MONTE DE LEITURAS: blog do Alfredo Monte

24/08/2010

O GRANDE PRECURSOR: os 200 anos de Gógol

 

    As águas de março de 2009  marcam os 200 anos do nascimento de Nikolai Gógol, o menos conhecido dos gênios da literatura russa do século XIX. Num certo sentido (o que o torna tão fundamental quanto Edgar Allan Poe, também bicentenário neste ano ), porém, ele é o que se apresenta mais atual para nós, com sua linguagem límpida e seus textos “velozes”, a maioria deles de feitio curto, e que antecipam alguns dos escritores mais significativos da modernidade, como Kafka e Pirandello.

    Ucraniano, Gógol foi para São Petersburgo em 1828, tornando-se o primeiro grande cronista dessa cidade-ícone do imaginário literário. Aliás, ela é uma personagem tão importante quanto as pessoas em obras-primas como O Capote e O Nariz, certamente dois dos textos mais divertidos de todos os tempos, e que para o leitor brasileiro parecem antecipar um tom, uma atmosfera, um modo de ver a vida, que encontramos em boa medida na obra de Machado de Assis e, em larga medida, na de Lima Barreto.

    Antes de morrer prematuramente (como Poe) aos 43 anos, Gógol escreveu uma maravilhosa farsa teatral que ainda não envelheceu (O Inspetor Geral) e que podia ser anualmente encenada para nossos políticos e funcionários públicos; a pequena narrativa épica, muito bonita, Taras Bulba e o romance extraordinário e inacabado (o que não tira o prazer da leitura), Almas Mortas, magistralmente traduzido por Tatiana Belinky (editora Perspectiva) e eivado de ironia e crítica ferina das instituições (“almas”, na Rússia czarista, eram os mujiques, servos em condição de escravatura). No entanto, a fama mundial de Gógol se deve mesmo a novelas como Diário de um louco, O Nariz (estas duas publicadas juntas pela L± O Nariz foi traduzido e estudado por Arlete Cavalieri em O Nariz & A Vingança- A magia das máscaras, pela Edusp), e sobretudo a mais antológicas das histórias gogolianas, O Capote, na qual o insignificante e ridicularizado funcionário público (protótipo do “homo burocraticus” que aparecerá em Lima Barreto & Kafka),Akaki Akakiévitch Bachmatchkin se arruína para adquirir um belo e vistoso capote de inverno, que lhe dá pela primeira vez a sensação de ser uma pessoa…até que lhe é roubado.

      Percorrendo inutilmente as instâncias policias e hierárquicas para reavê-lo, ele é humilhado e esmagado de tal forma que cai doente, morre… e São Petersburgo ganha uma aparição fantasmagórica que agride transeuntes e passageiros de carruagens, para lhes tomar os casacos. Veja-se o estilo mortífero com que o texto é escrito: “Quem poderia ter acreditado que levaria no além-túmulo uma existência movimentada, capaz de conhecer aventuras ruidosas, sem dúvida para compensar o pouco brilho de sua vida terrena?”. Isso após narrar de forma sumamente cruel a morte do seu herói: “Graças à generosa colaboração do clima de Petersburgo, a doença evoluiu muito mais rapidamente do que se poderia esperar… O morto foi levado, colocado na sepultura e Petersburgo ficou sem Akaki Akakiévitch”.

     Existem alguns momentos de perfeição literária e, com certeza, O Capote é um deles.

 

22/08/2010

O coronel em seu labirinto

    Pode-se escolher dois caminhos para a leitura de O coronel e o lobisomem (1964), de José Cândido de Carvalho: um, calcando-se na óbvia picardia do texto, anulando toda a ideologia incômoda que sustenta uma figura como Ponciano de Azeredo Furtado, o narrador-protagonista, e limitando-se a uma fácil simpatia (e com certeza deve ter sido o caminho adotado pelo filme, pois há uma praga que se alastra ano a ano, essas produções que nivelam as mais diversas obras num mesmo clima de chanchada pseudopopular e quase que num mesmo sotaque, e que significam um retrocesso diante de toda a arte maior praticada no Brasil, que visava justamente a fuga ao mero pitoresco); outro, vendo o coronel não como um tipo talhado para “A praça é nossa”, e quejandos, mas como um dos avatares, suplantado ao longo da narrativa (que vai ficando cada vez mais tristonha), da nossa exploradora elite.

