exatamente 20 anos aconteceu uma reviravolta com relação à obra de Fernando Pessoa, com a publicação de O Livro do Desassossego, organizado a partir de centenas de fragmentos em prosa. Constatou-se então que o gênio do escritor português (falecido em 1935) ia muito, muito além da poesia pela qual era famoso. Como mostra Robert Bréchon na sua excelente biografia Estranho Estrangeiro, a prosa composta por “Bernardo Soares, ajudante de guarda-livros na cidade de Lisboa” teve mais leitores e admiradores em todo o mundo do que todo o restante da obra. Muitos até acreditam que O Livro do Desassossego seja a grande obra-prima de Fernando Pessoa. Como se sabe, ele se desdobrou em heterônimos tão conhecidos quanto ele mesmo, o ortônimo: Álvaro de Campos, Alberto Caeiro, Ricardo Reis. Pessoa considerava Bernardo Soares, o autor “definitivo” do livro desassossegado (pois ele começou a ser escrito por “outro”, Vicente Guedes), um semi-heterônimo, por ser muito parecido com ele, sem a diferenciação extrema dos “outros”. Curiosamente, lendo os mais de 500 fragmentos, o leitor tem a impressão de estar acompanhando um desdobramento do clima de um dos mais famosos (e belos) poemas de Álvaro de Campos, Tabacaria: “Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu Estou hoje dividido entre a lealdade que devo À tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro (…) Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu (…) Conquistamos todo o mundo antes de nos levantarmos da cama Mas acordamos e ele é opaco Levantamo-nos e ele é alheio( …) Meu coração é um balde despejado Como os que invocam espíritos invoco A mim mesmo e não encontro nada…” Nas primeiras páginas do Livro encontramos: “A Glória noturna de ser grande não sendo nada! A majestade sombria de esplendor desconhecido… E na mesa do meu quarto absurdo, reles, empregado e anônimo, escrevo palavras como a salvação da alma e douro-me no poente impossível de montes altos, vastos e longínquos…”
Vivendo em Lisboa num quarto andar, trabalhando para o patrão Vasques num escritório na rua dos Douradores, com seu metro e setenta de altura e sessenta e um quilos, Bernardo Soares se autodiagnostica: “Aquilo que, creio, produz em mim o sentimento profundo em que vivo, de incongruência com os outros, é que a maioria pensa com a sensibilidade, e eu sinto com o pensamento. Para o homem vulgar, sentir é viver e pensar é saber viver. Para mim, pensar é viver e sentir não é mais do que o alimento do pensar”.
Ele e seu criador Fernando Pessoa também acabaram por realizar, sem querer, o sonho de muitos escritores maiores do século XX, a obra aberta. Júlio Cortazar, por exemplo, propõe, no Jogo da Amarelinha, ordens alternativas de leitura para seu romance, mas é algo calculado e sistemático. Da maneira como foram deixados os manuscritos e originais datilografados do Livro, na famosa arca de Pessoa, que até hoje está sendo explorada (com descobertas muitas vezes deploráveis), fica a critério de cada selecionador e organizador o resultado final. Desde que apareceu pela primeira vez (em dois volumes) em 1982, organizado pelo grande Jacinto do Prado Coelho (a partir da decifração e transcrição dos originais por duas especialistas em/fanáticas por Pessoa, Teresa Sobral Cunha e Maria Aliete Galhoz), O Livro do Desassossego já ganhou vários formatos, de acordo com a leitura de cada “ordenador”. No Brasil, anteriormente à edição que a Companhia das Letras coloca em circulação novamente (cujo responsável é Richard Zenith), houve uma magnífica e indispensável seleção feita por Leyla Perrone-Moisés (que foi como fiquei conhecendo o Livro, a princípio, e sempre me parece a “verdadeira” cara do Desassossego), publicada pela Brasiliense nos anos 80, e a versão “rebelde” (quanto ao cânone estabelecido por Prado Coelho) de Teresa Sobral Cunha, publicada pela editora da UNICAMP, nos anos 90. Como diz Zenith: “Oferece-se mais uma arrumação possível, sem desassossego pelo que tem de arbitrário e com a esperança de que o leitor invente a sua própria… Ler sempre fora de ordem eis a ordem correta para ler essa coisa parecida com um livro”.