    Se o leitor quiser ter simpatia pelo coronel Ponciano, muito bem. A linguagem forjada pelo autor é poderosa o suficiente para isso. Só que é bom prestar atenção: trata-se de um homem que nada fez na vida, viveu de uma herança latifundiária, gabou-se de feitos mentirosos e nojentos (como a história da matança da onça), além de todo o –longo- episódio repelente em que são enaltecidas as brigas-de-galo (e qualquer um fica impossibilitado a priori de se considerar um ser humano, apreciando coisas desse tipo).

    A postura de Ponciano enquanto narrador é a de “dono do mundo”: até o céu parece ser dele. Daí a necessidade de um clima mítico e heróico, nos episódios do lobisomem e da sereia. E os episódios desabonadores, como a recusa de Isabel Pimenta em casar-se com ele, são retorcidos mais adiante, num auto-engano que não deveria nem poderia contaminar o leitor atento. Infelizmente, parece que quase todos se mostram indulgentes com o ridículo mundinho provinciano do coronel Ponciano e há até quem fale em Brasil genuíno, sabedoria rural e outras bobagens, esquecendo que muitos coronéis Poncianos ainda estão soltos por aí, basta ver parte da nossa elite, particularmente alguns políticos, e até dinastias políticas, que nos assombram e oneram ainda neste momento da nossa história.

    A 2a. parte é mais interessante e reveladora, sem que a linguagem perca a força. Transplantado para a cidade, Ponciano denuncia-se como o provinciano incapaz de lidar com as mazelas de uma outra elite que está constituindo-se, arrivista e urbana. E oportunista, livre das amarras da tradição. Como o Rubião, de Quincas Borba, ele será sangrado impiedosamente em seus bens por um grupo capitaneado por uma mulher que, tal como a Sofia da obra-prima de Machado de Assis, casada com um marido complacente e desejada por ele,  promete muito e nada cumpre, levando o coronel no bico: “Assim que [Nogueira, o marido] virasse as costas, entrava Ponciano velho no uso e gozo de dona Esmeraldina, dama de muita dificuldade  em conceder benefício.”   Nada mais patético, e sarcástico, do que verificar qual a verdadeira sereia na vida do coronel.

    E nada mais revelador da sua mentalidade do que o seguinte trecho (quando ele já está arruinado), além de proporcionar ao leitor um vislumbre do estilo de O coronel e o lobisomem, esse livro tão famoso, tão celebrado,  tão mal compreendido e desfigurado no seu aspecto mais crítico e mordaz: Arrumei outro tipo de soberba…um estreleiro de linda música nos cascos… Parava gente em admiração da peça, da sela avantajada e dos estribos de prata. Quanto mais a pecúnia minguava, mais eu arranjava grandeza… Espalharam que eu não andava certo da bola, possuído de macaquinhos no sótão. O que eu não queria é que filho de vaca nenhum risse do meu tropeço.”

(resenha publicada em 15 de outubro de 2005)

21/08/2010

A repartição dos pães de Clarice

No lindíssimo A repartição dos pães (publicado em 1964 na coletânea A legião estrangeira), um grupo de pessoas, contrafeito, chega para um almoço “de obrigação” e é surpreendido com uma refeição preparada “para homens de boa vontade”: “Então aquela mulher dava o melhor não importa a quem?” Trata-se de uma boa ilustração da situação da própria Clarice Lispector ao tornar-se cronista profissional, devido a problemas financeiros, e no entanto brindando o leitor de jornal com alguns textos inesquecíveis, dando o melhor não importa a quem.

Dessa atividade surgiu um livro póstumo, com um título digno da autora, A descoberta do mundo. Ali eram reunidas quase todas as crônicas que escrevera (de 1967 a 1973) para o Jornal do Brasil, 500 páginas onde se podia verificar como frutificara o processo de aproveitar o “fundo de gaveta” que já fizera sua estréia na segunda parte de A legião estrangeira, textos sem gênero, anotações livres de quaisquer amarras, fragmentos que circulavam pela totalidade de uma obra ímpar. Se os fragmentos publicados de O livro do desassossego, de Fernando Pessoa, indicam um palácio em ruínas, essas “pulsações” (para utilizar da definição dada a Um sopro de vida) indicam que Clarice realmente optou por repartir seus pães com generosidade, desprivilegiando o publicado em livro de reter apenas o melhor.

Porém, como todos os autores mortos, Clarice tem que sofrer o processo do mercado. Se não se descobre mais nada de inédito, então aproveita-se o que já está aí: a Rocco pegou as crônicas de A descoberta do mundo, fez uma seleção aleatória, embaralhou a ordem cronológica e de 500 passamos a 200 páginas com um título deplorável (porém perfeito nessa nossa época de auto-ajuda): Aprendendo a viver (e ela que já achava terrível o título dado à segunda parte de A legião estrangeira quando foi publicada em separado: Para não esquecer!). Qualquer um que passeie os olhos pelos títulos da obra clariceana poderá ver que esse “novo livro” não combina nada. Enfim… o melhor não importa a quem.

E a mesa está preparada realmente “para homens de boa vontade”, pois não é que a seleção ainda assim é muito boa?  E até que os textos organizados dessa maneira ficaram mais límpidos, sem a indicação cronológica (que, entretanto, aparece no final). Lembra, guardadas as devidas proporções, o recorte realizado por Leyla Perrone-Moisés para uma edição do Livro do Desassossego, de Fernando Pessoa, publicada pela Brasiliense.

Deveria ter sido mais rigorosa a escolha, há trechinhos que poderiam ser sacrificados sem dó nem piedade. Se a autora tinha um carinho pelo que chamava de “lixo”, pelo malfeito, pelo tosco, e os colocou na sua coluna, não precisamos ter a mesma complacência numa seleção. Coisas como: “Sou tão misteriosa que não me entendo.”  Ou:  “Um domingo de tarde sozinha em casa dobrei-me em dois para a frente –como em dores de parto—e vi que a menina em mim estava morrendo. Nunca esquecerei esse domingo. Para cicatrizar levou dias. E eis-me aqui. Dura, silenciosa e heróica. Sem menina dentro de mim.”

Mas boa parte é mesa farta. Os textos de reminiscências da infância  são  banquete à parte (alguns foram publicados com outros títulos, como “Tortura e glória” que virou o conto-título de Felicidade clandestina). Em “Medo da eternidade”, por exemplo, ela experimenta pela primeira um chiclete do qual se diz que “dura a vida inteira” e ela se sente culpada por jogá-lo fora por causa do “gosto de nada” daquele “puxa-puxa cinzento de borracha”: “E a vantagem de ser uma bala eterna me enchia de uma espécie de medo, como se tem diante da idéia de eternidade ou de infinito. Eu não quis confessar que não estava à altura da eternidade. Que só me dava era aflição.” Perdido o chiclete, o alívio: “Sem o peso da eternidade sobre mim”.

Para quem estranhar, a advertência da própria autora: “Vocês vêem como estou escrevendo à vontade ? Sem muito sentido, mas à vontade. Que importa o sentido ? O sentido sou eu.”

 

Perecível, contingente, transcendente: a poesia de Adélia Prado

 

Num dos seus mais belos poemas Adélia Prado afirma que a calça azul-pavão de um conhecido “faz parte da Bíblia”. Esse contínuo remeter do que é perecível e contingente para o transcendente, esse mergulho sem concessões no cotidiano mais trivial para encontrar a salvação prometida pelo Livro dos Livros, é que fazem com que alguns dos primeiros livros de poesia (Bagagem, O coração disparado, O Pelicano) sejam tão carismáticos. Agora que a Record está relançando toda a sua obra, temos a chance de reavaliar alguns títulos que pareciam menos satisfatórios, caso de Terra de Santa Cruz, publicado há exatamente um quarto de século.

Dividido em 3 partes (Território, Catequese e Sagração) contém 40 poemas que, a uma primeira leitura, pareciam uma diluição do impacto do primeiro livro, Bagagem (1976), confirmado no seguinte, O coração disparado (78): um “eu lírico” que insistia na sua particularidade—mulher, mineira, provinciana e católica—para instaurar um clima poético que se transubstanciava numa grande narrativa: como fazemos parte da Bíblia, o lírico se transformava em épico, fazíamos todos parte de uma história multiplicada em lampejos, cacos para um vitral. Poucas obras contemporâneas têm esse poder de nos proporcionar o sentimento de realmente fazermos parte da humanidade, de estarmos todos na barca dos homens: “É bom pedir socorro ao Senhor Deus dos Exércitos/ ao nosso Deus que é uma galinha grande/ Nos põe debaixo da asa e nos esquenta/ Antes, nos deixa desvalidos na chuva/ pra que aprendamos a ter confiança n’Ele/ e não em nós.”