CONTINUAÇÃO (30 de julho de 2002)
Na seção anterior comentei a importância que O Livro do Desassossego adquiriu dentro da obra de Fernando Pessoa, desde a sua publicação em 1982. Agora é preciso comentar mais detidamente a edição da Companhia das Letras que utiliza a organização feita por Richard Zenith. Apesar da sua qualidade e arrojo, ela não escapa do maior defeito dos volumes confiados a especialistas: o leitor tem de aturar inúmeros trechos truncados e inúteis, que terminam no meio de uma frase (uma vez que os especialistas acham que é necessário publicar TUDO), fora os trechos onde o organizador teve de adivinhar qual a palavra que falta ou que está ilegível!!!?? Porém, mais risíveis são os trechos em que se anota que há erro de português (com um sic). O bom senso, em se tratando de rascunhos e esboços, mandaria que simplesmente se corrigisse o erro, sobretudo quando é um caso gritante de concordância. Mas os especialistas consideram os textos dos seus autores mais sagrados do que um rabino consideraria a Torá ou um muçulmano o Alcorão. Isso faz com que seja árduo, cansativo e muitas vezes desanimador e contraproducente enfrentar o Livro tal como nos é proposto na edição da Companhia das Letras, ainda mais se pensarmos na sua carga de negatividade e seu clima paradoxal, que antecipam a obra de Samuel Beckett. Seria uma perda enorme, no entanto, desistir da leitura, pois poucas vezes se encontra na vida tantos trechos lindos, perturbadores e brilhantes. Como, por exemplo, o momento em que Bernardo Soares (suposto autor do Livro e que seria um alter ego de Pessoa assim como um personagem de romance o é para qualquer outro autor) fala da gramática, às tão vezes tão maltratada por ele: “A gramática, definindo o uso, faz divisões legítimas e falsas. Divide, por exemplo,os verbos em transitivos e intransitivos, porém o homem de saber dizer tem muitas vezes que converter um verbo transitivo em intransitivo para fotografar o que sente. Se quero dizer que existo, direi: Sou. Mas se quiser dizer que existo como entidade que a si mesmo se dirige e forma… como hei de empregar o verbo ser senão convertendo-o subitamente em transitivo? E então, triunfalmente, antigramaticalmente supremo, direi: Sou-me. Terei dito uma filosofia em duas palavras”.
E assim, numa Lisboa que aparece para o leitor de forma tão poderosa quanto a Paris de Baudelaire (“A manhã do campo existe; a manhã da cidade promete. Uma faz viver; a outra faz pensar”), tal como nos revelou Walter Benjamin, Bernardo Soares vai sendo-se (ou, pelo contrário, não sendo-se, continuar no clima “antigramaticalmente supremo”), equacionando ação e sonho, sentir e pensar, num “drama que consiste apenas no cenário”, que “estivesse às avessas”, e no qual ele é “espectador irônico de mim mesmo”;“… um romântico faria disto uma tragédia, um estranho sentiria isto como uma comédia; eu, porém, misturo as duas coisas, pois sou romântico em mim e estranho a mim, e viro a página para outra ironia”; “… sonho porque sonho, mas não sofro o insulto próprio de dar aos sonhos outro valor que não o de serem o meu teatro íntimo, como não dou ao vinho, de que todavia não me abstenho, o nome de alimento ou de necessidade da vida”.
E são (são-se) apenas migalhas de citações desse universo de 500 páginas na qual Soares, como a parte mais resignada e melancólica de Pessoa, arrasta a “a cruz do seu pensar” (tal como o Fausto do grande escritor português, a sua outra suprema obra-prima, e da qual há também diferentes ordenações e versões) como “transeunte de tudo até da minha própria alma, não pertenço a nada, não desejo nada, não sou nada, centro abstrato de sensações impessoais, espelho caído sentiente, virado para a variedade do mundo”. O transeunte de tudo, até da própria alma, previu com precisão seu reconhecimento póstumo: “Um dia talvez compreendam que cumpri, como nenhum outro, o meu dever nato de intérprete de uma parte do nosso século; e, quando o compreendam, hão de escrever que na minha época fui incompreendido, que infelizmente vivi entre desafeições e friezas, e que é pena que tal me acontecesse. E o que escrever isto será, na época em que o escrever, incompreendedor, como os que me cercam, do meu análogo daquele tempo futuro. Porque os homens só aprendem para uso dos seus bisavós, que já morreram”. E viva o desassossego. _________________________________