E por isso Terra de Santa Cruz é mais que um livro individual, faz parte da Narrativa maior que Adélia “Scharazad” Prado vem engendrando em forma de livro, para nós, há três décadas. Ela mesma o diz: Tenho os mesmos desejos de trinta anos atrás/ imutáveis como os mosquitos na cozinha ensolarada/ minha mãe fazendo café/ e meu pai sentado, esperando”.

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Tais imagens indicariam conformismo, resignação à vida que levamos ? Não. A bonomia, a tom cálido e saboroso dos poemas da grande poeta mineira não escondem a faca no peito da condição humana, “e não sendo melhor que Jô choro meus desatinos”. E o apelo ao divino é feito com o corpo: “O que farei com este meu corpo inóspito / já que não respondes nem me abres a porta / Tem pena de mim/ Não compreendo nada. Só Vos desejo / e meu desejo é como se miasse por Vós…” A imagem do miado, ligada ao cio, revela a voltagem erotizada de uma linguagem onde o místico cumpre sua função desde os tempos de Santo Agostinho: ser exaltação, desmesurar o que a sociedade reprime e vê com maus olhos: Eu me casei e tenho a mesma medida de aflição/ O dia passa, a noite, saio da sombra e digo/ é só isso que eu quero/ ficar no sol até enrugar o couro/ Mas vai-se o sol também atrás do morro/ a noite vem e passa sobre mim/ que longe de espelhos alimento sonhos/ quanto a viagens, glórias/ homens raros me ofertando colares, palavras/ que se podem comer, de tão doces/ de tão aquecidas, corporificadas/ A parreira verga de flores/ eu durmo inebriada/ achando pouca a beleza do mundo/ ansiando a que não passa nem murcha/ nem fica alta, nem longe/ nem foge de encontrar meu duro olhar de gula/ A beleza imóvel/ a cara de Deus que vai matar minha fome”.

   A poesia de Adélia Prado é como a mesa preparada pela mulher do conto A repartição dos pães, de Clarice Lispector: foi posta para dar o melhor, não importa a quem.

(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 12 de agosto de 2006)

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20/08/2010

GÊNIO DA ARCA OU PESSOA-LIVRO?

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(resenha publicada em 23 de julho de 2002, na comemoração 20 anos de publicação)

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     Há exatamente 20 anos aconteceu uma reviravolta com relação à obra de Fernando Pessoa, com a publicação de O Livro do Desassossego, organizado a partir de centenas de fragmentos em prosa. Constatou-se então que o gênio do escritor português (falecido em 1935) ia muito, muito além da poesia pela qual era famoso. Como mostra Robert Bréchon na sua excelente biografia Estranho Estrangeiro, a prosa composta por “Bernardo Soares, ajudante de guarda-livros na cidade de Lisboa” teve mais leitores e admiradores em todo o mundo do que todo o restante da obra. Muitos até acreditam que O Livro do Desassossego seja a grande obra-prima de Fernando Pessoa. Como se sabe, ele se desdobrou em heterônimos tão conhecidos quanto ele mesmo, o ortônimo: Álvaro de Campos, Alberto Caeiro, Ricardo Reis. Pessoa considerava Bernardo Soares, o autor “definitivo” do livro desassossegado (pois ele começou a ser escrito por “outro”, Vicente Guedes), um semi-heterônimo, por ser muito parecido com ele, sem a diferenciação extrema dos “outros”. Curiosamente, lendo os mais de 500 fragmentos, o leitor tem a impressão de estar acompanhando um desdobramento do clima de um dos mais famosos (e belos) poemas de Álvaro de Campos, Tabacaria: “Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu Estou hoje dividido entre a lealdade que devo À tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro (…) Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu (…) Conquistamos todo o mundo antes de nos levantarmos da cama Mas acordamos e ele é opaco Levantamo-nos e ele é alheio( …) Meu coração é um balde despejado Como os que invocam espíritos invoco A mim mesmo e não encontro nada…” Nas primeiras páginas do Livro encontramos: “A Glória noturna de ser grande não sendo nada! A majestade sombria de esplendor desconhecido… E na mesa do meu quarto absurdo, reles, empregado e anônimo, escrevo palavras como a salvação da alma e douro-me no poente impossível de montes altos, vastos e longínquos…”

   Vivendo em Lisboa num quarto andar, trabalhando para o patrão Vasques num escritório na rua dos Douradores, com seu metro e setenta de altura e sessenta e um quilos, Bernardo Soares se autodiagnostica: “Aquilo que, creio, produz em mim o sentimento profundo em que vivo, de incongruência com os outros, é que a maioria pensa com a sensibilidade, e eu sinto com o pensamento. Para o homem vulgar, sentir é viver e pensar é saber viver. Para mim, pensar é viver e sentir não é mais do que o alimento do pensar”.

     Ele e seu criador Fernando Pessoa também acabaram por realizar, sem querer, o sonho de muitos escritores maiores do século XX, a obra aberta. Júlio Cortazar, por exemplo, propõe, no Jogo da Amarelinha, ordens alternativas de leitura para seu romance, mas é algo calculado e sistemático. Da maneira como foram deixados os manuscritos e originais datilografados do Livro, na famosa arca de Pessoa, que até hoje está sendo explorada (com descobertas muitas vezes deploráveis), fica a critério de cada selecionador e organizador o resultado final. Desde que apareceu pela primeira vez (em dois volumes) em 1982, organizado pelo grande Jacinto do Prado Coelho (a partir da decifração e transcrição dos originais por duas especialistas em/fanáticas por Pessoa, Teresa Sobral Cunha e Maria Aliete Galhoz), O Livro do Desassossego já ganhou vários formatos, de acordo com a leitura de cada “ordenador”. No Brasil, anteriormente à edição que a Companhia das Letras coloca em circulação novamente (cujo responsável é Richard Zenith), houve uma magnífica e indispensável seleção feita por Leyla Perrone-Moisés (que foi como fiquei conhecendo o Livro, a princípio, e sempre me parece a “verdadeira” cara do Desassossego), publicada pela Brasiliense nos anos 80, e a versão “rebelde” (quanto ao cânone estabelecido por Prado Coelho) de Teresa Sobral Cunha, publicada pela editora da UNICAMP, nos anos 90. Como diz Zenith: “Oferece-se mais uma arrumação possível, sem desassossego pelo que tem de arbitrário e com a esperança de que o leitor invente a sua própria… Ler sempre fora de ordem eis a ordem correta para ler essa coisa parecida com um livro”.

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CONTINUAÇÃO  (30 de julho de 2002)

     Na seção anterior comentei a importância que O Livro do Desassossego adquiriu dentro da obra de Fernando Pessoa, desde a sua publicação em 1982. Agora é preciso comentar mais detidamente a edição da Companhia das Letras que utiliza a organização feita por Richard Zenith. Apesar da sua qualidade e arrojo, ela não escapa do maior defeito dos volumes confiados a especialistas: o leitor tem de aturar inúmeros trechos truncados e inúteis, que terminam no meio de uma frase (uma vez que os especialistas acham que é necessário publicar TUDO), fora os trechos onde o organizador teve de adivinhar qual a palavra que falta ou que está ilegível!!!?? Porém, mais risíveis são os trechos em que se anota que há erro de português (com um sic). O bom senso, em se tratando de rascunhos e esboços, mandaria que simplesmente se corrigisse o erro, sobretudo quando é um caso gritante de concordância. Mas os especialistas consideram os textos dos seus autores mais sagrados do que um rabino consideraria a Torá ou um muçulmano o Alcorão. Isso faz com que seja árduo, cansativo e muitas vezes desanimador e contraproducente enfrentar o Livro tal como nos é proposto na edição da Companhia das Letras, ainda mais se pensarmos na sua carga de negatividade e seu clima paradoxal, que antecipam a obra de Samuel Beckett. Seria uma perda enorme, no entanto, desistir da leitura, pois poucas vezes se encontra na vida tantos trechos lindos, perturbadores e brilhantes. Como, por exemplo, o momento em que Bernardo Soares (suposto autor do Livro e que seria um alter ego de Pessoa assim como um personagem de romance o é para qualquer outro autor) fala da gramática, às tão vezes tão maltratada por ele: “A gramática, definindo o uso, faz divisões legítimas e falsas. Divide, por exemplo,os verbos em transitivos e intransitivos, porém o homem de saber dizer tem muitas vezes que converter um verbo transitivo em intransitivo para fotografar o que sente. Se quero dizer que existo, direi: Sou. Mas se quiser dizer que existo como entidade que a si mesmo se dirige e forma… como hei de empregar o verbo ser senão convertendo-o subitamente em transitivo? E então, triunfalmente, antigramaticalmente supremo, direi: Sou-me. Terei dito uma filosofia em duas palavras”.

    E assim, numa Lisboa que aparece para o leitor de forma tão poderosa quanto a Paris de Baudelaire (“A manhã do campo existe; a manhã da cidade promete. Uma faz viver; a outra faz pensar”), tal como nos revelou Walter Benjamin, Bernardo Soares vai sendo-se (ou, pelo contrário, não sendo-se, continuar no clima “antigramaticalmente supremo”), equacionando ação e sonho, sentir e pensar, num “drama que consiste apenas no cenário”, que “estivesse às avessas”, e no qual ele é “espectador irônico de mim mesmo”;“… um romântico faria disto uma tragédia, um estranho sentiria isto como uma comédia; eu, porém, misturo as duas coisas, pois sou romântico em mim e estranho a mim, e viro a página para outra ironia”; “… sonho porque sonho, mas não sofro o insulto próprio de dar aos sonhos outro valor que não o de serem o meu teatro íntimo, como não dou ao vinho, de que todavia não me abstenho, o nome de alimento ou de necessidade da vida”.

     E são (são-se) apenas migalhas de citações desse universo de 500 páginas na qual Soares, como a parte mais resignada e melancólica de Pessoa, arrasta a “a cruz do seu pensar” (tal como o Fausto do grande escritor português, a sua outra suprema obra-prima, e da qual há também diferentes ordenações e versões) como “transeunte de tudo até da minha própria alma, não pertenço a nada, não desejo nada, não sou nada, centro abstrato de sensações impessoais, espelho caído sentiente, virado para a variedade do mundo”. O transeunte de tudo, até da própria alma, previu com precisão seu reconhecimento póstumo: “Um dia talvez compreendam que cumpri, como nenhum outro, o meu dever nato de intérprete de uma parte do nosso século; e, quando o compreendam, hão de escrever que na minha época fui incompreendido, que infelizmente vivi entre desafeições e friezas, e que é pena que tal me acontecesse. E o que escrever isto será, na época em que o escrever, incompreendedor, como os que me cercam, do meu análogo daquele tempo futuro. Porque os homens só aprendem para uso dos seus bisavós, que já morreram”. E viva o desassossego. _________________________________

10/08/2010

O Bloomshakespeare

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[resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em  11 de julho de 2000]

“Quando Shakespeare começa a ser Shakespeare? Sua primeira realização absoluta é a surpreendente Trabalhos de amor perdidos (1594)… Nenhum outro escritor jamais teve nada semelhante aos recursos de Shakespeare, tão abundantes em Trabalhos de amor perdidos que sentimos que se atingiram muitos dos limites da linguagem, de uma vez por todas. A grande originalidade de Shakespeare está na representação do personagem… ele muda todo o sentido do que é criar um homem com palavras, acrescenta à função da literatura de imaginação, que era instrução  de como falar aos outros, a lição mais dominante, se bem que mais melancólica, da poesia: como falar a nós mesmos”.

Harold Bloom desenvolveu as afirmações acima (que podem ser encontradas no seu O cânone ocidental, de 1995, a respeito do qual mantenho uma visão ambígua, de admiração com reserva) num livro de 890 páginas: Shakespeare- A invenção do humano [traduzido por José Roberto O´Shea para a editora Objetiva], um dos lançamentos memoráveis deste ano.

Como se pode depreender do trecho citado, para Bloom a invenção do humano realizada por Shakespeare consiste na interiorização do personagem, no exercício de entreouvir-se, ele debatendo consigo mesmo o tempo todo. Se ele considera Trabalhos de amor perdidos a primeira peça indiscutível do bardo, o primeiro personagem a delinear a nossa invenção é o bastardo Faulconbridge de King John- Rei João (escrita mais ou menos na mesma época, nos últimos anos do século XVI): “Faulconbridge  fala uma linguagem inteiramente individualizada, combina heroísmo e intensidade cômica e possui uma psique”. Estamos a caminho, portanto, de Hamlet, rei Lear, Iago, Macbeth…

Bloom fala muito de Hamlet, o maior personagem shakesperiano (o ensaio sobre a peça é o mais extenso do livro), mas também dá bastante espaço para Falstaff, das peças que compõem Henrique IV, e mostra um apreço especial por Rosalind, de Como gostais, que sempre imaginei como uma espécie de precursora das heroínas de Jane Austen.

Por que se interessar por um livro imenso sobre Shakespeare e ler tanto a respeito de um punhado de personagens fictícios? Pode-se argumentar que ele é o escritor-mor, pelo menos da cultura ocidental, pode-se afirmar que os argumentos de Bloom são consistentes e convincentes, ultrapassando sua passionalidade folclórica. E Shakespeare está na moda (quando, aliás, não está?): não estamos assistindo  a uma novela das seis baseada em A megera domada? Não é evidente o clima sub-shakesperiano de Gladiador, muito mais acentuado do que a sua pseudo-ambientação romana? Richard Harris, que faz Marco Aurélio, parece pronto a encarnar o fantasma do pai de Hamlet ou o rei Lear nas charnecas, e Connie Nielsen perguntando se “Roma vale a vida de um homem bom” parece aspirar à condição de uma personagem de Júlio César, Coriolano ou Antonio e Cleópatra, mas tadinha dela…

Todavia, os melhores motivos para se ler A invenção do humano encontram-se no objetivo primário de Bloom e no seu estilo.

Quanto ao objetivo, ele queria transmitir ao leitor comum, apaixonadamente, a importância do autor de Hamlet (com o exagero discutível da tese da “invenção do humano”–só se for o humano europeu e anglófilo). Por isso, escreveu um ensaio sobre cada peça, o que é maravilhoso para quem quer ter um conhecimento mais sistemático, menos fragmentário do que é a obra de Shakespeare. A palavra “manual” é um pouco incômoda, sempre parece desvalorizar um livro, entretanto considero A invenção do humano um ótimo manual introdutório, apesar de haver alguns livros esplêndidos, num nível menos panorâmico, como Sobre Shakespeare, do maior dos críticos, Northrop Frye (com o qual Bloom polemiza ao longo do seu trabalho, contestando algumas interpretações), ou Falando sobre Shakespeare, de Bárbara Heliodora, só para dar dois exemplos.

Quanto ao estilo, o calhamaço de Bloom é uma delícia, ao mesmo tempo analisa a obra e dá um testemunho de paixão, de engajamento pessoal no que está analisando. É óbvio que a maior parte dos que escreveram na imprensa sobre ele e criticaram seu lado mais extravagante e vulnerável (o fato de Bloom bater de frente contra as principais teorias críticas contemporâneas, para ele frutos de uma “escola do ressentimento”) não tem o conhecimento, a erudição, a competência, e especialmente a verve do autor de O cânone ocidental (nem eu tampouco).

Alguns leitores podem reclamar da repetição excessiva de algumas frases-chaves, de algumas afirmações que atravessam o livro inteiro. É, não obstante, uma estratégia e não atrapalha a fluência do texto. Bloom, como bom professor que é, deve ter imaginado que num tal catatau seria bom lembrar ao leitor dos objetivos gerais. Afinal, são quase quarenta peças analisadas (felizmente, ele resume o enredo de cada uma para quem não as conhece, e quem pode dizer que conhece todas as peças de Shakespeare?). E, é claro, não são quaisquer peças. Só Hamlet, Rei Lear, Macbeth, Otelo, as maiores tragédias, já ocuparam livros inteiros cada uma.

A sensação de ler A invenção do humano é a de devorar um vasto e empolgante romance.

VER TAMBÉM NO BLOG:

https://armonte.wordpress.com/2010/12/03/a-mulher-negra-o-homem-dourado-e-o-malabarista-de-palavras/

https://armonte.wordpress.com/2011/04/17/os-personagens-de-shakespeare-em-quatro-atos-longos-e-um-quinto-ato-curto/

https://armonte.wordpress.com/2010/12/05/o-contexto-de-shakespeare-sob-o-signo-da-peste/

https://armonte.wordpress.com/2012/04/02/tres-comentarios-sobre-rei-lear/

https://armonte.wordpress.com/2010/12/04/hamlet-generico/

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05/08/2010

ENFORCANDO-SE NOS LAÇOS DE TERNURA

Pelo menos dois tremendos desapontamentos Anne Tyler teve de enfrentar nos últimos anos. Um, é o fato de ter sido omitida por Harold Bloom na lista final de O Cânone Ocidental, das leituras que valem a pena ser resgatadas da enxurrada anual de lançamentos; a outra: encarar as capas que os editores brasileiros colocam nas traduções dos seus romances.

Por exemplo, na tradução anterior de Escada dos Anos (editada pela Mandarim), um tal Paulo Rogério dos Santos concebeu uma mulher esvoaçante e diáfana diante de um mar douradíssimo. Lembrava aqueles comerciais do Leite Molico no qual as pessoas que o tomavam dançavam sem parar nos tetos de edifícios, como que acometidas de uma diarréia cerebral que as obrigava a um instantâneo ataque de comportamento debilóide. Pois a Record relançou o livro em nova tradução, até mais caprichada, nem por isso melhorou a embalagem agridoce com a qual insistem em sabotar um dos principais nomes da ficção contemporânea.

Agridoce? Nada mais amargo do que o saldo final de Escada dos Anos, onde a escritora que pôs Baltimore definitivamente no mapa da literatura mostra como construímos jaulas à nossa volta, mesmo que tentemos depurar nossa vida. É o que faz Delia, a protagonista. Casada, três filhos, primeiro flerta com a possibilidade de adultério com um rapaz que conhece num supermercado (o começo do livro é ótimo, uma prova do domínio absoluto de Tyler sobre o reino do diálogo). Quando está passando férias com a família, um dia sai pela praia afora, pega uma carona com um desconhecido e some, assumindo nova identidade na pequena cidade de Bay Borough, a princípio como secretária, depois como uma espécie de governanta. O período como secretária, quando Delia procura esvaziar sua antiga personalidade, seus hábitos e “sentimentos” adquiridos, é o grande momento do romance (que perde um pouco do pique a seguir): “Era curioso como a vida dava um jeito de erguer camadas de coisas em torno de uma pessoa. Ela já adquirira o abajur, porque a lâmpada no teto se mostrara inadequada para ler na cama; e guardava uma pilha de copos de papel e uma caixa de saquinhos de chá na prateleira do closet, usando até agora a água quente da torneira do banheiro; era óbvio que precisava comprar um segundo vestido. Ontem à noite, a primeira noite realmente quente do verão, ela pensara: preciso comprar um leque. Mas depois dissera a si mesma: pare com isso, pare enquanto ainda tem a vantagem”.

Logo Delia vai criar relacionamentos, repetir padrões emocionais, até o ponto em que Escada dos Anos equacionará sua nova vida com relação à antiga. Sempre com a atenção implacável, até obsessiva, de Tyler com os detalhes (roupas, objetos, gestos), atenção que supera até mesmo a maestria dos diálogos.

Talvez seja um fato incontestável que ela diluiu seu talento com cartas marcadas, já sem a força total dos romances dos anos 80 (Escada dos Anos é de 1995), que talvez fiquem como o grande período de sua obra, com títulos do calibre de A Passagem de Morgan (80), o extraordinário Refeição no Restaurante da Saudade (82), os também maravilhosos O Turista Acidental (85), que foi filmado lindamente por Lawrence Kasdan (com um William Hurt simplesmente genial), e Lições de Vida (88).

Às vezes sentimos falta também da densidade de uma Mary Gordon (Homens & Anjos) ou da voltagem emocional de uma Sue Miller (Por Amor), para lembrar contemporâneas suas. Os personagens de Anne Tyler são muito cheios de nhénhézices, tendo crises de angústia por ultrapassar um sinal vermelho (e isso foi ficando cada vez mais pronunciado nos livros mais recentes). Mas ela jamais cai no nível do mero entretenimento ou se torna uma auto-ajuda ficcional. Basta ler um trecho como o seguinte, para não haver dúvidas: “Lembro de uma fotografia que ele tirou quase no final de sua vida. Mostra sua mesa posta para a ceia de natal. O próprio Savage senta entre as cadeiras vazias, esperando por sua família. Sucessivas cadeiras, os talheres e louças na mesa, até um cadeirão de bebê, tudo arrumado. E não posso deixar de pensar, quando olho para essa foto, aposto que foi o melhor que houve naquele dia. Desse momento em diante, foi tudo por água abaixo. Os filhos e filhas chegaram, repreenderam suas crianças pelas maneiras à mesa, lembraram-se de incidentes desagradáveis ocorridos há quinze anos; e um bebê não parava de choramingar, deixando todo mundo com dor de cabeça. Só que naquele instante nada disso acontecera ainda, a mesa estava linda, uma mesa de sonho, o velho Savage sentia-se muito feliz…”

Por isso, mesmo não oferecendo mais surpresas, a autora consegue fazer de Escada dos Anos um romance em que o leitor descortina a negra realidade que existe por trás do palco de sentimentalismo no qual se desenrola a vida familiar. Os laços de ternura são também a corda onde a gente se enforca na própria emoção embargada.

(a resenha acima, publicada de forma condensada em 25 de outubro de 2008, é uma versão de outra publicada em 29 de julho de 1997, quando do lançamento da tradução editada pela Mandarim).

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https://armonte.wordpress.com/2012/12/27/solidao-em-familia-a-moda-anne-tyler/

Anne TylerLadder of years Tyler

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